Ardido

José Horta Manzano

Em setembro de 2018, o mais significativo repositório da memória nacional virou tragédia e deixou de existir. Quando queimou o Paço de São Cristóvão, que abrigava o Museu Nacional, uma onda de comoção bateu nos costados do mundo civilizado. Uma catástrofe.

Na ocasião, escrevi um artigo contando curiosidades do passado de um edifício que foi residência de quatro gerações de monarcas. As eleições presidenciais estavam próximas e, naturalmente, não se sabia ainda quem havia de vencer. Eram tempos de suave esperança para os que não suportavam mais o descalabro dos governos lulopetistas.

Formulei então votos de que o próximo presidente, fosse ele quem fosse, fizesse uma visita à Biblioteca Nacional logo no início do mandato. Em matéria de memória nacional, é certamente a joia que nos restou depois da perda do museu arso(*).

Ai de nós, quem é que podia imaginar! Acho que ninguém se tinha dado conta de que estava subindo ao trono o indivíduo mais ignorante jamais eleito no Brasil. Pra piorar, apesar de não ter aprendido nem o básico, doutor Bolsonaro despreza a Educação, pisoteia as Relações Exteriores e tem feito o que está em seu poder para a destruição de nossa cobertura vegetal e para a desertificação do país.

É muita desgraça junta. Acho que o presidente aplaudiria se a Biblioteca Nacional ardesse e se, no terreno, fosse instalada uma filial da Disneylândia. É lastimável que, desde que virou o século, o Brasil tenha sido presidido por ignorantes. Para a cultura nacional, o golpe tem sido duro.

Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro

Com o Lula, a intenção era boa, mas o resultado foi pífio. Numa projeção que a psicologia talvez explique, pensou em dar ao país a possibilidade de fazer os estudos que ele não tinha feito. No entanto, passando por cima da instrução elementar, fomentou a abertura de dúzias de faculdades de beira de estrada. (É fato que uma faculdade é mais visível que um grupo escolar, mas ninguém chega lá sem ter passado por aqui.) Botou Gilberto Gil no Ministério da Cultura; o moço é excelente músico, mas… ministro da Cultura? No espremer dos limões, o Lula relegou a formação elementar à ventura.

Da Dilma, esperava-se uma ‘gerentona’ firme e forte. Ao fim e ao cabo, tivemos uma ‘presidenta’ autoritária, falsificadora do próprio currículo, de mente confusa, que não deu a mínima atenção à formação dos brasileirinhos. Sua ‘Pátria educadora’ não passou de slogan.

Do presidente atual, dá tristeza falar. É esse estropício tosco que está aí. Deu vexame na escolha de titulares para a Educação e para a Cultura. Não visitou (nem visitará) a Biblioteca Nacional. Talvez nem saiba que ela existe. Livro não é seu terreno de predileção. Só nos resta torcer pra que ele vá se embora logo. E que o próximo seja um bocadinho melhor. Será difícil ser pior, mas, no Brasil, nada é impossível – principalmente a piora.

(*)Nota etimológica
Arder corresponde diretamente ao verbo latino ardeo/ardere, que significa estar em chamas, queimar. O particípio perfeito latino é arso, palavra que, segundo o Volp, existe em português. Tanto pode ser adjetivo como substantivo.

É curioso que nenhum dicionário online traga esse verbete. Consultei Houaiss, Priberam, Aulete, Michaelis, Porto Editora, Cândido de Figueiredo e 7 Graus – sem sucesso. O Volp é um vocabulário que se limita a atestar a existência da palavra, dar a grafia e o gênero gramatical; porém, não dá o significado. Assim, resta supor que arso tenha o sentido que tinha na língua latina.

Em português, os descendentes de arder não são multidão: ardido, ardor, ardência, ardente, aguardente. E, naturalmente, arso(=queimado, que ardeu, ardido).

Novos termos

José Horta Manzano

Pandemias não agradam a ninguém. Trazem uma baciada de males e incômodos. Quanto mais duram, mais duradouros serão os transtornos. Lado bom, não há; parece que todos os lados são ruins.

No entanto, examinando bem, há que constatar que a covid está sendo propícia ao surgimento de termos novos ou à ressurreição de termos antigos, que voltam à moda reformados e com significado novo. Aqui estão alguns deles.

comorbidade
Palavra de uso antes raríssimo, estritamente reservada ao âmbito medical. Nem o Houaiss, nem o Aulette trazem o verbete. Comorbidade ocorre quando, a uma doença pré-existente num determinado paciente, vem se adicionar uma nova. Dado que está entre os principais fatores de risco, a comorbidade caiu na boca do povo.

presencial
Era termo raro, reservado para uso jurídico-policial. Ao frequentar os bancos da escola, nenhum de nós jamais se deu conta de que assistia a aulas «presenciais». Assim como o conceito não existia, o termo não era utilizado. O Houaiss dá dois exemplos: testemunha presencial, reconstituição presencial do crime. Hoje o termo é usado como contraponto a remoto.

remoto
Termo comum, presente na língua há séculos. Tem dois significados: tratando de tempo, indica o que ocorreu há muito; tratando de espaço, designa o que está fisicamente distante. No caso do ensino remoto, expressão de uso frequente, indica distância física entre educador e educando. Ainda não se cogitou em proporcionar ensino remoto no tempo, ou seja, ensino à moda antiga com intimidação e palmatória.

teletrabalho
A palavra é tão recente que ainda nem foi dicionarizada. É expressão bem mais simpática do que a pernóstica “home office”. A não ser que o indivíduo viva sozinho ou disponha de cômodo reservado, trabalhar em casa é complicado. Criança chorando, cachorro latindo, telefone tocando, adolescente escutando música em volume alto, campainha soando, tevê anunciando xampu – tudo isso atrapalha. Prefiro teletrabalho. É mais maneiro e parece menos cansativo.

alquingel
Nem sei se o produto existia antes da pandemia. Se existia, seu uso estava restrito a hospitais e outros ambientes onde esterilização é capital. Hoje encontra-se por toda parte. “Alquingel” é álcool em gel na voz do povo – palavra que parece não ter plural: “passa os alquingel aí!”. Dos termos que entraram na moda com a covid, é meu preferido. É menos perigoso que comorbidade e menos cansativo que teletrabalho. E, ainda por cima, protege. Que mais pedir?

Ciberpiratas

José Horta Manzano

AQUI
Parece milagre. Para nós todos, tão acostumados com a lentidão e o desleixo dos guardiães da língua na tarefa de aportuguesar palavras estrangeiras, é um espanto. Tomando a dianteira sobre o francês, o espanhol, o italiano e outras línguas próximas, o mui oficial Volp ‒ Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa ‒ já abonou o termo «ciberpirata», perfeita adaptação do inglês «hacker». A transposição foi muito feliz. A palavra portuguesa evoca exatamente a figura do indivíduo que passeia pela rede recheado de más intenções. Estamos liberados para usar e abusar do termo sem aspas e sem sentimento de culpa. Aleluia!

Ciberpirata 1


O governo espanhol confirma ter constatado, estas últimas semanas, a invasão do espaço cibernético nacional. As redes sociais do país estão inundadas de milhares de perfis falsos que propagam «pós-verdades»(*). Todas elas seguem clara linha de incentivo à independência da Catalunha. Está comprovado que as investidas vêm da Rússia e… da Venezuela, veja só.

O fenômeno se assemelha ao que se viu nos EUA durante a campanha para as eleições presidenciais do ano passado. Naquela ocasião, a pirataria só foi descoberta tarde demais, quando Mr. Trump já estava eleito. Escaldados, os peritos que investigam esse tipo de ataque já acenderam o sinal vermelho no caso da Catalunha.

Ciberpirata 3

O assunto é delicado. Apesar da certeza sobre a origem dos ataques, o governo espanhol optou por manter certa discrição, pelo menos por enquanto. À boca pequena, corre a informação de que Madrid tem provas que incriminam a Rússia. Mas certas verdades são incômodas. Se acusados, os russos vão imediatamente negar. Será palavra contra palavra. Ao final, um incidente diplomático estará criado sem que a piratagem cesse. Não vale a pena.

Mas que interesse tem a Rússia numa hipotética independência catalã? ‒ deve estar-se perguntando o distinto leitor. À primeira vista, nenhum. Muito pelo contrário. Abrigando em seu vasto território dezenas de povos com línguas e religiões diferentes, a Federação Russa não deveria ver com bons olhos uma onda secessionista que partisse da Catalunha, varresse o continente e despertasse sentimentos nacionalistas no interior de seu imenso território.

Ciberpirata 2

No entanto, um exame mais atento desvela a razão da intervenção. À Rússia de Putin, não interessa uma Europa forte e unida. O enfraquecimento da União Europeia ‒ seu esfacelamento, se possível ‒ está entre as prioridades de Moscou. Farão tudo o que puderem para semear a discórdia no continente. O sonho do Estado russo é ver a Europa de novo subdividida em dezenas de pequenos países fracos e desunidos. É uma evidência: uma Europa despedaçada será um concorrente a menos.

E a Venezuela, o que faz nesse imbróglio? Abandonados por todos, nossos hermanos do norte precisam desesperadamente de aliados. Chineses, que são comerciantes na alma, não costumam se meter em política alheia. A Europa tem sérias restrições em apoiar a ditadura de Maduro. Resta a Rússia. Eis por que Caracas dá uma forcinha a Moscou na romântica tentativa de «quebrar» a Europa com a força de redes sociais.

Por mais exímios que sejam seus ciberpiratas, os russos não têm chance de conseguir, a médio prazo, o que desejam. A grande firmeza mostrada por Madrid deixa claro aos independentistas catalães que não conseguirão separar-se. E, ainda que isso desagrade a Moscou, a Europa segue firme e unida no apoio à Espanha.

(*) Faz mês e meio, escrevi sobre «pós-verdades». Clique aqui quem quiser recordar.

Pós-verdade

José Horta Manzano

Palavras são criadas a toda hora. Ao redor do planeta, torrentes de termos novos jorram continuamente. Como é natural, nem todos os idiomas têm a mesma importância. Cada época tem suas línguas de maior prestígio. As novidades baseadas na língua dominante têm mais chance de dar a volta ao globo.

Na Idade Média, os europeus iam buscar no latim, língua de cultura, os ingredientes para compor palavras. Do século XV até uns cem anos atrás, o francês passou a ocupar o lugar do latim declinante. Todas as novidades vinham de Paris inclusive palavras e expressões. Tudo «très chic».

by Kike Ibáñez (1980-), desenhista espanhol

Em nossos dias, quem esmaga a concorrência é o inglês. No Brasil, onde somos particularmente permeáveis a neologismos, palavras inglesas chegam a aposentar termos e expressões que, ainda ontem, costumávamos utilizar sem constrangimento. Algum comerciante ousaria botar mercadoria em liquidação? Ou dar desconto? Alguma pizzaria ofereceria serviço de entrega? Algum restaurante fino poria simples manobristas à disposição da clientela? Alguém pensaria em tecer considerações sobre comércio eletrônico? Qual nada! Sale, off, delivery, valet, e-commerce estão na crista da onda.

Os exemplos que acabo de dar são modismos. Hoje estão em todas as bocas, mas ninguém garante que resistam à passagem do tempo. Existe, no entanto, uma outra casta de palavras importadas. Trata-se daquelas que exprimem conceitos novos, objetos e fatos para os quais não tínhamos nome. Esses aportes, sim, são bem-vindos. Vêm para ficar. Hão de permanecer enquanto o objeto existir.

Nos últimos anos, as redes sociais se espalharam com rapidez impressionante. Como toda moeda, têm duas faces. O lado bom é permitir que notícias se alastrem com a rapidez de rastilho aceso. O lado escuro é que as notícias alastradas nem sempre correspondem à verdade. Mas há gente ‒ muita gente ‒ que engole, sem filtro, tudo o que ouve ou lê. O fenômeno é antigo. A gente costumava chamar de boataria, diz-que-diz, fofoca. O incremento exponencial que se verifica atualmente estava a exigir nome específico.

Atribuem a um blogueiro a criação da expressão «post-truth». A menção mais antiga aparece sete anos atrás. Em inglês, o termo se generalizou rapidamente. Talvez por dificuldade de pronúncia, cada língua tratou de adaptar o termo à sua fonética. Ou mesmo de traduzi-lo. Assim, temos «post-vérité» em francês, «post-verità» em italiano, «posverdad» em espanhol. Aliás, o diretor da RAE ‒ Real Academia Española, que corresponde a nossa Academia Brasileira de Letras, já anunciou que a palavra estará incluída na próxima edição do dicionário RAE, a bíblia da língua de Cervantes.

by Sébastien Thibault (1980-), desenhista canadense

Já nossa bíblia, o Volp (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa), cuidado pela ABL, ainda não registra o termo em sua versão online. Que não seja por isso. O Dicionário Priberam já ousou. Incluiu o verbete pós-verdade, que vem assim descrito: «Informação que se divulga ou aceita como fato verdadeiro devido à forma como é apresentada e repetida, mas que não tem fundamento real.»

Mr. Trump tem feito amplo uso do estratagema. Em nossas plagas, tivemos um presidente da República que pautava seu discurso por um conceito aparentado: o da quase-lógica. De tão vago e ambíguo, alguns até hoje acreditam sinceramente nas palavras do demiurgo. A expressão não entrou nos dicionários. Dificilmente entrará.

Serendipidade – 2

José Horta Manzano

Você sabia?

Velcro 1

Outro dia lhes falei sobre a estranha palavra serendipidade que, embora seja abonada por bons dicionários, ainda não foi reconhecida pelo Vocabulário Oficial da Academia. Uma distração, sem dúvida.

ArquimedesO termo serendipidade exprime a faculdade ou a sorte de inventar algo ou fazer alguma descoberta por mero acidente ou por dedução impelida pelo acaso. O exemplo clássico é a história de Arquimedes – aquele grego antigo que, ao ver flutuar um sabonete na banheira, descobriu um princípio da física. É verdade que a história não registrou a marca do sabonete, mas isso não vem ao caso.

Uma notável invenção suíça seguiu o caminho da serendipidade. Trata-se de um objeto comum, que utilizamos com frequência, sem imaginar como era o mundo antes que ele existisse. Falo do velcro, aquelas geniais tirinhas que grudam e desgrudam sem precisar colar nem costurar. Um achado!

Velcro 2Pois saibam meus distintos leitores que o velcro foi criado pelo engenheiro suíço George de Mestral (1907-1990), originário de família abastada. Numa tarde do outono de 1941, Monsieur de Mestral passeava com seu cachorro num bosque. Horas mais tarde, já de volta a casa, notou que tanto suas roupas quanto o pelo do animal estavam apinhados de pequenas bolinhas, daquelas que chamamos carrapicho.

George de Mestral

George de Mestral

Velcro 4

Chateado, pôs mãos à obra para arrancar, uma a uma, aquelas bolinhas espinhudas. Tomou especial cuidado com o cachorro que, sozinho, não conseguiria se livrar daqueles incômodos penduricalhos.

Enquanto executava a tarefa, a ideia do velcro começou a germinar em sua imaginação. Examinou os carrapichos no microscópio, comparou com o tecido de sua roupa, e… acabou entendendo o princípio. A partir daí, Monsieur de Mestral cuidou da parte comercial. Dez anos mais tarde, patenteou seu invento na Suíça e, no ano seguinte, nos demais países.

Castelo da família De Mestral

Castelo da família De Mestral

Velcro é contração de velours + crochet (veludo + crochê). Como gilete e xerox, é marca registrada que se tornou nome comum. Sem sombra de dúvida, é a criação suíça mais difundida no mundo. Há muito mais tirinhas de velcro em circulação do que canivetes. A NASA, por exemplo, não dispensa esse material para fixar objetos no interior de cápsulas espaciais.

Mistérios de gênero

José Horta Manzano

No passado, as atividades femininas restringiam-se a afazeres domésticos e a trabalho na agricultura. Fora desse universo restrito, era o clube do Bolinha: só homens tinham vez.

Soldado 1A Revolução Industrial expandiu o horizonte profissional das mulheres. Guerras que devastaram a população masculina também colaboraram. No século XX, a diversificação das atividades humanas permitiu que moças e senhoras passassem a exercer profissões que antes lhes eram vedadas.

À medida que possibilidades se abriam, nome de profissão foi ganhando equivalente feminino. Assim, apareceram as primeiras médicas, professoras, deputadas, engenheiras, filósofas, escritoras. Até estivadoras, delegadas de polícia e juízas existem. Há diretores e diretoras, vendedores e vendedoras, empregados e empregadas, assalariados e assalariadas.

Curiosamente, uma profissão exercida por número crescente de mulheres ainda não ganhou denominação feminina. Ainda hoje, ouvi pelo rádio o depoimento de uma moça apresentada como soldado da Polícia Militar. «Ela é soldado». Soa estranho, não?

Soldado 2Soldado deriva de soldo, retribuição devida a militares. Em latim, soldus – contração de solidus – designava moeda de ouro ou de prata. Entre as palavras da família, algumas ainda se referem a dinheiro ou a pagamento. Dizemos saldar uma dívida, por exemplo. Os antigos diziam «venda de saldos» – expressão hoje arcaica, substituída que foi por «sale», que é muito mais chique.

Concordo que alguns femininos dão margem a forma estranha. Para evitar hilaridade, é melhor evitar dizer torneira mecânica, por exemplo.

A meu ver, no entanto, não há por que hesitar em dizer soldada. Não me parece ofensivo, nem ambíguo, nem politicamente incorreto. Além do mais, está abrigado sob o manto do vocabulário da Academia Brasileira de Letras. Portanto, é de lei.

Serendipidade

José Horta Manzano

Você sabia?

Horace Walpole

Horace Walpole

Horace Walpole (1717-1797), filho de primeiro-ministro britânico, herdou o título de Conde de Orford. Dedicou-se à política e à literatura. A depender unicamente de seus escritos, o nome do conde dormiria hoje nas prateleiras empoeiradas do esquecimento. Contudo, Walpole garantiu lugar na história por ter forjado um neologismo em uso até nossos dias.

No fim da Idade Média, tradicional conto de fadas persa tinha sido transcrito em italiano e publicado em Veneza em 1557. Como convinha à época, o nome do livro era longo: Peregrinaggio di tre giovani figliuoli del re di Serendippo. Contava a história da peregrinação de três jovens filhos do rei do Ceilão (dito hoje Sri Lanka). O nome da ilha, em persa, é Serendip, donde a tradução italiana Serendippo.

Ceilão - plantação de chá

Ceilão – plantação de chá

A obra foi vertida para o francês e, a partir daí, para o inglês. Walpole travou conhecimento com a versão inglesa da obra. Inspirado pelas aventuras extraordinárias dos três príncipes, o conde teve a boa ideia de cunhar nova palavra para exprimir a faculdade (ou a sorte) de fazer descobertas por acidente ou por argúcia derivada do acaso. A palavra escolhida foi serendipity, em clara alusão ao nome do reino de Ceilão.

A língua inglesa, descomplexada e despreocupada com hipotéticas invasões estrangeiras, acolheu a palavra sem discussão. Nem todas as línguas, no entanto, têm o coração de mãe do inglês. Alhures, novidades nem sempre são bem-vindas.

O italiano adotou serendipità. O francês oficial resiste até hoje, embora um ou outro dicionário registre sérendipité. A Real Academia Española virou as costas e fez ouvidos de mercador persa. Em algum raro vocabulário castelhano, já encontrei a forma serendipia (dí).

Ilha de Ceilão mapa holandês do séc. XVII

Ilha de Ceilão
mapa holandês do séc. XVII

E em nossa língua, com é que ficou? O Volp – Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, respeitado por cultores da língua como se bíblia fosse, ignora a palavra. Levando em conta o fato de ela ter sido criada 250 anos atrás, é permitido imaginar que nunca venha a ser acolhida no seio do venerando manual. Houaiss e outros ignoram o termo. Já o voluminoso (e excelente) Aulete digital o reconhece. Sensato, o luso Priberam vai pelo mesmo caminho.

Ceilão – conceituada variedade de chá

Ceilão – conceituada variedade de chá

Puristas consideram sacrilégio utilizar palavra não sacramentada pelo mui oficial Volp. Data venia, permito-me discordar. O registro no vocabulário da Academia confere, sim, estatuto oficial e valida a existência da palavra. Já o contrário não é necessariamente verdadeiro. A ausência de um termo no elenco não é confirmação de que não exista ou de que seu uso seja condenável.

Ao distinto leitor que se estiver preparando para uma dissertação em concurso oficial, aconselho seguir à risca o vocabulário oficial. Para não perder pontos, mais vale obedecer a quem tem a caneta vermelha nas mãos.

Quanto aos que, como eu, já não têm contas a prestar nesse campo, é permitido lançar mão de neologismos. Principalmente quando resumem, numa só palavra, conceito cuja explicação demandaria duas linhas. Serendipidade, pois.

Interligne 18b

PS: Volto ao assunto em breve.

Confeitura

José Horta Manzano

Confiture 5No Hemisfério Norte, onde vive a maior parte da humanidade, a primavera está chegando timidamente. Folhas brotam, flores se abrem, a paisagem fica cada dia mais colorida. E os frutos começam a dar o ar da graça.

Os primeiros são os morangos, já presentes em quitandas e supermercados desde o mês de março. Depois virão cerejas, melões, pêssegos, abricós, ameixas, peras, maçãs, uvas e, pra fechar o ano, laranjas.

Confiture 2Hoje em dia, nem tem mais graça: o mercadinho da esquina oferece, o ano todo, frutas fora de estação. Em pleno dezembro, há cerejas do Chile. Em maio, uvas da Índia ou da África do Sul. Mangas do Brasil e abacaxis da Costa do Marfim encontram-se o ano todo. Fazem companhia às bananas onipresentes, todas iguaizinhas, da mesma cor, sem pintinhas e… cá entre nós: sem gosto. Pior: com gosto de remédio.

Abrindo parênteses, acho um despropósito comprar frutas fora de época, daquelas que atravessaram meio planeta de avião, gastando querosene e poluindo. Mas há quem não pense assim. Cada cabeça, uma sentença. Fechem-se os parênteses.

Confiture 1Se a tecnologia e a logística atuais põem praticamente todas as frutas à nossa disposição o tempo todo, nem sempre foi assim. Tempo de morango era março-abril, ponto e basta. Fora daí, necas de pitibiriba. E fruta não se pode guardar, que logo apodrece. Como faziam os antigos?

Não sei quem terá tido a ideia de cozinhá-las no açúcar. Foi um achado! Cozidas e guardadas num recipiente bem fechado, podem durar anos. Sem geladeira, sem sal, sem aditivo.

Confiture 6Praticamente todos os europeus mantêm a tradição de conservar frutas em açúcar. Franceses, ingleses e alemães costumam consumir essas doces «memórias de verão» no café da manhã, em pleno inverno. E no resto do ano também, uai. Espanhóis e portugueses também apreciam, mas com menor intensidade.

Confiture 4No Brasil, não são componente indispensável do café da manhã. Café, leite, pão, manteiga, sim. Geleia – que é como chamamos – é optativo. Há mesas em que está sempre presente. E há gente que jamais comprou um pote.

Os franceses dizem «confiture». Espanhóis preferem «mermelada». Ingleses reservam «marmalade» para cítricos; para outras frutas, usam «jam». Já os italianos dizem «marmellata» em todos os casos. Alemães hesitam entre «Konfitüre» e «Marmelade».

O vocabulário da Academia Brasileira de Letras registra a forma peculiar confeitura. Na vida real, nunca ouvi ninguém utilizar esse termo. O nome usual é geleia ou, mais raramente, doce. Confesso desconhecer o uso lusitano. Se algum distinto leitor me puder iluminar, fico sensibilizado.

Confiture 3Toda mulher europeia – e muito homem também – costuma fazer geleia em casa, conforme vão aparecendo as frutas da estação. Faz-se o doce, despeja-se num pote de vidro, fecha-se hermeticamente, põe-se uma etiqueta e pronto: vai para o fundo do armário. Em geral, a quantidade de potes é superior à que se consumirá até o ano seguinte. Que fazer pra não acumular doce antigo?

Pois nesta época em que frutas frescas reaparecem, é comum as pessoas serem acometidas de súbita generosidade. Por um sim, por um não, todos se dão de presente potes de geleia do ano anterior. É pra esvaziar prateleira e abrir espaço pra novas conservas. Semana passada, recebi presente assim de duas pessoas.

Interligne 18hPS:
Nossa expressão «ser apanhado com a boca na botija», usada quando alguém é surpreendido ao agir de maneira indevida, tem equivalente em francês. É «se faire prendre les doigts dans le pot de confiture» – ser apanhado com os dedos no vidro de geleia. Pra você ver o valor que se dá a esse tesouro armazenado no fundo do guarda-comida.

Paralimpismo 2


Interligne vertical 12Algum tempo atrás, insurgi-me contra o neologismo «paralímpico», termo que entra em colisão frontal com o espírito de nossa língua. Passou-se quase um ano, e a situação não se moveu nem um milímetro. Com a honrosa exceção da Folha de São Paulo
― que se mantém, firme e forte, contra a corrente ― os outros meios impressos se vergaram à caprichosa ignorância dos que deram nome ao comitê nacional que cuida das competições paraolímpicas. Como maria vai com as outras, o Estadão e o Correio Braziliense seguem a corrente. É pena. Achei oportuno reproduzir aqui o mesmo artigo que saiu no Correio Braziliense em 1° de setembro 2012.


Paralimpismo

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 1° setembro 2012

Enganam-se o gentil leitor e a distinta leitora se imaginarem que estou aqui, a mando de sabe-se lá que multinacional, cumprindo a nobre missão de apresentar-lhes novo produto de limpeza. O que parece nem sempre é, como sabem todos os que, um dia, já passaram pela experiência de levar gato por lebre. Comecemos pelo começo, que dá mais certo.

Sentindo os ventos fétidos que prenunciavam as atrocidades da Segunda Guerra Mundial, um certo Dr. Ludwig Guttman, cirurgião do Hospital Judeu de Breslau (hoje Wroclaw), deixou a Alemanha em 1939 e se refugiou na Inglaterra, onde continuou a exercer seu ofício.

Os Jogos Olímpicos previstos para 1940 e para 1944 não se realizaram, por razão de conflito mundial. Mas Londres fez questão de sediar os de 1948. Quis mostrar ao mundo que, apesar das perdas, dos bombardeios, das privações, o velho leão ainda estava de pé, alerta, pronto para mostrar-se sob seu perfil mais favorável.

Os combates haviam deixado um rastro de mutilados e estropiados. Dr. Guttman teve a brilhante ideia de valer-se dos holofotes dos Jogos Olímpicos para promover uma manifestação paralela, exclusivamente dedicada a atletas cadeirantes. Diga-se logo que a ideia não despertou no público nenhum entusiasmo delirante. A vista daqueles amputados reavivava feridas dolorosas e ainda não cicatrizadas. Aquilo trazia lembrança do que todos queriam justamente esquecer. Apesar de o bom doutor ter tentado oficializar sua iniciativa, o sucesso foi tênue. Ainda não era a hora.

A ideia cochilou. Foi preciso que uma geração inteira se passasse para que a humanidade estivesse pronta a aceitar a novidade. Veio aos poucos. Já em 1960, nos Jogos de Roma, houve um embrião de competições para atletas diminuídos por defeitos físicos. Pouco a pouco, a nova prática foi ganhando os espíritos, e diretórios nacionais foram-se formando. Logo veio a necessidade de criar um comitê internacional para coordenar os diretórios nacionais da nova modalidade esportiva. Em 1989, fundou-se em Düsseldorf o organismo tutelar. Faltava dar-lhe o nome.

Não houve grandes discussões. Tomou-se o prefixo grego παρα (para), que evoca a semelhança, a proximidade, e juntou-se-lhe o nome tradicional das competições. Nasceram assim os Jogos Paraolímpicos. As duas raízes gregas compuseram um adjetivo novo, claro, explícito. Ingleses, alemães, franceses, castelhanos decidiram amputar a primeira letra do nome principal. Para nós, soa estranho. Resultaram formas como Paralympic Games, Paralympische Spiele, Jeux Paralympiques, Juegos Paralímpicos. Parece produto de limpeza.

Pelo menos desta vez — é tão raro, daí nosso orgulho — foi-nos permitido desdenhar com certa superioridade da falta de cultura dos falantes dessas línguas. Nós, com nossos Jogos Paraolímpicos, havíamos tido a sabedoria de manter o aspecto, o som e a ideia, tudo sem deturpar nenhuma palavra! Foi envaidecedor, digo sinceramente. No tempo em que ainda era permitido se exprimir assim, cheguei a pensar: «eles, que são brancos, que se entendam».

Mas não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe. Ao contrário do que cantava Eduardo das Neves na marchinha que compôs em 1902 em homenagem a Santos Dumont — «a Europa curvou-se ante o Brasil» —, desta vez fomos nós que sucumbimos. O Brasil acabou dobrando-se diante da Europa.

Não sei quem teve a fabulosa ideia, nem quando esse espantoso estalo terá ocorrido. O fato é que a palavra tradicional foi atirada à lata de lixo da história. Atropelamos o espírito de nossa língua. Foram ignorados os usos e costumes de nossa norma culta que, tradicionalmente, impelem o prefixo a adaptar-se ao nome. Mil anos de formação de nosso falar foram alegremente desconsiderados. Se era para encurtar, que se oficializasse ‘parolímpicos’. Seria uma forma intermerdiária, nem lá nem cá, que talvez satisfizesse a gregos e a troianos.

Mas, não. O braço brasileiro da organização traz o exótico (e mui oficial) nome de… Comitê Paralímpico(sic) Brasileiro. Com site e tutti quanti. O nome de origem foi transfigurado através de uma verdadeira política de faroeste, daquelas que primeiro executam o suspeito, para impossibilitar o devido julgamento. Não se julgam cadáveres.

A adulteração foi heresia perpetrada ao arrepio da forma sacramentada pelo Vocabulário Ortográfico da ABL, guardião da língua! Que aqueles que patrocinaram esse ‘malfeito’ levantem os braços ao céu e agradeçam por não se queimarem mais hereges em fogueiras.

Se alguém pensou em colonização cultural, não há de estar longe da verdade.