O presidente e os testes

José Horta Manzano

Fofocas e boatos sempre existiram, mas a tecnologia moderna exacerba a difusão de informações tortas.

Estes dias, com meio mundo de férias, magistrados e até parlamentares em recesso, o assunto que ainda domina é a doença presidencial. Fatos e gestos de doutor Bolsonaro costumam envelhecer rápido devido à compulsão do capitão em produzir escândalos novos a cada dia. O silêncio que ele vem mantendo há duas ou três semanas espicha a sobrevida dos fatos e escândalos disponíveis.

Eis por que sua enfermidade continua na ordem do dia. Numerosas correntes de pensamento se formaram. Há quem acredite que o presidente já se contaminou faz tempo e que esta agora é uma recaída. Outros juram que o contágio é castigo de Deus, desencadeado pelo próprio Bolsonaro quando zombou dos compatriotas doentes soltando o terrível ‘E daí?’. Há ainda quem afirme que a contaminação é pura jogada de marketing; segundo essa corrente de fofoca, o presidente está em perfeita saúde, e a confissão de ter sido contagiado é só pra enganar trouxa e desviar a atenção das estrepolias dos filhos.

Visto que nós, o populacho, não sabemos ao certo o que aconteceu, há que respeitar todas as linhas de boato. A verdade se esconde em alguma delas. Linha por linha, acrescento mais uma. Vou dizer como imagino que os acontecimentos se tenham desenrolado.

Muita gente anda intrigada com o fato de Bolsonaro se ter negado a publicar o resultado dos primeiros testes de covid-19. Perguntam: «– Se os testes tinham dado resultado negativo, por que é que ele se recusava a mostrar?». E também: «Por que é que mostrou tão rápido desta vez – ainda por cima com resultado positivo?».

Acredito que a primeira bateria de testes foi feita com nomes fictícios exatamente porque não era pra ser mostrada ao público. Na cabeça do doutor, fazer o teste era sinal de que estava com medo da doença. Não cai bem um militar durão e machão, ‘com passado de atleta’, ter medo de uma «gripezinha». Eis por que ele não queria mostrar os exames. Não era tanto pelo resultado, mas pelo fato de ter-se deixado esfregar as fossas nasais – demonstração de fragilidade e de preocupação.

Já da segunda vez, com sintomas presentes, a história era diferente. Obrigado a ficar de quarentena, ele não ia conseguir esconder a doença. O Planalto está cheio de espiões linguarudos. Assim, achou melhor ir contando logo, antes que a verdade estourasse.

A teoria que expus pode não ser inteiramente verdadeira mas vale tanto quanto outra fofoca qualquer.

A sinceridade do doutor

José Horta Manzano

A contaminação de Bolsonaro demonstra que sua atitude diante da pandemia era – e continua sendo – sincera. No trato da pandemia, nunca houve marketing nem caso pensado. Ele realmente acreditava que a doença não passasse de “gripezinha”.

Todos ressaltam o desmazelo com que, nos últimos meses, continuou a acercar-se de assessores, visitantes e jornalistas, em atitude considerada por muitos como criminosa por expor toda essa gente a eventual contágio.

Mas há que ter em mente o outro lado da medalha, que mostra que doutor Bolsonaro não acreditava na periculosidade do vírus: ele deixou que assessores, visitantes e jornalistas se aproximasse dele como se vivêssemos tempos normais. Nunca demonstrou ter medo de ser contaminado.

Ao deixar-se achegar, o presidente tanto arriscou transmitir a doença a terceiros (que era o risco que todos apontavam) quanto se abriu ao contágio. Acreditava, de verdade, que a doença não passasse de “gripezinha” inventada por comunistas malvados que queriam destroná-lo. Estava convencido de que, com seu “passado de atleta”, tinha corpo fechado.

O ser humano é dotado de instintos; um deles, talvez o mais básico, é o de sobrevivência. Se o doutor – estressado e idoso – tivesse pressentido o perigo que corria, teria se resguardado desde a chegada da epidemia, que ninguém é besta. Não o fez.

Está aí, salvo melhor juízo, a prova da absoluta sinceridade do presidente. É que sua mente funciona em circuito fechado, impermeável a todo ensinamento. Sua maneira de ver o mundo está cristalizada; toda esperança de mudança é vã. Quem estiver esperando que ele se regenere assim que escapar dessa, que tire o cavalo da chuva. Desse mato, não sai coelho.

Olhar da mídia

José Horta Manzano

Houve uma época, e não foi ao tempo dos Sumérios, em que não havia internet. A informação vinha pela imprensa. No exterior, o Brasil costumava aparecer nas páginas turísticas. Sol, praia, futebol, Carnaval era o que se lia. Copacabana, Iguazú (sic), Ipanema – eram esses nomes exóticos que emolduravam as imagens de coqueiros, de sol, de sal, de sul.

Com a virada do século, veio a grande (e bem-sucedida) jogada de marketing do lulopetismo. Um Lula paz e amor, todo sorridente, percorria o mundo. Dizia e fazia besteiras, mas tudo lhe era perdoado por transmitir a imagem de paizinho dos pobres. Lentamente, o Brasil saiu do caderno Turismo para entrar nas páginas políticas.

A derrocada do regime abalou muita gente. Ao redor do mundo, alguns não entenderam até hoje o que aconteceu e preferem se agarrar à imagem do demiurgo injustiçado. Cada um é livre de venerar os santos de sua preferência.

Um belo dia, na esperança de enterrar o governo marqueteiro, o povo brasileiro elegeu doutor Bolsonaro, um desconhecido que prometia fazer melhor do que tudo aquilo que havia sido feito antes.

Bolsonaro é bem-sucedido em recurso contra a obrigação de usar máscara
Artigo do Deutschlandfunk

A magia não durou muito. O rojão estava molhado e deu chabu. Depois do caderno Turismo e das páginas políticas, o Brasil escorregou para a rubrica policial, aquela que os franceses chamam «faits divers – fatos diversos», e que engloba crimes e acidentes.

A ilustração é do Deutschlandfunk, um dos braços do conglomerado de mídia pública alemã. Explica a história sombria de uma briga judicial de doutor Bolsonaro contra a obrigação de usar máscara de proteção contra covid-19.

Este blogueiro teria vergonha de ser ameaçado de multa por se negar a proteger o próximo contra a epidemia que assola o país. Mas vergonha é palavra que não consta do indigente vocabulário presidencial.

O marketing e o bom senso

José Horta Manzano

Para vender bem , convém esclarecer o público-alvo sobre as qualidades do produto. É o primeiro passo que o fabricante tem de dar. A informação pode ser passada com ar professoral, distante. Fica imponente, mas periga ser fria e pouco eficaz. Melhor será estabelecer uma proximidade com o consumidor. Mais que isso: uma cumplicidade.

Na hora de vender um sabonete, o anunciante pode dizer: «Compre meu sabonete, pois é o melhor da praça, feito com azeite de dendê e óleo de mamona». Fica bastante técnico, mas cria um fosso entre vendedor e potencial cliente. Melhor criar cumplicidade entre os dois. Assim, por exemplo: «Oi! Eu sou Maria da Silva, atriz de novelas. Minha pele andava feia, ressecada. Eu já não sabia mais o que fazer quando descobri este sabonete. Impressionante! Foi-se a secura! Fiquei com pele de recém-nascido! Experimente, que eu garanto».

Quem anuncia de maneira distante acaba tendo menos sucesso do que o fabricante que consegue passar a impressão de uma amiga aconselhando outra. Esse princípio vale para qualquer produto – desde que usado com moderação e bom senso.

No fim de 2019, um jornal importante teve a boa ideia de criar um podcast, difundido em episódios, para dar mão forte aos que se preparam pra enfrentar vestibular. Em matéria de exames, não se deve perder de vista a diglossia em que vivemos mergulhados, essa confusão mental que acaba transformando provas de redação em calvário. Passamos a vida nos exprimindo num dialeto em que nos sentimos à vontade quando, de repente, na hora do exame, temos de mudar de estação e utilizar um outro dialeto – chamado ‘norma culta’ –, que não nos é familiar. Daí o enrosco.

Os marqueteiros do jornal precisavam dar título à série de podcasts. No afã de estabelecer proximidade com o público-alvo, negligenciaram a encruzilhada linguística nacional. Foram com tudo: «Se liga no vestibular»(*) foi o título escolhido. Seria excelente, caso estivessem vendendo sabonete. Mas vestibular não é sabão. Numa prova em que será medido o desembaraço de cada candidato no trato da ‘norma culta’, não é boa ideia abandoná-la e pespegar título em linguagem caseira.

Atenção, estudantes, vestibulandos e concurseiros! É melhor reter a lição. Na hora da prova, que ninguém se atreva a reproduzir o linguajar relaxado do dia a dia. Não se pode começar uma frase com pronome oblíquo. Experimente – com certeza vai perder pontos.

(*) O distinto leitor pode achar que estou chovendo no molhado; afinal, todos sabem fazer a diferença entre língua de casa e norma culta. Pois acredite: tem muita gente que não sabe.

A camiseta e o marketing

José Horta Manzano

Na França, um detalhe da Páscoa de doutor Bolsonaro chamou a atenção do distinto público. Foi quando o presidente, que parecia tomado pelo espírito de Dilma Rousseff, saiu por aí dando voltinhas de motocicleta.

by Jean Galvão (1972-), desenhista paulista

Fosse só isso, não teria sido notícia na França, país cujos jornais ainda estão preocupados com o incêndio de Notre-Dame, com os atentados do Ceilão (Sri Lanka), com as depredações dos «Coletes Amarelos». O que chamou a atenção foi o fato de doutor Bolsonaro estar vestido com uma camiseta do PSG (Paris Saint-Germain), o mais importante time de futebol do país.

Nas encenações de marketing moderno, todo detalhe tem importância. Atônitos, os analistas ainda estão tentando decifrar a mensagem que se esconde atrás da camiseta. Seria o número 10 alusão a Neymar? Por que o número está gravado na frente, no estilo do futebol americano? Por que ele não vestiu uma camiseta da Seleção? Se parou para a foto, é porque queria ser visto. Por que razão?

Podem discutir dias e dias, mas acho que não vão encontrar nenhuma explicação lógica. O marketing caseiro dos Bolsonaros costuma ser atabalhoado, sem pé nem cabeça. O que parece nem sempre é. Melhor deixar pra lá. Talvez não haja marketing nenhum e a resposta seja prosaica: o quarto estava escuro e o doutor só apanhou aquela camiseta porque ela estava no topo da pilha.

Observação futebolística
Na França, a força do PSG – Paris St-Germain é tamanha que os bolões esportivos nem perguntam mais quem será o campeão. A resposta é conhecida antes do começo do campeonato. As apostas começam do segundo colocado pra baixo.

Discurso e atitude

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Conta a fábula que um escorpião precisava atravessar um rio muito largo e, com medo de morrer afogado, pediu a um sapo que o levasse nas costas até a outra margem. O sapo, por sua vez temeroso de ser picado durante a travessia, rejeitou o pedido: “De jeito nenhum. Você é uma criatura traiçoeira e vai acabar me picando e me matando”. O escorpião argumentou então: “Não se preocupe, não existe essa possibilidade. Se eu o picasse, meu veneno o paralisaria, você afundaria e nós dois morreríamos afogados”.

Impressionado, o sapo decidiu confiar na lógica do que dizia o escorpião. Quando estavam a meio caminho, o escorpião de surpresa enterrou seu ferrão no dorso de seu infeliz condutor. Lutando com todas as forças para safar-se da morte, o sapo ainda teve tempo de perguntar: “Por quê, em nome de Deus, você foi fazer isso?”. Ao que o escorpião respondeu: “Porque é da minha natureza e não há nada que eu possa fazer para alterar isso”.

Não sei como outras mentes entendem o fenômeno, mas, para mim, se há um fato inelutável é o de que a natureza humana incorpora atitudes igualmente contraditórias e perversas. Sempre me chamou a atenção como nossa espécie é tão crédula e tão propensa a se deixar influenciar pelo discurso verbal de seus semelhantes. Comparada às formas de comunicação animal, que prescindem do uso de palavras, a nossa é de longe a mais ineficaz, a mais eivada de enganos e a que provoca mais sofrimento. Quando uma abelha localiza uma fonte de pólen, ela inicia imediatamente uma dança aérea em formato de oito que alerta todas as companheiras num raio de quilômetros. Quando uma formiga cai num buraco, todas as demais que caminhavam em fila indiana atrás dela se desviam automaticamente da trilha.

Minha convivência de longa data com cachorros me ensinou aquela que é, provavelmente, a lição mais preciosa de minha vida: a seleção cuidadosa de palavras não é sinônimo de boas intenções por parte de meu interlocutor. Antes de me entregar ao discurso sedutor, preciso checar se a energia emanada de seu corpo é compatível com a de sua fala. Sangue nos olhos e lábios crispados não me parecem compatíveis com a promessa de conciliação. Mãos tensas não sinalizam desejo de proximidade. Peito estufado não se harmoniza com alegação de humildade.

Para um cão, a intenção da mensagem transparece com toda clareza no tom com que as palavras são proferidas. Tom de voz e significado são uma coisa só, estão inexoravelmente interligados. Claro está que humanos sempre podem manipular seu tom de voz para gerar uma reação favorável no cão. Não há, entretanto, condição para que a mensagem seja mal interpretada se ao tom de voz se associam outros elementos, como postura corporal, respiração e cheiro da pele.

Embora não tenhamos consciência disso, nossas emoções provocam a liberação de hormônios na corrente sanguínea e estes, por sua vez, alteram nosso tom de voz e nosso cheiro. É isso o que faz seu cão pressentir que você está prestes a sair, que ele vai levar uma bronca ou que você está, de fato, propondo um descontraído passeio no parque, quaisquer que sejam as palavras que você utilize. Se pudéssemos aprender com eles a farejar a boa e a má fé de nossos interlocutores, tenho certeza que boa parte de nossos conflitos se extinguiria. A não ser, é claro, aqueles que se originam da intenção de nos causar dano, independentemente de nossa reação.

O marketing é a ciência da sedução através do discurso. Se as palavras forem articuladas de acordo com as expectativas do público a que se destinam, o desejo de consumo será despertado e significará um incremento nas vendas. O marketing político não é, de forma alguma, exceção. Destina-se a ressaltar as boas qualidades do aspirante a um cargo público, disfarçar seus defeitos e, dessa forma, minimizar os receios de problemas futuros do eleitorado. Na falta de argumentos verossímeis sobre a qualidade do produto, pode também ser usado para maximizar as fragilidades dos concorrentes, de modo a infundir descrença prévia nos argumentos que estes venham a utilizar em retaliação.

As redes sociais, a forma contemporânea de marketing político mais utilizada, notabilizam-se por ecoar apenas as mensagens que seus usuários querem receber. Eventuais contrapontos e dissidências podem ser eliminados de pronto, bastando clicar no botão deletar ou bloquear. Na ausência de fontes acessórias de informação (como o olhar, o tom de voz, etc.), as mensagens ganham status de verdade cristalina, por mais contraditórias ou chocantes que sejam. Mais grave ainda, em nome da liberdade de expressão, as mídias sociais descobriram uma maneira de driblar a censura que o contato olho no olho implica e de desconstruir a necessidade de emprego do vocabulário politicamente correto.

É possível que muitos acreditem que a disposição de cada um dizer o que pensa e exatamente da forma como pensa represente um benefício a longo prazo para a sociedade, qual seja o da diminuição da hipocrisia. Acreditar, no entanto, que o ódio gerado pela maior transparência do discurso vencedor pode ser contido ou engolido pelos perdedores a posteriori com atitudes concretas é uma ilusão que ainda nos vai custar muito caro.

Há mais de um século, Freud já alertava que as pulsões humanas primitivas estão em permanente choque com a cultura. Einstein, mesmo alegando não saber como seria a terceira, profetizou que a quarta guerra mundial se travaria com pedras e paus. Assistindo ao espetáculo horripilante da involução da civilização brasileira, eu faço coro à advertência de uma terapeuta: aquilo que entrou com violência sai com violência ainda maior. Não dá para relaxar e esperar. A natureza sempre ganha a luta contra o discurso no fim. Salve-se quem puder.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Dá um desânimo

José Horta Manzano

Doutora Marina Silva penitenciou-se por ter recomendado a seu eleitorado votar em Aécio Neves no segundo turno das últimas eleições presidenciais. Convenhamos, é o mínimo que poderia fazer. Disse ainda que, fosse hoje, «com certeza não o apoiaria». Ainda bem.

Declarou ainda que a eleição de 2014 foi fraudada pelo uso de fundos oriundos do esquema de corrupção instalado na Petrobrás. A doutora levou quatro anos pra descobrir o que já estamos carecas de saber. É que Madame, tal qual um cometa, só reaparece em datas fixas. A cada quatro anos, ressuscita, profere platitudes e depois se eclipsa até a eleição seguinte.

Deixando de lado os truísmos da eterna candidata, é forçoso constatar que a eleição de 2014 foi realmente fraudada. Marina Silva foi massacrada pela propaganda enganosa e desleal espetada pelos marqueteiros Santana & esposa. Doutor Aécio era uma fraude personificada ‒ embora a maioria dos eleitores ignorasse. E doutora Dilma era tão ruim que não aguentou o tranco e acabou defenestrada com apoio de parlamentares da própria base.

Lula da Silva está na cadeia, condenado. Por mais que seus defensores esperneiem, por mais que o marketing tosco do Partido dos Trabalhadores organize acampamentos e queima de pneus, por mais que ministros do STF tentem livrá-lo, os crimes foram desmascarados e o ex-presidente foi por isso condenado. Ainda que escape ao cárcere, sua biografia está, para todo o sempre, marcada com o carimbo da infâmia.

Aécio, Serra, Alckmin estão enrolados com a Justiça. Um em maior grau, outro em menor, mas nenhum escapa. No PT, não sobrou um, meu irmão. Nos partidos tradicionais ‒ se é que se os pode chamar assim ‒, tampouco sobraram candidatos viáveis.

Nossa escolha será entre o câncer e a aids. Poderemos eleger um magistrado colérico, destemperado, abespinhadiço e imprevisível de quem não se conhecem as ideias. Poderemos ainda dar o voto a um deputado profissional que, apesar do permanente sorriso, traz na canastra um punhado de ideias arrevezadas, chucras, no limite da decência. E vamos parando por aí, que o resto é o resto.

Que falta faz um candidado honesto, equilibrado e bem-intencionado. Dá um desânimo, não dá?

Baú de memórias ‒ 6

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Mais uma experiência inacreditável que resgatei sem querer bem lá no fundo do meu baú de memórias. Como o último tema que abordei foi o do marketing, a lembrança veio por associação. Sei que pode parecer ficção, mas meus mais de 20 anos trabalhando como pesquisadora de mercado e de opinião pública estão repletos de fatos inusitados como o que vou relatar.

Eu estava envolvida na época com um levantamento qualitativo dos hábitos de consumo de uma marca de preservativo masculino. O fabricante desejava saber para que tipo de práticas sexuais ele era mais utilizado por cada segmento de público e qual o grau de satisfação dos usuários com o desempenho do produto em práticas não-convencionais.

Como o tema era para lá de delicado, optamos por realizar entrevistas em profundidade diretamente na residência dos respondentes ou em outro local em que eles se sentissem à vontade. Como também era difícil recrutar interessados em expor sua vida íntima para desconhecidos, decidimos trabalhar com base em indicações – ou seja, uma pessoa já entrevistada indicava amigos ou conhecidos que igualmente se dispusessem a falar sobre suas práticas e fantasias sexuais.

O público-alvo era extenso: casais heterossexuais tradicionais com e sem filhos, casais homoafetivos, profissionais do sexo, homens e mulheres, solteiros e divorciados, jovens e idosos. Não dá para resumir em poucas linhas as descobertas que fizemos em cada um desses segmentos. Só posso dizer que eu e meus colegas pesquisadores passamos por um bom período de muitas risadas e espantos.

Uma de minhas entrevistadas era uma mulher casada, fissurada em sexo anal. Como o marido se opunha intransigentemente à prática, ela viu-se forçada a “adotar” um amante mais jovem e mais liberal e com ele se encontrava regularmente. O caso nos interessava bastante, já que o preservativo tinha para ela dupla finalidade: evitar uma gravidez indesejada nas relações com o marido e proteger-se de doenças venéreas que evidenciassem uma possível traição. Além disso, para cada parceiro, os requisitos quanto ao desempenho do produto eram bastante distintos.

A entrevista foi longa e animada. Muito simpática e descolada, ela não opôs nenhuma resistência às perguntas mais invasivas e nem mesmo ao fato de a entrevista ser gravada. Quando terminou, agradeci a gentil acolhida e fiz questão de reassegurar-lhe que as informações cedidas jamais seriam divulgadas sem estrita permissão dela.

Cerca de um mês depois da entrevista, já envolvida com outros temas de pesquisa e sem me lembrar da conversa que com ela tinha tido, fui convidada para o casamento da filha de uma amiga de longa data. A igreja era pequena e estava lotada. Após a cerimônia, entrei na fila dos cumprimentos aos noivos. Minha amiga estava postada ao lado do casal, ajudando-os a recepcionar os convivas. Estrangeira e muito divertida, ela se preocupava em demonstrar intimidade com as regras de descontração dos brasileiros mesmo em eventos formais.

Quando chegou minha vez, ela me abraçou, comentou entusiasmada alguns detalhes da cerimônia e me pegou pelo braço, dizendo: “Vem comigo, quero lhe apresentar uma pessoa”. Acompanhei-a até um salão lateral da igreja, onde eram servidos champanhe e bolo. Várias pessoas conversavam animadamente de pé, numa rodinha. Minha amiga invadiu a roda me arrastando atrás e toda orgulhosa me apresentou a um casal: “Quero que você conheça fulana, minha melhor amiga desde que cheguei ao Brasil, e o marido dela”.

Quando ergui os olhos, não pude acreditar no que estava prestes a acontecer. Diante de mim, pálida e rígida como um cadáver, lá estava a mulher que eu havia entrevistado um mês antes. Tive apenas alguns segundos para me perguntar qual seria a melhor forma de evitar um constrangimento fatal para todos os circunstantes.

Paradoxalmente, foi o olhar de estarrecimento que ela me lançou que providenciou a pista de que eu precisava. A mensagem era clara: era preciso que eu comunicasse corporalmente, em absoluto silêncio, que ela não corria risco nenhum de ser desmascarada.

Num segundo, fez-se luz dentro de mim. Adotei uma cara de estudada paisagem, estendi a mão profissionalmente, esbocei um sorriso e disse com toda a serenidade que me foi possível: “Muito prazer!”

Pude acompanhar com os olhos cada um de seus músculos se distendendo e a respiração voltando ao normal. As cores logo voltaram a seu rosto e seu olhar agora era de gratidão. Ela sorriu de volta e se encarregou de me apresentar ao marido.

Deixei passar alguns segundos e escapuli à francesa, por uma porta lateral, dando graças mentalmente por ninguém ter se apercebido da saia justa. Nunca mais a vi, mas tenho a certeza de que, se eu precisar um dia de alguém que testemunhe a favor do meu profissionalismo ou da confiabilidade dos pesquisadores em geral, ela será a pessoa certa.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Marketing burro

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Dizem que uma pessoa satisfeita com o desempenho de um produto/serviço, marca ou fabricante conta para outras três os motivos de sua satisfação. A propaganda boca a boca acaba sendo uma das formas mais vitais de marketing para seu gestor já que, além de potencializar a atração do artigo sobre quem ainda não o experimentou, tem custo zero. Por seu lado, uma pessoa insatisfeita tende a pesar a mão ao explicar para outras dez as razões de sua decepção. Com essa simples atitude, a marca pode sofrer significativo abalo de imagem antes mesmo que outros potenciais usuários tenham acesso a ela. E, mais grave, para recuperar credibilidade, o gestor precisará encarar pesadíssimos investimentos em propaganda formal.

A função do marketing é a de despertar o desejo, não a de impor o consumo. Em alguns casos, como quando se pretende introduzir no mercado um produto, categoria, marca ou fabricante, ele pode se permitir ir um pouco mais longe, abordando de forma mais agressiva o potencial consumidor, no esforço de criar patamares de desejo. Só não pode, em nenhum caso, substituir-se à consciência crítica do público que pretende atingir.

Todo produto tem o que os especialistas chamam de “benefício único”, ou seja, um atributo que o diferencia de todos os demais da categoria. Pode ser alguma característica físico-química como cor, sabor, textura, tamanho, design. Pode ser um traço de distinção social associado à imagem de marca, algum critério de especialização técnica, seu preço ou até seu caráter de inovação revolucionária. Descobrir qual é esse benefício singular é tarefa da pesquisa de mercado.

Embora poucos saibam, os resultados da pesquisa nem sempre são seguidos ao pé da letra pelo fabricante. Por razões estratégicas, ele pode querer posicionar o produto em segmentos distintos dos que a pesquisa identificou. É movimento corporativo legítimo, ainda que comporte alguns riscos.

O que todo marqueteiro que se preza sabe é que, como diz o ditado, você pode levar um cavalo até à água, mas não pode forçá-lo a beber. É preciso detectar exatamente qual é o perfil mais provável de consumidor que se deixará sensibilizar pela promessa mercadológica e ir ampliando aos poucos a identificação e a mobilização para a compra.

Os problemas começam a aparecer quando o marketing avança sobre a privacidade do público, ignora a necessidade de identificar o segmento a ser abordado prioritariamente e acredita ser mais vantajoso repetir ad nauseam a mensagem publicitária para atrair o maior número possível de interessados. São as chamadas estratégias “de baciada”.

Primeiro foi a assim chamada mala direta. Para os mais jovens, que podem nem desconfiar o que isso significa, explico. Tratava-se de um simulacro de carta pessoal, impressa com uma fonte que mimetizava a escrita humana. Ficou tristemente famosa por numerosas gafes. Como era enviada aleatoriamente a um público extenso, podia acontecer de, por exemplo, um vegetariano receber um informe publicitário convidando-o a saber mais sobre os melhores cortes de carne bovina. Ou algo ainda pior, traumatizante mesmo para o infeliz destinatário, como a divulgação de brinquedos eróticos para um religioso.

Depois foi a vez das impertinentes chamadas de telemarketing. Todos devem se lembrar dos folclóricos atendentes de call center, que se esmeravam no uso de gerúndios. Não demorou para as reclamações aos órgãos de defesa dos direitos do consumidor se acumularem. Pressionada, a agência estatal de telecomunicações decidiu implantar um serviço gratuito de bloqueio de telefones para barrar ligações de telemarketing.

Àquela altura, ninguém poderia imaginar que sentiríamos saudades daquele tempo. Impedidos de dar continuidade à sanha de sedução grosseira, sob pena de multas pesadas, os marqueteiros de plantão criaram logo uma estratégia ainda mais perversa. As chamadas de telemarketing passaram a ser pré-gravadas, A mensagem publicitária acaba sendo acionada automaticamente ao se atender o telefone. Para tornar a coisa um pouco pior, se é que isso é possível, muitos famosos se renderam à inglória causa de emprestar sua credibilidade pessoal para reforçar o apelo do produto/marca. Tragédia anunciada: a grande maioria naufragou num oceano de indiferença e irritação.

A coisa não parou por aí, infelizmente. A estupidez humana não conhece limites, como Einstein nos ensinou. Logo o raio de ação dessa forma rasteira de marketing se estendeu para os meios eletrônicos. Hoje em dia não é nada incomum tropeçar em propagandas, aninhadas em sites e portais de notícias, que são acionadas involuntariamente ao se rolar a página para baixo.

Afinal, você pode estar se perguntando, essa forma invasiva de marketing funciona? A resposta é: se tudo o que o fabricante deseja é auferir lucro imediato, sim. Claro que a repetição da informação tem lá suas vantagens. O nome do produto/marca gruda como chiclete na mente do consumidor e, caso ele se veja envolvido num processo de escolha, num mercado do qual pouco sabe, a assinatura da marca pode ser decisiva para a tomada de decisão. A longo prazo, porém, essa forma preguiçosa e burra de marketing genérico destrói todas as chances de o fabricante vir a se afirmar como detentor de uma imagem de qualidade, seriedade e responsabilidade social.

Nada que diga respeito ao humano é definitivo, no entanto. Mesmo a contragosto, sou forçada a admitir: há quem goste de ser tratado como massa ou gado. Sei que a noção de direito à privacidade caiu em desuso há já algumas décadas. Quanto mais barulho e holofotes forem gerados pela comunicação mercadológica, maior o desejo das novas gerações de fazerem parte do “seleto” público-alvo.

O tempora, o mores…

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Falem bem, falem mal

José Horta Manzano

Falem bem, falem mal, mas falem de mim. Esse é o moto de todo político que se preze. Faz muito tempo que os mais espertos captaram a mensagem. Desde que a chegada do rádio e da televisão tornou o fluxo de informação mais caudaloso, a proximidade de um microfone ou de uma câmera passou a atiçar o marqueteiro que cochila dentro de cada figurão. Principiantes ou tarimbados, homens públicos logo se deram conta do potencial da voz e da imagem difundidas em escala nacional.

Um ex-presidente do Brasil tornou-se mestre na arte de fazer falar de si. Durante o período em que ocupou o trono do Executivo, não deixou escapar uma ocasião de autoincensar-se com o célebre «nunca antes nessepaiz». Mesmo apeado do pedestal e acossado pela justiça criminal, persiste em falar sem dizer, afirmar sem estar convencido, insistir sem ter razão. Continua vociferando, com ar sério, frases que, imagina ele, o «povo» quer ouvir. Embarcou até na canhestra ameaça feita por Mr. Trump à Venezuela para lançar palavras aos microfones. Qualquer pretexto é bom.

Num belo dia de 2014, dois deputados de nossa desengonçada Câmara Federal foram protagonistas de um grosseiro bate-boca. Doutor Bolsonaro dirigiu palavras ‒ desarticuladas mas aviltantes e vigorosamente ofensivas ‒ a uma colega, a doutora Maria do Rosário Nunes, aquela que começou a carreira no PCdoB e milita atualmente no PT. A inflamada troca de gentilezas foi parar nos tribunais.

Faz três anos que se fala nisso. Volta e meia, algum comentarista dá sua opinião sobre o fato de a deputada merecer ser estuprada ou não. Uma escaramuça de botequim transformada em verdadeira causa nacional. Gente de toda a paleta política já meteu o bedelho. Feministas, machistas, comunistas, liberais, lulopetistas, governistas, antigovernistas, todos continuam se pronunciando.

Acaba de sair a decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre a demanda de reparação formulada pela deputada. A corte dá razão à doutora e mantém a condenação do ofensor a desembolsar dez mil reais pelos danos morais que causou.

Minha primeira consideração concerne à sobrecarga que estes três anos de processo trouxeram à Justiça. Quando se sabe que o Judiciário já anda entupido por dezenas de milhares de casos, soa indecente que dois representantes do povo, figurões que recebem polpudos salários e gozam de mordomias de marajá, contribuam para atravancar o andamento de outros casos quiçá mais prementes. Tudo isso por dez mil reais!

Fica a dúvida. Serão os nobres deputados tão carentes de bom senso? Por que terão dado preferência a uma estúpida queda de braço pública em vez de um acerto particular? A resposta está na própria pergunta. A Justiça, financiada com o dinheiro de todos nós, não traz ônus aos querelantes. Valendo-se disso, eles aproveitaram a ocasião para permanecer sob os holofotes durante três anos sem desembolsar um centavo. Marketing esperto pra ex-presidente nenhum botar defeito. Falem bem, falem mal…

São Valentim

José Horta Manzano

Metade da humanidade celebra hoje São Valentim, a quem foi concedido, já faz tempo, o estatuto de patrono dos namorados. O 14 de fevereiro, de fato, é celebrado em (quase) todo o mundo. O Brasil é uma das poucas exceções que confirmam a regra. Talvez em virtude de a data cair muito perto do carnaval ‒ às vezes até durante ele ‒, nossos amorosos são homenageados em outro dia. Imaginem um Dia dos Namorados no meio do carnaval. Passaria praticamente despercebido, um desastre para o comércio.

dia-dos-namorados-1As origens da festa são difíceis de determinar. A hagiologia católica registra, na Antiguidade, diversos santos com esse mesmo nome. A controvérsia quanto à escolha da data perdura, e nada indica que se chegue, um dia, a consenso. Por que razão festejar os enamorados neste dia e não em outro? O mistério é denso.

As primeiras manifestações ligando o 14 de fevereiro aos apaixonados surgiram na Inglaterra em meados do século XIX. O desenvolvimento das estradas de ferro, ao acelerar o transporte de mercadorias e de correspondência, favoreceu a troca de mensagens. Enamorados aproveitaram a brecha e aderiram ao costume de enviar cartinhas e cartões nessa data. Hoje em dia, o papel vai sendo substituído por mensagens eletrônicas, mas a tradição continua.

dia-dos-namorados-2No Brasil, atribui-se ao baiano João da Costa Doria(*), publicitário e homem político, a introdução do costume. Para o comércio varejista, o mês de junho costumava ser fraco. No final dos anos 1940, importante loja de departamentos de São Paulo encomendou ao publicitário um estudo para impulsionar as vendas. Ele teve a ideia de implantar um São Valentim abrasileirado. O dia 12 de junho, véspera de Santo Antônio ‒ o casamenteiro ‒ caía bem. A campanha publicitária lançada em 1949 deu certo. A moda foi logo seguida, nos anos seguintes, por outros estabelecimentos comerciais. Em poucos anos, o Dia dos Namorados já tinha assumido ares de comemoração tradicional e inescapável.

Hoje em dia, a troca de presentes substituiu o simples envio de cartões. Os comerciantes, que levam vantagem com essa evolução dos costumes, aplaudem de pé.

(*) João Doria Jr., atual prefeito da cidade de São Paulo, é filho do publicitário homônimo.

Interligne 18cTítulos de nobreza
Em regimes monárquicos, o mandachuva tem título correspondente ao estatuto que ocupa.

Reino tem rei: o rei da Espanha;
Principado tem príncipe: o príncipe de Mônaco;
Grão-Ducado tem grão-duque: o grão-duque de Luxemburgo;
Sultanato tem sultão: o sultão de Oman.

E emirado, como é que fica? Ora, emirado tem emir, como o emir de Abu Dabi.

Falando no diabo, aparece o rabo. Senhor Doria, filho do criador do Dia dos Namorados, exerce atualmente a função de prefeito de São Paulo. Encontra-se estes dias nos Emirados Árabes negociando a participação de capitais da região no financiamento de melhoramentos na capital paulista. Em entrevista, disse hoje que se encontrou com o «rei» de Abu Dabi. Escorregou. O pequeno país não é reino, mas emirado. O alcaide visitou o emir.

Que cada um faça sua parte

José Horta Manzano

«Jeder kehre vor der eigenen Tür, und die Welt ist sauber» ‒ Que cada um varra diante da própria porta, e o mundo será limpo.

A conhecida citação é da lavra de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), escritor, poeta e estadista, considerado o pai da moderna língua alemã.

Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)

Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)

A ideia fazia literalmente sentido quando a frase foi pronunciada, naquela era pré-industrial de cidades pequenas, casas geminadas, pequenos estabelecimentos comerciais e quase nenhuma indústria. O mundo mudou. Se melhorou ou não, vamos deixar pra discutir noutra ocasião. Fato é que as cidades incharam, espaços ditos «públicos» proliferaram, diluiu-se um pouco a noção de «onde termina o meu e começa o do outro».

Assim como as cidades se estenderam, o entendimento da frase de Goethe há de ser alargado. «Que ninguém suje, e o mundo será limpo» ‒ taí uma boa adaptação, que serve para os dias de hoje sem deturpar a ideia original. No Brasil, estranhamente, insistimos em remediar ao invés de prevenir.

Chamada do Estadão, 2 jan° 2017

Chamada do Estadão, 2 jan° 2017

O prefeito Doria, que acaba de assumir a alcaidia da maior cidade do país, deu seu showzinho midiático logo no pimeiro dia de função: vestiu-se de limpador de rua, armou-se de pá e vassoura, e juntou-se aos varredores. Fez isso às 6h da manhã. O marketing é rastaquera, mas ninguém há de atirar-lhe a pedra. A intenção foi mostrar constraste com relação ao prefeito anterior, que muitos diziam pouco afeito ao trabalho.

O problema maior vem agora. Senhor Doria fala em «varrer SP pessoalmente toda semana». Alguém precisa urgentemente informar a esse senhor que vestir-se de gari e limpar ruas não é exatamente o que esperam os milhões de cidadãos que o elegeram. Que o tenha feito uma vez, passa. Agora, chega. Demagogia não combina com eficiência.

tri-dechets-1Outra frase do novo prefeito me impressionou mais ainda. Comprometeu-se a «transformar-se em catador de recicláveis». Como é estranho! Em países mais adiantados, faz já mais de vinte anos que cada cidadão tem em casa entre 6 e 10 diferentes latas de lixo justamente para fazer triagem. Lixo orgânico, papel, plástico duro, plástico mole, vidro, metal, tecido, óleo, pilha, lâmpada, garrafa pet, madeira, alumínio são materiais diferentes. A separação é feita na origem, que fica muito mais fácil para direcionar a reciclagem. A figura do “catador de recicláveis” desaparece.

Em vez de especializar-se em triagem do lixo alheio, melhor seria que o prefeito instaurasse ampla campanha de conscientização.

Que cada um trie seu próprio lixo, e a cidade será limpa. E menos poluída.

Lições de marketing

Myrthes Suplicy Vieira (*)

O conturbado cenário político dos últimos dias me inspirou a rever e divulgar algumas das lições que aprendi ao longo dos meus muitos anos de trabalho como pesquisadora de mercado e de opinião pública. Guardadas as devidas proporções, elas podem nos ajudar a ver claro sobre as motivações em curso e, quem sabe, a encontrar saídas honrosas para nossa crise institucional. Vamos a elas.

A primeira e mais importante lição do marketing é também a mais óbvia, ainda que nem sempre totalmente compreendida: a embalagem tem importância vital para a primeira decisão de compra, muito maior do que a do próprio produto.

Talvez por ser a primeira forma de engajamento do consumidor/eleitor, ela se reveste de incomparável importância simbólica: corporifica os desejos mais íntimos e não-explicitados do usuário em potencial. Se atrai e agrada, é capaz de transferir a simpatia inicial e gerar maior tolerância para com as características organolépticas (cor, sabor, cheiro, textura, etc.) do produto. Sem dúvida, a satisfação inicial com a embalagem vai precisar ser corroborada mais tarde pela experimentação do produto. Caso surjam discrepâncias, a marca pode vir a ser abandonada ou preterida em favor de concorrentes cujas embalagens não sejam tão satisfatórias – e que a concorrência saberá alterar rapidamente no sentido desejado.

embalagem-1Politicamente falando, é não só a figura física do candidato que fica em primeiro plano e envia a primeira mensagem de adequação, mas também a forma como ele embala suas ideias e propostas. Tom de voz, articulação do pensamento, gestual condizente, capacidade de argumentação, escolha de linguagem de fácil compreensão, flexibilidade para incorporar novos ângulos à mensagem e, fundamentalmente, poder de sedução. Traduzindo o último quesito, é preciso que o produto/candidato diga sempre o que o consumidor/eleitor quer ouvir. Quando a promessa soa como música aos ouvidos do público-alvo, ele se deixa implacavelmente fisgar, ainda que de forma envergonhada e disfarçada.

A segunda lição ainda se refere à embalagem. Se já há várias opções de embalagem no mercado que atendem, mesmo que parcialmente, às expectativas do usuário, é preciso diferenciar a sua. Pode ser, por exemplo, através do conceito de “tamanho aparente”. Imagine que as embalagens mais apreciadas no momento são todas baixas e gordinhas, cheias de curvas generosas. Aí você concebe para seu produto (ou para si mesmo) uma embalagem alta e magra, toda reta – ou vice-versa. Graças à sua iniciativa, o consumidor/eleitor pode receber a mensagem de que você está ofertando melhor relação custo/benefício (mais ou melhor produto pelo seu dinheiro) ou a de que você é pessoa ousada, que não se deixa intimidar pela força da concorrência e demonstra forte capacidade de “inovação”.

A terceira lição está relacionada à necessidade de realizar um mapeamento qualitativo do mercado antes de nele penetrar. Se um determinado segmento é muito pulverizado, com uma infinidade de produtos/marcas competindo sem muito destaque, é preciso identificar nichos ainda inexplorados. Acima de tudo, é essencial introduzir um forte diferencial em seu apelo. Em marketing, isso se chama “benefício único” a ser oferecido pelo novo produto. Esse benefício pode estar ligado mais uma vez à embalagem ou a qualquer outra característica, inclusive e principalmente seu posicionamento de preço em momentos de crise econômica.

Como isso se dá no mercado político? Bem, eu diria que esse é o ponto mais difícil de implementar, ao menos nesta parte do globo terrestre. De qualquer forma, certamente – ou, melhor, assim me parece – o diferencial encontrado não deverá estar vinculado aos aspectos propriamente verbais, ligados ao discurso. Temos hoje em oferta todo tipo de propostas sendo gritadas aos quatro ventos, desde a preocupação com a qualidade de vida dos aposentados até a defesa intransigente da moralidade administrativa, passando pela diminuição de impostos e criação de mais empregos, até a configuração do candidato como um outsider (“não sou político”) bem-intencionado. Porém, é de bom alvitre lembrar que, caso a experimentação não consiga comprovar que os novos atributos realmente funcionam na prática, seu frustrado público consumidor/eleitor se voltará inapelavelmente para o que existe de mais tradicional e conservador no mercado.

elefante-3Finalmente, uma lição raramente lembrada do marketing, mas que pode ser fatal se não observada: o produto/marca precisa ter um forte caráter aspiracional. Dito de outra maneira, é o consumidor/eleitor que precisa sentir o desejo de ter acesso ao produto e não este se oferecer despudorada e indistintamente a todos. Se o público-alvo não for claramente identificado na mensagem publicitária e se não falar a sua linguagem, corre-se o risco de não atrair ninguém, dado o caráter de “baciada” da oferta. Em termos psicológicos, o consumidor/eleitor precisa ser afagado pela crença de que só pessoas “especiais” como ele próprio percebem o mérito do que está sendo anunciado.

Marketing, nunca é demais lembrar, é feito para criar necessidades, despertar desejos e inaugurar novas realidades. Basta pensar no mercado de alta tecnologia para entender isso. E, mesmo quando ele se caracteriza por um ‘revival’ de velhas tendências, como acontece na moda, as novas soluções apresentadas precisam incorporar avanços conceituais. Na sequência, o que faz toda a diferença é desenvolver uma propaganda consistente e que faça jus à imagem que se pretende imprimir ao produto/ marca. Aprendi a duras penas que a publicidade fala com o tamanho do ego de cada um de nós. Um exemplo corriqueiro: embora muitas pessoas reclamem do mau gosto das propagandas de produtos populares, ela será considerada bem-sucedida se o populacho for atraído pela “espontaneidade rústica” da comunicação.

Uma frase de efeito que resume bem todas essas lições circula entre os marqueteiros: “Lançar novo produto no mercado é como emprenhar elefanta: se der certo, é preciso esperar ainda dois anos para ver o resultado de seus esforços e, se der errado, você certamente morrerá esmagado”.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Dinda já era

José Horta Manzano

Turquia 3Todos os brasileiros com mais de quarenta anos hão de se lembrar da Casa da Dinda, aquela que entrou para a história como objeto de grande jogada de marketing de Collor de Mello.

Todo presidente da República tem direito a duas residências oficiais: o Palácio da Alvorada e a Granja do Torto. Ao ser eleito na onda da promessa de «caçar marajás», senhor Collor tomou decisão desconcertante: renunciou às residências oficiais. Para não desperdiçar dinheiro público, segundo declarou, preferiu instalar-se em mansão familiar às margens do Lago Paranoá.

A lógica ensina que, com presidente ou sem ele, residências oficiais continuam tendo de ser mantidas e conservadas com todo o seu pessoal. Portanto, a ausência da primeira-família resulta em economia próxima de zero. Mas, na hora, a decisão causou frisson.

Turquia 2Meses depois, o Brasil descobriu que os fundos «economizados» tinham sido reinvestidos – com juros e correção! – em melhoramentos na Casa da Dinda. Suspeita-se que dinheiro da corrupção tenha sido usado para plantar centenas de árvores e construir cachoeiras motorizadas. Contam ainda que, para maior conforto dos peixes que povoavam os tanques, a água era filtrada.

Quem dá mais? Em matéria de residência presidencial, o máximo que vimos nestes últimos anos foi um reles triplex no Guarujá. De uma banalidade constrangedora. Mas na Turquia, terra de sultães e de odaliscas… ah, no Oriente exuberante, não se fazem as coisas pela metade!

A mesa como meme na internet turca

A mesa virou meme na internet turca

Senhor Erdoğan, que foi primeiro-ministro por mais de onze anos e hoje oficia como presidente da República, mandou construir um palácio presidencial. O suntuoso imóvel, projetado para abrigar condignamente o mandatário, já está pronto. Fica em Ânkara, capital do país.

Sua área construída de 200 mil m2 – duzentos mil metros quadrados! – espalha-se por 1.150 cômodos e custou a bagatela de 490 milhões de euros. O prédio serve de residência para o presidente. Dado que há salas suficientes, é também usado como sede do governo.

Quase todos os turcos são maometanos. Pelo calendário religioso, um dos meses do ano lunar, o Ramadã, é dedicado à oração, ao recolhimento e ao sacrifício. Os preceitos são rígidos: durante um mês, os fiéis devem jejuar do nascer ao por do sol. É natural que o jejum absoluto, sem comida e sem água, resulte em fome de leão ao final do dia.

Quadra de squash

Quadra de squash

Para reunir os ministros para a quebra de jejum, senhor Erdoğan mandou montar uma mesa gigantesca que está fazendo furor. Tem a superfície de uma quadra de squash e custou um milhão de libras turcas: 1.200.000 reais.

Como pode constatar o distinto leitor, desperdício de dinheiro público não é exclusividade tupiniquim.

Interligne 18hUma curiosidade
Contei 29 pessoas ao redor da mesa. Incluindo o lugar vago, cabem 30. Os lugares não seriam suficientes para o espaçoso ministério de dona Dilma. Dez auxiliares teriam de sentar-se à mesa das crianças.

Persona non grata

José Horta Manzano

Persona non grata 1O ofensor esquece e logo vira a página. O ofendido leva mais tempo. Pelas bandas do Planalto, o coice que nossa presidente assestou no embaixador da Indonésia já caiu na vala do esquecimento. Não é o que acontece em Djacarta.

Quatro dias depois da deplorável proeza de nossa esperta diplomacia, o governo indonésio ainda está longe de digerir o insulto. A edição do Jakarta Post deste 24 fev° traz artigo intitulado Brazil plays down RI’s threats – Brasil zomba das ameaças da Indonésia. O jornal lembra que o governo indonésio prometeu represálias que perigam custar caro ao Brasil.

O texto mostra indignação com o menosprezo explícito de dona Dilma por aquele país. Nossa presidente, para quem as estatísticas do momento contam mais que perspectivas futuras, declarou que as relações comerciais entre o Brasil e a Indonésia não representam mais que um porcento de nosso comércio exterior.

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

Mais uma vez, a senhora Rousseff escancara sua curta visão. Já próxima das setenta primaveras, a presidente ainda não conseguiu entender que o mundo não é congelado, que as coisas costumam mudar. O que hoje é pequeno pode-se tornar importante amanhã. E vice-versa, naturalmente.

O ultraje infligido àquele país foi pesado demais. Pior: foi proposital, de caso pensado, calculado para impactar. Mostrou a arrogância dos perigosos personagens que, aboletados no Planalto, maltratam nossa política exterior como criança birrenta pisoteia brinquedo que não lhe agrada mais.

O voluntarismo presidencial – na certa incentivado por seus toscos conselheiros de marketing – já começa a dar frutos. O Jakarta Post relata que o governo indonésio está reavaliando a planejada compra de 16 aviões modelo Super Tucano, da Embraer. O preço básico de cada aparelho é de 11 milhões de dólares. Sem opcionais.

Uma das páginas do portal de nosso Ministério das Relações Exteriores traz uma citação que vai assim:

Frontispício de um dos portais do Itamaraty

Frontispício de um dos portais do Itamaraty

«O Brasil é um dos 11 países do mundo que se relacionam com todos os Estados-membros das Nações Unidas. Dialogamos com todos porque respeitamos as diferenças.»

O importante não é a quantidade de países com os quais o Brasil se relaciona. A qualidade do diálogo pesa mais. A afronta que dona Dilma impôs ao povo indonésio desmente a bonita frase do Itamaraty.

Longe de ser partidária da dialética, nossa presidente é, no duro, fã do monólogo. Raivoso e insolente.

Vai acento aí?

José Horta Manzano

Nossa terra tem acentos
Que outras terras não têm.

Petrobras 3Pois é, conheço poucas línguas com tantos sinaizinhos gráficos como a nossa. Agudo, grave, circunflexo, til – são tantos! E olhe que nos proibiram de usar o trema, o mais charmoso de todos. O cê cedilha contribui para acrescentar exotismo a nossa escrita. Não é qualquer um que tem letra com rabinho.

No contexto lusofalante, a falta de um acento costuma surpreender. Um «mensalao» ou, pior, uma «corrupcao» deixa embatucado o leitor. O contrário é verdadeiro. Para quem não está habituado ao português escrito, nossos acentos parecem extravagantes. Deixam o leitor sem saber como pronunciar.

Por essa razão, futebolistas brasileiros radicados no exterior optaram por eliminar sinais gráficos de seu nome. Gazetas esportivas estrangeiras costumam grafar Brandao, Kaka, Cesar, Nene, Xandao, Leo, Fabio. Dá pra entender por quê.

Anos atrás, quando começou a se agigantar e a se internacionalizar, a Petrobrás enfrentou o mesmo problema. No estrangeiro, a maioria dos que viam aquele á, assim, com um risquinho em cima, titubeavam na hora de pronunciar. A companhia tomou a decisão de abandonar o risquinho. Virou Petrobras.

Enluminure A 1Nossa ortografia, periodicamente chacoalhada por pequenos sismos e pesados terremotos, ainda não cassou o acento agudo das oxítonas terminadas em a seguido ou não de s. Portanto, dentro das fronteiras tupiniquins, o nome daquela que já foi a maior companhia nacional deve-se escrever Petrobrás, assim, com acento.

Sabe Deus por que, a imprensa decidiu dobrar-se às exigências do marketing. É sintomático. Desvela a que ponto, em nosso País, maria vai com as outras. Propaganda e marketing fazem a lei.

Petrobras 3Consultei O Globo, Folha de São Paulo, Correio Braziliense, Estado de Minas, Zero Hora, Gazeta do Povo, Veja, Diário do Poder, Jornal do Brasil. Todos eles grafam Petrobras sem acento.

Mas nem tudo está perdido, minha gente. Sobrou o último dos moicanos. O respeitado Estado de São Paulo é o derradeiro baluarte. Bota acento no nome da petroleira. Eu também.

#Tevecopa

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 4 jul° 2014

Teve Copa, sim, senhores. Contradizendo pessimistas, o megaevento fez sucesso estrondoso. Como escrevo antes das quartas de final, não sei se a Seleção terá avançado ou tropeçado. De todo modo, o que interessa mesmo são os efeitos colaterais e o legado. Nossas autoridades, quando aceitaram organizar o campeonato, tinham objetivo ambicioso e múltiplo.

No plano interno, o torneio congregaria duzentos milhões em ação num só brado: «pra frente, Brasil, salve a Seleção». Seria a prova maior da concórdia e do contentamento do povo brasileiro ― a consagração lógica e brilhante destes anos de obstinado marketing. A magnificência do espetáculo havia de satisfazer aos apetites mais exigentes. O crédito de simpatia do mandarinato só poderia crescer.

No plano externo, a fabulosa exposição midiática seria o vetor da afirmação do Brasil-potência. Alto e bom som, ecoaria no planeta a prova da inserção definitiva de nosso país no restrito clube do Primeiro Mundo. Membro de carimbo e carteirinha, faz favor!

Teve Copa, sim, senhores. E foi um sucesso! Por irrisórios 25 bilhões, temos agora uma dúzia de soberbos estádios de futebol, dois deles estrategicamente plantados na Amazônia Legal. É inacreditável relembrar que o País tinha chegado ao século 21 sem essas imprescindíveis «arenas». O espírito visionário de nossos dirigentes preencheu a lacuna.

Bandeira Brasil 1É verdade que a Copa poderia ter servido de incentivo ao aprendizado de línguas. Afinal, centenas de milhares de turistas forasteiros foram recebidos por um povo monoglota. É pena ninguém ter pensado em planejar esse detalhe. Tem nada, não. Fica pra próxima. Não se pode cuidar de tudo ao mesmo tempo.

É verdade que nosso padrão de Instrução Pública continua baixo. Nos grotões, o ensino é ministrado em condições africanas. Mas isso é ninharia. Não se pode cuidar de tudo ao mesmo tempo. Dispositivo impressionante foi preparado para cuidar da saúde de atletas. Equipes médicas paramentadas, macas padrão Fifa, helicópteros para emergências. Os esportistas socorridos encontraram atendimento de primeira linha, rápido, eficaz.

É verdade que nossos hospitais públicos ainda não atingiram tal grau de excelência. Mas isso é mixaria, problema antigo que pode esperar. Não dá pra resolver tudo ao mesmo tempo.

Até linhas aéreas se esforçaram. Não houve greve. Atrasos estiveram abaixo do habitual. Atletas boquiabertos cruzaram os céus sem um pio de reclamação.

Crédito: Guilherme Bandeira www.olhaquemaneiro.com.br

Crédito: Guilherme Bandeira
http://www.olhaquemaneiro.com.br

É verdade que o transporte urbano dos brasileiros comuns continua caótico, caro, raro, desconfortável, lento, inseguro. Diante da grandiosidade da organização da Copa, porém, isso é bagatela. Metrô? Pura babaquice.

Last but not least, a projeção do País no exterior. Nas muitas décadas que tenho vivido expatriado, posso garantir que jamais o Brasil tinha sido alvo de exposição midiática de tal magnitude.

Até nos rincões da Mongólia e da Birmânia, sabe-se hoje que nosso país tem estádios magníficos. Sabe-se também que nossa terra tem sol e calor. Muitos se arrependem de não ter planejado uma viagem ao Brasil durante a Copa. Agora é tarde.

Visitar o País depois? Visitar o quê? A novidade mostrada foram só os estádios. Fora isso, a exposição midiática serviu para reforçar conhecidos clichês. Repórteres repisaram os horrores de sempre: prisões superlotadas, violência urbana, desigualdade social, gente hospitalizada em corredores, prostituição, carestia. Coisa de frear os ímpetos do turista ajuizado.

Uma detalhe pouco divulgado: teve Copa, sim, mas não para todos os brasileiros. Cerca de um milhão de conterrâneos ainda não dispõem de energia elétrica. Como no século 19, vivem nas trevas ― no próprio e no figurado.

No exterior, muitos me perguntam por que a presidente do Brasil não assiste aos jogos nem mesmo quando chefes de Estado estrangeiros estão presentes. Nessas horas, desconverso.

Copa 14 logo 2Na conta de perdas e danos, o resultado da «Copa das Copas» terá sido neutro. O brasileiro agora tem estádios esplêndidos, mas as mazelas do dia a dia continuam como dantes. O resto do mundo encharcou-se de ouvir e ler sobre o Brasil, mas nossa imagem não mudou: Carnaval, malemolência, criminalidade, anarquia perduram no imaginário forasteiro. Nossa ineficiência ficou patente.

Perdemos excepcional ocasião de melhorar a vida dos habitantes e de soerguer a imagem do Brasil. Fica para quando der. E vamos torcer para que, na próxima Copa, a Fifa nos conceda os segundos que faltam para a execução decente do Hino Nacional. O povo brasileiro, desde já, agradece.

O «escândalo» das camisetas

José Horta Manzano

Nosso governo acaba de escorregar numa imensa casca de banana. Talvez tenha sido o «politicamente correto» aplicado com exagerado rigor.

No entanto, pensando mais a fundo, pode-se até imaginar que tenha sido manobra de marketing para redirecionar holofotes. Quanto mais eles estiverem voltados para assuntos sem importância, menos risco haverá de focalizarem descalabros governamentais.

Falo das camisetas postas à venda por uma grande firma internacional de artigos esportivos, camisetas essas que o Planalto, num surto de pudicícia, considerou ofensivas.

O presente caso, como tantos outros, é daqueles que, quanto mais se mexe, mais fedem. Se nosso governo tivesse mantido seu sangue frio, as camisetas ― de estampa mais idiota que ofensiva ― teriam passado despercebidas.

No entanto, os peritos em comunicação que assessoram o governo viram lá uma excelente oportunidade para desviar, durante o tempo que for possível, o foco das atenções.

Camiseta da discórdia

Camiseta da discórdia – clique para ler artigo

A fórmula é simples. Dá-se ao mundo conhecimento do assunto. O casto governo brasileiro e sua pudibunda presidente mostram-se escandalizados e profundamente ofendidos. Em seguida, os comentários planetários vão-se dividir entre os que apoiam a indignação do Brasil e os que não lhe dão importância. Enquanto se engalfinham os prós e os contras, o Planalto goza de uns dois ou três dias de alívio. Os problemas maiores continuam existindo, mas a vergonha da vez é atirada sobre terceiros. A pressão se arrefece.

O estratagema deu certo. Os jornais falados da rádio francesa de informação 24 horas por dia abriram o noticiário desta quinta-feira com a notícia da indignação de dona Dilma. Mencionaram até um vago ministério de defesa dos desprotegidos, algo assim. De dar dó no coração.

Essa manobra põe o Planalto na situação de vítima. Convenhamos, é sempre posição simpática. Melhor ser mártir que ser apontado como autoritário, repressor, intervencionista.

by Alberto Correia de Alpino F° desenhista capixaba

by Alberto Correia de Alpino F°
desenhista capixaba

Só tem uma coisa: esqueceram de combinar com os russos. Adidas, a multinacional de origem alemã que fabrica as maliciosas camisetas, ganhou publicidade planetária sem desembolsar um centavo.

Os dirigentes da portentosa empresa bem que podiam usar o fruto dessa alavancada em suas vendas para mostrar agradecimento ao governo brasileiro. Vaquinhas para prisioneiros e doações a partidos estão na moda. Custam pouco e podem trazer bom retorno.

Inadequação vocabular ― 4

José Horta Manzano

Esta chamada do Estadão deste 17 dez° 2013 me inspira duas observações. Uma tem a ver com a forma e a outra, com o fundo.

Formulação inadequada Estadão, 17 dez° 2013

Formulação inadequada
Estadão, 17 dez° 2013

A forma
Suponho que todos entendam quando o jornal apregoa que Haddad «diminui idade». Mas, convenhamos, a formulação é tortuosa. Há maneiras mais convenientes de descrever o fato. No fundo da lógica, por mais poderes que tenha, o prefeito da megalópole jamais logrará «diminuir» a idade de ninguém. Nem aumentá-la, evidentemente.

Todos dirão que «a nova estrada diminui o percurso». É forma legítima, dado que a distância entre o ponto de partida e o de chegada realmente diminuiu. Diremos também que, devido à queda de uma barreira, o percurso aumentou, ou seja, encompridou, alongou-se, obriga os viajantes a percorrer maior número de quilômetros. A forma respeita o fundo.

Já quando nos referimos a um ponto determinado do dia, do mês, do ano ou da vida de alguém, os verbos diminuir e aumentar caem mal. Veja só. Se, por uma razão qualquer, o avião que devia decolar à 8 horas tiver de decolar às 7 horas, ninguém dirá que o horário foi «diminuído». O vice-versa também vale. Se o avião das 7h sair às 8h, não vale dizer que o horário foi «aumentado».

No caso do primeiro avião, diremos que o horário foi adiantado, antecipado, avançado. No segundo caso, melhor será dizer que o voo foi atrasado, recuado, protelado. A língua oferece oportunidades múltiplas de escolher um verbo adequado.

Pois o caso da idade «diminuída» pelo prefeito segue a mesma lógica. Ao estender a cidadãos de 60 anos o benefício que já era concedido aos mais maduros, o mimo estará sendo adiantado, antecipado, avançado.

A chamada estará mais bem escrita assim: «Idade para viagem gratuita de idoso será antecipada». Todos entenderão, e a lógica agradecerá.

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O fundo
Esquecendo minúcias estilísticas, tenho, como cada um, minha opinião pessoal quanto a esse benefício. É possível que não seja compartilhada por muita gente, que cada um enxerga com seus próprios óculos.

A velhice, ainda que um marketing desjeitoso lhe tasque o horripilante e hipócrita epíteto de «melhor idade», não costuma ser o período mais agradável da vida. Longe disso.

Sensível diminuição da capacidade física, aumento da fragilidade, sentimento de insegurança são atributos ligados ao passar dos anos. Não precisava juntar mais um «benefício» que soa mais como estigma. Em princípio, o sujeito não empobrece pelo simples fato de ter envelhecido.

Que se concedam benefícios pecuniários aos necessitados, acho certo. O que me perturba é que se associe velhice a pobreza. Deve-se conceder desconto nas passagens ― até gratuidade, se esse for o desejo dos cidadãos ― a quem demonstre estar vivendo em condições financeiras precárias. Aos velhos, já lhes bastam os inconvenientes da idade. Chega a ser ofensivo pespegar-lhes automaticamente a etiqueta de necessitados.

No fundo, o ideal mesmo é que cada um possa prover dignamente a seu próprio sustento, sem depender de favores especiais da comunidade. Mas ainda temos um bom caminho pela frente até chegar lá. Não dá para antecipar, nem adiantar, nem avançar.

Mercática

José Horta Manzano

Nenhum exagero é saudável. Nem de coisa boa se deve abusar. Arsênico e beladona, venenos poderosos, estão presentes em certas preparações homeopáticas. Quem tiver paciência e determinação, pode suicidar-se bebendo copos d’água ― a partir de um certo limite, o metabolismo se alterará a tal ponto que a morte será inevitável.

Desde que o primeiro homem pôs à venda o primeiro produto ― terá sido uma cabra, um carneiro, um cesto de lentilhas? ― estratégias empresariais estiveram presentes em toda negociação.

Meio cheio

Copo d’água

Técnicas de venda recebem diversas denominações, algumas valorizantes, outras depreciativas. Tudo depende da época e do caso específico. Esperteza, malícia, astúcia, manha, lábia são nomes mais pejorativos. Entre as designações prestigiosas, estão argúcia, técnica, perícia, engenhosidade e a onipresente e universal marketing(*).

Cada um tenta vender seu peixe. Mas o apregoamento do produto, por mais que lhe destaque as qualidades, não tem o condão de aprimorá-las. Nenhum alquimista conseguiu até hoje transformar bronze em ouro. Um mau produto, ainda que tenha sido vendido com maestria, será sempre um mau produto.

Marketing, merchandising e técnicas afins estão cada vez mais presentes em nosso dia a dia. Até o governo vai buscar inspiração em estratégias que antes eram apanágio de vendedores de aspirador.

De uns tempos para cá, o debate de ideias vem sendo substituído por técnicas de marketing. Não vence necessariamente o candidato que tiver o melhor projeto, mas o que puder pagar o marqueteiro mais convincente.

Já faz anos que os atores da arena política brasileira vêm sendo aconselhados por marqueteiros. Em casos extremos, agem como marionetes, como bonecos de ventríloquo. O que dizem não é necessariamente o que pensam ― é o que foram orientados a dizer.

Bebida

Copo d’água

Assim como água pode matar, esse viés de nossos dirigentes tem-se tornado pernicioso ultimamente. Está exageradamente visível e artificial. Não me espantaria que estivesse entre os motores dos confrontos de junho.

A população começa a se dar conta de que está sendo governada não por políticos, mas por marqueteiros. É incômodo saber que os que conduzem o País não são exatamente aqueles que escolhemos. São homens da sombra, cuja identidade nem sempre nos é revelada.

Vamos torcer para que o excesso de copos d’água não bloqueie o metabolismo da nação. E para que tampouco exagerem na dose de arsênico.

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(*) É pena que não tenha ocorrido a ninguém fabricar um equivalente tupiniquim para o termo “marketing”. A palavra mercática, por exemplo, simpática, fácil de grafar, simples de pronunciar, teria sido um excelente substituto.