Arruaceiros de lá e de cá

José Horta Manzano

Aconteceu em maio de 2003. A Cúpula Anual do G8 estava para realizar-se na cidade francesa de Evian, estação de águas à beira do Lago Leman, localidade bastante turística. A reunião de líderes dos países mais importantes incluía a Rússia conduzida por um Putin que ainda não tinha mostrado seu lado B. Só depois da anexação da Crimeia é que a Rússia seria expulsa e o bloco passaria a chamar-se G7.

Durante os três dias da Cúpula, a cidadezinha de Evian estaria totalmente isolada do mundo, com entradas e saídas rigorosamente controladas por militares armados vindos da França inteira. Só habitantes e visitantes credenciados teriam o direito de entrar. Helicópteros e drones sobrevoariam a localidade. Afinal, eram figurões os que se reuniriam: Jacques Chirac, Vladimir Putin, Silvio Berlusconi, George W. Bush, Tony Blair & alia.

Grupos de jovens, que se autodefiniam como “anti G8”, preparavam manifestações pacíficas. A sabedoria popular, que não costuma falhar, afirma que “é conversando que a gente se entende”. É por isso que até hoje não consegui captar o objetivo daqueles manifestantes que viam com maus olhos o diálogo entre líderes. Será que preferiam que eles se estapeassem ou botassem tanques nas ruas?

Na impossibilidade de penetrar em Evian, onde se realizava a Cúpula, os jovens idealistas escolheram manifestar-se em Genebra (Suíça), cidade bem maior, situada a uns 50 km de distância, à beira do mesmo lago. Os manifestantes marcaram passeatas para os três dias de duração da cimeira. Eram marchas simbólicas com cartazes, megafone e palavras de ordem. Acreditavam que, quando aparecessem nas manchetes e no jornal da tevê, sua visão “anti G8” tocaria corações mundo afora.

Mas nenhuma felicidade é perfeita nem eterna. Grupos de arruaceiros, ao tomar conhecimento das passeatas, sentiram que era chegado o momento de armar um bom quebra-quebra em Genebra. Desordeiros vieram até do estrangeiro – havia alemães, franceses, austríacos, italianos – todos armados de tacos de beisebol e coquetéis Molotov. Um primor.

Vários comerciantes genebrinos, sabedores de que estava para chegar uma horda de agitadores violentos, protegeram a vitrina com tapumes de madeira. Mas nem todos tomaram essa providência. Genebra é uma cidade grandinha, impossível de ser trancada. O fato é que os baderneiros se instalaram na cidade.

Já na véspera da abertura da Cúpula, os profissionais do quebra-quebra entraram em ação. Aproveitaram do escuro da noite para agir. Encapuzados e mascarados, quebraram vitrines, incendiaram lojas, destruíram mobiliário urbano. Foi uma noite de caos. A polícia não pôde fazer muito. Os arruaceiros sempre escolhem agir em campo descoberto, de onde possam escapar rapidamente; nunca se arriscam a jogar bomba em beco sem saída.

E assim continuaram pelas noites seguintes. Hotéis foram atacados e restaurantes McDonald’s, depredados. Os agressores são desocupados sem ideologia: vêm de longe e destroem pelo simples prazer de destruir. Assim que a reunião do G8 terminou, desapareceram. E nunca mais se ouviu falar deles.

Outro dia, em Brasília, quando nosso presidente eleito foi diplomado, arruaceiros tupiniquins decidiram agir. Aproveitando que um punhado de apóstolos do bolsonarismo ainda acampa nas ruas choramingando por um milagre, vestiram-se de amarelo e promoveram uma noite de horror.

Me fizeram lembrar de Genebra 2003 – com eficácia menor, porém. Agiram em campo aberto: posto de gasolina, viaduto, esplanada diante de instituições. São lugares de onde se pode escapar rápido, caso a situação aperte.

A população vê, nesses agressores, bolsonaristas enfurecidos. Já os bolsonaristas acreditam que os autores do quebra-quebra sejam petistas infiltrados.

É difícil dizer com certeza, mas não é impossível que tenham sido agitadores compulsivos, que não precisam necessariamente ser remunerados. Destroem pelo prazer de destruir – o que não os impede de ter preferências políticas. Quais são? Só Deus sabe.

Allegro moderato, con speranza

O sorriso, por enquanto, sai meio forçado
by Oskar Weiss (1944-), artista suíço

José Horta Manzano

O dia amanheceu carrancudo em Genebra. A garoa fina e a temperatura baixa não convidavam a passeio nenhum. Mas é dia em que todos os brasileiros têm, mais que a obrigação, o dever de exprimir suas escolhas políticas. Os mais jovens não imaginam a falta que nos fez essa liberdade durante os anos mais sombrios da ditadura.

Quando cheguei para votar, no fim da manhã, o tempo já estava dando sinal de que ia abrir. Somos muitos conterrâneos atualmente por aqui. As dependências do consulado não comportam tanta gente. O voto de desenrola num vasto pavilhão do salão de exposições da cidade. São 12 seções eleitorais num mesmo salão, separadas por cordinhas como a fila do check-in do aeroporto.

Quem conhecia o número da seção podia entrar diretamente; quem não conhecia tinha de entrar numa fila formada em frente ao guichê de informações. O problema é que a fila de informações era tão comprida, que virava à esquerda, entrava num outro corredor, de onde não se via o guichê. De bobeira, entrei na fila e lá passei uma boa meia hora até que me avisaram que, visto que eu conhecia o número de minha seção, podia entrar direto.

Enquanto esperava, admirei a paisagem. Faz muito tempo que não via tanto brasileiro junto. Nem imaginava que fôssemos tantos patrícios por aqui. Jovens, velhos, crianças, uns de pele alvinha, outros de pele bronzeada, todos falando em voz relativamente baixa – acho que é influência do país em que estamos.

Eu diria que 95% dos eleitores estavam vestidos “normalmente”, ou seja, com roupas comuns do dia a dia, de acordo com a temperatura externa. Já uns 5% vieram de amarelo ou de vermelho.

Os de amarelo eram mais espalhafatosos, falavam mais alto que os demais, alguns chegavam a se enrolar na bandeira nacional, os que tinham músculos para mostrar desafiaram o frio, vieram de camiseta e arregaçavam a manga.

Os de vermelho eram mais discretos. A uniformização da ala colorada é menos rigorosa. O vermelho podia estar no cachecol, no sapato, num lenço comprido displicentemente pousado sobre o ombro ou amarrado em volta da cintura. Alguns jovens carregavam o vermelho no boné.

Fico a matutar o que leva certas pessoas a declararem publicamente suas preferências políticas.

Será um desafio petulante lançado aos circunstantes, como se dissessem: “Eu já tomei minha decisão. E você? Não gostou? Vai encarar?”

Será o orgulho de se sentir do lado certo da história, diferentemente dos infelizes que não pensam igual?

Será uma marca de pertencimento, como quem arbora um distintivo com o logo de seu time de futebol?

Não tenho a resposta. O que sei é que, cada vez que vejo esse pessoal fantasiado, sou invadido pela mesma sensação de quando encontro uma mensagem publicitária não solicitada (spam) na caixa de cartas. Dá vontade de perguntar: “Que é que você está fazendo aqui? Eu te perguntei alguma coisa? Não estou interessado em saber pra quem você torce.”.

Enfim, enquanto a violência se limita a mostrar os músculos, falar mais alto ou usar sapatos vermelhos, dá pra aguentar sem problemas.

Quando saí do palácio de exposições, o céu estava azul e o sol brilhava.

Esperemos que a situação não degenere. Eu disse “esperemos”? Espero eu! Tem um certo capitão que ficaria muito feliz se degenerasse. Te esconjuro!

Trilha com sabor de chocolate

José Horta Manzano

Você sabia?

Os suíços sentem muito orgulho por seu país não ter sido invadido por tropas alemãs nem italianas na Segunda Guerra Mundial. É realmente surpreendente que a pequena Suíça não tenha sido engolida, com casca e tudo, pelos exércitos do Eixo. Afinal, excluindo um minúsculo trecho que a separa do Principado do Liechtenstein, a Suíça estava completamente cercada por nações em guerra. Tinha (ainda tem) fronteira com a Alemanha, a Itália, a França (ocupada pela Alemanha) e a Áustria (anexada à Alemanha). No país helvético, muita gente atribui essa não intervenção à força de dissuasão representada pelo poderio militar suíço.

Bunker disfarçado de chalé de madeira

Há quem sorria ao ouvir essa explicação. Seja como for, tanto Berlim quanto Roma sabiam que seria bastante complicado dominar e ocupar um território montanhoso como este. Sabiam também que os suíços estavam muito bem armados e equipados, além de serem conhecidos como combatentes aguerridos.

Toblerone de verdade

Hitler e Mussolini devem ter feito a conta duas vezes. Chegaram à conclusão de que não valia a pena perder tempo, dinheiro, esforço e vidas humanas para conquistar um território pouco industrializado e totalmente desprovido de riqueza mineral. De qualquer maneira, não saberemos nunca o que realmente passou pela cabeça dos dois ditadores.

Linha dos toblerones

Linha dos toblerones

Eu acrescentaria mais uma razão. Numa Europa conflagrada, interessava a todos respeitar a neutralidade de um pequeno território, situado bem no centro geográfico do conflito. Era um lugar seguro, de onde não se receava que viesse nenhuma ameaça. Mais que isso, era um lugar onde todos podiam guardar, na confiança, seus dinheiros, seus ouros, suas obras de arte e suas joias. Mais ainda: um lugar superconveniente para eventuais encontros secretos e confabulações discretas e confidenciais. Todas essas razões hão de ter contribuído para que o país fosse poupado.

Isso hoje faz parte da História. Como diz o outro, «Depois que aconteceu, qualquer um é profeta; difícil mesmo é adivinhar o futuro». Naqueles anos 1930, um bafo de guerra soprava no continente, embora ninguém soubesse de que lado nem com que força viria a tempestade. As autoridades suíças não podiam cruzar os braços e apenas torcer para que o país não fosse invadido. Todos tinham de estar prontos para repelir tropas inimigas.

Linha dos toblerones, hoje utilizada para caminhadas a pé

A inteligência militar planejou um complexo sistema de defesa. Naqueles tempos, a referência mais próxima era a Primeira Guerra (1914-1918), durante a qual os ataques se faziam por via terrestre, com tanques e blindados. Foi pensando nisso que bolaram o sistema defensivo suíço, basicamente terrestre àquela época. Incluía numerosos pontos, alguns dos quais são hoje conhecidos do grande público, enquanto outros ficarão secretos para sempre. Talvez seja melhor assim.

Todas as pontes do país estavam minadas. Ao menor sinal, as vias de comunicação seriam interrompidas, o que dificultaria tremendamente o avanço de tropas inimigas. A região de Genebra, fronteiriça com a França, trazia um problema espinhoso para os militares. Por ser constituída de terrenos planos e pela ausência de rios, foi considerada indefensável. Tomou-se a decisão tática de dar a cidade como perdida e implantar o sistema de defesa uns 30km mais para o interior do país.

Villa Rose Fortaleza disfarçada de casa de campo

Villa Rose
Fortaleza disfarçada de casa de campo

Construíram-se fortalezas com aparência de pacíficas casas de campo. Foram levantados bunkers com aspecto externo de inofensivos chalés de madeira. Instalaram-se discretos postos de observação em pontos mais elevados ― naqueles tempos não havia street view nem espionagem por satélite. Para completar, uma verdadeira obra de arte defensiva foi construída, uma versão helvética da muralha da China. Ficou conhecida popularmente como Ligne des toblerones, a linha dos toblerones.

O que era e por que lhe deram esse nome?
Era – e ainda é – uma linha de 10km de blocos de concreto que impossibilitam a passagem de tanques de guerra. São quase 3000 blocos monstruosos de 9 toneladas cada um. Têm forma peculiar de tetraedro que lembra um pedaço de chocolate Toblerone, daí o apelido.

Villa Rose Janela com cortina falsa

Detalhe da Villa Rose: janela com cortina falsa

Não se tem notícia de que nenhum tanque tenha jamais tentado superar o obstáculo. A guerra acabou faz muito tempo. A Suíça não foi invadida. Mas os toblerones continuam lá até hoje. Quem é que vai arrastar aqueles imensos blocos? E o que fazer com eles depois? Assim, foram deixados onde estavam e, aos poucos, acabaram se tornando atração turística. Uma trilha própria para caminhadas a pé serpenteia por quilômetros, dentro da floresta, ao longo da barreira de concreto. É conhecida hoje como o Sentier des Toblerones, a Trilha dos Toblerones.

Taí uma obra militar que soube envelhecer. Em escrupuloso respeito ao espírito atual, não foi atirada a um lixão mas acabou reciclada.

Publicado originalmente em 28 nov° 2013.

Encontro bilateral

Villa La Grange (Genebra) e seu parque
Sede do encontro histórico

José Horta Manzano

Em 1917, a cidade de Genebra, na Suíça, recebeu uma herança valiosa. Monsieur William Favre, riquíssimo habitante, legou à cidade uma propriedade familiar que consistia em uma enorme mansão, grande como um palácio, plantada em meio a um parque de 200 mil m2, área equivalente a 30 campos de futebol. Tudo isso situado às portas da cidade.

A propriedade tem sido utilizada como parque público, aberto para a visitação. Em raras ocasiões, o château é sede de algum evento excepcional. É o que vai ocorrer amanhã, quarta-feira 16 de junho de 2021. Uma cúpula reunindo Joe Biden e Vladimir Putin terá lugar no local.

Pra se ter uma ideia da raridade desses encontros bilaterais, o último que ocorreu entre dirigentes dos dois países teve lugar também em Genebra, no longínquo ano de 1985. Na época, Ronald Reagan havia se encontrado com Mikhail Gorbatchov.

Que ninguém espere grandes resultados do encontro de amanhã. Não será hora e meia de tête-à-tête que há de iluminar o caminho do planeta. O importante desses eventos é o lado simbólico. Com a crescente importância da China no cenário mundial, a Rússia – potência militar de primeira linha – está se tornando o trunfo que tanto chineses quanto americanos gostariam de ter a seu lado. Ciente disso, Putin deve estar adorando a paquera, que fortalece sua imagem.

Faz duas semanas que milhares de pessoas trabalham sem descanso, cada um nas suas atribuições, pra que tudo dê certo amanhã. É um batalhão de gente, operários, especialistas em logística, seguranças, mecânicos, eletricistas, cozinheiros, motoristas, militares, policiais. Por seu lado, o exército suíço deslocou 1000 homens em dedicação exclusiva. Centenas de policiais de Genebra participam, e boa parte da cidade está interditada ao tráfego. Com o espaço aéreo fechado, o aeroporto está sofrendo perturbação. Há atiradores de elite encarapitados nos prédios e homens armados com metralhadora por toda parte. A gente não se dá conta do desafio logístico que representa um deslocamento do presidente americano. É impressionante.

Como eu dizia, não se deve ter ilusões. Em geral, grandes decisões não são tomadas nesses encontros, mas nos bastidores. O encontro vale mais pela imagem que fica. Conversar é sempre melhor do que arreganhar os dentes, cada qual no seu canto.

Você tem carteira?

José Horta Manzano

O especialista em relações internacionais Jamil Chade, baseado em Genebra, foi durante anos correspondente do Estadão. Na coluna que assina atualmente no UOL, trouxe hoje informação importante e pra lá de preocupante.

Faz alguns meses que a ONU, diante do descalabro que a pandemia representa especialmente para países menos afortunados, instituiu um programa especial visando a garantir, na medida do possível, que todos os habitantes do planeta tenham acesso à vacina anti-covid. O programa, chamado Covax, tem exigido alentado esforço de coordenação.

Até o presente, o Covax já recebeu a adesão oficial de 95 países. A Europa inteira e até a China confirmaram presença. No começo, o governo brasileiro fez corpo mole. Talvez, sem confessar, contasse com a mão amiga e benevolente de um Trump firme no governo que, em atenção à sólida amizade que tem com nossa primeira famiglia, nos garantiria, a tempo e a hora, acesso às vacinas americanas. Em quantidade ilimitada e ao melhor preço.

O tempo passou, Trump rodou e o plano gorou. Ao fim e ao cabo, o Brasil se encontra hoje em posição precária. O programa Covax oferecia a cada país o direito de comprar vacina suficiente para um mínimo de 10% e um máximo de 50% da respectiva população. O Brasil optou pelo mínimo: 10% dos habitantes. Portanto, a menos que comece a chover vacina nos próximos meses, é magra a chance de o distinto leitor ser beneficiado pelas vacinas do programa Covax: não mais que 1 chance em 10.

Se não conseguir ser atendido (e se a “vacina do Doria” não for suficiente para toda a população brasileira), só resta um caminho: dar uma carteirada pra furar a fila. Falando nisso, você tem carteira?

Observação
Apesar da importância, o assunto tem sido pouco divulgado entre nós. Note-se que é compreensível. Ficaria estranho se a população soubesse que um governo que, além de ser anti-vacina e estar infestado de terraplanistas e negacionistas, se inscreveu na fila dos que querem receber vacina. Pegava mal pra cachorro. A militância era capaz de entrar em greve. E os bots também.

Que clique aqui quem quiser conhecer a história tim-tim por tim-tim.

Doutor Mãos Limpas

José Horta Manzano

Você sabia?

Não é fácil estabelecer com segurança a paternidade da fórmula do álcool em gel (o popular ‘alquingel’). A criança tem muitos pais. Digamos que cada um deles contribuiu para dar um passinho à frente na evolução do produto.

Já em meados do século 19, o obstetra vienense Semmelweis, alarmado com os altos índices de mortalidade em decorrência de doenças contraídas no hospital, propôs o uso de uma solução antisséptica para uso do pessoal hospitalar. Levou tempo até que sua utilização virasse automatismo. Apesar de pouco eficaz, a fórmula continuou em uso, com pequenas variações.

Nos anos 1960, o médico alemão Kalmár observou que a ação do produto então utilizado para desinfecção das mãos era de curta duração. Na sala de operações, já tinha perdido a eficácia antes do fim da cirurgia. O resultado era o número sempre elevado de infecções hospitalares. Debruçou-se sobre o assunto e, em 1965, pôde lançar no mercado a primeira solução hidroalcoólica desinfectante, cuja fórmula viria a ser aperfeiçoada dez anos mais tarde por um médico do hospital de Friburgo (Suíça).

Dr Didier Pittet

Nos anos 1990, o médico suíço Didier Pittet, infectologista do Hospital Universitário de Genebra, teve a idéia de associar o álcool a um agente antibacteriano (água oxigenada) e à glicerina. Não fez isso por acaso. Escolheu o álcool, a água oxigenada e a glicerina justamente porque são substâncias que não se podem patentear. Impediu assim que alguma grande indústria farmacêutica se apropriasse da fórmula e a comercializasse com exclusividade.

Dr. Pittet apresentou sua ideia à OMS (Organização Mundial da Saúde), que a aprovou e popularizou no mundo inteiro. Desde então, a fórmula tem sido adotada por médicos, enfermeiras e todo o pessoal da área de saúde para a higiene das mãos. Bem antes do aparecimento da covid, já se agia assim. Tem contribuído muito para baixar o risco de contaminação hospitalar.

Ao longo das últimas décadas, o médico suíço – que ganhou o apelido de Doutor Mãos Limpas – tem sido alvo de distinções no mundo inteiro. Entre outras homenagens, recebeu a comenda da Ordem do Império Britânico. Ele não ganhou nem um centavo com sua fórmula. Mas a humanidade agradece.

Salário mínimo suíço

José Horta Manzano

A noção de salário mínimo está tão ancorada nos costumes brasileiros, que a gente imagina que a garantia de um piso salarial exista no mundo todo. Não é bem assim. Tal como ocorre com o 13° salário, que não é obrigatório por toda parte, também o salário mínimo não é universal. Embora a paga mínima legal seja bastante difundida, trabalhadores de países importantes como, por exemplo, Itália, Áustria, Suécia não contam com essa garantia.

A Suíça é um caso especial. Como meus distintos e cultos leitores sabem, o país é uma confederação, ou seja, um Estado nacional composto por cantões que gozam de forte autonomia. Tirando a defesa nacional, a política monetária, a legislação aduaneira, a segurança nacional e a política externa, os cantões têm ampla autonomia de decisão. A política salarial faz parte das atribuições de cada cantão.

Assim, cabe ao governo de cada cantão legislar sobre a matéria. A maior parte deles ainda não achou oportuno estabelecer um salário-base válido para todo o território cantonal. Diferentes categorias profissionais, por seu lado, firmaram convenção coletiva fixando um piso salarial para o setor. Por exemplo, o sindicato dos padeiros pode ter conseguido um salário mínimo para a categoria, enquanto o sindicato dos balconistas de farmácia pode não ter firmado ou simplesmente não estar interessado no assunto.

Em plebiscito realizado domingo passado, os eleitores de Genebra aprovaram a instituição de um salário mínimo cantonal. O valor do piso salarial válido no território cantonal para todas as categorias é de 23 francos suíços por hora. Para quem trabalha em período integral (42h por semana), isso dá (pasmem!) 4.186 francos por mês, pouco mais de 25.000 reais ao câmbio de hoje. É com certeza o salário mínimo mais elevado do mundo. Na própria Suíça, nenhum outro cantão fixou montante tão alto.

Pode parecer quantia exorbitante, mas não é. Para sobreviver com menos que isso, uma família de quatro pessoas teria dificuldade. Só de aluguel, vai metade do salário. Em seguida, tem de pensar no seguro de saúde, que custa os olhos da cara. É que o país não conta com um sistema nacional de saúde, como o Brasil. Todos os cidadãos têm obrigatoriamente de estar cobertos por empresa particular, mas cada um é livre de escolher a companhia com a qual quer concluir o seguro. Assim mesmo, seja qual for o plano escolhido, não sai barato. Cobrir os quatro membros da família de nosso exemplo, com plano bem básico, não vai sair por menos de 1000 francos (uma quarta parte do novo salário mínimo). Em seguida, tem de se vestir, se transportar, se aquecer, se alimentar – tudo muito caro.

Normalmente, a notícia da instituição de salário mínimo garantido costuma alegrar os beneficiários. Nestes tempos de covid, porém, o que ela trouxe foi grande preocupação aos 25 mil empregados que se enquadram na nova regra. Os que fazem jus ao aumento – funcionários de restaurante, salão de cabeleireiro, firma de limpeza – estão receosos de que o empregador, já em dificuldade financeira em razão da pandemia, não suporte o baque e acabe demitindo. Está aqui um exemplo trágico de como uma medida bem-intencionada acaba causando efeito oposto ao previsto.

O Jato d’Água de Genebra

José Horta Manzano

Você sabia?

O século 19 foi um tempo de expansão e de progresso em muitos campos da ciência. Na Europa, a instalação de indústrias atraiu populações rurais; as cidades cresceram rapidamente. Metrópoles como Londres, Paris e Viena são esplêndido exemplo do fenômeno. Até na pequena Suíça, o inchaço da cidade de Genebra foi significativo. Dos 64 mil habitantes de 1850, ela passou a mais de 100 mil em 1890 – crescimento comparável ao que a cidade de São Paulo conheceu por aqueles anos.

O fim do século se aproximava, mas Genebra ainda não dispunha da infraestrutura necessária para a geração de força e a distribuição de água à população. A água abundante do Lago Léman e do Rio Ródano estava à disposição, mas faltava uma instalação que gerasse pressão para distribui-la a todas as casas.

Com essa finalidade, pequena usina hidroelétrica foi construída. Em 1886, as cinco primeiras turbinas foram inauguradas, capazes de fornecer força e água tanto às indústrias quanto aos lares.

Genebra: o primeiro Jato d’Água, inaugurado em 1886

Acontece que, à noite, quando as fábricas paravam, o rio continuava a correr fazendo girar as turbinas, o que gerava excesso de pressão. Ninguém sabia quando se atingiria nível crítico, o que obrigava uma equipe a ficar todas as noites de prontidão. Um dia, alguém teve a ideia de criar uma válvula de segurança para evacuar automaticamente o excesso. Quando se atingia uma determinada pressão, o dispositivo liberava um esguicho d’água destinado a aliviar o mecanismo.

Sem se dar conta, tinham inventado o futuro cartão postal da cidade. Paris tem a Torre Eiffel; Roma, o Coliseu; Lisboa, a Torre de Belém; o Rio de Janeiro, o Corcovado. Genebra tem seu esguicho, o Jato d’Água, marca turística da cidade.

Hoje em dia, sistemas mais modernos dão conta de manter a pressão sob controle permanente, sem necessidade de recorrer ao esguicho para aliviar o excesso. O esguicho de Genebra é mantido unicamente com finalidade turística. Aliás, o atual nem está no mesmo lugar do primeiro. A municipalidade logo se deu conta do potencial turístico do Jato. Ele está hoje localizado num ponto mais afastado das margens e mais visível.

Genebra: o Jato d’Água na atualidade

O original de 1886 alcançava 30m de altura. O atual vai bem mais alto, podendo atingir 140m – a altura de um prédio de 45 andares. O jato sai num fluxo de 500 litros por segundo, a uma velocidade de 200km/h. À noite, é iluminado por 21 projetores.

Funciona o ano inteiro e só é interrompido em duas ocasiões: 1) quando o vento sopra forte e na direção errada; 2) quando a temperatura desce abaixo de 2°C, por causa do risco de projeção de gotículas de gelo, que podem causar ferimentos.

Faz mais de 130 anos que Genebra se orgulha de seu símbolo animado e ecológico. É monumento autossustentável, em harmonia com os tempos atuais.

Land art

José Horta Manzano

Monsieur Guillaume Legros, cidadão francês, é enfermeiro de formação. Desde a adolescência, sentiu-se atraído pela arte de rua. Nos arredores da cidade de Belfort, sua região natal, começou marcando território com pichações.

Com o tempo, sua arte evoluiu. Hoje executa, sob encomenda, pinturas gigantescas que fazem parte do movimento land art. Os retratos, feitos com tinta biodegradável, são visíveis durante alguns dias. Em seguida, desaparecem. O que é bom dura pouco. Não é tanto a chuva que lava a tinta; é o crescimento da relva que faz desaparecer a pintura.

Monsieur Legros adotou o nome artístico de Saype, uma contração de Say peace ‒ Diga: paz.

Seguem algumas amostras do trabalho de Saype. Um dos trabalhos mais recentes (quarta imagem aqui abaixo) é uma pintura de 5000m2 feita num parque de Genebra. Simboliza os migrantes que buscam refúgio em território europeu, grande parte dos quais não logra chegar com vida ao destino. Um vídeo de três minutos mostra imagens aéreas do trabalho espetacular.

 

Land art – by Guillaume ‘Saype’ Legros, artista francês
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Land art – by Guillaume ‘Saype’ Legros, artista francês
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Land art – by Guillaume ‘Saype’ Legros, artista francês
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Land art – by Guillaume ‘Saype’ Legros, artista francês
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Publicado originalmente em 19 set° 2018.

Lula em Genebra

José Horta Manzano

O distinto leitor há de se lembrar que, pouco antes das eleições de 2018, Lula da Silva solicitou ao Comitê de Direitos Humanos da ONU que desse parecer sobre a possibilidade de ele – então preso em Curitiba – se candidatar. Numa liminar, o Comitê recomendou ao governo brasileiro que deixasse o Lula ser candidato. Nosso governo repeliu a recomendação, numa decisão, a meu ver, acertada. Aceitar a injunção teria ofendido a soberania do Brasil e de seu Judiciário.

Aproveitando seu atual giro turístico em terras europeias, o ex-presidente desembarcou em Genebra faz dois dias. Veio pressionar pessoalmente o Comitê. Seu objetivo deixou de ser a candidatura às últimas eleições; essas são águas passadas. Quer agora que a entidade lhe conceda uma espécie de salvo-conduto, de absolvição ampla e irrestrita – uma carta branca que apague e anule os erros do passado, as condenações, as penas e suas consequências.

Genebra (Suíça), seu lago e seu jato d’água

A empreitada não é simples. Sem querer prejulgar o processo, é difícil imaginar o egrégio Comitê de Direitos Humanos da ONU afrontando a Justiça brasileira em decisão colegiada e final. Lula já foi condenado em três instâncias. Não dá mais pra falar em perseguição contra sua inflada pessoa unicamente por obra de doutor Moro.

Quanto ao resultado da solicitação, quem viver verá. Pelo momento, fico imaginando que o Lula deve ter economizado um bocado pra poder se oferecer o luxo desta viagem. Paris e Genebra são conhecidas pelo elevadíssimo custo de vida. Como é que ele faz pra pagar viagem, hotel, refeições e tutti quanti? O homem deve estar com dinheiro saindo pelo ladrão. (Sem alusões.) Sua bênção, padrinho!

Trilha dos toblerones

José Horta Manzano

Você sabia?

Os suíços sentem muito orgulho por seu país não ter sido invadido por tropas alemãs nem italianas na Segunda Guerra Mundial. É realmente surpreendente que a pequena Suíça ― cercada por Alemanha, Itália, Áustria (anexada pela Alemanha) e França (ocupada por tropas de Berlim) ― não tenha sido engolida, com casca e tudo, pelos exércitos do Eixo. A maioria do povo atribui essa não intervenção à força de dissuasão representada pelo poderio militar suíço.

Bunker disfarçado de chalé de madeira

Há quem sorria ao ouvir essa explicação. Seja como for, tanto Berlim quanto Roma sabiam que seria bastante complicado dominar e ocupar um território montanhoso como este. Sabiam também que os suíços estavam muito bem armados e equipados, além de serem conhecidos como combatentes aguerridos.

Toblerone de verdade

Hitler e Mussolini devem ter feito a conta duas vezes. Chegaram à conclusão de que não valia a pena perder tempo, dinheiro, esforço e vidas humanas para conquistar um território pouco industrializado e totalmente desprovido de riqueza mineral. De qualquer maneira, não saberemos nunca o que realmente passou pela cabeça dos dois ditadores.

Linha dos toblerones

Linha dos toblerones

Eu acrescentaria mais uma razão. Numa Europa conflagrada, interessava a todos respeitar a neutralidade de um pequeno território, situado bem no centro geográfico do conflito. Era um lugar seguro, de onde não se imaginava poder vir nenhuma ameaça. Mais que isso, era um lugar onde todos podiam guardar, na confiança, seus dinheiros, suas obras de arte, seus objetos de valor. Mais ainda: um lugar onde se podiam organizar eventuais encontros secretos e manter conversações discretas e confidenciais. Todas essas razões hão de ter contribuído para que o país fosse poupado.

Isso hoje faz parte da História. Como diz o outro, «depois do fato consumado, é fácil ser profeta». Difícil mesmo é adivinhar o que está por ocorrer. No final dos anos 30, um bafo de guerra soprava no continente, mas ninguém sabia de que lado nem com que força chegaria a tempestade. As autoridades suíças não podiam cruzar os braços e apenas torcer para que o país não fosse invadido. Todos tinham de estar prontos para repelir tropas inimigas.

Linha dos toblerones

Linha dos toblerones – hoje utilizada como trilha para caminhada a pé

A inteligência militar planejou um sistema de defesa. A referência mais próxima era a Primeira Guerra, durante a qual os ataques se faziam por via terrestre, com tanques e blindados. Foi pensando nisso que bolaram o sistema defensivo suíço, basicamente terrestre àquela época. Incluía numerosos pontos, alguns dos quais são hoje conhecidos do grande público, enquanto outros ficarão secretos para sempre. Talvez seja melhor assim.

Todas as pontes do país estavam minadas. Ao menor sinal, as vias de comunicação seriam interrompidas, o que dificultaria tremendamente o avanço de tropas inimigas. A região de Genebra, fronteiriça com a França, trazia um problema espinhoso para os militares. Por ser constituída de terrenos planos e pela ausência de rios, foi considerada indefensável. Tomou-se a decisão tática de dar a cidade como perdida e implantar o sistema de defesa uns 30km mais para o interior do país.

Villa Rose Fortaleza disfarçada de casa de campo

Villa Rose
Fortaleza disfarçada de casa de campo

Construíram-se fortalezas com aparência de casas de campo. Foram levantados bunkers com aspecto externo de inofensivos chalés de madeira. Instalaram-se discretos postos de observação em pontos mais elevados ― naqueles tempos não havia street view nem espionagem por satélite. Para completar, uma verdadeira obra de arte defensiva foi construída, uma versão helvética da muralha da China. Ficou conhecida popularmente como Ligne des toblerones, a linha dos toblerones.

O que era e por que lhe deram esse nome?
Era ― e ainda é ― uma linha de 10km de blocos de concreto para barrar a passagem de tanques de guerra. São quase 3000 monstros de 9 toneladas cada um. Têm forma peculiar de tetraedro que lembra um pedaço de chocolate Toblerone, daí o apelido.

Não se tem notícia de que nenhum tanque tenha jamais tentado superar o obstáculo. Mas os toblerones continuam lá até hoje. Viraram atração turística. Trilhas próprias para caminhadas a pé serpenteiam por quilômetros, dentro da floresta, ao longo da barreira de concreto. É hoje o Sentier des Toblerones, a Trilha dos Toblerones.

Villa Rose Janela com cortina falsa

Detalhe da Villa Rose
Janela com cortina falsa

Taí uma obra militar que soube envelhecer. Em escrupuloso respeito ao espírito atual, não foi atirada a um lixão mas acabou reciclada. Incluí algumas imagens dos bunkers disfarçados de chalé e dos toblerones.

Publicado originalmente em 28 nov° 2013.

 

País anfitrião

José Horta Manzano

Sobre as cinzas da Segunda Guerra Mundial, pairava uma certeza: guerras dificilmente têm final feliz. O saldo do conflito tinha sido de dezenas de milhões de mortos, sem contar feridos e desabrigados que perambulavam sem rumo. Todos tinham perdido. Além disso, nenhum dos objetivos tinha sido alcançado. Os participantes saíram da guerra mais pobres do que tinham entrado.

Diante de constatação tão amarga, ressurgiu a ideia de instalar uma organização que congregasse os países do mundo inteiro, um parlamento onde todos pudessem dialogar antes de dar voz ao canhão. Foi dessa necessidade ressentida por todos que nasceu a ideia das Nações Unidas.

Ficou acertado que a sede principal se construiria em Nova York. Aproveitando o palácio construído nos anos 1920 para sediar a falecida Sociedade das Nações, a cidade de Genebra (Suíça) foi designada como sede europeia da ONU. Desde 1945, a cidade é sede secundária da organização.

Embora seja a sede europeia da ONU e de mais uma trintena de agências internacionais, a Suíça não solicitou adesão à organização. A população do país não julgou fosse importante associar-se. Foi somente em 2002, quando a ONU já completava 57 anos de existência, que o povo suíço, por meio de plebiscito, aprovou a adesão do país.

A ONU e as agências internacionais respondem por cerca de 10 mil empregos diretos em Genebra ‒ sem contar as recaídas indiretas. É inestimável fonte de riqueza para a cidade. Faz funcionar o comércio, os serviços, o aeroporto, o mercado imobiliário, hotéis, restaurantes, táxis, escolas. A lista dos benfeitos é longa.

Já em Brasília, para certos luminares, a ideologia partidária fala mais alto que os interesses do Estado brasileiro. Semana passada, nossas autoridades fizeram saber que o Brasil renuncia a acolher a COP 25, conferência internacional sobre mudança climática prevista para 2019.

No câmbio oficial, restrições orçamentárias são o pretexto. No paralelo, está o cepticismo de algumas de nossas autoridades quanto aos efeitos das alterações do clima. Que me relevem a crueza de propósitos: é burrice pura. Acolher a conferência não é sinônimo de subscrever a suas conclusões. Se a Suíça pôde acolher a sede da ONU por 57 anos sem ser membro, por que não poderia o Brasil receber a COP por alguns dias sem tirar carteirinha de membro?

São tolos. Estão desperdiçando excelente ocasião para mostrar ao mundo que o Brasil mudou, que a ideologia já não dirige nossos negócios, que temos capacidade de organizar eventos internacionais, enfim, que amadurecemos. Mas… será que amadurecemos?

Brasil de perto

José Horta Manzano

Hoje o BrasilDeLonge foi ver o Brasil de perto: fui votar. Volto com impressões contrastadas.

A organização
Só em Genebra são perto de 9 mil eleitores inscritos. Para acolher todo esse povaréu, o consulado alugou um espaço num centro de convenções e lá instalou numerosas secções eleitorais. Não sei por que razão, algumas tinham grande quantidade de gente esperando pra entrar enquanto outras não tinham ninguém. O contraste entre as secções concorridas e as demais era muito forte. Não atino a razão.

A espera
Com o voto no exterior, o Brasil exporta uma especialidade genuinamente nacional: a fila. Há muitos anos eu não fazia fila, coisa desconhecida por aqui. Pra começar, havia uma fila de uns 15 minutos na calçada só pra poder entrar no centro de convenções. Em seguida, outra fila mais rápida pra saber o número da secção, dado que o que está escrito no título não vale mais. Pra terminar, mais uma fila interminável, de hora e meia, pra entrar na secção. Deu um total de duas horas, tempo suficiente pra voltar com dor nas pernas.

Calor humano
Cáspite! Não imaginava que houvesse tantos compatriotas por aqui! Fila é sinônimo de proximidade. (Dependendo do espaço disponível, pode tornar-se sinônimo de contacto íntimo.) Proximidade + longo tempo de espera = conversa animada com o vizinho de fila.

Diferença de costumes
Por aqui, ninguém costuma se dirigir a estranhos. Hoje deu pra lembrar que no Brasil não é bem assim. Logo de cara, minha vizinha de fila me olhou no fundo dos olhos e tascou «‒ Desculpe perguntar, mas o senhor vai votar em quem?» Pausa pra um momento de estupor. É nessas horas que a gente se dá conta de que as diferenças culturais são ainda mais fortes que diferenças de nível econômico ou social. Por aqui, ninguém ousaria fazer uma pergunta dessas. Nunca, jamais, em tempo algum. Assim mesmo, respondi.

Razão do afluxo
Dirigi-me a um senhor de crachá, que fiscalizava o movimento. Perguntei a ele por que razão havia tanta gente a ponto de ser preciso fazer fila. Lembrei que, nas eleições anteriores, nunca houve espera. Responde ele que, desta vez, dada a polaridade da eleição, todos fazem questão de votar. Ninguém quer deixar a decisão na mão de outrem. O nível de abstenção baixou muito. Faz sentido.

O novo e o velho
Fiquei encantado com o tal de aplicativo que substitui o título de eleitor. Em vez de levar aquele papelzinho verde que a gente nunca sabe onde guardou, os que baixaram o programinha exibem o celular e lá está, na tela, o título com foto e todos os dados. E o número da secção se atualiza automaticamente. Coisa do outro mundo! No entanto, como nada é perfeito, todo esse automatismo cessa no momento em que o eleitor se aproxima da mesa. A partir daí, três figuras sorridentes começam a procurar seu nome em listas impressas. Igualzinho a como se fazia no século passado. Nem sempre encontram na primeira tentativa. Daí, o mesário passa para o colega. Se o colega falhar ‒ aconteceu, acreditem ‒ o presidente entra na dança. Encontrado finalmente o nome do cidadão, ele é autorizado a votar. Terminado o exercício, dão-lhe um papelzinho minúsculo. É o «comprovante», documento importantíssimo, que deverá ser guardado preciosamente. Um trapinho! É coisa do século 19!

Consideração final
Se estas eleições ‒ com segundo turno ou sem ele ‒ nos livrarem definitivamente da praga do lulopetismo, toda essa aventura terá valido a pena. Valha-nos, São Benedito!

Land art

José Horta Manzano

Monsieur Guillaume Legros, cidadão francês, é enfermeiro de formação. Desde a adolescência, sentiu-se atraído pela arte de rua. Nos arredores da cidade de Belfort, sua região natal, começou marcando território com pichações.

Com o tempo, sua arte evoluiu. Hoje executa, sob encomenda, pinturas gigantescas que fazem parte do movimento land art. Os retratos, feitos com tinta biodegradável, são visíveis durante alguns dias. Em seguida, desaparecem. O que é bom dura pouco.

Monsieur Legros adotou o nome artístico de Saype, uma contração de Say peace ‒ Diga: paz.

Seguem algumas amostras do trabalho de Saype. O retrato mais recente (quarta imagem aqui abaixo) foi pintado num parque de Genebra. Simboliza os migrantes que buscam refúgio em território europeu, grande parte dos quais não logra chegar com vida ao destino. Um vídeo de dois minutos mostra imagens aéreas da pintura.

 

Land art – by Guillaume ‘Saype’ Legros, artista francês
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Land art – by Guillaume ‘Saype’ Legros, artista francês
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Land art – by Guillaume ‘Saype’ Legros, artista francês
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Land art – by Guillaume ‘Saype’ Legros, artista francês
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Bebeu, pagou

José Horta Manzano

Você sabia?

Na Suíça, o sentimento de cidadania é palpável. Desde a infância, todos aprendem que pertencem a uma comunidade e que devem seguir as regras indispensáveis para conviver em harmonia. Diferentemente do que ocorre no Brasil, as leis se aplicam a todos os cidadãos, sem exceção nenhuma. Particularidades como cela especial ou foro privilegiado são inconcebíveis para um suíço.

Como em todo o mundo, os jovens às vezes se excedem. Em bares ou festas, especialmente em fins de semana, alguns exageram na bebida e acabam dando trabalho. As delegacias de polícia do país têm uma cela reservada para esse tipo de ocorrência. É chamada «cela para recuperar a sobriedade».

Toda pessoa encaminhada a essa cela permanece lá até voltar ao estado normal. Ao sair, receberá conta cujo valor pode variar conforme o cantão. Em Genebra, são 300 francos suíços (R$ 1100). O cálculo corresponde a uma hora de trabalho de dois policiais. O raciocínio é que o contribuinte não deve arcar com o custo de comportamentos problemáticos. O pagamento da despesa cabe a quem causou o problema ‒ uma lógica aceita por todos.

Em casos extremos, se o comportamento escandaloso daquele que bebeu demais tiver causado incômodo a moradores ou transeuntes, ele receberá multa de 300 francos por perturbação da ordem e da tranquilidade.

Como no Brasil, a polícia faz batidas pra medir a taxa de alcoolemia de motoristas. Costuma parar veículos aleatoriamente e mandar o condutor soprar no bafômetro. Se o teste der negativo, é «merci et au revoir» ‒ obrigado e até logo. Já se der positivo, é apreensão da carteira, imobilização do veículo e multa pesada. Com uma peculiaridade: além da multa, o motorista imprudente terá de pagar a despesa do teste de bafômetro. O preço é 100 francos (R$ 370).

Mais vale pensar duas vezes antes do primeiro trago.

Dinheiro vivo

José Horta Manzano

Olhando assim, distraidamente, a gente quase não se dá conta, mas o fato é que a vida de corrupto está cada dia mais complicada. Corrupção sempre houve e não está perto de acabar mas antigamente passava praticamente despercebida. Uma vez a cada morte de papa, estourava um escândalo ‒ que costumava acabar numa confraternização em torno de uma bela pizza. E tudo bem.

A tendência a descerrar a cortina entrou na pauta do dia. O fator principal foi o advento da internet, que escancarou portas para a propagação da informação em larga escala e em alta velocidade. Muito lixo inútil circula na rede, mas quem tem o cuidado de separar o joio do trigo encontra informações preciosas. Sem o concurso da internet, a própria Operação Lava a Jato não teria tido o sucesso espetacular que teve.

Não devemos perder de vista que, apesar do sentimento difuso de impunidade continuada, terminamos o ano de 2017 com um balanço extraordinário, fora dos padrões nacionais. Temos um ex-presidente condenado a quase dez anos de gaiola, uma presidente destituída, os dois maiores figurões políticos da primeira década do século em prisão domiciliar ou fechada (Dirceu & Palocci). Sem contar governadores de Estado, prefeitos, deputados, senadores presos e condenados. Até o Maluf entrou em 2018 vendo o sol nascer quadrado. Um espanto!

A acelerada extinção de paraísos fiscais confiáveis tem dado dor de cabeça a muita gente com dinheiro para esconder. Nem a Suíça escapou! Os portos seguros que subsistem nem sempre inspiram confiança. Alguém cometeria a temeridade de guardar fortuna no Panamá ou em Chipre?

Doleiros existem às centenas. Quem quiser mandar para o exterior (ou de lá mandar vir) cinco ou dez mil dólares não encontrará problemas. Já pra dinheiro grosso, a história é diferente. Os grandes atores brasileiros do mercado de transferência internacional de capitais estão na cadeia ou com tornozeleira. A quem apelar?

Sobrou a última desesperada opção: guardar dinheiro em casa. Ninguém há de se esquecer da foto do ano, aquela que mostra um apartamento abarrotado com mais de cinquenta milhões. É a prova das atuais dificuldades de movimentar grandes montantes. Em outras épocas, aquela fortuna já estaria agasalhada em Genebra, em Luxemburgo ou em Jersey.

Mas o pior vem agora. Dia 1° de janeiro entrou em vigor instrução normativa exarada pela Receita Federal regulamentando movimentação em espécie. Todo pagamento acima de 30 mil reais em dinheiro será obrigatoriamente declarado, por quem recebe, à Receita Federal. Realmente, a coisa está preta.

Por curiosidade, fiz as continhas. Pra escoar aqueles 51 milhões encontrados no apartamento baiano ‒ pagando no máximo 29 mil reais de cada vez, para escapar ao contrôle ‒ seria preciso fazer 1750 pagamentos. E deixar um certo espaço de tempo entre cada um deles, que é pra não dar na vista. Já imaginou a mão de obra?

Francamente, corruptos profissionais precisam seriamente pensar em mudar de profissão.

 

Aventura no consulado

José Horta Manzano

Faz alguns dias, publiquei um artigo sobre o preço exagerado do passaporte brasileiro. Mostrei também minha indignação com a profusão de nossas representações diplomáticas em partes do mundo onde são claramente supérfluas.

Semana passada, estive no consulado do Brasil em Genebra para tirar novo passaporte, que o meu acaba de vencer. Comparado com o de dez anos atrás, o atendimento melhorou, está mais civilizado. Ainda assim, a recepção me pareceu fria e distante. Está mais com cara de repartição pública do que tinha sido da última vez, cinco anos atrás.

Dizem que todo grupo de pessoas assume características do chefe. Tive o prazer de conhecer o embaixador que exercia as funções de cônsul-geral até poucos anos atrás, um gaúcho boa cepa. O atendimento de então se parecia com ele. A acolhida amistosa fazia que a gente se sentisse bem-vindo. Por razões que não cabe aqui explicar, o embaixador foi despachado para o outro lado do planeta. O atual ocupante do cargo será talvez dono de personalidade mais austera, o que explicaria a acolhida menos efusiva.

Para ser atendido, convém marcar hora por internet ou por telefone (agora se deve dizer «agendar», verbo com o qual tenho dificuldade em me acostumar). No consulado, apesar da aparência de modernidade, a marca da negligência nacional continua presente. O burburinho e a agitação dos presentes contrastam com o comportamento silencioso e organizado do país. Como se sabe, no Brasil, as coisas não costumam ser claras e nítidas. Tudo é mais ou menos. No consulado de Genebra, essa impressão já começa pelo prédio. Há outros escritórios e firmas no mesmo edifício. No térreo, há elevador dos dois lados. Não está escrito qual deles serve o consulado. Talvez todos cheguem lá, mas não há indicação.

Vencida a etapa do elevador, você chega ao andar e entra. No imenso salão, logo enxerga, à sua frente, quatro guichês numerados de 1 a 4. Entre você e os guichês, umas três fileiras de quatro cadeiras cada uma, todas de frente para os guichês, como se estivesse lá um palco. Para o lado direito, o salão se espicha, largo e comprido. Serão uns dez metros de largura. Não dá pra ver o fim, de tão longo que é.

Falta cor no chão, nas paredes, no sóbrio mobiliário, no teto rebaixado. Através de uma parede de vidro, percebe-se um jardim interno, dotado de iluminação natural. A entrada não é franqueada ao distinto público. Acostumados à sociedade compartimentada do Brasil, os frequentadores devem achar normal. Não há nenhuma máquina distribuidora de café, bebidas e salgadinhos. Dado que são aparelhos que não acarretam custo ao consulado, a gente fica sem entender por que ninguém pensou nisso.

Vê-se gente por aqui e por ali, grupinhos conversando, um ou outro apoiado em mesinha preenchendo um formulário, dois ou três carrinhos de bebê sem passageiro. Nenhum relógio nas paredes. Várias telas de vídeo, todas com imagens fixas, imóveis e inúteis que teimam em indicar: «guichê n° 1, senha n° 1». Não vi distribuidor de senhas.

Você pára, olha, e fica sem saber o que fazer. Não há um estandezinho de informações para orientar. Nenhuma indicação escrita. Estava eu parado, olhando para um lado e para o outro, sem saber se corria ou se gritava. De repente, uma mocinha mais caridosa, atrás de um guichê vazio, fez sinal pra me aproximar. Dei meu nome. Depois de conferir no computador, ela me disse, apontando para o fundo do corredor comprido: “O senhor pode esperar em frente aos guichês, que será chamado pelo nome”. Agradeci. Os guichês? ‒ pensei. Haverá outros? Caminhei até a outra ponta do corredor, uns 100 passos. A paisagem era idêntica à da entrada: outros quatro guichês enfileirados, numerados de 1 a 4, e as fileiras de cadeiras alinhadas em frente. Sentei-me numa delas e esperei.

Passeando os olhos ao redor, vi cartazes com os dizeres «Você nunca é culpada! Chame 180». Fiquei imaginando o que pudesse significar. Mais tarde, soube pela internet que é o número de telefone de uma central que, no Brasil, cuida de mulheres maltratadas. Fiquei sem entender a razão pela qual esses cartazes enfeitavam paredes aqui, a dez mil quilômetros de distância. Cogitei que seria mais útil criar uma hipotética Central de Amparo ao Imigrante Clandestino. Juro que a central telefônica havia de explodir.

De repente, uma mocinha detrás de um dos guichês me chama pelo nome. Me senti muito importante! Com certa decepção, constatei que atendentes não sorriem mais. Executam ordens. Mostrei os documentos. Me mandou encostar os dedinhos (os dez!), um por vez, no visor de vidro de uma geringonça que tira impressões digitais. O paninho e o vidro de álcool desinfetante, presentes da vez anterior, não estavam mais lá. Vivemos tempos de penúria. Deixei de lado o nojo e me verguei à ordem. Ainda argumentei que já tinha deixado ali minhas impressões digitais cinco anos antes. Por que repetir o processo? Data de nascimento e impressões digitais não costumam mudar. Ela retrucou que o sistema era assim mesmo e que, por favor, seguisse as instruções. Segui.

Daí mostrei o recibo do pagamento de 150 francos (quase 500 reais), feito oito dias antes em agência de correio, em benefício do consulado. Ela olhou e me disse que ia conferir se o dinheiro tinha chegado. Já um tanto incomodado, esclareci que, aqui na Suíça, os Correios são uma instituição. O carimbo aposto no papelzinho garante que o pagamento foi efetuado. Tem fé pública e não permite discussões. Ela não pareceu abalada. Guardou o recibo assim mesmo para conferir. Eu já estava começando a ficar alterado. Afinal, faz décadas que renovo meu passaporte no mesmo consulado. Já deviam ter um arquivo com meus dados, não?

Nisso, a mocinha viu de relance, na minha pasta de documentos, minha cédula de identidade e meu título de eleitor, documentos não exigidos para renovar o passaporte. Pediu os dois. Eu fiz notar que meu RG, tirado 52 anos atrás, mostra uma foto que já não identifica o titular. Quanto ao título, que hoje é um papelzinho sem foto, não identifica ninguém. E tem mais: para fins eleitorais, sou domiciliado exatamente naquele consulado que, portanto, tem todos os meus dados.

Ela foi-se embora dizendo que ia «processar» meu passaporte. Fiquei imaginando como se «processa» um passaporte. A primeira impressão que me veio à mente foi a de uma fábrica de salsicha ‒ com ou sem papelão, tanto faz. Acho que ela quis simplesmente dizer que ia «fazer», «preparar» ou «aprontar» o documento. Me pediu que voltasse à poltroninha e que lá aguardasse. Fui e fiquei quietinho.

Apreciei de novo, de longe, os cartazes insistindo pra eu ligar, sem medo, para o 180. Ao lado, havia outro cartaz mencionando que a lei número tal confere prioridade no atendimento a pessoas com mais de 60 anos, grávidas, portando criança de colo e com sobrepeso. Fiquei matutando como seria possível alguém ter mais de 60 anos, estar grávida, obesa e ainda aparecer carregando criança no colo. Ah, essas negligências na formulação de leis ainda hão de nos atormentar por muito tempo.

O tempo de espera começou a parecer longo. Divaguei. Empaquei nessa lei que privilegia uns com base na aparência. Considerei que velhice não é doença. Gravidez tampouco. Para carregar criança, existem hoje em dia carrinhos muito práticos e levinhos. Constatei que a lei se limitava a casos visíveis, omitindo os demais. Como ficam pessoas com câncer, insuficiência cardíaca, reumatismo, dor na espinha, calo no pé? Ou bem se ajuda a todos os que precisam ou não se ajuda a ninguém. A tal lei me pareceu capenga.

Reparei ainda numa coleção de uma dezena de gravuras penduradas na parede do fundo do imenso salão, reprodução de obras do século 17. Cada gravura de uns 30cm de altura por um metro de largura traz a silhueta, traçada a bico de pena, de cidades europeias. Berlim, Berna, Bordeaux, Antuérpia, Bruxelas estão ali. Tudo coisa fina. Fiquei um tanto nostálgico com a ausência das araras, dos papagaios, do bondinho do Pão de Açúcar, da calçada de Copacabana que costumavam aparecer nos cartazes de antigamente. Os velhos posters da Varig desapareceram com a própria.

Uma hora, a mocinha reaparece e me chama, sempre exibindo fisionomia de esfinge sem sorriso. Vou até lá e, antes de mais nada, boto reparo nas mãos dela. «Ufa!» ‒ pensei ‒ «Ela vem com dois passaportes, sinal de que o novo saiu.» De fato, devem ter constatado que meu pagamento chegou. Com os passaportes, me devolveu o RG e o título de eleitor, mas não o recibo de pagamento. Perguntei onde estava. «O recibo é nosso» ‒ me diz ela. Aí, me empertiguei. «Não, senhora, o recibo é de quem pagou. Vocês ficam com o dinheiro e eu, com o recibo. Sem meu recibo, não saio daqui». Sem saber como reagir, ela me pediu um instantinho e desapareceu.

O instantinho foi longo. Deu pra ouvir um vozerio lá atrás. Acho que não é todos os dias que aparece um conterrâneo tão chato. Mas, sacumé, como eu falo grosso e uso argumentação lógica, costumo obter o que peço. Depois de um tempo, volta a moça com um recibo emitido pelo consulado, com papel timbrado com as armas da República, tudo em cores, numa folha de papel A5, chique que só vendo. Senti-me satisfeito. Desejei à mocinha boa continuação, virei as costas e fui-me embora.

Com meu limitado senso de orientação, foi difícil encontrar a saída. Cheguei a enxergar até a porta do banheiro, mas nada de saída. Não ocorreu ao pessoal do consulado instalar um cavalete com uma seta indicando por onde se deve passar. Acabei encontrando e saí. Sem lenço, mas… com documento.

Deu uma pontinha de saudade do tempo em que a salinha do consulado não tinha mais de dez ou doze metros quadrados. Era um em que, por falta de conterrâneos nesta parte do mundo, o atendente ‒ havia um só ‒ era um simpático senhor português. Era um tempo em que a gente dava uma passadinha no consulado só pelo prazer de manusear um exemplar amarrotado d’O Cruzeiro ou da Manchete ou, com sorte, um exemplar do Estadão ou d’O Globo com notícias do mês anterior. Eram o cordão umbilical de um tempo sem internet. Que fazer? Ninguém segura o progresso.

Restaurante chique

José Horta Manzano

A doutora foi flagrada, dia destes, elegantemente debruçada sobre uma mesa de «baretto» genebrino ‒ pequeno restaurante de estilo italiano, onde os bebes têm tanta importância quanto os comes. Ou até mais.

Estava bem acompanhada, como de costume. Observando a foto, percebe-se que Madame sorve as excelsas palavras do doutor Marco Aurélio «top-top» Garcia, aquela sumidade cujos sábios conselhos ajudaram a encurralar a política externa brasileira no beco do qual procura hoje escapar.

O instantâneo, publicado pelo Diário do Poder, qualifica o restaurante I Tre Bicchieri de “chique”. Não é. Restaurante chique não dispõe mesas grudadas umas às outras como casinhas de arrabalde. Em estabelecimentos de boa categoria, tampouco serão encontradas mesas alinhadas a poucos centímetros do balcão de serviço. O preço dos pratos propostos ‒ segundo cardápio disponível na internet ‒ equipara-se ao que se costuma praticar em restaurantes de qualidade mediana em Genebra.

A particularidade mais picante do evento escapou tanto ao autor da foto quanto ao do texto. O restaurante escolhido pela doutora encontra-se no coração do “quartier des banques”, região do centro de Genebra que concentra impressionante número de estabelecimentos bancários privados, desses de porta fechada, sem letreiro. Mas com porteiro vestido de casaca, como nos grandes hotéis cinco estrelas do país. O bairro não é especialmente conhecido por abrigar restaurantes “chiques”. A escolha do estabelecimento terá sido acidental.

Fome Zero

José Horta Manzano

Você sabia?

Costuma-se dizer que a primeira impressão é fundamental. É verdade. É difícil alterar o impacto do choque inicial. A eleição do Lula à presidência do Brasil, no já distante ano de 2002, impressionou o país e o mundo. O lançamento do Programa Fome Zero comoveu. Parecia que, pela primeira vez, o bom senso estava para se instalar no topo do poder.

De lá pra cá, muita água passou por debaixo da ponte. O mensalão primeiro e, em seguida, a arrasadora Lava a Jato mostraram aos brasileiros que a primeira impressão não passava disso: uma impressão. Na sequência, ficamos sabendo que, por debaixo da aparência nobre, fervilhava um caldeirão de ambições pessoais alimentadas por trambiques e falcatruas que desvirtuavam a fidalguia dos protagonistas. A nobreza era só fachada.

No Brasil, temos acompanhado o desmascaramento dos atores principais. Apareceu muita podridão. Passados quinze anos, constata-se que a situação dos desvalidos não só não se resolveu, mas piorou. E muito. No resto do mundo, no entanto, muita gente ficou na primeira impressão. Além-fronteiras, muita gente fina ainda enxerga, no lulopetismo, nobreza, boas intenções e soluções duradouras.

Théâtre Pitoëff, Genebra, Suíça

Théâtre Pitoëff, Genebra, Suíça

Todos os anos, a cidade de Genebra, capital internacional dos Direitos Humanos, é sede do FIFDH ‒ Festival do Filme e Fórum Internacional dos Direitos Humanos. A próxima edição terá lugar de 10 a 19 de março. O programa é consistente. Dezenas de filmes, palestras, debates estão previstos. Os patrocinadores, todos de primeira linha, incluem: Amnesty International, a Rádio Televisão Suíça, a Confederação Suíça, a cidade de Genebra, Médicos sem Fronteiras, o Banco Pictet, a Universidade de Genebra, a Agência France Presse, a República Francesa e a União Europeia ‒ entre dezenas de outros. Coisa finíssima.

Dia 11 de março, o venerando Théâtre Pitoëff será o centro das atenções. Em paralelo à projeção de um filme indiano sobre o combate à fome que castiga 200 milhões naquele país, duas personalidades participarão dos debates. Por um lado, virá Mr. Colin Gonsalves, membro da Suprema Corte da Índia e instigador da Lei de Direitos Humanos de seu país. Por outro, está prevista a presença de dona Dilma Rousseff, antiga presidente do Brasil.

O anúncio apresenta a doutora como arquiteta, conjuntamente com o Lula, de «um dos programas de segurança alimentar mais ambiciosos jamais criados: o Programa Fome Zero, que permitiu a mais de 20 milhões de brasileiros de sair da miséria». O moderador dos debates será o apresentador vedete do jornal televisivo suíço, um dos rostos mais conhecidos do país.

Combate à fome e à miséria: os exemplos do Brasil e da Índia

Combate à fome e à miséria: os exemplos do Brasil e da Índia

O programa, que traz a foto de nossa sorridente doutora, não faz nenhuma alusão a pedaladas nem a escândalos. Não há uma palavra sobre o assalto descarado ao dinheiro público ‒ dinheiro que pertencia justamente aos desvalidos que, em tese, deveriam ter sido socorridos.

Se o distinto leitor tiver interesse, ainda é possível inscrever-se. O preço do bilhete de entrada é camarada. Embora não esteja escrito no programa, espera-se que os participantes se abstenham de fazer perguntas que possam deixar a irascível doutora embaraçada ou, pior, provocar-lhe um acesso de fúria. É favor evitar toda menção a impeachment, escândalo, roubo, pedalada, desvio de recursos públicos, caixa dois & assemelhados.

A direção do fórum agradece antecipadamente.

L’Escalade

José Horta Manzano

Você sabia?

Os heróis perpetuados pela história nem sempre merecem a glória que se lhes atribui. A própria existência de alguns deles é incerta. Isso tanto vale para o Brasil quanto para o resto do mundo. Não temos prova cabal de que personagens como Anhanguera, Zumbi dos Palmares, Caramuru e Moema tenham existido. Até de Tiradentes, herói maior, não sobrou um escrito sequer, o que faz desconfiar que o homem não tenha passado de «laranja» de um grupo de românticos e espertos intelectuais.

O nome do Rio Amazonas faz alusão a mulheres guerreiras da mitologia grega. Foi assim nomeado porque os primeiros visitantes europeus garantiram ter dado de cara com ferozes mulheres que, montadas a cavalo, combatiam. Sabemos hoje que, antes da chegada dos colonizadores, não havia cavalo nas Américas. Portanto, a história das lutadoras não passa de, digamos, «realidade aumentada».

Genebra nos anos 1600

A cidade fortificada de Genebra nos anos 1600

Este fim de semana, Genebra celebra uma de suas datas mais importantes. Pelo fim da Idade Média, a transição entre o regime feudal e o aparecimento do Estado-nação foi lenta e coalhada de vaivéns complicados. Entraram em jogo ambições pessoais, conflitos religiosos, rivalidades seculares, interesses estratégicos. Mal comparando, a atual situação da Síria e do Médio Oriente lembra o cenário político dos anos 1500 e 1600: num tabuleiro de povos de línguas e religiões diversas, tecia-se um jogo de alianças e de hostilidades entre poderosos. A marca da época era a instabilidade. Traições eram comuns. Todos temiam todos.

Logo que sobreveio a reforma protestante, a cidade de Genebra ‒ uma cidade-Estado ‒ se tornou bastião do calvinismo, um ramo do cristianismo reformado. Vítimas de perseguição religiosa afluíram de outras partes da Europa. Embora protestante, a cidade se encontrava cercada por populações de fé católica. Para complicar a situação, passava por ali a estrada que ligava o ducado da Saboia e o reino da França. Dominar Genebra era importante.

escalade-1Os saboianos, apoiados num batalhão de mercenários, prepararam um ataque noturno para tomar a cidade. O plano era mandar um punhado de homens escalar as muralhas de 7m de altura e penetrar no interior do vilarejo. De dentro, abririam o portão principal para permitir a entrada do batalhão que surpreenderia e dominaria os habitantes.

O assalto foi marcado para a noite de 11 para 12 dez° 1602. Valendo-se da escuridão e da negligência dos vigias, algumas dezenas de invasores conseguiram encostar escadas de madeira e penetrar na cidadezinha. Uma vez detectada, a presença dos invasores pôs em movimento a população. Uns correram aos templos para tocar os sinos em sinal de alerta, outros se atracaram aos assaltantes ou lançaram sobre eles variados objetos. Até mulheres deram contribuição para defender o vilarejo.

escalade-3É aí que uma certa Dame Royaume (Madame Catherine Cheynel, casada com Pierre Royaume) cometeu façanha que salvou a cidade. Conta a lenda que estava preparando uma sopa de legumes num imenso caldeirão. Ao avistar um invasor, não teve dúvidas: lançou, sobre o infeliz, o caldeirão com sopa e tudo. Salvou os concidadãos. A invasão acabou sendo repelida e Genebra pôde viver alguns anos de tranquilidade.

Quanto a mim, tenho cá minhas dúvidas. Parece-me surpreendente que, meia-noite passada, uma mulher estivesse cozinhando. Não era comum à época, como ainda não é hoje. Seja com for, o caldeirão de «Dame Royaume» ‒ também dita «Mère Royaume» ‒ tornou-se símbolo da proeza genebrina de 400 anos atrás.

escalade-2Todos os anos, desfiles em trajes de época, maratona para não-profissionais e diversas manifestações se desenrolam nos dias que precedem a festa conhecida como «L’Escalade» ‒ A Escalada. Até o governo federal participa das festividades.

Crianças (e adultos) recebem um caldeirão de chocolate recheado de bombons de marzipã. O ponto alto da festa é o momento de quebrar o caldeirão. Dependendo do tamanho, pode-se dar um murro ou até usar um martelo. Em seguida, comem-se os estilhaços de chocolate e devoram-se os bombons.