Sotaques que se perderam

Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil
by Jean-Baptiste Debret (1768-1848), pintor francês

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 27 novembro 2021

Por que é que a fala brasileira é tão diferente da portuguesa? Razões, há várias. O isolamento em que viveram as colônias lusas na América é fator essencial, responsável pela permanência, em nosso falar, de formas arcaicas já caídas em desuso em Portugal. Por seu lado, mudanças fonéticas ocorridas lá nem sempre repercutiram aqui.

Também é importante lembrar a influência das línguas indígenas, transmitidas aos primeiros brasileirinhos como consequência da formação de famílias mistas, com pai português e mãe índia. É permitido imaginar que, antes de o Marquês de Pombal proibir o uso do tupi, o bilinguismo fosse frequente nas capitanias do sul.

Os imigrantes europeus da virada do século 19 para o 20 trouxeram na bagagem palavras e expressões que acabaram incorporadas à língua. Mas não há que esquecer que, ao chegarem, essas populações encontraram um falar bastante cristalizado, já próximo do que conhecemos hoje.

A influência mais profunda sofrida pelo falar brasileiro, não há que se diga, veio dos negros africanos trazidos ao Brasil como escravos. Descobrir quantos eram, em diferentes momentos de nossa história, não é fácil. O primeiro censo oficial só teve lugar em 1872. Antes dele, não havia estudos demográficos sistemáticos. O que há são trabalhos recentes, obra de pesquisadores de paciência beneditina, que garimparam inventários dos séculos passados. O escravo, equiparado a um objeto, não contava como gente. Portanto, para apurar sua existência, convém compilar listas de bens dos defuntos, onde eles aparecem ao lado de louça e peças de mobiliário.

Esses trabalhos dão uma boa ideia da população negra no Brasil dos séculos 17 e 18. Estima-se que, em meados do século 18 (1750), na época em que nosso falar começava a se fixar, a população da capitania das Minas Gerais era composta por 60% de escravos africanos, o que dá uma ideia do enorme contingente populacional vindo de fora e que falava, como segunda língua, um português tosco.

Esses “imigrantes” forçados eram cuidadosamente triados pelos senhores para evitar a formação de grandes grupos que falassem o mesmo dialeto. Prevenir motins e rebeliões era preocupação constante. Originários da costa ocidental da África, os cativos falavam línguas e dialetos da grande família banta. Apesar disso, a intercompreensão entre os diferentes falares era geralmente impossível.

Foi assim que o português acabou se impondo como lingua franca entre os próprios africanos. O português foi aprendido de ouvido, sem escola, sem gramática, sem coach de correção de pronúncia. O sotaque da massa de escravos, típico do estrangeiro que fala uma língua aprendida, há de ter influenciado o falar da minoria branca. De um lado, os africanos sorveram língua e vocabulário dos senhores; de outro, devolveram um português mastigado, triturado, amolecido, rearranjado. A maneira como falamos hoje descende dessa permuta que atingiu seu pico no século 18.

Seria valioso ouvir os escravos se exprimirem na nova língua. Será que já dava pra identificar, naquele linguajar incipiente, traços e marcas que ficariam de herança para nosso falar atual? Infelizmente, os tempos não permitiam registros sonoros. Ainda assim, temos atualmente um modo de recuperar esse passado de sotaques.

Um pequeno contingente de africanos vive hoje no Brasil – imigrantes e, principalmente, refugiados. Por coincidência, são originários das mesmas costas de onde provinham os escravos que povoaram nossa terra. Por que não aproveitar e fazer um registro sonoro da fala desses africanos legítimos, que estão em pleno aprendizado do português? A língua materna de todos será uma variedade da família banta, como ocorria com os escravos de outrora.

Os negros que vivem na França, que também provêm das costas ocidentais da África, têm um sotaque característico, facilmente identificável ao falarem francês. Mas não formam contingente numeroso ao ponto de influenciar o falar dos franceses. No Brasil de antigamente, chegaram a ser a maioria dos habitantes. É mais que provável que nossa fala guarde pontos de contacto com a deles. A presença, em nosso território, desses recém-chegados constitui excelente ocasião pra conferir. Os que entendem do riscado não deveriam desperdiçar a oportunidade.

Orthographia ‒ 1

José Horta Manzano

“Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente. Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa propria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.”

Fernando António Nogueira Pessoa (1888-1935), escritor, poeta, crítico e polemista português.

Interligne 18b

Fernando Pessoa aferrou-se, a vida toda, à grafia etimológica (ou pseudoetimológica) pela qual se havia alfabetizado. Recusou dobrar-se à nova regra – dita “simplificada” – instituída pela Reforma Ortográfica portuguesa de 1911.

Fernando Pessoa 1

Para constar, note-se que essa reforma de 1911 foi temperada, cozida e gratinada exclusivamente em Portugal. O Brasil só foi avisado uma vez que o acepipe já estava à mesa, disposto em terrinas fumegantes, pronto a ser servido. Naturalmente, a reforma foi ignorada deste lado do Atlântico. Mas veja só!

Não é de hoje que constantes e inconsistentes imposições de novas regras têm acentuado o sentimento de insegurança linguística que nos fere a todos. Essas frequentes alterações podem até satisfazer o ego (e o bolso) de um punhado de confrades, mas constrangem o cidadão comum. Seja ele brasileiro, luso, angolano ou timorense.

Se as línguas que nos cercam conseguem manter o vigor sem reformas ortográficas, por que razão precisamos nós remendar a nossa tão seguidamente? Que nos preocupemos em consertar o que estiver avariado, pois não? Nosso caminho é outro: nenhuma reforma ortográfica será capaz de salvar nosso falar da degradação.

Orthographia 1

O inglês é língua oficial de jure ou de facto de 79 países ou entidades territoriais. A língua francesa é oficial em 48 países ou entidades. Quanto ao espanhol, 22 países o têm como língua oficial. A despeito dessa disseminação – ou talvez por causa dela – nenhum dos falantes dessas línguas vive engessado num normativismo sufocante como vivemos nós.

Para dar um basta a essa esbórnia, uns bons Fernandos Pessoas andam fazendo muita falta.

Publicado originalmente em 8 mar 2015.

Formar

José Horta Manzano

Forma é voz amplamente difundida nas línguas latinas. Com pequenas diferenças de grafia, aparece em todas elas. Em nossa língua, é responsável por centenas de palavras derivadas. Entre muitas outras, temos: formal, formoso, formulário, formação, formalidade, formatura, reforma, informe, transformação, uniforme, deformação, conformidade. E muitas mais.

Essa raiz nos legou boa coleção de verbos: enformar (botar na fôrma), informar, reformar, uniformizar, conformar, pré-formar, deformar, transformar, disformar. Sem contar, naturalmente, com o mais simples deles, que é formar.

O verbo formar é sempre transitivo ou pronominal. Há um único caso, bastante raro, em que é usado com valor intransitivo. É quando indica alinhar, enfileirar, dispor em certa ordem: o batalhão formou para homenagear o visitante ilustre. O uso intransitivo raramente estravasa da área militar.

Chamada d’O Globo, 17 maio 2019

A esse propósito, um cartaz revelador foi levantado por um manifestante quando dos protestos estudantis de alguns dias atrás. Está reproduzido acima destas letras. Diz lá: «Eu formei, tu formaste, mas eles não formarão se a universidade parar». O rapaz que segura o papel mostra semblante bastante convicto da justeza do próprio protesto. Pelo uso da primeira pessoa (‘eu formei’), deduz-se que ele ostenta na parede de casa um diploma universitário.

Pois é, pode até ser que nosso protestatário tenha obtido o diploma, mas fica claro que faltou a algumas aulas de Português. É de crer que o cartaz não se esteja referindo a formação de fila, mas a formação universitária. Nesse caso, o verbo formar não pode ser usado intransitivamente. No sentido de terminar o curso e diplomar-se, o verbo é reflexivo: eu me formei, tu te formaste, eles se formarão.

Parece simples pra quem sabe. Pra quem não sabe, é mistério insondável. Quando foi mesmo que a obtenção de diploma se divorciou da vontade de aprender pra se tornar um fim em si? Quando foi mesmo que formação deixou de significar construção intelectual para ser só sinônimo de diploma pendurado na parede? Algumas peças da engrenagem se perderam pelo caminho, e a máquina parou de funcionar.

Acentuação gráfica

Dad Squarisi (*)

Por que todas as proparoxítonas são acentuadas?

Quando o português usava fraldas, era pra lá de difícil acertar a sílaba tônica dos vocábulos. Rubrica ou rúbrica? Nobel ou Nóbel? Que rolo! As palavras, então, se reuniram em conselho. Discute daqui, briga dali, firmaram este acordo:

Artigo 1°
As terminadas em a, e e o, seguidas ou não de s, são paroxítonas.

Artigo 2°
As terminadas em i e u, seguidas ou não de qualquer consoante, são oxítonas.

Artigo 3°
Quem se opuser ao acordo será punido com acento gráfico.

Conclusão: só se acentuam as palavras rebeldes.

As primeiras a reclamar foram as proparoxítonas. Se aderissem, desapareceriam da língua. É que não sobrou nenhuma vogal para elas. Por isso, todas são acentuadas: rítmico, álibi, satélite.

(*) Dad Squarisi, formada pela UnB, é escritora. Tem especialização em Linguística e mestrado em Teoria da Literatura. Edita o Blog da Dad.

Inadequação vocabular ‒ 8

José Horta Manzano

E a febre do defender continua. Eta modismo persistente! Já me insurgi, em artigo de três anos atrás, contra o uso abusivo desse verbo. Mas não tem jeito. Defender virou ônibus: sempre cabe mais um.

O uso insistente de um único verbo para expressar situações diferentes é, no fundo, sintoma de pobreza vocabular. O natural de uma língua é enriquecer com o passar do tempo. Novos vocábulos vão-se juntando aos existentes até formar um léxico gigantesco. Estranhamente, a língua brasileira, em lugar de se tornar mais rica, empobrece. Para cada novo vocábulo que entra no circuito, uma dúzia dos antigos sai da boca do povo pra recolher-se na poeira dos dicionários. É pena.

Chamada Estadão 27 ago 2018

Volto a sugerir ao distinto leitor que, caso esteja pra cair na tentação de usar defender no sentido de preconizar, pense em substitui-lo por outro mais sugestivo.

Na chamada do Estadão, ficaria mais elegante dizer, por exemplo, que «Dallagnol propõe não votar em envolvidos…». Essa é apenas uma possibilidade. Há dezenas. Uma lista (não exaustiva) de verbos que podem ‒ nesse caso e com vantagem ‒ substituir defender está aqui:

Preconizar, aconselhar, orientar, recomendar, sugerir, propor, indicar, alvitrar, prescrever, estimular, insinuar, pregar, solicitar, apregoar, elogiar, lembrar, requerer, exigir, instilar, postular, exaltar, pedir, louvar, aventar, enaltecer, propagandear.

Cada um deles carrega nuance diferente. Na hora de usar, basta escolher o que melhor convier.

Ah! É bom ter sempre em mente o que doutor Dallagnol “defende”. Votar em corrupto? Só faltava.

15 dúvidas e 15 respostas

Dad Squarisi (*)

Depende
O filho puxou o pai? Puxou ao pai?
Puxar alguém é atrair para si, mover:

Puxou o filho antes da passagem do trem.
Puxou-o com delicadeza.

Puxar a alguém é parecer-se, ter semelhança com:

O filho puxou ao pai; a filha, à mãe.

Os dois
Esporte e desporto convivem em harmonia:

Rafa e João são esportistas.
Rafa e João são desportistas.

Professor de Deus
Quem tem mania de grandeza é megalômano. Ou megalomaníaco. O dicionário abona as duas palavras. A segunda é mais usada. Melhor.

Limite
Bênção ou benção? Tanto faz. Mas o plural muda. De bênção é bênçãos. De benção, benções.

Alô!
Atender o telefone? Atender ao telefone? As duas regências cumprem a função de dizer alô:

Atendi o telefone.
Atendi ao telefone.

Com ou sem s?
O dicionário registra Olimpíada e Olimpíadas com o mesmo significado. Com qual delas você fica?

Sem questionamentos
Caixa dois ou caixa 2 – a língua dá nota 10 para as duas. Não está nem aí pra Justiça.

Escurão
Apagão e blecaute fazem estragos. Apagam a luz, descongelam o freezer e deixam os noveleiros a ver navios. Valha-nos, Deus!

Sãos e salvos
Aterrissar e aterrizar dão alegria aos que tremem só de pensar em avião. Os dois verbos significam pousar em terra.

Dois times
Que dia é hoje? Há duas respostas.

Uma: Hoje são 5 de julho.
A outra: Hoje é (dia) 5 de julho.

A maioria dos gramáticos prefere tratar os dias como as horas: São 14h. São 14 de outubro. Olho vivo, moçada! Preferir não é impor.

Sem diferença
Ter de estudar? Ter que estudar? Modernamente as duas formas são sinônimas:

Tenho de sair às 2h.
Tenho que sair às 2h.

Ah!
Saudade ou saudades. Ciúme ou ciúmes. Sentimento dispensa o plural. Mas, se usar o s, tudo bem. A língua não liga. O incomodado que reclame.

Acertar ou acertar
Cota na universidade? Ou quota? Tanto faz. Errar é impossível.

Decida
Alcoólatra e alcoólico são sinônimos. Alcoólico é preferível por ser politicamente correto.

Mesma equipe
O personagem ou a personagem? Não faz diferença: o personagem Emília, a personagem Emília; o personagem Pedrinho, a personagem Pedrinho.

(*) Dad Squarisi, formada pela UnB, é escritora. Tem especialização em Linguística e mestrado em Teoria da Literatura. Edita o Blog da Dad.

Eu digo ‘Brasiu’, ele diz ‘Purtugal’

Ruth Manus (*)

Eu pergunto se ele viu minha meia-calça marrom e ele diz que não, não viu meus collants castanhos. Eu pergunto se ele vai de terno, ele me diz que não vai de fato. Eu uso calcinhas, que ele diz que são cuecas, ele usa boxers, que eu digo que são cuecas. Eu digo que é uma camiseta bonita, ele diz que é uma t-shirt gira. Eu digo que a nova camisa do São Paulo está linda, ele diz que a nova camisola do Benfica está brutal.

Eu digo pára de frescura e ele me diz não me venhas com fitas. Eu digo que ele não sabe porra nenhuma, ele diz que eu não sei a ponta de um corno. Eu digo se agasalha direito, ele me diz tapa-te bem. Eu digo muito, ele diz bué.

Eu pergunto se nossos amigos vão trazer as crianças e ele diz que sim, eles trazem os putos. Eu pergunto se elas estão fazendo o álbum da Copa e ele diz que sim, elas estão a fazer a caderneta do Mundial. Eu pergunto se eles têm figurinhas para trocar, ele me diz que eles têm cromos repetidos.

Eu pergunto se vamos de trem, ele diz que vamos de comboio. Eu digo que o encontro em 10 minutos no ponto do ônibus e dez minutos depois ele me diz que já está na paragem do autocarro. Eu digo que o pedágio é carésimo, ele diz que a portagem é um balúrdio. Eu digo que precisamos parar no posto e ele diz que logo ali há uma bomba.

Eu digo que esse goleiro é muito ruim, ele concorda dizendo que é mesmo um guarda-redes muito mau. Eu berro que o atacante estava impedido, ele berra que o avançado estava fora de jogo. Eu digo que o juiz tá de sacanagem, ele diz que o árbitro está a gozar. Eu digo que não foi escanteio, foi tiro de meta, ele concorda que não foi canto, foi pontapé de baliza.

Eu digo que adoro a Whoopi Goldberg em Mudança de Hábito, ele diz que nunca assistiu a Do Cabaré Para o Convento. Eu digo que nunca assisti a O Poderoso Chefão, ele diz que eu preciso assistir a O Padrinho. Eu digo que parei de ver Bastardos Inglórios no meio, ele diz que eu tenho que acabar de ver Sacanas Sem Lei.

Eu digo que TST é Tribunal Superior do Trabalho, ele diz que TST é Transportes do Sul do Tejo. Eu digo que ABL é Academia Brasileira de Letras, ele diz que ABL é Associação de Basquete de Lisboa. Eu digo que Itau é um banco, ele diz que Itau é Instituto Técnico de Alimentação Humana (e eu digo que falta um H nessa sigla).

Eu digo que comprei caquis, ele diz que comprou dióspiros. Eu peço para ele comprar abobrinha e alho poró, ele compra courgette e alho francês. Eu digo que gosto de bolo salgado, ele diz que gosta de bôla. Eu digo que gosto de rocambole, ele diz que gosta de torta. Eu digo que gosto de torta, ele diz que gosta de tarte.

Eu digo que era um bando de estelionatários, ele diz que era uma corja de aldrabões. Eu digo que o cara é um babaca, ele diz que o gajo é um parvalhão. Eu digo que o vestido é cafona, ele diz que o vestido é piroso. Eu digo que a dona do vestido é uma patricinha, ele diz que é uma betinha.

Eu digo que temos um problema de sílaba tônica, ele concorda. Eu digo que quero comer sushÍ, ele diz que também quer comer sÚshi. Eu digo que vou de metrÔ, ele diz que me pega na saída do mÉtro. Eu digo que o hotel se chama TÍvoli, ele diz que se chama TivolÍ. Eu digo que busco a miúda no judÔ, ele diz que ela sai do jÚdo no fim da tarde.

Eu digo carinho, ele diz festinhas. Eu digo beijo tchau, ele diz beijinhos grandes e até logo. Eu digo eu te amo e ele poderia dizer amo-te, mas, no fim das contas, ele acaba dizendo eu tambaim q’rida. Sorte a minha.

(*) Ruth Manus é advogada, escritora e colunista do Estadão.

Extorquir: regência

Dad Squarisi (*)

Extorquir não é lá coisa boa. Significa obter por violência, ameaças ou ardis. O verbo tem uma manha. Seu objeto direto tem de ser coisa. Nunca pessoa. Extorque-se alguma coisa. Não alguém.

Fiscais extorquiram dinheiro de comerciante.
A polícia tentou extorquir o segredo.
Extorquiram a fórmula ao cientista.

(*) Dad Squarisi, formada pela UnB, é escritora. Tem especialização em Linguística e mestrado em Teoria da Literatura. Edita o Blog da Dad.

Polô Coelô

José Horta Manzano

Meio distraído, estava outro dia ouvindo a rádio francesa quando o locutor informou que o novo livro de Polô Coelô já estava nas livrarias. Levei um instante tentando identificar esse autor cujo nome não encontrava eco no meu disco rígido. Logo caiu a ficha: era Paulo Coelho pronunciado à francesa.

O anúncio me trouxe à memória um artigo que tinha lido muitos anos antes. Era uma avaliação do romance O Alquimista sob o ângulo gramatical. O escrito expõe impressionante quantidade de erros, fato surpreendente na obra de escritor tão afamado.

O artigo, publicado anos atrás, é uma aula de gramática portuguesa. Vale a pena conferir. Quanto a Monsieur Coelô, hoje um homem rico, espero que, de lá pra cá, tenha contratado um bom revisor. Aqui está a crítica gramatical.

As “pérolas” de Paulo Coelho

J. Milton Gonçalves (*)

A presente crítica mostra as duas faces de Paulo Coelho: escritor de imaginação fértil, mas que se revela medíocre no manejo da linguagem escorreita.

A apreciação minuciosa do livro O Alquimista (do referido autor) não deve ser tomada como uma ofensa de caráter pessoal; o intuito é mostrar – principalmente aos leitores jovens e aos jornalistas – que nossa língua tem normas e regras que precisam ser obedecidas (sem as quais – quer queiram quer não queiram alguns – nossos objetivos jamais serão alcançados), pois, como observa o gramático Sacconi, “não há profissional sério que não sinta a necessidade de utilizar a norma culta; não há profissional respeitado que não tenha suficientes razões para conhecê-la”.

O escritor Paulo Coelho, que diz já ter encontrado sua pedra filosofal, precisa urgentemente encontrar uma boa gramática, um bom dicionário, e, se preferir – é claro! –, uma pitada de mundrunga para resolver sua deficiência vernácula.

Numa entrevista à revista Playboy, o rei dos best-sellers disse que consegue separar nuvens com a força da mente, parar o tempo, fazer chover e até ficar invisível (entre outras coisas fantasmagóricas). Se nosso mago literário tem tantos poderes assim, bem que poderia invocar os espíritos dos grandes escritores brasileiros para expressar suas idéias, sem maltratar tanto o nosso idioma.

Encontram-se, aqui, apenas algumas das “pérolas” extraídas do seu famoso livro publicado pela Editora Rocco, edição de número 159. É isto mesmo: centésima quinquagésima nona edição. Sinto um extraordinário dó pelos leitores da primeira edição.

1. “Lembrou-se da espada — foi um preço caro contemplá-la um pouco, mas também nunca tinha visto algo igual antes.” (Pág. 71)

Preço caro é erro indecoroso. Caro já significa de preço elevado. O correto é dizer que o produto está caro ou o preço está alto, exagerado, excessivo (o que não é nenhuma novidade hoje em dia).

2. “Haviam certas ovelhas, porém, que demoravam um pouco para levantar.” (Pág. 22)

Não há registro, em nossa literatura, de nenhum outro escritor que tenha empregado haver no plural, com o sentido de existir. Não se pode atribuir a culpa ao revisor, uma vez que esse modelo de concordância aparece mais de dez vezes em todo o livro.

Demorar, no sentido de tardar, custar, usa-se com a, e não com para: Demorou a retornar à casa dos pais.

Levantar é sinônimo de erguer; levantar-se é que significa pôr-se de pé.

3. “ dois dias atrás você disse que eu nunca tive sonhos de viajar.” (Pág. 86)

A impressão que fica é que PC adora brincar de escrever português. Qualquer pessoa com dois dedinhos de leitura descontraída sabe que e atrás não combinam.

“Há dois dias atrás” é expressão redundante, pois a idéia de passado já está contida no verbo haver, sendo desnecessário o uso do advérbio atrás. Só um cego não vê que os dois termos estão brigando. A excrescência também ocorre nas páginas 103, 133, 161, 210, 242…

4. “O teto tinha despencado muito tempo, e um enorme sicômoro havia crescido no local que antes abrigava a sacristia.” (Pág. 21)

“Fazia aquilo anos, e já sabia o horário de cada pessoa.” (Pág. 76)

Definitivamente o verbo haver é uma enorme pedra no sapato do nosso alquimista. Quando o verbo haver é usado com outro no tempo imperfeito (ou mais-que-perfeito), emprega-se havia, e não : “Quando você chegou, eu já estava na sala havia cinco minutos”. (Arnaldo Niskier)

O mesmo erro encontra-se ainda nas páginas 22, 83, 133, e 157…

5. “Em 1973, já desesperado com a ausência de progresso, cometi uma suprema irresponsabilidade. Nesta época eu era contratado pela Secretaria de Educação de Mato Grosso…” (Pág. 8)

Nesta época refere-se ao período em que o escritor estava escrevendo, e não a 1973. Nessa é que se usa com referência a tempo passado ou futuro. Naquela seria outra opção ajuizada. Os erros se repetem nas páginas 50, 54, 77, 119, 143, 238…

6. “— Então, nas Pirâmides do Egito, — ele falou as três últimas palavras lentamente, para que a velha pudesse entender…”(Pág. 37)

O verbo falar é intransitivo (não pede complemento); o verbo dizer é que se usa transitivamente. Falar só se usa com objeto em expressões como falar verdade, falar inglês, francês etc.

Veja outros casos em que o verbo falar foi usado indevidamente:

“Por isso lhe falei que seu sonho era difícil.” (Pág. 38)

“O velho, entretanto, insistiu. Falou que estava cansado, com sede…” (Pág. 42)

Antes da palavra que, usa-se dizer, e não falar.

7. “E quero que saiba que vou voltar. Eu te amo porque…” (Pág. 189)

Fazer alquimia com as pessoas de tratamento, parece ser a diversão preferida de Paulo Coelho. O próximo exemplo é ainda mais dramático:

“— Eu te amo porque tive um sonho… Eu te amo porque todo o Universo conspirou para que eu chegasse até você.” (Pág. 190)

Sei que é covardia comparar PC com um dos clássicos de nossa literatura. Mas confesso que não resisti à tentação. Compare este trecho de Machado de Assis, extraído de Dom Casmurro: “Aqui tendes a partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes digna das alturas, admiti-me com ela a vossos pés…”

8. “Por isso costumava às vezes ler… ou comentar sobre as últimas novidades que via nas cidades por onde costumava passar.” (Pág. 22)

Não se diz comentar sobre alguma coisa , mas sim comentar alguma coisa: “Todos comentavam o desastre.” (Aurélio)

Dizer últimas novidades é chover no molhado. Novidade já pressupõe algo novo ou acontecimento recente. Não vou dizer que a expressão às vezes deveria estar entre virgulas, para não me tacharem de ranzinza. Veja outros deslizes semelhantes:

“O pastor contou dos campos de Andaluzia, das últimas novidades que viu nas cidades onde visitara.” (Pág.24)

“A gente sempre acaba fazendo amigos novos, e não precisa ficar com eles dia após dia.” Pág. 40)

“O alquimista enfiou a mão dentro do buraco, e depois enfiou o braço até o ombro.” (Pág. 184)

Últimas novidades… fazer amigos novos… enfiar dentro… Por que será que os alquimistas gostam de fazer isso com a gente? Por quê?!

9. “Todos os dias o rapaz ia para o poço esperar Fátima.” (Pág. 157)

A preposição a indica deslocamento rápido, provisório; para, permanência definitiva: Quem vai à praia vai passear; quem vai para o litoral vai morar lá.

10. “Entretanto, à medida em que o tempo vai passando, …”(Pág. 47)

Não existe a expressão à medida em que, mas sim à medida que.

11. “O rapaz deu uma desculpa qualquer para não responder aquela pergunta.”(Pág. 25)

“Então ele sentiu uma imensa vontade de ir até lá, para ver se o silêncio conseguia responder suas perguntas.” (Pág. 161)

Quem responde responde a alguma coisa: (responder àquela pergunta, responder a suas (ou às suas) perguntas)

12. “O rapaz assistiu aquilo tudo fascinado.” (Pág. 207)

O verbo assistir no sentido de observar exige a preposição a. A expressão àquilo tudo equivale a a tudo aquilo.

13. “Mas tinha a espada em sua mão.” (Pág. 175)

“…Um cavaleiro todo vestido de negro, com um falcão em seu ombro esquerdo.” (Pág. 173)

Não se emprega o possessivo quando se trata de parte do corpo, qualidade do espírito ou peças do vestuário. Nesse caso, usa-se apenas o artigo: (na mão, no ombro).

14. “A menina ficava deslumbrada quando ele começava a lhe explicar que as ovelhas devem ser tosquiadas de trás para frente.” (Pág. 41)

“— Daqui para frente você vai sozinho — disse o Alquimista.” (Pág. 229)

A expressão correta é para a frente (sempre com a presença do artigo). Qualquer gramática elementar registra isso.

15. “Ao invés de encontrar um homem santo, porém, o nosso herói entrou numa sala e viu uma atividade imensa…” (Pág. 58)

Ao invés do aço ou da bala de fuzil, ele foi enforcado numa tamareira também morta.” (Pág. 178)

A locução ao invés de só se usa quando há idéias opostas; significa ao contrário de: Ao invés de atacar, o time só joga na retranca. Quando as alternativas não são contrárias, utiliza-se em vez de, que quer dizer em lugar de: Em vez de jogar com dois atacantes, o time jogou apenas com um.

16. “Tinham-se passado onze meses e nove dias desde que ele havia pisado no continente africano.” (Pág. 95)

O verbo pisar é transitivo direto; rejeita, pois, a preposição em. (Corrija-se para: …havia pisado o continente) “O chão estava coberto com os mais belos tapetes que já havia pisado, e do teto pendiam lustres de metal amarelo trabalhado, coberto de velas acessas.” (Pág. 167)

Aqui o verbo pisar foi empregado corretamente. O exemplo só perde o brilho devido ao erro que aparece na última palavra. É culpa do revisor.

17. “Quase ia falando do tesouro, mas resolveu ficar calado. Senão era bem capaz do árabe querer uma parte…” (Pág. 65)

Na linguagem escorreita não se usa capaz por provável (nem possível), fato comum na comunicação descontraída, em portas de botequins: (…era bem provável que o árabe quisesse).

18. “A África ficava a apenas algumas horas da Tarifa.” (Pág. 43)

“Ah, se eles soubessem que a apenas duas horas de barco existem tantas coisas diferentes.” (Pág. 71)

“Estamos há apenas duas horas da Espanha.” (Pág. 65)

O advérbio apenas não deve ficar entre a preposição e o termo regido. Corrija-se para apenas a.

Não se deve dizer da Tarifa, como está no primeiro exemplo, e sim de Tarifa. Com exceção de Cairo, Rio de Janeiro e Porto, nomes de cidade não exigem artigo.

A presença da palavra exercendo o papel de preposição, no terceiro exemplo, é um pecado inominável. Não é coisa de gente sóbria.

Desculpe-me de minha franqueza, meu prezado alquimista, mas quem redige dessa maneira não deve ter a menor consideração para com seus leitores.

19. “Já não havia mais a esperança e a aventura…” (Pág. 79)

O uso simultâneo de e mais constitui redundância. Elimine um dos dois termos, e a oração ficará irrepreensível.

“Se a gente não for como elas esperam ficar, chateadas.” (Pág. 40)

Tarefa ingrata é tentar descobrir o sentido dessa frase. Cabeça de mago e bumbum de criança sempre têm coisas estranhas, muito estranhas…

20. “‘O pipoqueiro’, disse para si mesmo, sem completar a frase.” (Pág. 55)

Ora, se a frase não foi concluída, então a expressão deve terminar com reticências. Pois a função dos três pontos é exatamente indicar a omissão intencional de uma coisa que se devia ou podia dizer:

Correção: “O pipoqueiro…”

21. “Depois de vencidos os obstáculos, ele voltava de novo…” (Pág.113)

Obstáculos não se vencem; superam-se. Os desafios é que são vencidos.

22. “E que tanto os pastores, como os marinheiros, como os caixeiro-viajantes, sempre conheciam…” (Pág. 26)

Nas palavras compostas por substantivo + adjetivo, flexionam- se os dois elementos.

23. “Assim que sentaram na única mesa existente, o Mercador de Cristais sorriu.” (Pág. 78)

Sentar na mesa deve ser muito engraçado mesmo. Os alquimistas, assim como os políticos, talvez tenham por hábito sentar na mesa; pessoas normais, contudo, sentam-se à mesa.

24. “Naquela época não havia imprensa… Não havia jeito de todo mundo tomar conheci-mento da Alquimia.” (Pág. 133)

Devemos empregar todo o e toda a quando essas expressões equivalerem a o …inteiro e a …inteira: Não havia jeito de o mundo inteiro tomar conhecimento da Alquimia. Todo e toda (sem o artigo) significa qualquer. Toda gramática ensina isso.

25. “A visão logo sumiu, mas aquilo lhe deixou sobressaltado.” (Pág. 162)

Segundo mestre Aurélio, o verbo deixar no sentido de “fazer que fique (em certo estado ou condição); tornar é transitivo direto: Deixei-o alegre; A transação deixou-o rico”.

Na página 167, PC escreveu com rara sobriedade: “O que viu deixou-o extasiado”.

26. “Para quê tanto dinheiro?” (Pág. 203)

O acento só se justificaria se o que estivesse no final da frase: “Tanto dinheiro para quê?”.

27. “Mas de repente a vida me deu dinheiro suficiente, e eu tenho todo o tempo que preciso.” (Pág. 100)

Na linguagem apurada, o verbo precisar não abre mão da preposição de: (todo o tempo de que preciso), a menos que ele venha antes de infinitivo.

Sem querer me parecer ranheta, acho que “de repente” ficaria bem entre vírgulas. É só uma questão de estilo…

28. “As pessoas preferem casar suas filhas com pipoqueiros do que com pastores.” (Pág. 49)

O correto é preferir uma coisa a outra, e nunca do que outra. (Corrija-se para: …pipoqueiros a casá-las com pastores.)

29. “Então os guerreiros viviam apenas o presente… e eles tinham que prestar atenção em muitas coisas.” (Pág. 164)

“No presente é que está o segredo; se você prestar atenção no presente, poderá melhorá-lo.” (Pág. 166)

Presta-se atenção a alguém ou a alguma coisa, e não em.

30. “Ninguém disse qualquer palavra enquanto o velho falava.” (Pág. 170)

“O camelos são traiçoeiros: andam milhares de passos, e não dão qualquer sinal de cansaço.” (Pág. 181)

Qualquer se usa nas orações declarativas afirmativas; nas negativas, usam-se nenhum e suas variações: “Veio duma cidade qualquer, sua vida não foi boa nem má; foi como a dos homens comuns, a dos que não fizeram nenhum destino…” (Cecília Meireles)

31. “A velha pediu para que ele repetisse o juramento olhando para a imagem do Sagrado Coração de Jesus.” (38) (Correção: …pediu que ele…)

“…Pediu para lhe mostrar onde morava Fátima.” (Pág. 189) (Correção: Pediu que lhe mostrasse…)

Seguindo a gramática à risca, pedir para só se usa para solicitar licença, permissão ou autorização. Nos demais casos, usa-se pedir que: “Minha mãe ficou perplexa quando lhe pedi para ir ao enterro”. (Machado de Assis) / Pedira delicadamente que não se deixasse exposto à vista nada de valor”. (Carlos Drumond de Andrade).

32. “— Podemos chegar amanhã nas Pirâmides…” (Pág. 66)

“O rapaz se aproximou de uma mulher que havia chegado no poço…” (Pág. 150)

“Chegou na pequena igreja… quando já estava quase anoitecendo.” (Pág. 245)

Chegar em um lugar é regência dominante na fala brasileira e é encontradiça em alguns escritores medíocres ou sem muita expressão no meio literário, salvo raríssimas exceções.

Verbos de movimento exigem a, e não em: Chega-se sempre, e bem, a algum lugar. O único caso em que se pode empregar em com chegar é na referência a tempo: chegar em cima da hora.

É muito comum a expressão chegar em casa. Os escritores de boa nota, contudo, preferem chegar a casa: “Ao chegar a casa, Tavares encontrou a irmã preocupada“. (Dias Gomes)

33. “— Por que quis me ver? — disse o rapaz.” (Pág. 180)

“— E por que o deserto ia contar isto a um estranho, quando sabe que estamos há várias gerações aqui? — disse outro chefe tribal.” (Pág. 168)

Quando há uma pergunta, no discurso direto, o sensato é empregar um destes verbos: indagar, perguntar, interrogar…

34. “Mas as crianças sempre conseguem mexer com os animais sem que eles se assustem. Não sei porquê.” (Pág. 36) (Correção: Não sei por quê.)

“E por que ?” (Pág. 56) (Correção: E por quê?)

“Até que um deles, o mais velho (e o mais temido), perguntou porque o cameleiro estava tão interessado em saber o futuro.” (Pág. 165) (Correção: …por que o cameleiro…)

“Não pergunte porquê; não sei.” (Pág. 209) (Correção: Não pergunte por quê;…)

Entre muitas outras coisas, Paulo Coelho também não domina o uso dos porquês.

Veja como mestre Salomão Serebrenick elucida o caso sem magia nem bruxaria, no seu fabuloso livro 70 Segredos da Língua Portuguesa:

“A melhor norma prática a seguir é esta: só juntar os dois elementos num único caso — quando se tratar de uma resposta ou de uma explicação; nos demais casos, que constituem a grande maioria, separar os dois elementos.

Em final de frase, acentua-se o e: Já sei por quê. Também se acentua quando se trata de substantivo: É bom conhecer o porquê das coisas.

35. “Eu lhe ensinarei como conseguir o tesouro escondido. Boa tarde.” (Pág. 51)

O verbo ensinar merece atenção muito especial. Quando se ensina algo a alguém, temos: O professor ensinou-lhe a lição. Quando se ensina alguém a fazer algo, temos: O professor ensinou-o a ler e escrever.

No segundo caso, temos um erro quase que insignificante. Mas não nos esqueçamos de que a língua é feita de detalhes: os cumprimentos bom-dia, boa-tarde e boa-noite só se constroem com hifem. É uma pena que certos alquimistas não estejam preocupados com essas coisas miúdas: o negócio deles é encontrar a pedra filosofal. Aposto que nem querem saber se hifem é variante de hífen. O vernáculo para eles está em último plano.

36. “Mas o comerciante finalmente chegou e mandou que ele tosquiasse quatro ovelhas.” (Pág. 25)

O verbo mandar na acepção de ordenar rege o pronome oblíquo o. No entanto, se o infinitivo for um verbo transitivo, como no caso em questão, é admissível também o pronome lhe. Segundo Celso Luft, também é correto construir: mandou-o (ou mandou-lhe) que tosquiasse as quatro ovelhas. Assim, PC teria quatro motivos para não pecar:

a) …mandou-o que tosquiasse…
b) …mandou-lhe que tosquiasse…
c) …mandou-o tosquiar…
d) …mandou-lhe tosquiar…

Todos sabemos que consultar um dicionário de regência verbal não é tão divertido quanto separar nuvens com a força da mente (ou fechar os olhos e viajar pelos campos de Andaluzia…), mas aprendem-se coisas insuspeitas.

O enredo do livro O Alquimista é interessante. Isso nos faz entender por que Paulo Coelho é um dos dez escritores mais lidos em todo o mundo. Li a versão em inglês, e fiquei encantado. Com certeza, ele faz jus a todos os prêmios que tem recebido até aqui. Mas uma coisa precisa ficar bem clara: enquanto Paulo Coelho não permitir que suas obras sejam revisadas por pessoas competentes, jamais será reconhecido, no Brasil, como um grande escritor, porque definitivamente nosso mago vendedor de livros não conhece o idioma em que se exprime.

E digo mais: se continuar atropelando nossa tão maltratada língua, sempre haverá alguém com motivo de sobra para escrever frases como esta: “Podia haver prêmios literários conferidos a escritores para que não escrevessem.” (Afonso Lopes Vieira, Nova Demanda do Gral, pág. 319)

(*) J. Milton Gonçalves é escritor graduado pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Pres. Venceslau (SP), com especialização em Metodologia do Ensino Superior e em Linguística Aplicada (PUC/SP). Hoje é diretor de duas escolas de idiomas e presta serviços de consultoria bilíngue e de revisão linguística a várias editoras do país.

Nota deste blogueiro
Desde 2002, Monsieur Polô Coelô é membro da Academia Brasileira de Letras — um verdadeiro imortal.

Silepse de gênero

Dad Squarisi (*)

Silepse vem lá do grego. Significa compreensão. A concordância não se faz com o termo que está escrito, mas com outro, oculto, subentendido. Na língua, há muitos casos de silepse. Quer ver?

Santos é palavra masculina, não? Dizemos, normalmente, os santos. Mas, quando nos referimos à cidade, apelamos para a concordância com a ideia, não com o nome: Santos foi alagada na última enchente.

Percebe? Subentende-se o substantivo cidade: (A cidade de) Santos foi alagada.

Meandros do Rio Paraíba do Sul

Há mais. Paraíba é feminino. Até a música popular confirma-lhe o sexo: “Paraíba masculina, mulher macho sim, senhor”. Mas, ao nos referirmos ao rio, lá vem a silepse: O (rio) Paraíba é caudaloso.

Os pronomes de tratamento são os campeoníssimos da concordância ideológica. Excelência, majestade, senhoria, santidade são femininas. Mas os nomes que se referem a elas têm que ser flexíveis. Concordam com o sexo da pessoa (ai deles se não o fizessem): Vossa Excelência, senhor Presidente, é orador nato. Vossa Excelência, senhora senadora, é oradora nata.

Deixemos de cerimônia. A língua simples do povo está cheia de concordâncias ocultas. “Ele é um banana? Não, um besta”. Quantas vezes você ouviu essas gentilezas? Pois acredite: são silepses.

(*) Dad Squarisi, formada pela UnB, é escritora. Tem especialização em Linguística e mestrado em Teoria da Literatura. Edita o Blog da Dad.

Bilinguismo luso-brasileiro ‒ 1

Ruth Manus (*)

Na semana em que cheguei, ouvi que era muit’gira a minha mala encarnada. Não sabia se era para agradecer, para me ofender ou para xingar de volta. Depois, fui descobrir que a mala era a bolsa, encarnada era vermelha e gira era bonita. Já não dava tempo de agradecer à moça.

Pouco tempo depois, procurava um supermercado e pedi ajuda a uma senhora que me mandou ir para os curraios. Não entendi, mas achei que mandar alguém para os curraios não era algo admissível, por uma simples razão de divisão de sílabas. Saí chocada, segui andando e encontrei o mercado, ao lado dos correios. Correios. Curraios. Saquei.

Depois, foi a vez de um professor narrar um caso de um país que proibiu a venda de maltadagas. Eu, quieta, pensei “Maltadaga. Deve ser uma adaga, arma branca, da ilha de Malta”. Ele falou outra vez e eu entendi “maltad’água”. Pensei “água da ilha de Malta?”. Na terceira ouvi “mota d’água”. Ok. “Mota deve ser moto. Moto de água. Jet ski!! É jet ski!!” E pronto, o professor já tinha mudado de assunto e eu até hoje não sei nem onde nem por que o jet ski foi proibido.

Fui achando que já entendia melhor. Tinha aprendido a não pedir sorvete de creme, mas gelado de nata. E pedi, no restaurante, torta com uma bola de gelado de nata. O garçom disse “bolinha?”. Eu sorri e disse, “sim, uma bola de gelado de nata”. Ele disse “uma bola de bolinha?”. E eu já pensei “ai Deus, começou”. Ele insistiu “não temus gelado d’nata. Temos chuculát, murang e bónilha. Pod’ser uma bola de bónilha?”. Enfim. Bola de bolinha, bola de bónilha, vamos levando.

Descobri que jogar na privada é deitar na sanita. Que pisar no freio é carregar nos travões. Que banheiro é casa de banho e salva-vidas é banheiro. Que dar a descarga é puxar o autoclismo. Que eu uso cuecas, por mais que eu use calcinhas. E que os homens também usam cuecas por mais que eles não usem calcinhas.

Não satisfeita, inventei de namorar um lisboeta. Fomos dormir outro dia e ele disse “q’rida, podes colocar o despertador para o Tim Maia?”. Pausa. Oi? “O despertador. Colocas para Oi Tim Maia?” Tim Maia? “Sim, para Oi Tim Maia.” E, então, eu percebi que já era bilíngue. Coloquei o despertador para 8h30 e apaguei a luz.

(*) Ruth Manus é advogada, escritora e colunista do Estadão.

Vale a pena ler de novo ‒ 1

Post publicado originalmente em jan° 2013

Interligne 28a

Trinta e uma dicas de Português

José Horta Manzano

Enluminure A 11. Vc. deve evitar ao máx. a utiliz. de abrev., etc.

2. O escritor deve prescindir de recorrer ao uso de estilo de escrita em demasia rebuscado. Tal prática costuma advir do excessivo esmero com que exibicionistas ― nem sempre ínclitos ―, cuja autoincensação decorre justamente do parco conhecimento linguístico de que dispõem, chegam a raiar o paroxismo narcisístico, sem contar, para tanto, com supedâneo sólido no que tange à formação escolástica no campo da língua pátria.

3. Anule aliterações antipáticas altamente abusivas.

4. não esqueça as maiúsculas no início das frases.

Ortografia 45. Fuja de lugares-comuns como o diabo foge da cruz.

6. O uso de parênteses (mesmo quando parecer relevante) é geralmente desnecessário.

7. Estrangeirismos estão out; palavras de origem vernácula são o top.

8. Evite o emprego de gíria, mesmo que pareça nice, sacou?… Então, valeu!

9. Palavras de baixo calão, porra, podem transformar o seu texto numa merda.

10. Nunca generalize: generalizar é erro fatal em todas as circunstâncias.

11. Evite repetir a mesma palavra pois essa palavra vai-se tornar palavra repetitiva. A repetição da palavra pode até fazer que a palavra repetida desqualifique o texto onde tal palavra for constantemente repetida.

Enluminure B 112. Não abuse das citações. Como costuma dizer um amigo meu: “― Quem cita os outros não tem idéias próprias”.

13. Frases incompletas podem causar

14. Não seja redundante, isto é, não é preciso dizer a mesma coisa de formas diferentes, ou seja, basta mencionar cada argumento uma só vez. Por outras palavras: evite repetir a mesma idéia várias vezes.

15. Seja mais ou menos específico.

16. Frases com apenas uma palavra? Jamais!

17. A voz passiva deve ser evitada.

18. Utilize a pontuação corretamente o ponto e a vírgula pois a frase poderá ficar sem sentido especialmente será que ninguém mais sabe utilizar o ponto de interrogação

19. Quem precisa de perguntas retóricas?

20. Conforme recomenda a A.G.O.P., nunca use siglas desconhecidas.

21. Exagerar é cem milhões de vezes pior do que usar a moderação.

Ortografia 322. Evite mesóclises. Repita comigo: “Mesóclises: evitá-las-ei!”

23. De regra importante esquecer não nunca: crucial a das palavras é ordem!

24. Analogias na escrita são tão úteis quanto chifres numa galinha.

25. Não abuse das exclamações!!! Nunca!!! O seu texto fica horrível!!! Acaba parecendo uma tuitada!!!

26. Evite frases exageradamente longas pois estas dificultam a compreensão da idéia por elas abarcada e, por compreenderem mais que uma idéia central, o que nem sempre torna seu conteúdo accessível, forçam, destarte, o infeliz leitor a dissecá-las nos seus diversos componentes, de forma a torná-las compreensíveis, o que não deveria ser, afinal de contas, parte do processo da leitura, hábito que devemos estimular através do uso de frases mais curtas.

27. Cuidado com a hortografia, para não estrupar a língoa portu-guêza.

28. Seja incisivo e coerente. Ou não.

Alfabeto 329. Não vá estar escrevendo (nem vá estar falando) no gerúndio. Você vai estar deixando seu texto pobre e vai estar causando ambiguidade. Com certeza, você vai estar deixando o conteúdo esquisito, vai estar ficando com a sensação de que as coisas ainda vão estar acontecendo. E como você vai estar lendo este texto, tenho certeza de que você vai estar prestando atenção e vai estar repassando aos seus amigos, que vão estar entendendo e vão estar pensando em abandonar esta maneira irritante de estar falando.

30. Venha cá, meu rei! Outra barbaridade que deves evitar, tchê, é usar expressões que denunciem a região de onde vens, ô meu! Uai…esquece esse trem! Vixi… entendeu, bichinho?

31. Não permita que seu texto acabe por rimar, porque senão ninguém vai aguentar, já que é insuportável o mesmo final escutar, o tempo todo sem parar.

Lágrimas de crocodilo

José Horta Manzano

Letras 1Discurso da presidenta é um perigo. Principalmente se for feito de improviso. E piora quando não há grande coisa a dizer – como costuma acontecer. A boa cidade de João Pessoa teve direito a uma amostra estes dias.

Todos sabem que dona Dilma peleja com a língua portuguesa. A briga é constante. O problema maior da fala da mandatária é a falta de coerência do discurso, que deixa no ar a suspeita de que seu pensamento também seja falho de lógica.

Boulet 1Há um trecho digno de nota. É quando madame declara que: «Esse país também precisa encarar de frente a questão da igualdade racial.» Temos aí três problemas.

Primeiro, o problema da convivência racial – amplificado pelos companheiros, por razões eleitoreiras. Continuar soprando sobre brasas não é a melhor solução.

Segundo, um problema de convivência pronominal. Esse país? Que país? A presidente deve ter-se enganado. Aposto que ela se referia a este país.

Terceiro, um problema pleonástico. Sua Excelência falou em encarar de frente. Como é que é? E a alguém viria a ideia de encarar de costas, presidente? Esse é parente de ver com os olhos e de entrar pra dentro.

Crocodilo 1Há mais. A meu ver, o pior foi a comprovação de que o discurso presidencial é vazio, são palavras ao vento, sem eira nem beira. Vejam como foi.

Numa tentativa de surfar na onda do momento, madame evocou aquele infeliz bebê resgatado sem vida numa praia turca. Afirmou que o menino morreu porque «os países» criaram barreiras para refugiados. Nessa altura, faltou o gesto de grandeza – ninguém pode dar o que não tem.

Dona Dilma ateve-se a acusar «os países», totalmente esquecida de que ela preside um deles. Com a mente colonizada pela influência de seus correligionários, botou a culpa nos outros, como é hábito entre seus companheiros.

Faz mais de quatro anos que dona Dilma preside este país. Digo bem: este. A guerra civil já dura anos na Síria. Que se saiba, nossa mandatária não mexeu uma palha para acolher famílias de refugiados.

Refugiados sírios segundo a contagem da Agência da ONU para refugiados

Refugiados sírios segundo a contagem da Agência da ONU para refugiados

Derramar lágrimas agora e, levianamente, acusar «os países» de negar refúgio a perseguidos soa hipócrita e demagógico.

Terminado o discurso de João Pessoa, como é que fica? Constrói-se uma passarela para acolher famílias sírias? Ou vira-se a página e fica tudo como estava antes?

Interligne 18b

PS: Para almas tolerantes que tiverem a pachorra, o site oficial do planalto publicou o discurso da mandatária. Na íntegra.

Orthographia ‒ 1

José Horta Manzano

“Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente. Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa propria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.”

Fernando António Nogueira Pessoa (1888-1935), escritor, poeta, crítico e polemista português.

Interligne 18b

Fernando Pessoa aferrou-se, a vida toda, à grafia etimológica (ou pseudoetimológica) pela qual se havia alfabetizado. Recusou dobrar-se à nova regra – dita “simplificada” – instituída pela Reforma Ortográfica portuguesa de 1911.

Fernando Pessoa 1

Para constar, note-se que essa reforma de 1911 foi temperada, cozida e gratinada exclusivamente em Portugal. O Brasil só foi avisado uma vez que o acepipe já estava à mesa, disposto em terrinas fumegantes, pronto a ser servido. Naturalmente, a reforma foi ignorada deste lado do Atlântico. Mas veja só!

Não é de hoje que constantes e inconsistentes imposições de novas regras têm acentuado o sentimento de insegurança linguística que nos fere a todos. Essas frequentes alterações podem até satisfazer o ego (e o bolso) de um punhado de confrades, mas constrangem o cidadão comum. Seja ele brasileiro, luso, angolano ou timorense.

Se as línguas que nos cercam conseguem manter o vigor sem reformas ortográficas, por que razão precisamos nós remendar a nossa tão seguidamente? Que nos preocupemos em consertar o que estiver avariado, pois não? Nosso caminho é outro: nenhuma reforma ortográfica será capaz de salvar nosso falar da degradação.

Orthographia 1

O inglês é língua oficial de jure ou de facto de 79 países ou entidades territoriais. A língua francesa é oficial em 48 países ou entidades. Quanto ao espanhol, 22 países o têm como língua oficial. A despeito dessa disseminação – ou talvez por causa dela – nenhum dos falantes dessas línguas vive engessado num normativismo sufocante como vivemos nós.

Para dar um basta a essa esbórnia, uns bons Fernandos Pessoas andam fazendo muita falta.

A tragédia da língua portuguesa

Dad Squarisi (*)

Tornou-se lugar-comum falar na baixa qualidade do ensino. Em testes nacionais, comprova-se, ano após ano, o mau desempenho dos alunos, sem domínio das habilidades de ler, escrever e fazer as quatro operações. Em exames internacionais como o Pisa, os estudantes brasileiros figuram na rabeira dos concorrentes.

ExameO Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2013 chama a atenção para o resultado da língua portuguesa. Mais de 5 milhões de jovens se submeteram à avaliação para concluir o ensino médio, entrar em universidade pública, participar de programas de intercâmbio, obter bolsa de financiamento em instituições privadas. No total, 14.715 escolas compõem o ranking.

Pouco mais de um terço (33,87%) obteve nota abaixo de 500 na redação. Foram reprovadas. Levando-se em consideração o desempenho individual, mais da metade dos alunos de 3.900 colégios tiraram nota vermelha. O fracasso na produção de texto implica soma de incompetências. Entre elas, falta de domínio da norma culta; incapacidade de leitura e compreensão de enunciados, de organizar e interpretar informações, de argumentar, de transitar de uma ideia para outra.

AnalfabetoAvaliar a redação vai além de analisar a habilidade de escrever. A língua funciona como pré-requisito para as demais disciplinas. Antes de resolver um problema de matemática, por exemplo, o estudante precisa entender o enunciado. Ele pode até saber o raciocínio para chegar à resposta, mas é incapaz de perceber o que a questão pede. Limitação similar se observa em geografia, história, biologia. O jovem estuda, mas não aprende.

Ele é vítima de uma a escola que não ensina. Currículos desatualizados, material didático de má qualidade, bibliotecas mortas, laboratórios decorativos aliam-se a professores desmotivados e sem a qualificação necessária. Espaços assim funcionam como castigo para rapazes e moças que vivem em universo tecnológico povoado de atividades desafiadoras.

Professora 1Sentar-se calado, um atrás do outro para ouvir o professor que repete o que está nos livros ou copiar matéria do quadro é cena do século 19, quando estabelecimentos preparavam os empregados exigidos pela revolução industrial. Não condiz com a sociedade do conhecimento, que exige profissionais proativos, empreendedores, aptos a responder a desafios com criatividade.

Como chegar lá? O ponto de partida é o professor. A carreira do magistério deve atrair os melhores talentos. Para tanto, além de formação acadêmica, impõe-se carreira top. Os brasileiros ambiciosos devem saber que vale a pena ser docente. Não só pelo salário, mas também pela progressão profissional e pelo respeito da sociedade.

(*) Dad Squarisi, formada pela UnB, é escritora. Tem especialização em linguística e mestrado em teoria da literatura. Edita o Blog da Dad.

O a em perigo

Ruy Castro (*)

Enluminure A 1Há meses, ao ouvir dizer que a Polícia Federal deflagrara a Operação Lava Jato, pensei que se referisse a um esquema ilegal de lavagem de aviões. Com esse nome, fazia sentido ― imagine a quantidade de jatos no país, todos precisando ser lavados depois de horas de voo acumulando gosma na fuselagem. Se você costuma lavar o seu carro aos sábados, imagine lavar um avião. Alguma empresa especializada devia estar superfaturando o kaol, a flanela ou o sabão.

Quando me disseram que se tratava de investigação para desmontar um baita esquema de lavagem de dinheiro, evasão de divisas, sonegação fiscal, participação no mercado clandestino de câmbio, desvio de recursos públicos, destruição de provas, corrupção de agentes federais e recebimento de propinas e comisões de até 50%, envolvendo um doleiro com extensas relações no meio político e um importante diretor da Petrobras, tudo isso movimentando mais de 10 bilhões de reais ― caí das nuvens. Que, por sinal, é de onde os jatos costumam cair.

Enluminure B 1Se fosse menos distraído, eu teria ligado a expressão “lava jato” às oficinas assim chamadas, dedicadas a lavar, não jatos, mas carros ― e que, se fossem administradas por pessoas mais ciosas da língua portuguesa, deveriam chamar-se “lava a jato”. Ou seja, rapidinho. Há até uma peremptória regra de gramática a respeito ― que, pelo visto, nós, da imprensa, decidimos ignorar. Daí essa investida dos diversos órgãos saneadores ter-se tornado a Operação Lava Jato. Sem o a.

Temo que isso faça parte de uma conspiração nacional contra o emprego do a. Não se diz mais daqui a três meses, “mas daqui três meses”. Nem comecei a fazer, mas “comecei fazer”. Nem voltamos a apresentar, mas “voltamos apresentar”. Já reparou? Cuidado. Primeiro, eles apagam o a. Se deixarmos, apagarão o b.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista da Folha de São Paulo.

Show às avessas

Dad Squarisi (*)

A maior tragédia nacional? É a educação. Se alguém tinha dúvida, ela se evaporou ontem. No programa eleitoral, candidatos e padrinhos deram um show às avessas. Ao lado de declarações de amor ao povo, exibição de feitos, promessa de nirvanas, elegeram o inimigo número 1 de todos. É a língua. O português apanhou feio.

A surra começa com o TSE. O tribunal escreve “lei 9.504/97”. Numerada, lei vira Lei. Continua com Aécio & cia. “A proposta mantém a regra geral“. Que desperdício, mineiro! Toda regra é geral. Basta regra. Passa por Marina: “PT e PSDB guerreiam entre eles”. Entre eles? Não. Entre si. Caetano arremata: “Nesse momento, Marina representa nossos anseios”. Ops! Ele fala do tempo presente? É neste momento.

Dilma faz a festa. Reprisa o programa sobre educação exibido na semana passada. Deslumbrada com o país maravilha criado por marqueteiros, nem se lembra do Brasil real. Pela primeira vez, nossa Pindorama caiu no Ideb. Andamos pra trás. Ela prova.

Vovó 1Bate na regência. “As mudanças chegaram no ensino superior”. Nããããão! Chegaram ao ensino superior. Maltrata o demonstrativo. Estava na sede do Senai. Em vez de esta unidade, refere-se a ela como essa unidade.

Lula amplia os estragos: “A partir do nosso governo, o Brasil começa a mudar”. Xô, pleonasmo! A partir e começar dão o mesmo recado. Melhor: No nosso governo, o Brasil começa a mudar. A partir do nosso governo, o Brasil muda.

A vovó, quietinha até então, desliga a tevê e cantarola: “Essa gente toda em vez de inglês / precisava um pouco mais de português”.

(*) Dad Squarisi, formada pela UnB, é escritora. Tem especialização em linguística e mestrado em teoria da literatura. Edita o Blog da Dad.

A festa continua

José Horta Manzano

Já lhes falei aqui, faz pouco mais de um mês, de nosso exótico ministro do Esporte, Aldo Rebelo. Pois o homem é incorrigível. Continua aprontando.

Outra travessura do burlesco personagem aconteceu no Carnaval passado, mas só agora veio a público. E olhe que, não fosse o pipocar de traquinagens semelhantes cometidas por outros políticos mais célebres que ele, suponho que suas artes continuassem dormindo no esquecimento.

Artigo da Folha de São Paulo deste 24 de julho nos informa que Aldo Rebelo se valeu de um avião das Forças Aéreas Brasileiras para viajar a Cuba. Até aí, nada de estranho. Parece absolutamente normal que um afiliado histórico do Partido Comunista vá passear na ilha onde ele é amigo do rei.

Para não ficar feio, a viagem foi registrada como «missão oficial» ― quem poderá contestar? Aconteceu durante o Carnaval. E daí? Na maior ilha caribenha, como sabemos, vivem todos felizes o ano inteiro. Não têm necessidade de comemorar carnavais para descomprimir. Por lá, trabalha-se duro o tempo todo, donde o elevado padrão de vida da população.

O ministro levou consigo a esposa. E daí? Se até os encarcerados têm direito a visita íntima, por que seria negada a um figurão da República a regalia de levar consigo a esposa em viagem oficial? A esposa não aparece na lista oficial de viajantes. Bem, aí já começamos a ter um problema. Por que não aparece? Um esquecimento, certamente.

Avião da alegria

Avião da alegria

Além da esposa, o ministro levou consigo o filho. Que tampouco aparece na lista de passageiros ― mas vejam que coincidência!

Vamos recapitular. Nosso aplicado ministro do Esporte decide fazer uma viagem de trabalho a Cuba em pleno Carnaval. Leva esposa e filho. O nome dos acompanhantes não aparece na lista oficial de passageiros da viagem. O senhor Rebelo nos explica que sua esposa e seu filho viajaram a convite dos Castros. E daí? Na ilha maravilhosa mandam os Castros e sua clique, no Brasil mandamos nós. Que se saiba, o custeio da aviação militar brasileira não vem da ilha da fantasia. Sai do dinheirinho suado que é extorquido de todos os brasileiros por meio de impostos diretos e indiretos.

Vejam como são as coisas. O homem que tanto se esforçou em matéria de proteção da língua portuguesa e do saci-pererê é bem menos rigoroso quando se trata de proteger o dinheiro de seus compatriotas contribuintes.

A quem estamos querendo enganar? Contorcionismos verbais já não surtem o mesmo efeito que antes. Ou esses medalhões tomam jeito, ou isso ainda vai acabar mal. Ninguém gosta de ser vítima de zombaria. Os políticos brasileiros estão demorando a se dar conta de que a consciência do povão já não é letárgica como costumava ser.

A continuarem as estrepolias da nomenklatura tupiniquim, essa novela ainda vai acabar mal.

Interligne 24

Caneta vermelha neles

Escola elementar

Escola elementar

Um levantamento do jornal Correio Braziliense com súmulas do Brasileirão do ano passado e dos principais estaduais do país em 2013 mostra como alguns juízes expulsam a língua portuguesa de campo sem cerimônia.

Artigo de Amanda Martimon
Publicado na edição online do Correio Braziliense de 3 jun 2013

Errar marcação de “penalt” não tem perdão para o time desfavorecido. Tampouco “carrinhar por detrás” o adversário pode passar despercebido pela “árbitragem”. Depois de 90 minutos ouvindo pitacos, reclamações e xingamentos às mães, os árbitros têm ainda uma última missão antes de ir para casa: preencher a súmula da partida. E é nessa hora, no vestiário, sem olhares à espreita, que os papéis se invertem e eles cometem de infrações leves a penalidades máximas.

“Subistituições, paralizações, acrécimos, discursões, condições das estalações, chingamentos”(sic), tudo isso é relatado — assim, por escrito — ao fim do jogo. Se “ouve” problemas durante a partida ou se ocorreu tudo dentro “das normalidades”, está lá, anotado. A falta “acentosa” cometida “intensionalmente” ou “intencionaumente” é sempre registrada. E nem adianta o jogador “contextar” ou reclamar de maneira “assintosa”.

Às vezes, os árbitros até acertam na ortografia, mas são traídos pela falta de espaço. Quando não cabe a palavra na mesma linha, a falta à regra de separação silábica é clara. “Diretame-nte, expu-lsões, invadi-ssem” são algumas paradas bruscas nas súmulas do Candangão deste ano.

Clássico entre os erros de português, a conjugação errada do verbo haver não foi “excessão”, como diria, ou melhor, escreveria um árbitro no Campeonato Mineiro. Em súmulas do Carioca ou do Paulista, lá está, em destaque na primeira linha e, às vezes, na única frase do relatório: não “houveram”. Pior quando a infração é dupla, como “paralizações havida”. Vermelho para ele, naturalmente.

Para completar a seleção de equívocos com o mesmo verbo, alguns batem na trave. Acertam no tempo verbal, mas pecam na finalização. Sem o “h”, tem jogo em que “ouve” expulsão e jogador que já “avia” levado cartão.

Presidente da Associação Nacional dos Árbitros de Futebol, Marco Martins reconhece que os erros de português em súmulas preocupam e não deveriam ocorrer em grandes campeonatos, como o Brasileiro. “Subentende-se que, quanto maior o nível do árbitro, maior a qualificação. No Campeonato Brasileiro é anormal, não deveríamos ter muitos.” Nos cursos de formação, os aspirantes a árbitros têm aulas de redação e orientações para preenchimento das súmulas. “A gente se preocupa em aprimorar a língua portuguesa, pede para que haja cuidado, mas isso não é um problema específico da arbitragem, é da qualidade no ensino no Brasil”, justifica o presidente, em entrevista ao Correio.

Árbitro Crédito: Kopelnitsky, EUA

Árbitro
Crédito: Kopelnitsky, EUA

Fora do ar
Novidade no Campeonato Brasileiro do ano passado, a súmula eletrônica colocou o árbitro goiano Elmo Cunha, do quadro da CBF, em uma saia justa. Apitando Palmeiras x Botafogo nas rodadas finais do torneio, o juiz não conseguiu usar a internet para preencher a súmula no computador. Do jeito tradicional, ele escreveu apenas à mão e registrou o incidente: “Informo que não foi possível fazer os procedimentos da súmula digital devido a não conecção (sic) com a internet”. Desconectado com a língua portuguesa no momento desse deslize, Elmo ameniza a falha. “Isso é coisa normal, a gente comete gafes mesmo. Pode ter sido uma falta de atenção, muita correria. Todo mundo erra”, disse, à reportagem.

Nesse dia, o árbitro estava mesmo distraído ou com o tempo apertado. Ao relatar um confronto da polícia militar com a torcida do Palmeiras, ele informou que alguns policiais sofreram “escariações”. Sem perder o bom humor, Elmo reconhece que precisa ficar mais atento. “Nenhum dos dois erros justifica, mas, com certeza, é pior errar no jogo.”