Penduricalhos

José Horta Manzano

Eram muito usadas, cinquenta anos atrás, pulseiras de berloques. Quem não tinha uma, cobiçava. Moça mais abonada levava pulseira de ouro. Se menos afortunada, contentava-se com material menos dispendioso, prata ou metal barato.

A moda trazia um lado bastante prático para família e amigos: quando era hora de dar presente à dona de uma dessas pulseiras, era só comprar um berloque ‒ era certeza que a figurinha seria apreciada. Havia berloques de todas as formas: figura humana, bichinho, carrinho, casinha, florzinha, anjinho, barquinho, arvorezinha. E por aí afora.

A palavra berloque nos chegou pelo francês breloque, que significa objeto geralmente pequeno e de pouco valor. A origem do termo é controversa, perde-se na poeira do passado. Penduricalho é tradução perfeita. Indica algo de valor relativamente baixo que se pendura a um conjunto mais valioso e preexistente.

Ainda se vendem pulseiras de berloques, mas a moda dá sinais de exaustão. Há, no entanto, um outro campo de atividade onde continua firme e forte o costume de enganchar penduricalhos e aditivos. Falo da função pública.

Na iniciativa privada, o funcionário costuma ter um salário e mais nada. Caso tenha de meter a mão no bolso por conta da firma, receberá reembolso das despensas, o que é natural e compreensível. Terá direito a certos benefícios, como o 13° salário, que a lei estende a todos os assalariados. E pronto, vai terminando por aí.

Já na função pública, o espírito é outro. O salário propriamente dito chega, em certos casos, a representar menos da metade dos vencimentos totais. O resto vem de adicionais diversos. Como numa pulseira de berloques, vêm-se acrescentar ao ordenado de base inúmeros penduricalhos: auxílio-moradia, salário-família, auxílio-saúde, auxílio-alimentação, auxílio-transporte, auxílio-creche, auxílio-livro, licença-prêmio, adicional por tempo de serviço, gratificações, abonos. Como na pulseira, sempre há espaço pra mais um.

Esse hábito que permanece vivo entre nós ‒ e que nos parece natural ‒ desvela a mentalidade paternalista em que continuamos imersos. «Tá aqui, meu filho, teu dinheirinho. Se precisares de mais, vem falar comigo». A voz do coronel continua a ressoar. «Teu salário é baixo, mas, se precisar, eu ajudo.»

A receita pra se desvencilhar do subdesenvolvimento passa pela revisão total dos princípios de remuneração do trabalho. O salário de qualquer função, seja ela pública ou privada, deve permitir vida digna ao funcionário. Deve dar-lhe condições de se alimentar, se alojar, se vestir, sustentar a família, se transportar, cuidar da saúde. Se os vencimentos de base não são suficientes para cobrir as necessidades do funcionário, é porque o salário está baixo demais. Há que aumentá-lo. Acrescentar penduricalhos é como alimentar vício: sempre há espaço pra mais, entra-se na roda-viva e não tem como parar.

Infelizmente, os maiores beneficiários de berloques aéticos são justamente os que fazem as leis. Não é amanhã que legislarão em desfavor de si mesmos.

 

Façam como eu digo

José Horta Manzano

José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, dito José Sarney, foi-se embora atirando. Depois de ter sido eleito e reeleito durante 60 anos, o político – que muitos consideram ser o homem mais poderoso do País – saiu de cena. Pelo menos oficialmente.

Dono hoje de considerável fortuna, passeou por sete partidos políticos. Representou dois Estados no parlamento, fato assaz raro. Foi governador, senador, presidente do Senado e até, por uma dessas traquinagens com que a história nos surpreende, presidente da República. Sublinhe-se que chegou lá sem ter recebido um voto sequer.

Fonte: petrobrasilfatosedados.wordpress.com

Fonte: petrobrasilfatosedados.wordpress.com

Sempre procurou estar ‘de bem’ com o poder. No tempo em que só os fardados mandavam, grudou-se a eles. Ironicamente, serviu de dobradiça entre o período militar e o atual período de governança civil.

Aos 84 anos, decidiu pendurar as chuteiras. Não se candidatou a um enésimo mandato. Não deve tê-lo feito de coração leve. Astuto, há de se ter dado conta de que sua estrela declinava. Aqueles a quem havia dado uma senhora ajuda no difícil começo – entenda-se o PT – já andam com suas próprias pernas e não precisam mais dele. Para piorar, nas últimas eleições, seu clã perdeu o controle do Estado do Maranhão, um péssimo sinal.

Foi-se o homem. Mas fez questão de detonar um derradeiro petardo em seu último discurso no Senado. Confessou-se arrependido de ter voltado à vida pública depois de ter sido presidente da República. Dou-lhe inteira razão. Os que já exerceram o cargo máximo deveriam ter a dignidade de se eclipsar. É a melhor garantia de manter aura respeitável.

Numa demonstração de que sua visão autoritária de mundo não se alterou, propôs a proibição, a ex-presidentes, de ocuparem cargo eletivo. Pois que vá plantar batatas. Como diria o outro, ninguém precisa de seus conselhos, cada um sabe errar sozinho.

Além de anticonstitucional, sua proposta é hipócrita. Faz 25 anos que deixou de ser presidente. Desde então, vem-se elegendo e reelegendo ininterruptamente. Quer nos fazer crer que foi só na semana passada que descobriu que não devia ter feito isso? Essa foi muito boa, senador, conte outra.

Fonte: petrobrasilfatosedados.wordpress.com

Fonte: petrobrasilfatosedados.wordpress.com

Tem mais. Lançou ao vento a ideia de «reforma política», aquela tecla na qual todos voltam a bater cada vez que se sentem numa posição desconfortável. Disse que o voto distrital deveria substituir o proporcional. Concordo com o senador. Mas… por que, diabos, não trabalhou nessa direção enquanto segurava as rédeas do poder?

Tinha mais cacife que qualquer outro parlamentar para levar adiante a discussão e vencer a batalha. Não fez porque não quis. Dizer isso na hora do adeus não tem mais alcance – só faz apequenar ainda mais a imagem do mais antigo dos quatro ex-presidentes da República ainda vivos.

José Sarney saiu de cena pisando duro e batendo a porta. Sua personalidade concentrou os piores males que afligem a política brasileira: patrimonialismo, paternalismo, oligarquia, ‘vira-casaquismo’, coronelismo, fisiologia, leniência com ‘malfeitos’, corporativismo, vaidade, menosprezo para com os eleitores. Foi-se o homem, mas… deixou uma revoada de filhotes.

Jó e Abraão

José Horta Manzano

Fica cada dia mais palpável que os donos do poder, aterrorizados com o embalo da diligência, andam perdendo o discernimento. Más línguas dizem que discernimento é justamente o que nunca tiveram, mas é melhor não começar a discutir isso, que é debate para dias e semanas.

Marcha a ré 1Por que será que se nota tanto nervosismo pelas bandas do Planalto? É sabido que o poder, mormente na versão longa duração, desgasta. Faz já 12 anos que nos martelam o mesmo disco, as mesmas fórmulas, as mesmas promessas, as mesmas esfarrapadas explicações. E que continuamos obrigados a engolir frustrações, fracassos e uma interminável lista de malfeitos. Escândalos espocam feito bombinha de são-joão. O sentimento de insegurança explode.

Vai chegando uma hora em que palavras, anúncios e promessas deixam de fazer efeito. A lavada que os que nos governam estão levando nestas eleições é prova de que há muita frustração acumulada.

Tenho um amigo que, ao receber convite para viajar durante o mês de outubro, retrucou, firme: «Agradeço, mas não vou de jeito nenhum. Ajudei a botar essa gente lá, agora tenho de ajudar a mandá-los embora. Vou votar.». Juro que não é invenção minha.

Dona Dilma – ou seus aspones, é difícil saber – andou escrevendo no tuíter que os adversários representam o retrocesso. Expressão estúpida, que, como bumerangue, atinge a presidente em plena testa.

Retrocesso

A esmagadora maioria dos eleitores da presidente ignora o significado dessa palavra. Portanto, para essa fatia do eleitorado, movida por outros interesses, o falar chique dos gênios da comunicação presidencial é inócuo.

Já os que conhecem essa palavra, mais esclarecidos, sabem que, ao contrário do que afirma, dona Dilma – essa sim! – é a personificação do retrocesso. Conseguiu completar a pauta da regressão que já havia sido traçada por seu antecessor. O retrocesso destes últimos anos assume características múltiplas.

Os brasileiros mais pobres voltaram aos tempos do coronelismo, que imaginávamos sepultos. O paternalismo – e sua consequência mais daninha, a compra de votos – ressuscitou e se revigorou.

A pauta de exportações do Brasil regrediu ao que costumava ser nos tempos imperiais: o País se afirma, cada dia mais, exportador de matéria-prima. A desindustrialização se acentua.

Marcha a ré 2De receptor de imigrantes, o Brasil passou a emissor. Temos hoje menos de um milhão de estrangeiros no País, enquanto três milhões de brasileiros batalham no exterior.

Até no futebol, regredimos. Concedo que a presidente não tem a culpa (integral). Mas, para azar dela, vaias e derrotas aconteceram sob sua gestão. E na sua presença.

Portanto, acusar o adversário de trazer consigo o retrocesso é falso e, no mínimo, desastrado.

Entre os apoiadores da presidente, o argumento não é compreendido. Passa batido.

Entre os que rejeitam a candidata, a alegação só faz reforçar o sentimento de que a campanha se baseia em engodo.

Finalmente, entre aqueles que, embora já não vivam nas trevas, ainda não escolheram candidato, a falácia periga precipitar a decisão de votar no adversário. Afinal, todos se dão conta de que o País regrediu, e ninguém gosta de ser feito de bobo.

Nem paciência de Jó aguenta mais tanta incoerência. Nem fé de Abraão acredita mais em tanta mentira.

As entranhas

José Horta Manzano

Exatamente no dia de Natal, faz quase um mês, o Estadão publicou um artigo assinado pelo professor Zander Navarro, sociólogo e antigo docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

A data de publicação não foi a mais propícia. Acredito que muita gente possa ter deixado de ler. O texto, sintomático da atual realidade brasileira, não merece cair no esquecimento. É por isso que lhes dou hoje o endereço. O título é As entranhas do bolsismo. Transcrevo aqui um parágrafo:

Interligne vertical 12«Em Salvador, uma candidata a empregada doméstica foi entrevistada na casa da senhora contratante. Acertados o salário e os horários de trabalho, ela impôs uma inesperada exigência: não queria ter a Carteira de Trabalho assinada. Diante da surpresa, explicou que se for assim perderá o “auxílio-pesca” que recebe há quase dez anos. “Mas você é pescadora?” Ela riu e disse que nunca fez isso, mas em seu município de origem todos recebem o benefício federal, mesmo não sendo pescadores. Mora com o marido na capital, mas mantém o endereço anterior para continuar beneficiária. Pretendem se mudar para a cidade de Conde, pois lá ofereceriam adicionalmente uma cesta básica por mês.»

Pronto, o tom está dado. Clique aqui para ler o texto integral.

Os dois tabus

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 4 jan° 2014

Desde que o mundo é mundo, a humanidade cultiva dois temas sensíveis: raça e religião. Lidar com eles requer prudência e tacto. Evitar acidentes é dever de todos.

Embora a razão de ser de toda religião seja a crença na continuação da vida após a morte física, a diversidade de ritos, dogmas, preceitos, obrigações, proibições é notável. Cada credo tem seu catálogo de regras. O assunto, delicado, é daqueles que se hão de tratar com luvas e pinça. Muita guerra já se travou e muita gente já morreu por divergências religiosas.

O Brasil teve sorte. As práticas animistas dos habitantes originários e o aporte de tradições africanas atenuaram a rigidez e o dogmatismo de colonizadores e de imigrantes. Embora nem sempre nos apercebamos disso, é de reconhecer que não padecemos de conflitos religiosos. Vão longe os tempos da Controvérsia de Valladolid, da Inquisição e das conversões forçadas. O afluxo de gente de vários quadrantes incutiu tolerância à índole nacional.

Visto assim do alto, esse traço de nosso caráter pode até parecer banal. Pois não é. Há pontos no globo onde ainda se luta por divergências de fé. Como prova, estão aí a Irlanda do Norte, o Egito, o Sudão, o Tibete. Até na Europa Ocidental, fricções de ordem religiosa obrigam parlamentos a legislar sobre vestimenta feminina ― o porte da burca ou do véu islâmico, por exemplo. Em nossas terras, a sunga e o fio dental já cuidaram de banir esses rigores. Nosso problema está resolvido.

Stop racismo! Crédito: harrycutting.com

Stop racismo!
Crédito: harrycutting.com

O racismo, outro tema sensível, planta raízes nos estratos mais primitivos do subconsciente. É a manifestação da desconfiança que dedicamos aos que não pertencem a nosso clã. Na prática, esse sentimento se exprime através da repulsa aos que têm cor de pele diferente da nossa, que não falam nossa língua, que não se comportam como nós. Em resumo: rejeitamos o que foge à norma.

Países onde coexistem etnias diferentes costumam ser palco de fricções. Um nada pode provocar conflitos. Essa intolerância está na raiz de atritos crônicos na Palestina, na Síria, no Iraque, na Índia, na Rússia. Na mesma linha, rebeliões nas periferias francesas e surtos de violência nos EUA nos lembram que a paz racial está longe de ser conquista planetária.

Múltiplos fatores forjaram o Brasil. Temos qualidades de fazer inveja: clima agradável, gente afável, ambiente tolerante, povo acolhedor. Mas arrastamos problemas pesados: corrupção, paternalismo, baixa instrução crônica, gritantes disparidades econômicas.

«Deus é brasileiro», dizemos às vezes. Pois olhe, ainda que não passe de um dito jocoso, o fato é que, até hoje, conseguimos escapar da armadilha dos dois grandes tabus. Costumamos encarar com bonomia a diversidade religiosa de nosso povo. Tem até gente que professa duas religiões! A fé ― ou a descrença ― de cada um não constitui obstáculo à convivência. Na esfera racial, a intensa miscigenação do povo brasileiro é a prova maior de que a tolerância e a flexibilidade são a regra, não a exceção. E é melhor assim.

Sabe-se lá por que, de uns anos para cá, o ideal de igualdade e de unidade que alicerça nossa sociedade vem sendo artificialmente solapado. O elenco de normas oficiais passou a dispensar tratamento diferente a determinadas categorias de cidadãos segundo critérios raciais. Cotas e quilombos ― noções inexistentes até há pouco tempo ― entraram na pauta da modernidade brasileira.

A intenção, apesar de leviana, foi nobre. Já o resultado, a médio prazo, pode escorregar para uma ladeira perigosa e não prevista. «Discriminação positiva» é conceito ambíguo: positiva ou negativa, discriminação será sempre discriminação. Para subir de um lado, a gangorra tem de descer do outro. A cada vez que um grupo de cidadãos for privilegiado, a lógica elementar ensina que outro grupo será obrigatoriamente defraudado.

Stop racismo!

Stop racismo!

Políticas desse jaez trafegam na contramão do processo civilizatório ― são danosas para a consolidação de um sentimento de unidade nacional. Pelo contrário, podem atiçar melindres raciais, semear ressentimentos e abalar a concórdia que costumava reinar entre nós.

Se o nível de instrução pública é baixo, que se faça o necessário para elevá-lo. Dar como favas contadas que alguns são menos instruídos que outros unicamente por terem cor de pele diferente é generalização barata, uma falácia, uma ofensa. Estamos cutucando a onça com vara curta. Cuidado, ela pode se enervar!

Que a aragem leve do novo ano sopre sabedoria a nosso legislador. Mais vale recuar enquanto é tempo. Feliz ano-novo a todos!

Não fui eu, foi ele!

José Horta Manzano

«Não fui eu, foi ele!»

De criança, é comum, corriqueiro e compreensível que toda desavença seja levada à autoridade paterna ou materna para decisão. Cada litigante apresentará seus argumentos, e a Justiça adulta determinará.

Praia de Copacabana, 1° jan 2014

Praia de Copacabana, 1° jan 2014

Em outros termos, não se exige de criança pequena que assuma a responsabilidade por tudo aquilo que faz. Primeiro, porque ainda não está madura para entender os comos e os porquês de seus atos. Segundo, porque, de qualquer maneira, sempre aparecerá um adulto para consertar o estrago.

Praia de Copacabana, 1° jan 2014

Praia de Copacabana, 1° jan 2014

Com gente grande, a coisa muda de figura. De um adulto, espera-se que tenha entendido que mamã não virá correndo atrás para catar os brinquedos espalhados pelo chão. Compete a cada um recolher seus próprios pertences. Ou não os deixar cair.

Praia de Copacabana, 1° jan 2014

Praia de Copacabana, 1° jan 2014

Muitos de nossos concidadãos não conseguem enxergar o mundo assim. São do tipo eu sou mais eu e não estou nem aí. Essa dificuldade em se dar conta de que a infância acabou aparece, contundente, nas constrangedoras imagens de imundície captadas na praia de Copacabana no amanhecer de 1° de janeiro.

Os que fizeram isso ― e hão de ter sido milhares de pessoas ― continuam acreditando que mamã virá atrás catar os cacos.

Praia de Copacabana, 1° jan 2014 Credit: Cezar Loureiro, O Globo

Praia de Copacabana, 1° jan 2014
Crédito: Cezar Loureiro, O Globo

Faz 500 anos que as políticas paternalistas de nossos sábios governantes só têm feito reforçar a infantilização do povo. «Não se preocupe, filho, que papai cuida disso. Vá brincar agora.»

by Amarildo Lima, desenhista capixaba

by Amarildo Lima, desenhista capixaba

Está aí o resultado: uma população de ovelhas, sem iniciativa, sem noção de pertencimento a uma comunidade. Gente que não consegue enxergar além do próprio umbigo. É nesse terreno fértil que brotaram Getúlio, Jânio, Collor. E que continuam surgindo Lulas e Tiriricas.

by Marco Jacobsen, desenhista paulista

by Marco Jacobsen, desenhista paulista

Ah! Aos distraídos, quero lembrar que o pontapé inicial da Copa-14 será dado daqui a seis meses. Durante um mês, dois bilhões de pares de olhos estarão voltados para o Brasil. Não verão unicamente a beleza de Copacabana. Repórteres são curiosos por natureza. Hão de encontrar imagens mais picantes para impressionar seu público.

Feliz 2014!

As chaves

José Horta Manzano

Hoje terá lugar, na ultrassofisticada Costa do Sauípe ― um balneário padrão Fifa! ― o sorteio das chaves da próxima Copa do Mundo. Todos os países participantes estão pedindo, cada um a seu São Benedito nacional, que os ajude a cair num grupo fácil.

Agora, vamos fazer um esforço. Vamos supor que não haja trapaça no sorteio. Com a Fifa, nunca se sabe, mas não é impossível, pois não? Pois então. Há de haver surpresas, um ou outro ah! de alegria, muitos oh! de decepção.

No fundo, no fundo, pouco importa quais possam ser os times que o Brasil terá de enfrentar. Nossos adversários maiores já são conhecidos. São o atraso, a corrupção, a desigualdade entre os que mandam e os que são mandados, o paternalismo, a ignorância, a inação, a leniência, o descaso dos que poderiam fazer alguma coisa, a desonestidade.

by Amarildo Lima, desenhista capixaba

by Amarildo Lima, desenhista capixaba

Que o Brasil vença vários adversários e obtenha boa classificação na Copa é secundário. Quer chegue lá ou não, será um momento passageiro.

O mais desalentador é a certeza de que, após o último jogo, quando o último turista tiver embarcado e os garis tiverem varrido o lixo, nossos adversários de sempre continuarão aí, a nos envenenar a existência.

Rapidinha 7

José Horta Manzano

«Mais preocupado com a morte, brasileiro investe em auxílio funeral» ― diz o título chamativo do artigo de Yolanda Fordelone publicado no Estadão deste 1° de novembro.

Falar em morte, funeral e enterro incomoda. São coisas que a gente acredita que vão acontecer a todos, menos a nós mesmos. Vira essa boca pra lá, dá azar, não presta, para de chamar desgraça! São os comentários mais comuns quando se aborda esse assunto. E, no entanto…

… no entanto, todos sabemos que a única certeza que temos ― a única mesmo! ― é de que seremos levados embora um dia. Quanto ao resto, a gente pode querer, esperar, torcer, imaginar, mas certeza, que é bom, não temos.

Que o brasileiro atual se preocupe em tomar disposições concernentes a seu próprio funeral é excelente notícia. Não se deve ligá-la ao aumento da criminalidade, que uma coisa não tem nada que ver com a outra. Com ou sem crime, todos acabamos morrendo um dia.

A boa notícia, em meu entender, é que a preocupação com funeral e sucessão é muito positiva. Dá pelo menos duas importantes indicações.

Véu de luto

Véu de luto

1) Demonstra a tomada de consciência de que o inevitável vai acontecer, queiramos ou não. É impossível evitar. À diferença de aventureiros do passado, que acreditavam na existência da fonte da eterna juventude, vamo-nos conformando com a realidade.

2) Dá sinal claro de que o brasileiro, pouco a pouco, toma consciência de ser responsável por si mesmo. O modo de vida paternalista, imerso no qual temos vivido há centenas de anos, vai-se esgarçando. Esperamos cada vez menos dessa entidade meio nebulosa que chamamos «governo» e aceitamos o fato de que o artífice de nosso destino somos nós mesmos.

A meu ver, mormente por arranhar a ingenuidade e a credulidade tradicionais do brasileiro, essa evolução vai no bom sentido.

O Brasil e a Idade Média

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 3 de agosto de 2013

A História não se repete. Acontecimentos novos podem até evocar situações passadas, mas cada caso é um caso.

Em novembro de 1923, um punhado de indivíduos se reuniram numa cervejaria de Munique para encenar o que lhes parecia o ato final de um rocambolesco plano de tomada do Estado alemão pela força. O golpe foi um rotundo fracasso. Vistos como loucos mansos, os cabeças, presos e processados, foram condenados a penas leves. Quis o destino que, dez anos mais tarde, o chefe da malta, um certo Adolf Hitler, fosse içado ao posto máximo da nação. O resto da história todos conhecem.

Nos primeiros anos do século XX, um jovem italiano, violento e rebelde, fugiu de seu país e ganhou a Suíça. Más línguas afirmam que era para escapar do serviço militar. Em território helvético, o moço turbulento continuou fazendo das suas. Rebelde e arruaceiro, viveu de expedientes e chegou até a ser preso por vadiagem. Voltou à Itália em 1904. Quis o destino que, dezoito anos e muitas peripécias mais tarde, nosso impetuoso anarco-sociossindicalista ― Benito Mussolini era seu nome ― se visse alçado à função de chefe do governo. Sabem todos o que veio depois.

Caravela portuguesa

Caravela portuguesa

A tentativa de tomada do quartel cubano de Moncada, levada a cabo em 1953 por uma turma de jovens iluminados, todos no vigor de seus 30 anos, foi um desastre total. Prisão, tortura, degredo dos rebeldes remanescentes foi o resultado. Naquele momento, ninguém imaginou que o chefe do grupo, um certo Fidel Castro, havia de se tornar senhor absoluto do país 6 anos mais tarde. Os capítulos seguintes são conhecidos.

Faz pouco mais de um mês, o Brasil foi palco de um fenômeno desconcertante. Dirigentes boquiabertos assistiram a passeatas espontâneas formadas por gente comum. Não eram revolucionários nem putschistas. Não pretendiam derrubar o regime, muito menos tomar o poder. Não eram movidos por ideologia. Não carregavam armas. À exceção de grupelhos insignificantes de energúmenos imbecis, protestaram pacificamente.

Agora sossegaram. Mas que ninguém se engane: os acontecimentos de junho foram um divisor de águas. Daqui a um século, baixada a poeira, a História dará a 2013 a mesma importância que dá hoje a 1822 ou 1889. A sagacidade caseira do inefável Conselheiro Acácio ensina que as consequências, naturalmente, vêm sempre depois.

O brasileiro é um povo de sorte. No espaço de pouco mais de 10 anos, teve duas ocasiões de dar um salto à frente, na boa direção. A primeira foi quando Lula da Silva chegou ao posto máximo da República. Dono de apoio quase unânime do povo e de seus representantes, não lhe teria sido difícil impor as reformas indispensáveis para curar a esquizofrenia do País. Pareceu a todos que, finalmente, o Brasil deixaria de ter um pé na modernidade e outro ancorado na Idade Média.

Estava na hora de banir traços antediluvianos tais como o paternalismo, o nepotismo, o cartorialismo, o rigor reservado ao vulgo enquanto privilegiados são tratados com leniência. Queríamos todos ver desaparecer a desigualdade entre os do andar de cima e os do andar de baixo. Queríamos ver o fim de anacronismos que não combinam com o mundo civilizado.

Desgraçadamente, nenhuma reforma radical foi empreendida que acelerasse nosso processo civilizatório. Os donos do poder agiram como o cirurgião que anestesia o paciente mas esquece de operá-lo. Ninaram o povo com doces sonhos de grandeza, mas não se deram ao trabalho de eliminar os tumores que minam a sociedade. Entre mercurocromo e curativos, descuraram-se de servir ao povo. Usaram a arraia-miúda como massa de manobra e, insolentes, dela se serviram. Os protestos são a prova patente da ineficiência e do fracasso da atual maneira de governar.

Castelo medieval

Castelo medieval

Mas temos sorte. Diferentemente de Alemanha, Itália e Cuba, temos uma segunda chance. Nossa «revolução» não tem cabeças nem porta-bandeiras. Não prenuncia episódios violentos nem sangrentos. As demandas do povo brasileiro, a anos-luz da luta de classes, não são ideológicas, nem sectárias, nem elitistas, nem sindicais.

Medidas pontuais podem gerar alguma curta trégua, mas não resolverão o problema. O brasileiro, farto de que lhe zombem das fuças, quer ser tratado com dignidade. Plebiscitos e referendos não condizem com a situação atual. O povo já disse o que quer. Do governo, não se espera que faça mais perguntas, mas que dê as respostas que esperamos todos. E logo.

O governo que se dizia «popular», no fundo, não o era. Popular é o movimento que a todos surpreendeu, essa energia espontânea e sem lideranças. Estamos vivendo o começo do fim do Brasil medieval.

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Vexame anunciado

José Horta Manzano

Quanto mais importante for a pessoa, maior será o respeito com que a tratarão. Uma pessoa importante é vista como modelo. É às vezes até seguida como guru.

Como se costuma dizer, não existe almoço grátis: tudo tem sua contrapartida. O figurão importante tem de retribuir a deferência com que é tratado. Tem de dar o bom exemplo, mostrar o caminho certo a seus seguidores. Desgraçadamente, não é sempre assim que acontece.

Estádio Maracanã

Estádio Maracanã

A presidência da República é, sem sombra de dúvida, um cargo elevado. Foi ocupado, até recentemente, por um personagem peculiar. Esperto, soube explorar ao máximo o espírito paternalista que rege nossos costumes. Distribuiu mimos, presentes e agrados aos que o rodeavam. Se deu bons exemplos e deixou um rastro de conduta ética… a História não registrou.

Em contrapartida de sua prodigalidade para com os mais chegados, pôde sempre contar com uma corte fiel, formada por gente que, ao sair da sala do chefe, suponho chegasse a caminhar para trás, a fim de nunca dar as costas ao pater familias. Viveu seus anos de glória cercado por uma corte de áulicos, todos de olho firme nas vantagens pessoais que pudessem auferir da proximidade com o rei.

A palavra de ordem era nunca contrariá-lo. Por mais asneiras que ele dissesse ou cometesse, era importante sempre concordar, elogiar e aplaudir. Assim foi quando, em sua ingenuidade, o antigo presidente fez o que pôde ― e até o que não devia ― para conseguir que o Brasil fosse designado como sede da Copa do Mundo de futebol de 2014. Deve ter-lhe soado como a coisa mais importante que poderia ocorrer em nosso País.

Recuso-me a acreditar que, entre os membros da corte, não houvesse alguns mais instruídos e mais realistas. Esses, justamente, devem ter-se dado conta de que imensos problemas nos esperavam. Hão de ter entendido que o empreendimento esbanjaria o dinheiro de um povo que já não possui muito. Podem até, sabe-se lá, ter percebido que aqueles bilhões todos poderiam ser mais bem empregados em aperfeiçoar nossa decrépita infraestrutura. Devem ter sentido que aquela dinheirama seria mais rentável se investida na Instrução Pública. Mas assim mesmo, ai!, aplaudiram a genial ideia do guia. Como é que ninguém tinha pensado nisso antes?

Só os tolos acreditaram que a organização de tal evento se faria sem trapalhadas, trambiques, erros e contratempos. Só por grande ignorância ou pesada má-fé poderia alguém acreditar que as coisas iam funcionar no Brasil da mesma maneira que costumam funcionar em país organizado. Sabemos que não é assim.

Um exemplo? Em 2011, um ano antes do início dos Jogos Olímpicos de 2012, Londres já estava dando os retoques finais à estrutura que ia receber o evento. Tudo estava praticamente pronto.

Estádio Corinthians

Estádio Corinthians

Em 2013, a um ano da Copa do Mundo e às portas da Copa das Confederações, a triste realidade tupiniquim vai-se encancarando. Estádios não ficarão prontos. Linhas de transporte expresso não foram construídas. A infraestrutura aeroportuária continua na mesma indigência dos tempos do “relaxa e goza”.

E pensar que esse investimento poderia ter sido destinado a elevar o nível do ensino público do País, melhor maneira de despachar para a lata de lixo da História o vexaminoso sistema de quotas.

Enquanto sonhamos com dias melhores, vamo-nos preparando para o fiasco. Aos olhos do mundo, passaremos do estatuto de republiqueta de bananas direto para o de ex-país emergente.

O Estadão nos dá conta do desastre que se prepara. Aqui.

A Folha de São Paulo vai pelo mesmo caminho. Aqui.

Círculo vicioso

José Horta Manzano

O governo francês, sabe-se lá por que, Termometrovem mostrando, há várias décadas, uma marcada tendência para o paternalismo. É um ponto que aproxima a França do Brasil. Tal como em Pindorama, onde se ouvem histórias de gente que recusa trabalho regular para não perder as vantagens de uma bolsa qualquer, na França também se costuma dizer que, em certos casos, mais vale não trabalhar e viver às custas da ajuda do estado. É mais vantajoso que se esfalfar no batente, menos cansativo e pode até render mais. Alguns dão a esse perverso mecanismo o nome de assistanato.

É inegável que há, no país, gente passando por momentos de dificuldade. Não se pode fechar os olhos à realidade. O que faz falta é identificar as causas do mal e tratá-lo pela raiz. Não adianta dar aspirina para baixar a febre. Há que se dar conta de que a febre não é mais que o sintoma de um mal maior. Passado o efeito da aspirina, a febre voltará. Só nos restará, então, quebrar o termômetro. Assim, o problema estará resolvido.

A grande prioridade dos que vêm governando a França nestas últimas décadas é combater o recrudescimento desalentador do desemprego. Fábricas fecham suas instalações francesas para se instalar no Marrocos, na Romênia ou no Vietnã. O governo faz cara de bravo, finge que “negocia” com os grandes patrões, e, ao fim e ao cabo, a coisa fica por isso mesmo. Com promessas, nenhum governo consegue segurar o empreendedor que decidiu partir. O dono do dinheiro é quem dá a última palavra sobre o destino de sua empresa.

É inacreditável que os males não sejam atacados no nascedouro. Todos concordam que o custo de um assalariado francês é exagerada e injustificadamente elevado. Contratar um funcionário é fácil. O difícil é despedi-lo. Os empecilhos são tão grandes, que acabam por desencorajar futuros investidores. Grandes ou pequenos. Por que, diabos, investir num país onde os conflitos ligados à mão de obra, mais dia, menos dia, vão acabar perturbando os negócios? Se eu tivesse alguns milhões disponíveis para implantar um negócio qualquer, dificilmente faria isso na França.

Um círculo vicioso acabou-se criando. Firmas fecham. Funcionários são despedidos e vão engrossar a fila dos beneficiários de ajuda governamental. O governo, para atender a toda essa demanda, têm de arrecadar dinheiro. Para angariar fundos, taxa as empresas. Essas acabam não aguentando o tranco, fecham e vão cantar noutra freguesia. Realimentam, assim, a fila dos desempregados. E o círculo se fecha.

Torço para que o Brasil consiga escapar a esse poço sem fundo. Com o governo visionário que temos atualmente, não vai ser fácil.