José Horta Manzano
Costuma dizer-se que, em política, o brasileiro tem memória curta. No entanto, uma vista d’olhos à paisagem além-fronteiras ensina que esse traço de caráter não é exclusividade nacional. Em outras partes do mundo, dá-se o mesmo. O que pode variar é o intervalo que vai do fato ao esquecimento. Para casos comuns, um período de 15 a 30 anos é de bom tamanho. Passado esse tempo, o que aconteceu vai para o arquivo morto da memória.
Em momentos conturbados como o que o Brasil atravessa atualmente, o caudal de horrores produz duas consequências. Por um lado, o limite do aceitável se alarga, fazendo com que o indizível, antes obsceno, passe a ser dito em salões de respeito. Por outro, dado que a baciada de barbaridades é ininterrupta, seu volume age como fator suavizante – cada nova enormidade enterra a anterior.
Casos absolutamente fora do comum demandam mais tempo: as marcas da tragédia da Segunda Guerra, por exemplo, ainda são vivas na memória coletiva alemã, 75 anos depois do fim das hostilidades. E isso ainda periga durar um bom tempo.
A memória da presidência FHC, que terminou há 18 anos, já está encaixotada para arquivamento. Basta imaginar que os brasileiros de menos de 25 anos – quase metade da população – ainda não estavam em idade de compreender, quando o sociólogo deixou o trono. Há que ressalvar, é verdade, que os que lhe sucederam não economizaram esforços na tarefa de embaçar-lhe a imagem.
À beira dos 90 anos, FHC já chegou àquela idade em que o grosso da existência ficou para trás. Não vendo razão para continuar a dourar a pílula, comete um ou outro curioso sincericídio. A mídia costuma publicar artigos seus. O mais recente saiu no passado fim de semana.
Os mais velhos se lembrarão de que, antes de Fernando Henrique, a legislação política brasileira não previa a reeleição para cargos do Executivo. Tal como acontece ainda hoje no Chile, por exemplo, o presidente da República tinha direito a mandato de 4 anos, único e não renovável. Se quisesse voltar, tinha de entregar a faixa e esperar a eleição seguinte para se candidatar.
A emenda constitucional que abriu caminho para a reeleição foi votada no primeiro mandato de FHC. Levantando os braços aos céus, seus adversários denunciaram o escândalo: os votos para a vitória da PEC da reeleição teriam sido comprados! (Diga-se de passagem que, mais adiante, nenhum deles desdenharia o benefício desse dispositivo legal; mas essa já é outra história.)
Em seu último artigo, num sussurro e por linhas tortas, FHC admite que foi realmente assim. Surpreendentemente, confessa que errou. O erro não está em ter eventualmente cooptado parlamentares, mas em ter contribuído para enxertar na legislação política um instituto pernicioso. Tenho tendência a concordar com o ex-presidente.
A mim parece que, no universo político brasileiro, a possibilidade de reeleição, seja no nível que for, é péssima ideia; para a Presidência da República, é catástrofe anunciada. Todos já se deram conta de que doutor Bolsonaro, depois de cumprir ano e meio de mandato (dos quatro a que se comprometeu), entrou firme em campanha de reeleição. Não precisa ser futurólogo para adivinhar que, nos próximos dois anos, o fenômeno vai se acentuar. Se seu modo de governar já não era grande coisa, a perspectiva é de piora.
A possibilidade de reeleição inserida na legislação gera um quadro peculiar. Nos primeiros dois anos de mandato, o presidente tateia, sonda, vê ‘se dá pé’. Passado esse período, em vez de tomar as rédeas e executar seu programa de governo, põe-se a trabalhar para a reeleição. Vira presidente-boiadeiro, presidente-chapéu de couro, presidente-caiçara. Passeia pelo país, beija criancinhas, distribui benesses a parlamentares transformados em cabos eleitorais. Governar, que é bom, fica pra uma outra vez.
Caso seja reeleito (tanto o Lula quanto a doutora foram), já entra no segundo mandato sem ânimo. Terá gastado, no primeiro, toda a energia de que dispunha. Já que a lei não permite um terceiro mandato, pra que se esforçar?
Por essa razão, concordo com FHC em sua recusa (tardia, mas bem-vinda) do instituto da reeleição. No Brasil, enquanto o nível de consciência política não tiver se elevado, mais vale voltar ao sistema anterior, com mandato único e não renovável.
Se essa volta atrás for decidida um dia, é bom não esquecer de vedar a possibilidade de um parente do presidente pleitear o cargo. Que se exija um intervalo de pelo menos quatro anos entre o antigo dirigente e seu parente. Isso é pra evitar a implantação duma ‘dinastia familiar’ por rodízio, como fez o casal Kirchner na Argentina, alternância danosa que só foi quebrada com a morte de um dos atores.
Atenção com os pleonasmos: ” Se essa volta atrás…” Bjs beijados, wilma.
ieccmemorias.wordpress.com
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Sugiro-lhe atentar ao seguinte ensinamento:
«“Secretário-geral da Fifa volta atrás e pede desculpas”, anunciaram jornais, rádios e tevês. Leitores e ouvintes protestaram. Disseram que voltar atrás é pleonasmo. Afinal, só se pode voltar atrás. A dúvida bateu às portas do blogue. “É redundância?”, perguntam eles.
A resposta: não. Para ter a acepção de recuar, retroceder, voltar só tem uma saída. Pedir ajuda ao atrás. É a duplinha que dá o recado. Compare com subir pra cima ou descer pra baixo. Subir é sempre pra cima. Descer, sempre pra baixo. Voltar nem sempre é retroceder. Volta-se ao trabalho, à escola, ao clube.”»
Dad Squarisi, formada pela UnB, é escritora. Tem especialização em Linguística e mestrado em Teoria da Literatura. É editorialista do Correio Braziliense e blogueira.
https://blogs.correiobraziliense.com.br/dad/e_o_jeito/
Pois é, Madame, quando a gente não tem certeza do que vai dizer, melhor será calar.
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