O nome das estradas

A velha “Rota Azul”, de Paris à Costa Azul.

José Horta Manzano

Na Europa, as estradas de rodagem são conhecidas por um número ou por uma sigla. A6, BAB 84, A1, E4 – são alguns exemplos. As mais importantes, por serem mais longas ou por ligarem centros importantes, recebem às vezes um “apelido”, que coabita com a sigla oficial.

Assim, a A6 francesa tem o apelido de Autoroute du Soleil (Autoestrada do Sol), por correr dos grandes centros em direção às praias do Mediterrâneo. Na Alemanha, há a Schwarzwaldautobahn (Autoestrada da Floresta Negra), que serpenteia por colinas cobertas por densos bosques, no sudoeste do país. A Espanha, além da sigla, dá apelido a todas as vias expressas: Autovía del Mediterráneo, Autopista del Sur, Autovía del Duero, etc. Na Itália, diversas rodovias têm nomes atraentes: Autostrada dei Laghi (dos lagos), dei Fiori (das flores), dei Vini (dos vinhos), e por aí vai.

Nunca vi, no entanto, estrada com nome de gente. Dos países que conheço, o Brasil é o único onde rodovias tem prenome, sobrenome e, se for o caso, título ou profissão do homenageado, o que às vezes dá nomes quilométricos. O pior é que, além de levar nome de gente, rodovias mudam de nome! Perdem o nome antigo para ganhar um novo, ao sabor da conveniência do momento. E olhe que esse troca-troca não tem a ver com o politicamente correto, que manda desaparafusar certas estátuas pra pôr outras no lugar. As mudanças são resultado da simpatia pessoal de algum parlamentar combinada com a apatia dos demais.

No Brasil dos tempos de antigamente, quando se viajava de trem, havia poucas estradas de rodagem. Estradas de ferro, que eu me lembre, não levavam nome de gente. Eram chamadas com o nome da companhia a que pertenciam ou indicavam a região ou as cidades servidas: Mogiana, Central do Brasil, Vitória a Minas, Sorocabana, Noroeste do Brasil, Santos-Jundiaí.

A partir dos anos 1950, quando lobistas automotivos e petroleiros atacaram firme, não se investiu mais em ferrovias. Como resultado, o número de rodovias cresceu. Esse crescimento foi acompanhado pelo estranho costume de dar nome e sobrenome a estradas. Algumas ganharam nome de personalidades conhecidas; outras, menos sortudas, não homenageiam figuras nacionais, mas indivíduos perfeitamente desconhecidos do grande público.

Uma ou outra estrada escapou. Uma delas era a Belém-Brasília, marco de uma era em que derrubar árvores e dizimar florestas era símbolo de civilização. Além da sigla oficial, conservou seu apelido por mais de meio século. Já no início, tentaram empurrar-lhe o nome de um dos engenheiros que participaram da criação do traçado, mas a iniciativa nunca pegou. Foi sempre conhecida como BR-153 ou Belém-Brasília ou ainda Rodovia Transbrasiliana – belo nome, por sinal.

Esta autoestrada espanhola de 500km de extensão ganhou o poético nome de ‘Rota da Prata’.

Isso foi até que, em 2011, num rasgo visionário, o então senador Aloysio Nunes Ferreira teve a curiosa ideia de dar nome de gente à mais longa estrada do Brasil. “Como é possível que uma estrada não faça homenagem a alguém?” – deve ter pensado o nobre parlamentar. Escolheu dar-lhe o nome de João Goulart, elaborou o projeto de lei e mandou brasa. Eu me pergunto se um senador da República, regiamente sustentado com nosso dinheiro, não tem nada mais importante que fazer além de trocar nome de estrada.

Collor de Mello e Dilma Rousseff foram destituídos. Goulart também, só que manu militari – pela força das armas. Tirando os fanáticos, todos concordarão que nenhum dos três figura entre os grandes presidentes que este país já teve. É possível que o fato de o senador Nunes ter sido militante comunista perseguido pelo regime militar tenha influído na proposta de aposentar a Transbrasiliana e transformá-la em João Goulart.

Depois de longos dez anos de tramitação, o projeto foi aprovado outro dia pelo senado. Transformado em lei, o documento foi levado ao capitão, que vetou integralmente. Sejamos claros: aprecio muito mais o senador Nunes do que o capitão Bolsonaro. Mas não sou devoto de nenhum deles. Não engulo tudo o que diz o primeiro, nem rejeito sistematicamente o que vocifera o segundo.

Fico aliviado com a decisão do capitão. Ele vetou a mudança por razões ideológicas. Eu também teria vetado, ainda que não pelas mesmas razões. Se desaprovo a mudança, é porque me desagrada profundamente ver estrada “batizada” com nome de gente. É batismo que pode cair bem em país atrasado. Num Brasil que tenta, há décadas, se safar de crônicos padrões africanos, parece-me fora de esquadro.

Miscelânea 06

José Horta Manzano

Autostrada italiana 1935

Autostrada italiana 1935

Proporcional
A Itália reclama para si a invenção da estrada de rodagem ― em seu conceito moderno, entenda-se. Na Europa, foram realmente os primeiros, já nos anos 1920, a se darem conta da necessidade de construir estradas exclusivas para veículos automotores. Entre rebanhos de cabras, carroças de feno, carros de boi, bicicletas e pedestres, os automóveis tinham crescente dificuldade em se locomover nas estradas de então.

Em 1924, foi inaugurada a primeira dessas novas vias, a Milano-Laghi, 84 quilômetros entre Milão e a região dos lagos lombardos. As características principais desse novo tipo de estrada já estavam lá: duas pistas duplas separadas por um canteiro central, proibição de circulação a todo veículo não motorizado, cobrança de uma taxa de passagem ― o pedágio.

Hoje a Itália conta com 6500km dessas estradas exclusivas, enquanto a França tem 9600km e a Alemanha, 11700km. A rede suíça totaliza 1400km. Os italianos dizem autostrada. Em alemão, é Autobahn. Os franceses conhecem como autoroute. Já os espanhóis preferem autopista. Em Portugal, também dizem auto-estrada. No Brasil, não há um nome específico. Fala-se em estrada duplicada, em rodovia com pedágio. Acredito que autoestrada ou via expressa pudesse ser uma boa tradução. Quem tiver melhor ideia, que se manifeste.

Via expressa atual

Via expressa moderna

Quase cem anos depois da abertura da primeira autostrada europeia, o Estadão nos informa que, neste sábado 27, a rodovia SP-340 «ganha»(sic) pedágio por trecho. É realmente um ganho! A cobrança da taxa de circulação passa a ser proporcional à distância percorrida. Isso sempre pareceu evidente para os europeus, desde os pioneiros de 100 anos atrás. Mas não aos responsáveis brasileiros.

Antes tarde que nunca.Interligne 18b

Suplentes
Artigo de Victor Vieira publicado neste 27 de julho volta ao assunto dos suplentes de senador. Dentre os 81 titulares, 16 são suplentes, criaturas sem voto, escolhidas por dedaço entre os familiares ou conhecidos dos senadores. Isso significa que 20% dos representantes dos Estados não foram eleitos pelo povo, um inconcebível absurdo.

Para o caso de impedimento de um senador, há somente duas soluções viáveis:
1) Deixar vaga a cadeira até que o titular retorne ou, no caso de não retornar, até a próxima eleição.
2) Organizar nova eleição no Estado representado pelo senador.

Que se aproveite a onda das reformas que apontam por aí e que se tome uma decisão. O que não podemos é continuar com esse sistema clânico, descendente direto do conceito medieval das capitanias hereditárias. Um senador não pode «terceirizar» seu cargo. O eleito é ele e não um de seus familiares, homens de confiança ou… capangas.

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A vantagem de Maria
A notícia fala dos problemas judiciários de Dominique Strauss-Kahn, ex-futuro candidato à presidência da França. Não me cabe aqui tomar partido. Eles, que são brancos, que se entendam.

O que me surpreende é o desaparecimento de uma palavra de nossa língua. Não li todos os avisos mortuários dos últimos 50 anos, portanto não sei quando ela faleceu. O fato é que sumiu de circulação.

O artigo conta que DSK está sendo processado pelo crime de proxenetismo. Em seguida, o jornalista sente-se obrigado a explicar, com meia dúzia de palavras, o que vem a ser essa palavra.

É aí que sinto a falta que fazem as palavras falecidas. Antigamente, dizia-se lenocínio. E todos sabiam o que era, não precisava maiores explicações. Quando proxenetismo entrou na língua portuguesa, já fazia alguns séculos que se dizia lenocínio.

Está aí uma substituição inútil e trabalhosa. Esquece-se a palavra antiga, elege-se uma nova. E, a cada vez que aparece, tem de ser acompanhada de sua definição.

Como dizia o outro: ― que vantagem Maria leva?Interligne 18b

Bandeiras queimadas by Miguel Schincariol, AFP

Bandeiras queimadas
by Miguel Schincariol, AFP

La gloria en llamas
Nos anos 60, na véspera da inauguração de uma exposição espanhola em Milão, na Itália, houve uma passeata de protesto. Os manifestantes reclamavam contra o regime franquista que regia a Espanha já fazia mais de 25 anos. No auge dos protestos, atearam fogo a bandeiras espanholas.

Indignado com o que acabava de acontecer, um jornalista espanhol, hoje já falecido, usou de toda a sua verve para escrever um inflamado artigo que fez história no jornalismo ibérico. Foi lá que, referindo-se à bandeira, utilizou a expressão «la gloria en llamas», a glória em chamas. E o artigo terminava prevenindo aqueles «que se divertem brincando com fogo».

Nesta sexta-feira, irresponsáveis se divertiram queimando a bandeira brasileira e a paulista. A bandeira é o símbolo maior de um país. Atear fogo a ela equivale a ofender todo um povo. É insulto de gravidade extrema, como se tivessem cuspido na cara de todos nós. A bandeira não é símbolo da presidente, nem do congresso, nem da prefeitura. É a representação de todos os brasileiros. Quero crer que os iconoclastas sejam brasileiros também. Assim, terá sido a primeira vez que vejo manifestantes ofendendo a si próprios. Nonsense total.

Nestes tempos de visita papal, cabe lembrar o sempre atual versículo 23:34 do Evangelho de Lucas: «Perdoai-lhes, Senhor, porque não sabem o que fazem».

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