Barbaridade no aeroporto

José Horta Manzano

Desde que Putin lançou sua guerra de conquista sobre o território ucraniano, cerca de 5 milhões de habitantes abandonaram o país e fugiram direção à Europa. Nenhum país estava preparado para um afluxo tão caudaloso, mas em pouco tempo, organizou-se uma corrente de solidariedade.

Governos, ongs e simples cidadãos arregaçaram as mangas e cada um deu contribuição à altura de suas possibilidades. A Polônia, com seus parcos 38 milhões de habitantes, já deu abrigo a um milhão e trezentos mil refugiados. A Alemanha já acolheu um milhão. A pequenina Moldávia, país mais pobre da Europa, recebeu quase cem mil ucranianos.

Uma reportagem do Estadão informa que, neste momento, um grupo de 150 afegãos vive acampado num saguão do Aeroporto de Guarulhos (SP). Adultos, anciãos e famílias com crianças pequenas integram o conjunto. Sobrevivem com a caridade de funcionários e frequentadores do aeroporto. Há quem traga um cobertor, comida, um colchão. Além de famintos, os estrangeiros estão precisando de um banho e de roupa lavada. Faltam remédios para os mais idosos.

Um detalhe muito importante: esses afegãos não são clandestinos como aqueles que atravessam ilegalmente a fronteira do México para os EUA. Os migrantes de Guarulhos são titulares de um visto humanitário concedido por uma representação diplomática do Brasil no exterior.

O tratamento que estão recebendo é uma barbaridade. É desesperante constatar a desarticulação entre as instituições brasileiras. Conceder visto humanitário é uma coisa, mas a sequência da acolhida tem de estar concatenada: recepção dos imigrantes, fornecimento de ajuda de custo, um abrigo, alimentação, cuidados de saúde, escola para as crianças – enfim, o necessário para amparar quem tudo perdeu e aqui chegou só com a roupa do corpo.

Onde está o senso de acolhida do povo brasileiro? Nunca passou de ilusão ou foram o capitão e seus neandertais que instalaram essa revoltante aporofobia?(*)

(*) O termo aporofobia define o ódio e o repúdio à pobreza e aos pobres.

Ministro xiita

José Horta Manzano

Nosso novo chanceler, doutor Ernesto Araújo, tem demonstrado ser capaz de produzir ideias xiitas. (Que fique claro: refiro-me ao grau de radicalismo, não à religião do ministro.) A retirada do Brasil do Pacto de Marrakech ‒ firmado há apenas um mês ‒ periga nos custar caro.

Desde criança, a gente aprende que, quando nossa opinião se opõe à de praticamente todos os demais, é bem provável que estejamos errados nós, não os outros. Nessas horas, convém parar, ponderar e pensar muito antes de tomar decisão.

A ONU é composta de 195 membros. Deles, 160 assinaram o pacto que, a par de não ser vinculante, fixa princípios genéricos referentes a migrações. Foram 82% dos países a aprovarem, uma pontuação de eleição soviética! Não é por nada não, mas vale perguntar: quem é que o Brasil pensa que é? Mais inteligente do que os outros?

by Michel Cendra-Terrassa, artista francês

O Pacto de Marrakech contém apenas declarações de princípio, não obrigatórias caso o signatário decida não obedecer. Renegar a própria assinatura, além de ser atitude desleal, nos põe na berlinda da malquerença mundial. Ser visto como país presunçoso é tudo o que não nos interessa.

Doutor Araújo dá mostra de estar defasado com a realidade brasileira deste fim de década. Faz mais de 30 anos que o Brasil deixou de ser país receptor de imigrantes para se tornar emissor. Os três milhões de brasileiros que vivem no exterior são duas vezes mais numerosos que os estrangeiros estabelecidos no Brasil.

Em vez de considerar que imaginárias hordas de imigrantes estejam prestes a forçar a porteira do país, o doutor deveria ter em conta que os milhões de brasileiros expatriados merecem ser tratados com maior precaução. São eles a linha de frente, o para-choque de eventuais sentimentos anti-brasileiros que possam vir a surgir no exterior. Atitudes arrogantes geram antipatia. Melhor faria doutor Araújo se se abstivesse de provocações inúteis.

Brexit ‒ 4

José Horta Manzano

Com o voto a favor do Brexit, os britânicos armaram uma confusão e se enfiaram numa encurralada da qual terão dificuldade em sair. A coisa é muitíssimo mais complicada do que parece. «Sair da UE» é frase simples de pronunciar mas difícil de pôr em prática.

Afinal, o casamento do Reino Unido com a União Europeia já dura há quase 45 anos. Para começar, quando aderiram à comunidade, os britânicos tiveram de reformar muitas leis para pôr-se em conformidade com as regras vigentes à época. Por cima dessa adaptação inicial, vieram acumular-se todos esses anos de vida em comum, com regronas, regrinhas, regulamentos, práticas, tratados e toda a parafernália. Terão de ser avaliados e descosturados um a um. Não é coisa pouca.

Em matéria de asneira, o voto britânico em favor da separação só se compara à eleição do atual presidente americano. Ambas as decisões mandam para o espaço todo um edifício construído e consolidado por décadas, tijolo por tijolo num desenho mágico. A tolice do eleitor americano ainda pode ser revertida e consertada. De fato, a eleição do próximo presidente ‒ ou, eventualmente, a destituição do atual ‒ há de repor as coisas no lugar. Já o caso britânico é mais embaraçado. É ida sem volta.

refugiados-1Ao se distanciar dos vizinhos, a Grã-Bretanha tem muito mais a perder do que a ganhar. Theresa May há de estar horrorizada com a ascensão de Mr. Trump. Tanto que, dos chefes de governo do mundo inteiro, foi a primeira a precipitar-se a Washington. Sem o aconchego da Europa e com um homem imprevisível instalado por quatro anos na Casa Branca, o futuro dos súditos de Elisabeth II se anuncia inseguro.

Muitas razões levaram os britânicos a votar pela saída da UE. A primeira delas, arma utilizada por dez em cada dez políticos populistas, foi a rejeição aos «estrangeiros que vêm roubar nossos empregos». Aliás, para confortar o naco da população que se deixou embalar por essa quimera, Theresa May tem declarado que o Brexit vai servir para «controlar a imigração».

Para reforçar, Mrs. May anunciou dois dias atrás que seu país está disposto a pagar para manter refugiados longe do Reino Unido. Na cúpula realizada em Malta sexta-feira passada, a Grã-Bretanha disse estar disposta a contribuir com 30 milhões de libras para barrar a rota de forasteiros indesejados. A ideia é desviá-los para bem longe. A América Latina ‒ e o Brasil em especial ‒ fazem parte dos destinos alternativos.

A primeira-ministra acredita que humanos possam ser tratados como objetos. A exemplo do que certos países ricos costumam fazer quando «exportam» contêineres de lixo hospitalar contaminado em direção a países mais pobres, a intenção é desviar o caminho desses infelizes e obrigá-los a ir para outro lugar.

refugiados-2Além da questão ética ‒ afinal, não se trata gente como se lixo fosse ‒, sobra o velho problema: esqueceram-se de combinar com os russos. O sonho da maioria dos refugiados não é unicamente chegar à Europa. O objetivo maior é chegar à Grã-Bretanha sim, senhor. A não ser que se utilize força bruta, não vai ser fácil redirecionar esse fluxo de populações para a América Latina.

Mal comparando, é como se o universitário brasileiro abandonasse o sonho de fazer especialização num prestigioso estabelecimento americano ou europeu e se conformasse com um estágio na Mongólia, no Congo ou na Bolívia.

Brasileiros poliglotas

José Horta Manzano

Nos anos 1930, a Biblioteca Pública Municipal da cidade de São Paulo funcionava num casarão da rua Sete de Abril, no centro da cidade. Àquela altura, a sede era suficientemente grande para conter o acervo de 110 mil livros, mapas, manuscritos e outros volumes. Os mais de 3 milhões de objetos abrigados hoje não caberiam no velho casarão.

Oitenta anos atrás, a língua inglesa ainda estava longe da posição preeminente que ocupa hoje. Em 1935, na primeira metade do mês de abril, 6.575 obras foram consultadas. A relação de livros, revistas, jornais e mapas, ordenada por língua, é autoexplicativa.

Correio Paulistano, 18 abril 1935

Correio Paulistano, 18 abril 1935

De cada três publicações consultadas, duas eram em português. Não espanta ninguém que nossa língua fosse mais lida que as demais. Assim mesmo, é interessante notar que ⅓ dos visitantes procurava obras escritas em língua estrangeira. É proporção elevada.

Entre as línguas estrangeiras, o francês era, de longe, o mais popular. Mais de metade das obras forasteiras consultadas estava escrita nessa língua. Bem atrás, vinham o espanhol e o italiano, procurados respectivamente por 20% e por 12% dos consulentes. O fato sugere duas explicações que se superpõem.

Por um lado, ainda era importante o número de imigrantes, que buscavam ler em sua língua materna. Por outro, espanhol e italiano são línguas bastante próximas da nossa. Com um pouco de esforço e prática, o estudante aplicado consegue encontrar seu caminho em publicações científicas escritas nessas línguas.

Indio 3Livros em inglês eram bem menos solicitados naquele tempo. Na ordem de procura, só apareciam em quinto lugar. Menos de 9% das publicações estrangeiras consultadas eram escritas nessa língua. De lá pra cá, é impressionante o avanço da popularidade do inglês entre nós. A propagação corresponde à difusão mundial dessa língua, ocorrida principalmente depois da Segunda Guerra.

Como última curiosidade, vale notar que um punhado de leitores daquele longínquo 1935 se debruçou sobre obras em grego, latim e até tupi-guarani. Gostaria muito de comparar com as estatísticas atuais mas não disponho de informações. Se encontrar um dia, volto ao assunto. Mas é bom lembrar que, nestes tempos de internet, ficou mais complicado.

Efeito Orloff

José Horta Manzano

Até algumas décadas atrás, os brasileiros se sentiam um tanto complexados com relação aos argentinos. Bem antes de nós, nossos vizinhos deram mostra de se aproximar da civilização.

Não conheceram a escravidão. Alcançaram a independência antes de nós. Receberam importante fluxo migratório antes do Brasil. Sabe-se que o PIB per capita argentino era o quarto do planeta cem anos atrás.

Bandeira Brasil ArgentinaEm 1913, Buenos Aires inaugurou sua primeira linha de metrô – apenas doze anos depois de Paris! O de São Paulo só viria 60 anos mais tarde. A mesma defasagem ocorreu na imprensa especializada. A primeira revista dedicada ao público feminino apareceu na Argentina em 1922. As brasileiras tiveram de esperar quarenta anos para folhear o primeiro similar nacional.

Parafraseando o bordão criado pelo marqueteiro de uma indústria de bebidas, costuma-se dizer que o Brasil é a Argentina amanhã. Em claro: mudanças acontecem primeiro na Argentina, para, em seguida, contaminar o Brasil. Não há prova científica disso, mas a afirmação está longe de ser absurda.

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

Considerando as declarações do candidato recém-eleito para a presidência do país vizinho, é bom torcer para o efeito Orloff voltar a funcionar desta vez. O homem tem características importantes. Já atinge o trono presidencial na qualidade de multimilionário. Ele não precisa do cargo para enriquecer: já tem dinheiro saindo pelo ladrão. Lembremos que nenhum de nossos presidentes era imensamente rico ao chegar à presidência. Eu disse ao chegar.

Mais que isso, o mandatário dá mostras de ter mente arejada, sem ranço de defuntas ideologias nem sombra de autoritarismo. Entendeu que país rico e desenvolvido dá maiores chances aos cidadãos. Numa demonstração da importância que dedica ao relacionamento entre nossos países, comprometeu-se a brindar o Brasil com sua primeira viagem oficial depois de eleito.

Chamada jornal La Nación, 23 nov° 2015

Chamada jornal La Nación, 23 nov° 2015

Posicionou-se firmemente contra as arbitrariedades cometidas pelos mandachuvas da maltratada Venezuela. Recebeu a mulher de señor Leopoldo López, opositor venezuelano, condenado a mais de 12 anos de cadeia em processo de cartas marcadas.

Declarou que pedirá a exclusão da Venezuela do Mercosul em virtude das agressões à democracia cometidas pelo governo bolivariano. Tem intenção de acelerar o entrosamento do bloco e de pressionar para que cheguemos a acordos comerciais com a Europa, com os EUA e com os países andinos. Um programa de dar vertigem!

Mercosul 4Vivemos um momento peculiar, com uma Argentina de cabeça erguida e aberta ao mundo, uma Venezuela em adiantado processo de decomposição, uma República Cubana em via de reintegrar a confraria dos bons amigos dos EUA, uma China em franca desaceleração. Temos excelentes chances de sacudir a poeira, tirar os pés do atraso e seguir o caminho que o mandatário do país hermano nos convida a trilhar.

Durmam tranquilos, cidadãos. O efeito Orloff logo vai-se fazer sentir.

Jó e Abraão

José Horta Manzano

Fica cada dia mais palpável que os donos do poder, aterrorizados com o embalo da diligência, andam perdendo o discernimento. Más línguas dizem que discernimento é justamente o que nunca tiveram, mas é melhor não começar a discutir isso, que é debate para dias e semanas.

Marcha a ré 1Por que será que se nota tanto nervosismo pelas bandas do Planalto? É sabido que o poder, mormente na versão longa duração, desgasta. Faz já 12 anos que nos martelam o mesmo disco, as mesmas fórmulas, as mesmas promessas, as mesmas esfarrapadas explicações. E que continuamos obrigados a engolir frustrações, fracassos e uma interminável lista de malfeitos. Escândalos espocam feito bombinha de são-joão. O sentimento de insegurança explode.

Vai chegando uma hora em que palavras, anúncios e promessas deixam de fazer efeito. A lavada que os que nos governam estão levando nestas eleições é prova de que há muita frustração acumulada.

Tenho um amigo que, ao receber convite para viajar durante o mês de outubro, retrucou, firme: «Agradeço, mas não vou de jeito nenhum. Ajudei a botar essa gente lá, agora tenho de ajudar a mandá-los embora. Vou votar.». Juro que não é invenção minha.

Dona Dilma – ou seus aspones, é difícil saber – andou escrevendo no tuíter que os adversários representam o retrocesso. Expressão estúpida, que, como bumerangue, atinge a presidente em plena testa.

Retrocesso

A esmagadora maioria dos eleitores da presidente ignora o significado dessa palavra. Portanto, para essa fatia do eleitorado, movida por outros interesses, o falar chique dos gênios da comunicação presidencial é inócuo.

Já os que conhecem essa palavra, mais esclarecidos, sabem que, ao contrário do que afirma, dona Dilma – essa sim! – é a personificação do retrocesso. Conseguiu completar a pauta da regressão que já havia sido traçada por seu antecessor. O retrocesso destes últimos anos assume características múltiplas.

Os brasileiros mais pobres voltaram aos tempos do coronelismo, que imaginávamos sepultos. O paternalismo – e sua consequência mais daninha, a compra de votos – ressuscitou e se revigorou.

A pauta de exportações do Brasil regrediu ao que costumava ser nos tempos imperiais: o País se afirma, cada dia mais, exportador de matéria-prima. A desindustrialização se acentua.

Marcha a ré 2De receptor de imigrantes, o Brasil passou a emissor. Temos hoje menos de um milhão de estrangeiros no País, enquanto três milhões de brasileiros batalham no exterior.

Até no futebol, regredimos. Concedo que a presidente não tem a culpa (integral). Mas, para azar dela, vaias e derrotas aconteceram sob sua gestão. E na sua presença.

Portanto, acusar o adversário de trazer consigo o retrocesso é falso e, no mínimo, desastrado.

Entre os apoiadores da presidente, o argumento não é compreendido. Passa batido.

Entre os que rejeitam a candidata, a alegação só faz reforçar o sentimento de que a campanha se baseia em engodo.

Finalmente, entre aqueles que, embora já não vivam nas trevas, ainda não escolheram candidato, a falácia periga precipitar a decisão de votar no adversário. Afinal, todos se dão conta de que o País regrediu, e ninguém gosta de ser feito de bobo.

Nem paciência de Jó aguenta mais tanta incoerência. Nem fé de Abraão acredita mais em tanta mentira.

A atração do lucro

José Horta Manzano

Semana passada, depois de hesitar por um tempo, a Fifa formalizou sua decisão: no futebol feminino, ficam as jogadoras autorizadas a atuar com a cabeça envolta pelo véu islâmico. A entidade máxima do ludopédio acredita que, com isso, a disseminação do esporte se fará mais facilmente nos países muçulmanos. É sempre um dinheiro a mais que vai guarnecer os cofres da organização, isso sim.

À primeira vista, é decisão sem grande alcance. Se futebol feminino já é esporte pouco difundido, o interesse do apreciador brasileiro médio por um jogo entre mulheres cobertas por véu é praticamente nulo. Assim é na maior parte do globo. Seria como se anunciassem que os jogadores de críquete estão proibidos de usar roupa verde, para evitar que se confundam com o gramado. Que coisa mais sem importância, não?

Futebol com véu islâmico

Futebol com véu islâmico

Pois o mundo é vasto. O que passa batido por aqui pode engasgar ali. Em alguns países europeus ― mas especialmente na França ― a integração de imigrantes de origem muçulmana tem sido problemática. Uma sequência de erros históricos cometidos nos últimos 60 anos levou a uma situação bastante tensa.

Na França, o uso do véu é regulamentado. A burca ― o véu integral ― é banida do espaço público. Quanto aos outros tipos de mantilha, não se passa uma semana sem que estoure algum incidente. Ora é uma funcionária pública que se obstina a cobrir a cabeça onde não é permitido, ora é uma jovem muçulmana agredida por ter andado descoberta nas cercanias de um bairro majoritariamente muçulmano.

A situação é confusa. Franceses de origem europeia se sentem invadidos. Franceses de origem árabe se sentem discriminados. Embora a convivência transcorra sem verdadeiros problemas, paira sempre no ar um perfume de desconfiança ― pra não dizer de ressentimento ― entre duas comunidades que têm dificuldade em se amalgamar. Políticos oportunistas fazem questão de soprar as brasas a fim de angariar votos entre os mais descontentes.

Pois bem, a decisão tomada pela Fifa causou um pequeno terremoto de Paris a Marselha, passando por Lyon e Nice. A lei francesa regulamenta o porte de véu por mulheres no espaço público.

Futebol com véu islâmico

Futebol com véu islâmico

A França é diferente do Brasil. Não passaria pela cabeça de um parlamentar francês alterar a legislação nacional para satisfazer a entidade máxima do futebol, como fizeram, sem hesitar, os eleitos brasileiros.

Gente do ramo foi entrevistada estes dias por jornais, rádios e emissoras de televisão. Todos se mostraram fechados a toda ingerência externa em assuntos internos do país. No estrangeiro, que cada um faça como quiser. No território francês, mulher que quiser jogar futebol terá de fazê-lo cabeça descoberta.

C’est comme ça ― assim é.

Senzalas francesas

José Horta Manzano

Quando, em 1830, os franceses se apossaram do território norte-africano que hoje se chama Argélia, estavam selando o destino da França. Ad vitam æternam.

Quando, a partir do século XVI, os brasileiros(*) e outros plantadores de cana decidiram ir buscar mão de obra gratuita na África, estavam selando o destino do Brasil. Ad vitam æternam.Interligne 3d

A independência da Argélia, reconhecida em 1962, provocou uma descolonização a toque de caixa. Um milhão de franceses oriundos da metrópole tiveram de ser repatriados em regime de urgência, deixando para trás tudo o que possuíam.Torre Eiffel

Essa chegada súbita e maciça dos retornados não teve grande impacto na metrópole. Os anos 60, 70 e 80 foram, na Europa ocidental, décadas de prosperidade. Fechavam-se as últimas cicatrizes da guerra e construía-se e reconstruía-se em ritmo acelerado. Centrais nucleares, aviões supersônicos, construção civil, estradas ― tudo isso exigia mão de obra.

Grandes contingentes de norte-africanos, especialmente argelinos, foram trazidos. Faziam o trabalho mais humilde, justamente aquele que os franceses não queriam mais fazer.

Embora fossem remunerados ― uma situação bem diferente da dos africanos levados à força para o Brasil ―, foram propositadamente apartados do resto da população. Grandes conjuntos de imóveis especialmente destinados aos imigrantes argelinos, tunisinos e marroquinos foram construídos na periferia das cidades.

Cada conjunto dispunha de comércio de base, como as superquadras da Brasília dos anos 60. A intenção era conter os novos imigrantes dentro do espaço que lhes era destinado, concentrá-los, coibir sua interpenetração com a boa sociedade. Os conjuntos habitacionais exerciam ― exercem até hoje ― o papel da senzala conhecida dos brasileiros. Todos juntos, sim, mas… vocês lá e nós cá.Interligne 3d

A vida dá voltas. O boom dos anos dourados arrefeceu. Os descendentes de imigrantes progrediram. Se alguns, é verdade, descambaram para a criminalidade, a droga e outros tráficos, muitos seguiram trilha melhor. Estudaram, se esforçaram, não se conformaram em continuar no baixo patamar social em que haviam nascido.

Abandonados à própria sorte, os habitantes dessas cités não têm a vida fácil. Estigmatizados pela cor de sua pele, pelo aspecto físico ou pelo sobrenome, às vezes até pelo prenome que denota origem norte-africana, são usados, especialmente por partidos de extrema direita, como bodes expiatórios. Todos os males nacionais lhes são atribuídos.

Costuma-se dizer que, entre dois currículos de categoria semelhante, um dos quais tenha sido mandado pelo candidato Mohamed Sahraoui enquanto o outro esteja louvando as qualidades de Jean Martin, o selecionador tenderá a preferir Jean. Talvez nem mesmo chegue a propor entrevista a Mohamed.

Para remediar esse problema, tem-se falado com muita insistência em instituir currículos anônimos. Sem se deixar influenciar por preconceitos de origem étnica, o selecionador julgaria os méritos e as qualidades de seus candidatos e chamaria para entrevista os que lhe parecessem convir. Se o sistema ainda não foi adotado, é por dificuldades práticas. Mais dia, menos dia, será instituído.Interligne 3d

Um editorial do Estadão de domingo 5 de maio nos traz uma boa análise de uma inacreditável situação. O perfil que cada pesquisador mantém no incontornável Currículo Lattes, verdadeira instituição conhecida por todos os cientistas brasileiros e respeitada por todos eles, deverá obrigatoriamente trazer a raça ou a cor de pele de cada acadêmico(!).Moulin rouge

Se não tivesse saído no Estadão, seria de duvidar da veracidade da história. Com que então, os que vêm tomando essas decisões estes últimos tempos acreditam mesmo que a melhor maneira de atenuar preconceito racial é oficializar a compartimentação dos cidadãos em etnias distintas e conferir a cada uma direitos diferentes das demais? Combate-se uma discriminação lançando mão de outra? Para compensar os maus tratos de que foram vítima os tataravós de certos cidadãos, discriminam-se os tataranetos dos algozes de séculos atrás? Tudo isso atropela o bom-senso.

Mas o mundo gira. Por mais que isso atrapalhe os planos dos racistas brasileiros ― que preferem pudicamente ser chamados de racialistas ― a miscigenação da população continuará. Dentro de muito pouco tempo, não brancos (pretos e pardos) serão maioria, se é que isso já não aconteceu. E aí, como ficamos? Estabeleceremos quotas para a minoria eurodescendente?

Ao invés de olhar para o próprio umbigo e dar tiros em seu próprio pé, esses novos racistas deveriam estudar soluções encontradas por outros países que enfrentam o mesmo problema. Não basta ir a Paris só para subir à Tour Eiffel e assistir a um espetáculo no Moulin Rouge. Há que aproveitar para aprender com a experiência dos outros.

Um pouco de humildade não faz mal a ninguém.

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(*) O termo brasileiros é utilizado aqui na sua acepção original de comerciantes de pau-brasil.

Rapaziada do Brás

Você sabia?

José Horta Manzano

Corria o ano de 1917 quando Alberto Marino (1902-1967) compôs uma valsa. Fosse hoje, é possível que tivesse inventado um rap, mas o gosto musical da época era outro. O autor tinha apenas 15 anos de idade (quinze!). Sua criação era despretensiosa, nem letra tinha. Veio-lhe assim como brotam os primeiros amores adolescentes.

Como bom descendente de italianos, Alberto tinha nascido e crescido no paulistano bairro do Brás, reduto de imigrantes peninsulares. Naqueles tempos, metade da população da cidade era estrangeira e, dessa metade, um vivente em cada dois era italiano. A composição recebeu o nome de Rapaziada do Brás, ou do «Braz», como se usava então.

Não se pode dizer que tenha estourado nas paradas de sucesso. (Para quem não conhece a velha expressão, traduzo para o moderno vernáculo: hit parade.) A primeira gravação, pelas mãos do próprio autor, não se faria senão uma dezena de anos mais tarde. Quanto à letra, só foi acrescentada 40 anos depois, criada pela pluma do próprio filho do compositor.

Pouco importa se estourou nas paradas ou não. A Rapaziada do Brás é lembrada até hoje, passado quase um século. Ficou na memória coletiva como um símbolo do passado da cidade.

Alberto Marino continuou sua carreira na música. Diplomou-se como violinista e, mais tarde, como compositor e regente. O que ele estava longe de imaginar é que, após seu falecimento em 1967, seu nome se elevaria a uma altura de… 30 metros. Não estou brincando: um viaduto foi batizado com seu nome, honraria que não é concedida a qualquer um.

            1950 Porteiras do BrásFlechas azuis: postes ainda existentes

1950 Porteiras do Brás
Flechas azuis: postes ainda existentes

Governantes, figurões da política, seus amigos e familiares transformam-se, muita vez ainda em vida(!), em nome de logradouro público. Já com músicos e maestros, o acontecimento é menos frequente.

Todos os que conheceram a cidade de São Paulo antes de meados dos anos 60, hão de ter visto, ou pelo menos ouvido falar, nas porteiras do Brás. Para os que pularam esse capítulo, conto.

Desde o último quartel do século XIX, estradas de ferro cortavam a cidade. Foram, em grande parte, responsáveis pelo acelerado progresso do acanhado burgo. Enquanto o tráfego urbano se restringia a pedestres, a carroças puxadas a burro e a um ou outro automóvel, as vias férreas não representavam grande empecilho. Quando passava um trem, os que tinham de atravessar para o outro lado esperavam. Sem pressa e orgulhosos que se sentiam com o sinal tangível de modernidade, ninguém reclamava.

Foi assim até meados dos anos 40. A partir de então, o aumento da população expandiu os limites urbanos. O tráfego de automóveis e de caminhões cresceu. A Zona Leste povoou-se rapida e densamente. Muitas fábricas se estabeleceram ao longo da ferrovia. No entanto, imperturbáveis, os trilhos continuaram no exato lugar onde haviam sido assentados.

           2010 Porteiras do BrásO prédio verde perdeu suas venezianas

2010 Porteiras do Brás
O prédio verde perdeu suas venezianas

Nos anos 50, as porteiras do Brás já tinham se tornado um dos maiores pesadelos da cidade. A frequência dos trens crescia e, à passagem de cada composição, as porteiras baixavam, represando o pesado tráfego da importante avenida Rangel Pestana.

Falava-se muito em resolver o problema. Entrava prefeito, saía prefeito, e nenhuma providência era tomada. Foi preciso esperar até o meio dos anos 60 para que, finalmente, durante a gestão do carioca Faria Lima, então prefeito de São Paulo, um viaduto fosse construído. Como presente à cidade ― que faz anos em 25 de janeiro ― a obra foi inaugurada dia 24 de janeiro de 1968.

 Eu já não estava mais no Brasil, mas imagino que deva ter sido uma festa. E um alívio para os que costumavam atravessar a linha férrea, fosse a pé, de carro ou de ônibus.

Este é um (raro) exemplo de obra pública de nome acertado. Quem mais poderia ter emprestado seu próprio nome a um viaduto que resolveu o angustiante problema das porteiras do Brás?

O desaparecimento das porteiras não nos trouxe de volta a poesia da antiga rapaziada do Brás. A de hoje já não faz mais serestas. Se as fizesse, teriam outro tempero. Sobrou, como consolo, a quase centenária composição. Ainda há de nos encantar por muito tempo.

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Se alguém quiser recordar a valsa, na voz de Francisco Petrônio, que clique aqui.

NOTA: Clique sobre as fotos para ampliá-las.

Notícias de Ponta Grossa

José Horta Manzano

Passeando pelos jornais de hoje, topei com um relato um tanto confuso de uma vereadora de Ponta Grossa (PR), presa por ter forjado seu próprio sequestro. Não se lançou à aventura sozinha, mas acumpliciada com Suzicleia, Idalécio e Adalto. Para espíritos mais curiosos, a notícia completa está aqui.

Se entendi a história ― mas não tenho certeza ― a edil fez o que fez para escapar da eleição da Câmara. Confesso não saber a que eleição da Câmara se refere o articulista. Pensava que, para não votar, bastasse não comparecer. Parece que é bem mais complicado.

Contra a vereadora e seus cúmplices, será apresentada denúncia por crime de formação de quadrilha, simulação de sequestro e fraude processual. Não é pouca coisa. Mas parece que a eleita municipal já providenciou advogado. O causídico, naturalmente, entrará logo com pedido de habeas corpus. E assim, vão todos para casa torcer para que o processo se eternize nos escaninhos da Justiça brasileira. E tudo bem.

Crédito: Thiago Schuina

Crédito: Thiago Schuina

Não conheço Ponta Grossa. A curiosidade me levou a consultar a Wikipédia. Fiquei sabendo de muita coisa. O município não é nenhuma Xiririca da Serra, não, senhor. A população estimada é de mais de 300 mil almas, como Genebra!

Uma outra informação me deixou pasmo. O inverno é mais frio e o verão é mais quente! Não é um fato digno de nota? Para quem quiser conferir, está lá com todas as letras, no tópico Clima. Aqui.

A Wikipédia traz um capítulo sobre a composição da população de Ponta Grossa. Fala dos desbravadores portugueses, dos tropeiros, das famílias vindas de São Paulo. Conta que, mais tarde, chegaram eslavos, árabes, italianos e outros estrangeiros. Curiosamente, nenhuma menção é feita aos habitantes primitivos do lugar, os indígenas. Não terá sobrado nenhum?

Não vamos atirar pedra nesse artigo. Não é o único, apenas segue a linha que nos ensinaram desde o curso primário. Nossa historiografia oficial menciona todos os imigrantes ― do português ao coreano ―, fala do africano trazido à força, mas faz abstração do habitante originário, como se nunca tivesse existido. O índio pode até servir como figurante de quadros épicos, mas na vida real atrapalha.

Por que razão isso acontece?