O voto do Conselho de Segurança

José Horta Manzano

A ONU, fundada em 1945, é retrato do mundo político daquele momento. A antiga Sociedade das Nações, criada logo após o primeiro conflito mundial, não tinha sido capaz de evitar o segundo. A ONU foi pensada como anteparo a futuras guerras. Embora não tenha conseguido evitar todas, contribuiu para impedir a catástrofe nuclear que se temia nos tempos da Guerra Fria.

Quando da fundação, havia duas condições para fazer parte do clube. A primeira era ser Estado independente. A segunda, ter declarado guerra à Alemanha pelo menos três meses antes do fim do conflito. Os membros fundadores não foram muitos: resumiram-se a 51. Os perdedores da guerra só foram admitidos anos mais tarde, e não todos ao mesmo tempo. Hungria e Itália entraram em 1955. No ano seguinte, foi a vez do Japão. A Alemanha só se tornou membro em 1973.

ONU ‒ sede de Nova York

Prevendo que, em casa onde vive muita gente, todos falam e ninguém se entende, os idealizadores criaram o Conselho de Segurança, órgão que, de facto, toma as decisões importantes. O CS, como é conhecido, compõe-se de 15 membros. Cinco deles são permanentes e os demais, temporários.

Os membros permanentes são justamente os maiores e mais fortes aliados que haviam vencido a Segunda Guerra. Por acaso, todos eles acabaram se tornando potências nucleares, ainda que não o fossem em 1945. São eles: EUA, Rússia (antes URSS), China, Reino Unido e França. Os dez membros rotativos são eleitos com mandato de dois anos. A cada ano, renova-se metade das dez cadeiras.

Os não-permanentes são Estados distribuídos equitativamente pelos continentes. A América Latina tem direito a duas cadeiras. Entre os membros não-permanentes, o Japão é o que já foi eleito mais vezes: está cumprindo o 11° biênio. Em segundo lugar, vem o Brasil, que já ocupou uma cadeira no CS durante 10 biênios. Em seguida, está a Argentina, eleita 9 vezes. Por razões que a razão desconhece, o Brasil não se tem candidatado a uma vaga rotativa estes últimos anos. Pelo mecanismo de funcionamento da ONU, terá de esperar até 2022 ou 2023 para postular de novo.

Atualmente, o Uruguai (biênio 2016-2017) e a Bolívia (biênio 2017-2018) ocupam as cadeiras do CS reservadas para a América Latina. O Japão, membro ativo e assíduo, tem lugar garantido até o fim de 2017. As regras da ONU não permitem a eleição de um membro não-permanente para dois biênios consecutivos.

ONU ‒ sede de Genebra

Para ser bem sucedida, uma proposição submetida ao CS terá de ser aceita pela maioria simples dos 15 membros, ou seja, se obtiver 8 votos a favor, entra em vigor. Mas há um senão: o voto contrário de um dos membros permanentes tem valor de veto.

O bombardeio com armas químicas orquestrado pelo ditador da Síria contra um vilarejo, que matou dezenas de civis e horrorizou o mundo, foi objeto de pedido de resolução de reprovação apresentado ao CS por EUA, França e Reino Unido. Submetido ao voto, o pedido obteve 10 votos a favor, 3 abstenções e 2 votos contrários.

Embora a maioria dos membros tenha votado a favor, um dos que se opuseram era a Rússia, cujo voto contrário tem valor de veto. Assim, a resolução não pôde ser  adotada. Sabe o distinto leitor qual foi o país que acompanhou a Rússia? Pois foi nossa vizinha e hermana, a Bolívia.

Surpreendente, não? Nenhuma decisão governamental é inocente ‒ há sempre algum interesse por detrás, ainda que não seja claro à primeira vista. Não acredito em legames ideológicos entre a Bolívia e o sanguinário ditador sírio que justifiquem voto tão bizarro. O buraco é mais embaixo.

Com o “projeto criminoso de poder” fora de cena, o Brasil volta ao caminho da civilização. Banidos os Kirchner, a Argentina também se afasta da esfera bolivariana. A aproximação entre Cuba e EUA, inaugurada por Obama, tende a apartar a ilha caribenha da influência de Caracas. Por fim, a orientação bolivariana da própria Venezuela está em acelerada decomposição. O alinhamento da Bolívia à Rússia parece ser sinal desesperado de busca de apoio, de procura de novo padrinho, em virtude de crescente isolamento. Não acredito que Moscou se deixe enternecer pelo olhar langoroso de La Paz.

Não tinha outro jeito

José Horta Manzano

James Bond

Custou, mas não tinha outro jeito. Sabe quando a gente faz alguma coisa, não por vontade, mas porque não há como escapar? Pois foi o que fez nosso requintado governo no caso de señor Roger Pinto Molina, aquele senador boliviano que, tempos atrás, se tinha refugiado na embaixada do Brasil em La Paz.

O caso, que se arrasta há mais de três anos, anda meio esquecido. Também, pudera: no lamaçal que escorre atualmente, assunto abaixo de um bilhão não interessa a ninguém.

Sentindo-se perseguido pelo governo de seu país, o senador boliviano pediu asilo em nossa embaixada em maio de 2012. Fortemente contrariado em sua tacanha ideologia, nosso governo resolveu passar por cima dos usos e costumes internacionais em matéria de asilo político.

Em vez de pressionar para que Evo Morales concedesse salvo-conduto permitindo ao refugiado viajar até o aeroporto e embarcar para o Brasil, o Planalto fez corpo mole. Para não ferir susceptibilidades bolivarianas em La Paz, engavetaram o assunto e esqueceram o perseguido.

Roger Pinto 2Meses mais tarde, um funcionário da embaixada, condoído da sorte do infeliz, lançou-se numa aventura rocambolesca, digna de filme de James Bond. Acabou trazendo o senador, por vales e montes, até território brasileiro. Foi aí que a coisa pegou feio. A atitude do funcionário indignou o Planalto que, enfurecido, espalhou censuras e punições. Cabeças rolaram. Até nosso ministro de Relações Exteriores foi defenestrado, tamanha era a ira de nossos estranhos governantes.

Uma vez no Brasil, o interessado continuou num limbo. Diferentemente de signor Battisti, aquele terrorista acolhido com tapete vermelho e banda de música, señor Pinto Molina continuou abandonado à própria sorte. Viveu ao deus-dará por anos, em Brasília, hospedado no quarto de empregada de um conhecido de bom coração.

Faz alguns dias, finalmente, o homem conseguiu o asilo político solicitado em 2012. Como eu disse mais acima, a concessão do asilo veio tardia, espremida, de nariz torcido, a contragosto.

Dilma e Evo

Tout ça pour ça? Tanta história pra tão pouco resultado?, perguntariam os franceses. Fizeram um auê danado – que pegou mal – e, no final, acabaram acolhendo o político. Pergunto: terá valido a pena demitir um ministro da República, como se criminoso fosse?

Francamente, nosso governo não deixa escapar nenhuma ocasião de reafirmar sua pequenez.

Arma secreta

José Horta Manzano

Heroi 1Todo país guarda memória de algum dirigente excepcional, daqueles que só aparecem uma vez por século. Refiro-me a gente da estirpe de um Winston Churchill, de um Otto von Bismarck, de um Abraham Lincoln ou de um Charles de Gaulle. O Canadá também teve o seu. Foi o Primeiro-Ministro Pierre Elliott Trudeau (1919-2000).

Dotado de grande simpatia e de espírito vivo, Trudeau segurou as rédeas de seu país em duas ocasiões, totalizando 15 anos. São de sua lavra algumas pérolas oratórias. Certa ocasião, em discurso no Clube de Imprensa de Washington, soltou uma preciosidade curta, grossa e irretocável. Referindo-se aos Estados Unidos, disse:

Interligne vertical 3Interligne vertical 3«Living next to you is in some ways like sleeping with an elephant. No matter how friendly and even-tempered is the beast, one is affected by every twitch and grunt.»

Ser vizinho seu é como dormir com um elefante. Por mais amistoso e manso que seja o animal, a gente sente cada movimento e cada grunhido.

Fazia alusão, naturalmente, ao descomunal peso demográfico, econômico, militar e político do vizinho. Os dois países são separados (ou unidos, como queira) por quase 9000km de linha demarcatória, a mais longa fronteira do planeta entre duas nações.

Fronteira 1Embora a gente nem sempre se dê conta, o Brasil assume, na América do Sul, o papel do elefante. Com população e peso econômico equivalente ao de todos os hermanos reunidos, nosso país é observado com crescente atenção pelos vizinhos. Nossos sobressaltos nacionais extrapolam fronteiras.

A edição online deste domingo do espanhol El País aponta exatamente para essa influência que, o mais das vezes, nos passa despercebida. Se mensalões, petrolões e recessões nos deixam apreensivos, o mesmo sentimento de insegurança atravessa cerrados, pampas, pantanais e florestas para incomodar outros povos.

by Fernando de Castro Lopes, desenhista carioca

by Fernando de Castro Lopes, desenhista carioca

Nossos vizinhos – uns menos, outros mais – sentem inquietação. Para a Argentina, o Uruguai e o Paraguai, as trocas comerciais com o Brasil são de importância vital. Se bambearem, eles estarão em apuros.

Nossos vizinhos de inclinação autocrática e populista – ou «bolivariana», como eles preferem – andam angustiados com os desdobramentos da Lava a Jato. La Paz, Caracas e Quito sabem que o regime que vêm tentando implantar há anos não sobreviverá a uma guinada brasileira em direção à civilização. Se o Brasil conseguir aperfeiçoar sua democracia, o regime autoritário de alguns vizinhos definhará.

Manif 3A marca deixada pelo presidente americano Richard Nixon (1913-1994) não é positiva. No entanto, em pelo menos uma ocasião, o chefe de Estado pronunciou palavras proféticas. Em 1971, já vislumbrava a crescente e inevitável influência de nosso País quando disse que «para onde for o Brasil, irá a América Latina».

Está aí, companheiros! Não estamos sós! Além-fronteiras, também se repete a partição entre «nós & eles». De um lado, há os que torcem pelo soerguimento da economia brasileira, objetivo que só pode ser atingido depois de varrida a bandalheira que nos tem martirizado. De outro lado, há os que rezam para que nada mude, pois são beneficiários diretos do statu quo.

Quanto aos de fora, que torçam, que rezem, que façam novena ou trezena, de pouco adiantará. O futuro do Brasil está contido na arma que só se concede aos nacionais: o voto.

A árvore e o fruto

José Horta Manzano

Você sabia?

Papa Francisco 3Aconteceu na Bolívia em 1867. O embaixador britânico foi recebido em palácio pelo ditador Mariano Melgarejo. Como era costume local, foi-lhe oferecido um copo de chicha, bebida feita com milho fermentado. O embaixador recusou e pediu um chocolate quente. A recusa foi tomada como afronta pelo ditador que, enfurecido, decidiu vingar-se imediatamente.

Mandou vir uma grande tigela de chocolate e obrigou o visitante a engoli-la até a última gota. Em seguida, ordenou que pusessem o diplomata sentado de trás pra diante no lombo de um burro. Assim que o homem foi amarrado na incômoda posição, a população foi chamada para o espetáculo. Com o embaixador em cima, o burro deu três voltas na praça principal de La Paz. Após o episódio, Melgarejo despachou o estrangeiro de volta a Londres. Sem o burro.

Queen Victoria:

Queen Victoria: “Bolivia does not exist”

Victoria, imperatriz britânica e mulher mais poderosa do planeta à época, não apreciou o ocorrido. Em reação epidérmica, ordenou que um destacamento da frota inglesa singrasse imediatamente em direção à Bolívia e bombardeasse a capital. Alertada por seus assessores sobre o fato de La Paz ficar nas alturas, longe da costa e fora do raio de ação da marinha de guerra, Victoria descarregou sua raiva simbolicamente. Dirigiu-se ao mapa-múndi, riscou um enorme X sobre o país ofensor e declarou: «Bolivia does not exist» – a Bolívia não existe.

A história encarregou-se de cumprir (ou quase) a profecia da rainha Victoria. Em menos de um século, a Bolívia perdeu metade do território.

Bolívia - territórios perdidos desde 1867 (clique para aumentar)

Bolívia – territórios perdidos desde 1867
(clique para aumentar)

Ao oferecer ao papa Francisco uma bizarra escultura representando um crucifixo camuflado sobre foice e martelo, señor Morales, atual mandachuva da Bolívia, retomou a tradição nacional de ofensa a estrangeiros ilustres.

Com o deboche, o irrespeitoso presidente logrou a façanha de insultar, ao mesmo tempo:

Interligne vertical 12um chefe de Estado;

um sorridente senhor com idade para ser seu pai;

o chefe da religião seguida por 80% dos bolivianos;

um bilhão de católicos que respeitam seu líder religioso.

Não é coisa pouca.

Señor Morales demonstrou o que todos já sabiam: sua estupidez e sua inépcia para exercer o cargo que lhe foi confiado. Descendente político direto do ditador de 1867, confirmou também o ensinamento daquele sábio provérbio: o fruto nunca cai muito longe da árvore.

Frase do dia — 235

«Em qualquer lugar do mundo, salvar uma vida é ato humanitário e reconhecido por toda a sociedade. Aqui, ele foi vilipendiado.»

Roger Pinto Molina, aquele senador boliviano que, perseguido por Evo Morales, procurou proteção na embaixada do Brasil em La Paz. Depois de mofar naquela repartição por um ano e meio, foi conduzido ao Brasil clandestinamente por um diplomata brasileiro condoído da sorte do refugiado.

Passado um ano e meio da chegada do senador a Brasília, o Itamaraty tomou a decisão de sancionar o diplomata salvador. Nenhuma decisão foi tomada com relação ao boliviano, que continua num limbo à espera de que lhe seja concedido asilo no Brasil.

O desabafo do senador boliviano faz referência ao ato do destemido diplomata brasileiro Saboia, cujas orelhas acabam de ser puxadas pelo Itamaraty.

Morreu de medo…

José Horta Manzano

Suisse 7Estes dias, realiza-se o Fórum Econômico Mundial, simpósio que, ano após ano, congrega os grandes deste mundo durante alguns dias em Davos, Suíça. Em seus tempos de esplendor, nosso guia fazia questão de comparecer e aparecer. Este ano, quarenta chefes de Estado fizeram questão de estar presentes, assim como 1500 dirigentes de multinacionais – um total de 2900 participantes.

É possível que a Mongólia não tenha enviado representante. É também provável que nenhum responsável do Haiti ou do Butão esteja presente.

Pelo ordenamento constitucional brasileiro, os cargos de chefe de Estado e de chefe do governo são exercidos pela mesma pessoa. Atualmente, dona Dilma Rousseff encarna esse superpersonagem.

Suisse 4Pois dona Dilma, mostrando que sua autoestima anda mais baixa do que se imagina, fez saber que preferia desdenhar a Suíça e prestigiar a reentronização de seu ídolo Evo Morales. A escolha há de ser fruto de um daqueles ataques de voluntarismo de que nossa presidente é vezeira. Recuso-me a acreditar que seus assessores, posto que sejam tacanhos, lhe tenham aconselhado trocar Davos por La Paz.

A ausência da figura maior da nação brasileira no fórum assinala marcha à ré na política de projeção mundial entabulada por nosso guia doze anos atrás. Põe a perder o esforço – às vezes atabalhoado, mas sincero – de alçar o nome do Brasil entre as potências planetárias.

Suisse 6Não acredito em escolhas ideológicas. Se dona Dilma faltou à reunião, foi por orgulho. Fugiu para escapar às críticas e à reprovação a seu modo de gerir a coisa pública. O mundo sabe, hoje, que a gestão de seu primeiro quadriênio foi calamitosa. Todos sabem também que nada de auspicioso se apresenta para o futuro próximo.

Resultado: como em reuniões familiares, fala-se mal dos ausentes. O economista-chefe do IHS – instituto americano de análise econômica e tecnológica – chegou a qualificar de «moribundo» o estado de saúde do Brasil. Enquanto isso, os Estados Unidos, a Índia e o México estão no foco da admiração. De fato, ninguém gosta de quem anda pra trás.

Suisse 5Dona Dilma tem perdido apoio internamente. Sua renúncia a representar o país em reuniões importantes periga ser interpretada como renúncia do Brasil a participar do clube dos grandes deste mundo. Nosso guia há de estar desgostoso.

De criança, a gente cantava um refrãozinho de deboche que assenta bem na atual chefe do Estado brasileiro. Começa com «Morreu de medo…». E termina com «… no dedo».

Dar asilo aos perseguidos

José Horta Manzano

Alimentar quem tem fome, agasalhar quem tem frio, consolar os que choram, proteger os indefesos, abrigar os perseguidos. São princípios universais, base de toda sociedade organizada e termômetro de seu grau de civilização.

O Brasil está rodeado de vizinhos estranhos e imprevisíveis. Alguns até violentos. No tempo em que cada país vivia fechado em seu universozinho, sem grande contacto com o exterior, vizinhos tinham pouca importância. Mas a roda girou e a ordem mundial se alterou.

Com a melhora nos transportes e nas comunicações, a proximidade geográfica passou a ter maior significado nas relações entre os povos. Cinquenta anos atrás, uma viagem internacional ― fosse ela a Assunção ou a Bruxelas ― causava o mesmo pasmo. Era assunto para relatos que duravam meses, anos até. Hoje não é mais assim. A proximidade dos vizinhos tem assumido importância crescente.

Se é um bem ou um mal? Pois não me parece nem um nem outro. É da vida. Tendemos todos a ter mais intimidade com o vizinho de parede do que com o que vive na rua de baixo. E a recíproca é verdadeira: nossos vizinhos também nos veem, mais e mais, como gente digna de atenção e de respeito.

Foi nessa continuidade histórico-política que um senador boliviano, perseguido pelo governo de seu país e sentindo-se por ele ameaçado, buscou asilo na embaixada do Brasil em La Paz. Causou rebuliço em nosso governo popular. Por um lado, princípios universais de convivência ensinam que se deve dar asilo aos perseguidos. Por outro, dar proteção a um desafeto de governante amigo pode ser interpretado como afronta. Que fazer?

Oficialmente, nada se fez. Brasília escudou-se detrás de desculpa cômoda: o governo boliviano se negava a conceder salvo-conduto para o asilado abandonar o país em segurança. No entanto… por baixo do pano, as coisas não se desenrolavam exatamente assim.

Não tivesse a notícia sido publicada pelo Estadão, em sua edição de 14 fev°, não seria de acreditar. Se você não leu, não perca: é edificante. Clique aqui. Sabemos agora que, logo que o senador bateu à porta de nossa embaixada e lá foi acolhido, Brasília e La Paz entabularam tratativas para resolver o problema de maneira indolor para os dois governos e, se possível, infernizando e desgraçando a vida do ousado parlamentar.

O plano era remover de nossa embaixada o refugiado incômodo, instalá-lo num avião venezuelano e despachá-lo para a Venezuela de Chávez ou para a Nicarágua de Ortega ― gente notoriamente confiável e amiga. Para coroar o cenário de sórdida deslealdade, o senador não deveria ser informado do destino final de sua viagem.

Dois motivos impediram o sucesso da infame operação. Primeiro, o asilado não concordou em embarcar num voo de destino ignorado. Segundo, Chávez, apesar do desvelo do ápice do suprassumo da quinta-essência da superior medicina cubana, faleceu. E a urdidura secreta foi por água abaixo. O senador teve de ser resgatado pela compaixão de um funcionário de nossa embaixada, que arriscou seu futuro profissional na empreitada.Roger Pinto 2

O senador refugiado sobrevive hoje em Brasília no quarto de empregada ― perdão! ― no quarto de auxiliar de serviços domésticos do apartamento de um senador brasileiro. É cômodo sem janela, de uns 5 metros quadrados, onde não cabe nem criado-mudo.

É inconcebível que nossos governantes, que, em nome do Estado brasileiro, deram refúgio na embaixada ao político perseguido, não lhe proporcionem o alojamento e a proteção que lhe são devidos. Mais inexplicável é o fato de o terem acolhido em La Paz e de se recusarem agora a confirmar-lhe asilo em território nacional.

Melhor teria feito o señor Molina se tivesse procurado a embaixada de um país civilizado. Fez mau negócio, o infeliz parlamentar.

Copas e Jogos Olímpicos podem servir para anestesiar o distinto público interno. Casos como o do senador boliviano corroem a imagem de nosso país no exterior. É pena.

Quem tem telhado de vidro…

José Horta Manzano

Anos atrás, quando autoridades italianas indicaram à PF que um certo Signor Battisti, foragido da Justiça daquele país, se encontrava vivendo ilegalmente no Brasil, nossa polícia não perdeu tempo: surpreendeu o indivíduo no Rio de Janeiro e o conduziu algemado a Brasília. Naquele momento, ninguém sabia, mas a ação espetaculosa não era mais que a primeira página de uma interminável novela. A lenga-lenga, recheada de altos e baixos, durou vários anos, envolveu advogados, parlamentares, a PF, o Ministério da Justiça, o STF, a presidência da República. Ninguém pode afirmar que tenhamos chegado ao ponto final. Não é impossível que o epílogo ainda esteja por escrever.

Tarso Genro, governador do RS by Marco Aurélio, desenhista gaúcho

Tarso Genro, governador do RS
by Marco Aurélio, desenhista gaúcho

Saíram todos chamuscados daquele execrável episódio. O prisioneiro, depois de viver encarcerado durante anos, em meio a incertezas, está marcado para o resto da vida ― onde quer que vá, será reconhecido e olhado com certa reserva. O ministro da Justiça da época, ao conceder asilo ao foragido, foi forçado a alegar que desconfiava da Justiça italiana, numa atitude arrogante que pegou muito mal. O STF, que empurrou a decisão final para a presidência da República, desagradou a muita gente. A decisão do presidente da República ― tornada pública no apagar das luzes do mandato ― que confirmou o asilo ao estrangeiro ornou a novela com fecho de ouro. As autoridades italianas devem ter saído enfurecidas, o que é compreensível.

Os anos passaram e o mundo girou. O processo do mensalão está chegando ao fim e cada condenado executa a pirueta que lhe parece mais conveniente. Uns dizem que não têm nada que ver com a história, que estavam de passagem. Outros alegam que foram julgados pela imprensa ― como se o julgamento não tivesse sido público e transmitido ao vivo por rádios e tevês. Há até guerrilheiros que, embora tenham empunhado armas e participado de guerrilha na selva, hoje derramam lágrimas que destoam da bravura que outrora exibiam.

by Dalcio Machado, desenhista paulista

by Dalcio Machado, desenhista paulista

Um dos condenados, talvez mais realista que os demais, não acreditou em Papai Noel. Perspicaz, deu-se conta, bem antes dos outros, de que o desfecho poderia não ocorrer em meio a gargalhadas em volta de uma pizza. Preparou minuciosamente sua fuga do País. Não está claro se Signor Pizzolato solicitou emissão de seu passaporte italiano antes do escândalo do mensalão. Pouco importa. O que importa é que, aos olhos da Itália, ele é um cidadão do país peninsular igual a todos os outros. Todo Estado civilizado costuma zelar por seus súditos.

Algum tempo atrás, as autoridades judiciais brasileiras exigiram, como medida de precaução, que todos os réus da Ação Penal 470 consignassem seu passaporte. Signor Pizzolato fez mais que os outros: entregou dois, o brasileiro e o italiano. Fechadas, como de costume, sobre si mesmas e pouco afeitas a práticas internacionais, as autoridades de Brasília foram dormir tranquilas. Um homem sem passaporte não pode viajar, devem ter pensado.

Se o olhar de nossas sumidades fosse um pouco além de seu próprio umbigo, saberiam que um cidadão estrangeiro cujo passaporte tiver sido confiscado pode solicitar um novo, desde que não esteja sendo procurado pela polícia de seu próprio país. Era exatamente o caso de Signor Pizzolato. Bastou-lhe comparecer a um consulado italiano e requerer um novo passaporte.

Alberto Alpino, desenhista capixaba

by Alberto Alpino, desenhista capixaba

Imaginam muitos que o fujão tenha passado por peripécias semelhantes às do senador boliviano que viajou clandestinamente de La Paz até o Mato Grosso. Pois eu não vejo a coisa assim. Não tenho como provar, mas tudo me diz que, ao deixar definitivamente sua cobertura em Copacabana, o réu fugido já levava no bolso o documento que lhe permitiria viajar para onde quisesse. Atravessar a fronteira entre o Brasil e qualquer um de seus vizinhos é moleza. Em numerosas cidades de fronteira, no Rio Grande por exemplo, a divisa entre dois países é representada por uma avenida. Atravessada a rua, é fácil chegar a Buenos Aires, de onde partem diariamente voos para Roma e para Milão. Elementar, meu caro Watson.

Agora é que chega a hora de a porca torcer o rabinho. A malandragem demonstrada pelo Planalto no caso Battisti ainda é muito recente. Os personagens estão vivos e na ativa, todos se lembram. Esperar grande empenho por parte de Roma é ilusão. O fato de o Brasil dar guarida a um condenado por envolvimento em quatro assassinatos pegou muito, muito mal na Itália. Será praticamente impossível reaver o cidadão italiano Pizzolato, cuja ficha, em terra itálica, está limpa.

Os italianos, que residam na Itália ou no estrangeiro, estão inscritos no registro do município onde vivem ou ao qual estão ligados. Esse banco de dados leva o nome de anágrafe. As autoridades italianas sabem perfeitamente onde vive Signor Pizzolato. Daí a transmitir a informação às autoridades de Brasília são outros quinhentos. Quem tem telhado de vidro…

Miscelânea 10

José Horta Manzano

Idiota 3Mensalão
O que mais vai-se ler hoje são análises ― serenas ou inflamadas ― do mais recente episódio do mensalão, de seus comos e de seus porquês. Não vou-lhes dar mais do mesmo. De toda maneira, o que está feito, feito está.

A meu ver, o julgamento do mensalão, que termine ou não com gente na cadeia, terá sido um divisor de águas nas práticas judiciárias brasileiras. E é isso que a História guardará. Passemos a outro assunto.

Interligne 18b

La vie en rose
Na Suíça, como em qualquer parte do mundo, autoridades penitenciárias têm, vez por outra, de usar a força para acalmar prisioneiros mais exaltados. Os suíços mandaram fazer estudos para encontrar método melhor que a tradicional camisa de força para sossegar os que surtam. Especialistas recomendaram que se encerrassem os mais atacados em celas cor-de-rosa durante um certo tempo, até que serenassem.

Cela calmante, Suíça

Cela calmante, Suíça

Na Suíça alemã, já chegaram à conclusão que 2 horas são suficientes para acalmar qualquer um. Já na Suíça francesa, não se sabe se por displicência ou vingança, chegam a «esquecer» o preso durante 5 dias nesse mundo unicolor. Os encarcerados reclamam, não tanto da cor, mas principalmente da humilhação.

Interligne 18b

Caros celulares
O roubo de celulares está-se tornando calamitoso na Guatemala. Por um telefonezinho de bolso, assaltantes são capazes até de cometer o irreparável. Diante disso, o Congresso resolveu legislar. Acabam de aprovar uma lei que pune ladrão de celular com até 15 anos de prisão mais multa de, no mínimo, 25 mil dólares.

A nova lei não admite embargos infringentes.

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Idiota 4Gelo para quem pode
A crise financeira que começou em 2008 com a quebra do Banco Lehman Brothers arruinou muita gente. No entanto, é sabido que a balança tem dois pratos. Para que um desça, é preciso que o outro suba. Se muita gente perdeu dinheiro, outros ganharam fortunas. Dizem até que há hoje mais milionários do que antes da crise.

Algumas firmas, de olho nessa clientela abastada e composta em maioria por novos-ricos, não se tem privado de oferecer o que o mercado pede. Uma empresa americana está fazendo sucesso vendendo… gelo! Ah, mas não é um gelo qualquer, quá! É gelo para ricos. Vêm sob forma de cubinhos ou de bolinhas.

Feita de água duplamente destilada, essa nova maravilha é isenta de sais minerais que lhe possam alterar o gosto. Em compensação, o preço é salgado. Uma embalagem de 50 cubinhos sai por 325 dólares, o que dá 6.50 dólares por cubo. Uma boa notícia: o valor do despacho no interior do território americano está incluído no preço. Compradores de outros países pagarão um acréscimo para cobrir o frete.

Quem foi mesmo que disse que a estupidez humana não tem limites?

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Idiota 1Ladrão que rouba ladrão
A cadeia da cidade de Pavia, na Itália, foi assaltada. Os ladrões vinham de fora do estabelecimento. Levaram o cofre-forte onde era conservado, entre outros pertences, o dinheiro pessoal dos detentos ― uma espécie de caixa econômica interna. As economias de cada um estavam lá. A quantia roubada situa-se, segundo a fonte, entre 5000 e 6000 euros.

Além de força muscular, os assaltantes deviam ter conhecimento perfeito daquelas paragens. Penetraram no estabelecimento, atravessaram subterrâneos, abriram portas, carregaram o cofre, desapareceram, e ninguém se deu conta. Estão sendo procurados.

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Sob pressão, não!
O senhor Assange, aquele que está asilado na embaixada equatoriana em Londres, andava meio esquecido. Pressentindo que, do jeito que as coisas vão, periga passar o resto da vida na prisão onde se encurralou voluntariamente, resolveu fazer alguma coisa para ressurgir no noticiário. Aproveitando a deixa que lhe deu dona Dilma, fez declaração à Folha de São Paulo, por email. Aplaudiu a decisão da presidente de cancelar sua visita de Estado aos EUA.

Valeu-se da mesma ocasião para dar um conselho a nossa voluntariosa presidente. Declarou que o cancelamento da visita não é suficiente. Falta ainda dar asilo tropical a uma jornalista britânica que se encontra atualmente em degredo na Rússia.Idiota 2

O senhor Assange provavelmente ignora que não tem chance nenhuma de ser atendido. Nós todos, escolados, sabemos que dona Dilma nunca decide sob pressão. A não ser que a pressão venha de La Paz. Ou do Lula. Ou das ruas. Ou de Buenos Aires. Ou de Havana. Ou de Caracas.

Senhor Assange, se me lê, guarde bem: Mrs. Rousseff never makes any decision under pressure. Nunca mesmo.

Infeccionou de vez

José Horta Manzano

A Folha de São Paulo deste 3 de setembro traz excelente análise de João Paulo Charleaux, jornalista e bacharel em Comunicação Social, sobre a situação legal do senador boliviano que passou quase um ano e meio na embaixada do Brasil em La Paz.

Bem a o estilo English for beginners, o artigo deixa clara a distinção entre refúgio e asilo. O asilo é um caminho curto, sem paradas intermediárias. Sua concessão é prerrogativa da presidência da República. O refúgio segue uma via bem mais tortuosa, com intervenção de várias instituições. Periga demorar muito tempo para ser concedido.

Talvez por desconhecerem essa sutil diferença, os que organizaram a fuga do senador fizeram que ele assinasse um pedido de refúgio. O que está feito, está feito. A máquina foi posta em marcha e o trem tem de ir até o fim da linha.

Segundo a análise do jornalista, uma coisa é certa: o senador não poderá ser devolvido à Bolívia. Já é uma notícia tranquilizadora.

Agora infeccionou

José Horta Manzano

Dilma e Evo passaram uma hora conversando sobre a situação criada pela entrada no Brasil do senador boliviano. Falo daquele que ― como um verdadeiro super-homem ― escapuliu de La Paz, atravessou milhares de quilômetros de Bolívia, enfrentou numerosas barragens policiais, transpôs uma fronteira internacional, tomou emprestado um avião e chegou a Brasília, o ninho da águia. Uma odisseia! E nosso improvisado James Bond fez tudo isso com a cumplicidade de uma única pessoa: um singelo encarregado de negócios, que deve ter um coração grande assim, ó.

Enfim, eu dizia que Dilma e Evo confabularam durante uma hora inteira sobre o caso. Ignoram que, ao telefone, se podem dizer as mesmas coisas. Preferiram abandonar por um momento a ultrarrelevante cúpula da Unasul. Quanto jogo de cena!

Crianças de 7 anos carregam hoje no bolso um telefone. Faz 120 anos que palácios presidenciais são dotados do aparelhinho mágico que permite, sem necessidade de levantar do trono, conversar com mandarins do outro lado do planeta. Alguém já fez as contas de quanto custa à população brasileira uma hora de ― vá lá o termo ― trabalho da presidente da República?

Dilma e Evo, dois evidentes amadores, não aprenderam a lição ancestral que os avós de nossos avós já conheciam: mais vale prevenir que remediar. Desde o momento em que o senador bateu às portas da embaixada do Brasil e lá se refugiou, tiveram quase um ano e meio para tramar. Inexperientes e ingênuos, foram deixando para lá, acreditando que o tempo se encarregaria de resolver o assunto. Quem é que gosta de enfrentar problema espinhoso, não é mesmo?

Dilma e Evo

Dilma e Evo

Imaginaram que, como joelho infantil esfolado, a situação se resolveria por si mesma. Não aconteceu. Adubada pela incapacidade dos que podiam tê-la curado meses antes, a ferida se arruinou.

Cansados de suportar a inércia de mandachuvas imprevidentes, alguns resolveram agir por conta própria. Seria cômodo vender a fábula de que o pequeno encarregado de negócios ― que nem embaixador é ― tenha podido arquitetar sozinho a logística dessa peregrinação de La Paz a Brasília, coisa de filme de suspense. Acredite quem quiser.

Seja como for, agora chegou a hora, não dá mais pra esperar. A porca está torcendo o rabo. Infeccionada, a ferida já está. Antes que sobrevenha a septicemia, há que agir. Mas… fazer o quê? Qualquer solução será ruim.

O Conare não é órgão decisório, mas apenas consultativo. Asilos são concedidos, como se viu no caso Battisti, pelo ministério da Justiça, atrás do qual está o Planalto. Se asilo definitivo for concedido ao senador, o companheiro Evo pode ficar muito contrariado. E isso pode arranhar a coesão da potência bolivarianopetista que o Brasil e seus comparsas estão tentando edificar. A importância da Bolívia no subcontinente é tão enorme, como sabem todos, que sem ela nada se construirá. Melhor não desagradá-la.

Por outro lado, se o Planalto deixar de conceder asilo ao senador, um outro país qualquer lhe abrirá as portas. Pode até ser que o império o acolha! Senhor, que humilhação! Se acontecer algo do gênero, é a imagem do subcontinente inteiro que vai escorrer pelo ralo. Continuaremos a ser vistos como um bando de cucarachas que não conseguem resolver seus problemas civilizadamente. Um golpe sério para nós. O mundo vai voltar a nos enxergar como um punhado de republiquetas bananeiras, uma caterva de imaturos politicamente incapazes.

Agora infeccionou. Que fazer?

Jogo de cena ― Capítulo 2

José Horta Manzano

Brasil-Bolívia fronteira

Brasil-Bolívia fronteira

Minha curiosidade começa a ser satisfeita. Como eu previa (cf. meu post Jogo de Cena de 25 ago 2013), apareceu uma rocambolesca explicação. Acredite quem quiser.

Segundo o relato, a iniciativa de remover o senador boliviano de seu asilo precário na embaixada do Brasil em La Paz foi tomada pelo próprio chefe daquela representação diplomática. Com que então, o homem mandaria às favas seu futuro profissional ― por sua própria decisão ― para arriscar-se numa missão digna de James Bond? Acredite quem quiser.

Muito oportunamente, o embaixador tinha sido chamado ao Brasil. Os negócios estavam sendo tocados por um funcionário menor. Foi deste último a iniciativa de organizar a retirada do senador. Logo, ninguém poderá jamais acusar um diplomata de alto coturno de comportamento inadequado. A imagem do Itamaraty está salva e continua imaculada. Acredite quem quiser.

Bolívia - alfândega

Alfândega boliviana

Segundo o Estadão, o comboio viajou 22 horas, passou por cinco controles militares(!) e atravessou a fronteira. Tudo isso sem que ninguém desconfiasse de nenhuma anormalidade. Acredite quem quiser.

Assim que o grupo chegou a Corumbá, o diplomata brasileiro que chefiava a comitiva não se preocupou em alertar seus superiores. Preferiu procurar diretamente um parlamentar, o senador brasileiro Ferraço. Juntos, tentaram desesperadamente encontrar o presidente do Senado. Sem sucesso. Logo, ninguém poderá jamais suspeitar que o Itamaraty ou o presidente da câmara alta estivesse a par do que se tramava. Acredite quem quiser.

Ao inteirar-se do que havia ocorrido, a chancelaria boliviana acionou a Interpol. Naturalmente, só fizeram isso depois de certificar-se de que o senador havia de fato transposto a fronteira. Acredite quem quiser.

Candidamente, nosso chanceler Patriota faz saber que, nos bastidores, já se confabulava havia tempos, com vistas a uma «saída discreta». Não precisava nem dizer. Taí o resultado.

Brasil-Bolívia transporte

Transporte Brasil-Bolívia

Daqui a algumas semanas, ninguém mais se lembrará do caso. O senador boliviano viverá meses tranquilos em nosso território até que um novo golpe derrube o regime bolivariano de Evo. Vale lembrar que, considerando unicamente o século XX, mais de 15 presidentes (ou ditadores) bolivianos foram derrubados por golpes de Estado. Nas Américas, só o instável Haiti fez mais.

De tudo isso, fica uma evidência: apesar das aparências, as altas esferas do Planalto não estão total e automaticamente alinhadas com La Paz. Ainda restam alguns habitantes do andar de cima não contaminados pelo bolivarianismo. É notícia boa e importante.

Jogo de cena

José Horta Manzano

Todos já ouviram falar no drama do senador boliviano que, ameaçado pelo governo do folclórico e bolivariano Evo, tinha solicitado asilo à embaixada do Brasil em La Paz faz mais de um ano. Ao ligar o rádio, a tevê ou a internet neste domingo, todos ficarão sabendo que o homem passou a fronteira e se encontra em território brasileiro. Melhor assim.

O círculo mais próximo do senador garante que ele concederá à imprensa uma entrevista coletiva na segunda-feira 26 de agosto. O Itamaraty preferiu não comentar o assunto. O governo boliviano fechou-se num silêncio ensurdecedor.

Seja o que for que disserem ― antes, durante e depois da entrevista do senador ― nós, meros mortais, jamais saberemos exatamente o que aconteceu. Alguma historinha rocambolesca terá de ser costurada, naturalmente, para tirar todo resquício de responsabilidade das costas das autoridades bolivianas e das brasileiras. Mas eu não poria a mão no fogo sobre a veracidade do relato que está por vir.

Vigiar uma embaixada e impedir a entrada ou a saída de alguma pessoa não é empreendimento difícil. Que o diga o senhor Assange, que continua cumprindo sua pena de privação de liberdade na representação londrina do Equador. Por coincidência, um país também bolivariano.

Embaixada do Brasil La Paz, Bolívia

Embaixada do Brasil
La Paz, Bolívia

Em 1956, na esteira da fracassada revolução húngara, o cardeal József Mindszenty recebeu asilo na Embaixada dos EUA em Budapest, onde permaneceu 15 longos anos. Só saiu quando lhe foi concedido, na sequência de um acordo político, um salvo-conduto para deixar o país. Antes disso, nem por sonho. Faleceu 4 anos depois de libertado, já com 83 anos.

Portanto, nenhuma explicação, por mais sofisticada que venha, me fará acreditar que o senador boliviano «fugiu» da embaixada. E em seguida? Dirigiu-se ao aeroporto, comprou uma passagem, entrou num avião, desceu em Corumbá (ou em Cuiabá, dependendo da fonte)? Tudo isso sem dinheiro e sem passaporte? Me engana, que eu gosto ― como diz o outro.

É muito mais plausível que a vinda do senador seja fruto de um arreglo político entre Brasília e La Paz. Nenhuma das partes estava interessada em fazer durar a situação. Ao mesmo tempo, nenhuma queria perder a face. Estou curioso para ouvir a explicação oficial.

Há males que vêm para bem. Nesse melodrama, algo de positivo começa a apontar: o Brasil aparenta já não mais estar de joelhos diante da Bolívia. Que alívio! Como parecem distantes aqueles tempos bizarros em que o Lula não só aceitou como também aprovou a invasão e a encampação de uma refinaria da Petrobrás situada em território boliviano. Uma prova de fraqueza!

Vale lembrar que o sócio majoritário da semiestatal de petróleo somos nós, o povo brasileiro. O governo federal, por mais enfatuados que sejam seus integrantes, não é dono da gigante. Ele é mero representante dos verdadeiros donos, que somos nós. Fosse o Brasil um país menos preocupado com direitos individuais e mais atento ao Direito ― com D maiúsculo ―, o presidente pusilânime teria sido processado por crime de responsabilidade.

Enfim, vamos a quedarnos con lo bueno. A novela de La Paz teve final feliz. Podemos dormir em paz.

Interligne 37i

Despacho do Estadão e da Folha de São Paulo.

Latino-americanos

José Horta Manzano

Sou do tempo em que latino-americanos eram os outros. Nós, brasileiros, não tínhamos nada que ver com essa gente. Havia os americanos (que falavam inglês), os latino-americanos (que falavam espanhol) e nós. Música latina era bolero, rumba, chá-chá-chá, mambo. Nossa música não era latina, era brasileira. No nosso imaginário, Lima, Bogotá e La Paz estavam mais distantes que Londres ou Lisboa.

Petrobrás invadida Bolívia

Petrobrás invadida
Bolívia

De uns 10 ou 12 anos para cá, os brasileiros passaram por uma lavagem cerebral. Desde que estes novos tempos se instalaram e a orientação de nossa política externa deu uma guinada para um lado estranho, fomos instados a nos identificar, à força se necessário, com os antigos adversários castelhanos.

O fato de vários caudilhos latino-americanos terem tido a mesma ideia ao mesmo tempo só favoreceu a busca de uma hipotética «integração» ibero-americana. Como toda criação artificial, não deu e nunca dará certo.

Generoso, o brasileiro está pronto a ajudar os vizinhos necessitados, a dar-lhes uma mão, a prestar-lhes o devido auxílio. Contudo, «identificar-se» com eles já requer um salto que nem todos estão dispostos a dar.

O fracasso da economia venezuelana, o descalabro da governança argentina, a interminável agonia do regime cubano não nos encorajam a perseverar nessa linha. Já temos dificuldade para resolver nossos problemas internos, não nos fazem falta trapalhadas estrangeiras.

Lula recebe Evo Morales

Lula recebe Evo Morales

Como toda criação artificial, nosso «latino-americanismo» é bastardo e de ocasião. Não foi feito para durar. Com o ocaso dos regimes «progressistas» que se haviam instalado em algumas ex-colônias ibero-americanas, o Brasil há de abandonar logo essas aventuras inconsequentes e voltar aos trilhos de onde nunca deveria ter saído.

Interligne 23

Quando o ogro boliviano se apoderou de uma refinaria da Petrobrás implantada naquele país, o governo brasileiro entrou em pânico, mas não teve coragem suficiente para se defender. Note-se que a Petrobrás, além de ser a maior empresa nacional, tem como proprietário majoritário de seu capital votante o povo brasileiro, através de seu governo.

A vergonhosa pusilanimidade do governo brasileiro de então não foi nem está sendo imitada pelos governos europeus. Um episódio folclórico ocorrido na noite de ontem mostra que o ogro, por aqui, não assusta ninguém.

Evo Morales, presidente do Estado Plurinacional da Bolívia (é o nome oficial, sem brincadeira), sobrevoava a Europa em voo de Moscou a La Paz. Correu o boato de que o avião carregava Snowden, aquele que vazou segredos da espionagem americana.

Portugal, onde um pouso para reabastecimento do aparelho estava previsto, fechou imediatamente seu espaço aéreo. A França tomou idêntica decisão. A Itália, idem. O avião não teve outra opção senão pousar em Viena.

Petrobrás invadida Bolívia

Petrobrás invadida
Bolívia

Furibundos, os mandachuvas bolivianos fizeram as habituais declarações grandiloquentes do tipo «a América Latina está sendo pisoteada» e «Morales foi sequestrado pelo imperialismo».

Esqueceram-se ― ou talvez não saibam ― que estavam voltando de visita amiga a um dos últimos grandes impérios que sobraram. Moscou é a capital de um imenso complexo composto de 21 repúblicas, 46 regiões e 4 distritos autônomos. São 128 etnias que, embora muitas o façam a contragosto, vivem sob obrigatória autoridade russa. Se esse não é um império, o que será?

Para se fazer respeitar, há que começar respeitando os demais. No dia em que señor Morales e nossos outros hermanos entenderem isso, terão dado um grande passo à frente.