Dose dupla

José Horta Manzano

Tem certas notícias que, embora capazes de indignar qualquer cidadão em tempos normais, passam despercebidas na cachoeira de escândalos atuais. Parecem fatos menores. Não são.

Meus atentos leitores devem-se lembrar de signor Pizzolato, aquele membro da gangue do Mensalão que, na iminência de ser despachado à Papuda, muniu-se de documento de familiar morto e, sob identidade usurpada, escapou para a Itália.

Prisioneiro 2O sentimento de invulnerabilidade que a dupla cidadania lhe propiciava, no entanto, murchou. Não demorou muito, foi preso pela polícia daquele país. Faz anos que signor Pizzolato trava batalha contra sua extradição para o Brasil. Enquanto isso, continua preso. Se se tivesse entregado à Polícia Federal brasileira, já estaria livre da silva, constrangido apenas por uma imperceptível tornozeleira.

Apesar disso, continua lutando contra a extradição, Por algum motivo será. Não sou especialista em briga de bandidos nem em código de honra de marginais. Assim mesmo, desconfio que o temor de signor Pizzolato não seja exatamente o de ser mandado para o xadrez. Afinal, já faz tempo que ele vive atrás das grades. O medo há de ser outro. Melhor não entrar nesse terreno.

Pizzolato 6 camburaoSeja como for, o episódio tem rendido muita humilhação para o Brasil. Quando o Lula decidiu negar à Itália a devolução de signor Cesare Battisti – terrorista condenado por envolvimento em quatro assassinatos –, usou o pretexto de o extraditando não ser homicida comum, mas criminoso político. Não enxergo diferença, mas parece que o Lula enxergou.

Prison 5Já a Itália, antes de devolver signor Pizzolato, mandou vistoriar prisões brasileiras. Deixou claro que não acredita na boa-fé das autoridades federais, segundo as quais o cidadão será abrigado em estabelecimento penitenciário de padrão Fifa.

O portal d’O Globo informa que o governo italiano despachou representante para inspecionar, in loco e pessoalmente, as instalações onde Pizzolato ficará hospedado.

Isso significa duas coisas. Primeiro, que consideram o Brasil como país de segunda ordem, onde prisões ainda mantêm padrões medievais. Segundo, que não têm confiança nas garantias oferecidas por nossas autoridades – preferem mandar alguém de confiança conferir. É vexame em dose dupla.

A presidente não mentiu

José Horta Manzano

Brasilia 3Grande injustiça vem sendo perpetrada contra nossa presidente. Ok, ok, a mandatária está longe de ser aquela que deixará as melhores lembranças nos futuros livros de história, mas, assim mesmo, nem tudo é tão ruim.

Todos a condenam por ter prometido e não ter cumprido. Pior: por ter jurado que seguiria um caminho e, na hora do vamos ver, ter caminhado na direção oposta. O presidente que mente ao povo se equipara àquele que bombardeia os súditos. Traidor.

by Lezio Jr, desenhista paulista

by Lezio Jr, desenhista paulista

É verdade que, até a semana passada, vivíamos com a insuportável sensação de termos sido vítimas do conto do vigário. A candidata Dilma, que nos tinha prometido fontes de mel e fim do drama, nos despejava fontes de fel e mar de lama. Uma frustração.

Felizmente, um fato surpreendente ocorrido semana passada veio esclarecer tudo. Dona Dilma não havia mentido, não, senhor. Éramos nós que, ignorantes, não havíamos entendido. A mensagem era, no entanto, clara. Fomos nós que não tivemos lucidez suficiente pra captar-lhe o sentido profundo.

Vamos dar a César o que é de César. Bem antes que a campanha presidencial tivesse início, a candidata Dilma havia garantido que, reeleita, implantaria no Brasil o padrão Fifa. Ninguém acreditou. Ela repetiu. Continuamos não acreditando. Pois os acontecimentos de Zurique afastam toda dúvida: a presidente havia dito a verdade.

Dilma Blatter 2A realidade é que poucos sabiam o que vinha a ser o tal padrão Fifa. A crença generalizada era de que fosse sublime, limpo, reto, livre de impurezas, moderno – em uma palavra: civilizado. A candidata, enfronhada na política desde outros carnavais, certamente sabia. Se pecou, foi por omissão: absteve-se de explicar aos eleitores o que vinha a ser o novo padrão.

Que não seja por isso: o destino se encarregou de esclarecer. O planeta inteiro agora sabe que o padrão Fifa é composto por roubalheiras, mentiras, traições, golpes de palácio, vinganças pessoais, vaidades exacerbadas, corrupção instituída em sistema, cooptação, compra de votos, inveterada cara de pau, ausência de escrúpulos, espírito corporativo, menosprezo pela inteligência alheia.

Fifa 1Não precisa argúcia especial pra identificar escandalosa semelhança entre o padrão Fifa e o padrão brasileiro. A candidata estava certa – errados estávamos nós. Faz quatro anos e meio que ela nos conduz pela senda encantada, tal como havia prometido.

Alegria, conterrâneos! Estamos quase lá!

Um país com medo de ser feliz

Plácido Fernandes Vieira (*)

Enluminure V 1olta e meia sou tentado a concordar com De Gaulle ou com quem quer que tenha dito que o Brasil não é um país sério. Nos Estados Unidos, uma escuta telefônica clandestina instalada no comitê de um rival político levou à renúncia o então presidente Richard Nixon. Agora, pense aí: e se flagrassem em vídeo, nos EUA ou na Europa, um deputado do partido governista confessando que uma empresa pública foi usada para fazer campanha de um presidente à reeleição? Imagine o tamanho do escândalo e as consequências.

No Brasil, caro leitor, a questão é tratada com escárnio pelos donos do poder. Veja o caso de Minas Gerais. Um deputado estadual do PT foi filmado se vangloriando do uso dos Correios na campanha de Dilma e de Pimentel. Mesmo diante das imagens incontestáveis da fraude, sabe como a presidente da República reagiu ao ser indagada sobre o flagrante? «Vocês são jornalistas. Vocês acreditam nisso?» Ou seja: ela está sugerindo que, em vez de se ater ao que o vídeo revela, os jornalistas não acreditem no que veem mas somente no que ela diz.

Pior é constatar que, diante da prova e da versão oficial, há jornalistas que se desmoralizam a ponto de optar pelo engodo chapa-branca. Na hora de escrever os textos, entre as imagens do que de fato ocorreu e o bla-bla-blá palaciano, eles se comportam bovinamente «neutros», dando ao «desmentido» até mais peso do que à verdade. Ou seja: se, nos EUA ou na Europa, uma bobagem como essa poderia derrubar um governo, aqui o escândalo lhe dá força e o leva à reeleição.

Dilma e LulaEscandaliza-me o fato de que a corrupção hoje no país seja tratada como uma virtude. O caso da quadrilha que roubava a Petrobrás para distribuir entre aliados do governo Dilma e Lula é clássico. Quanto mais se descobrem fatos cabeludos da maracutaia, mais crescem as chances de a presidente se reeleger no 1º turno.

As pessoas parecem ignorar que os R$ 10 bilhões desviados dos cofres públicos na Operação Lava-Jato – conforme estimativa da PF – poderiam estar sendo investidos em educação e saúde com «padrão Fifa», como cobraram os manifestantes de junho 2013. Mas o que vemos é cada vez mais dinheiro no poço da corrupção. É como se o brasileiro, de tão desencantado, tivesse medo de voltar a sonhar em ser feliz. Preferisse ser enganado a sonhar com a possibilidade de um país mais digno e mais justo para todos.

(*) Plácido Fernandes Vieira é articulista do Correio Braziliense. Este artigo foi publicado em 4 out° 2014.

Rapidinha 27

José Horta Manzano

Incertezas
Com informações da Agência Reuters, o portal Euronews anuncia, em sua versão em língua inglesa, que a presidente do Brasil já não navega em águas tão tranquilas. Esclarece que as perspectivas econômicas e a frustração dos habitantes das grandes metrópoles ameaça sua reeleição. Disso já sabíamos nós outros.

ShakhtarRecusa
Na falta de cientistas padrão Fifa para exportar, o Brasil despacha jogadores de futebol. Dizem que uns mil jovens partem a cada ano em direção aos rincões mais improváveis. Cinco deles são atualmente contratados pelo Shakhtar, da cidade de Donetsk, Ucrânia. É justamente o epicentro da insurreição ucraniana. O time esteve em exibição estes dias em jogo amistoso na França. Aproveitando-se da ocasião, os cinco brasileiros recusaram-se terminantemente a voltar para a Ucrânia. Perigoso demais. Foram acompanhados por um argentino, jogador do mesmo time. Quem dá a notícia é a Bloomberg.

De qualquer jeito
O portal CityWire, especializado em economia e finanças, informa que o setor bancário brasileiro prosseguirá seu crescimento ainda que(sic) Dilma Rousseff seja reeleita. O uso da locução «ainda que» (even if) revela o estado de espírito de quem escreve. Leia-se: Rousseff atravanca o crescimento econômico do país, mas o setor bancário é tão poderoso que deve sobreviver a eventual reeleição da mandatária.

SacoleiroSacoleiros
O paraguaio ABC Color lamenta que a quota de compras que brasileiros fazem no exterior esteja sendo cortada pela metade (de 300 a 150 dólares). A redução atinge em cheio a economia da região de fronteira, centrada na venda a turistas de um dia. A construção de estádios tão monumentais quanto inúteis representou desperdício de dezenas de bilhões do patrimônio do povo brasileiro. Os cofres públicos não são milagrosos. Quanto mais se gasta, menos sobra. É revoltante que, para reconstituir reservas dilapidadas, o governo federal amargue a vida dos sacoleiros, essas formiguinhas que sobrevivem revendendo bugigangas.

Frase do dia — 158

«O padrão Fifa acaba junto com o torneio. A segurança exaltada pelos estrangeiros que vieram ao país para a Copa é tão atípica quanto a goleada alemã. Sem Copa, o exército deixa as ruas. Um jogo do campeonato brasileiro não mobilizará dois mil policiais, nem haverá feriados que garantam a fluidez do trânsito.»

João Bosco Rabello, colunista do Estadão, em artigo de 9 jul° 2014.

Escolha infeliz

José Horta Manzano

O escritor Ruy Castro, colunista da Folha de São Paulo, acertou no milhar com seu artigo Solene esnobada, publicado em 23 de junho. Irretocável.

Nestes tempos de “Copa das copas”, todos nós temos tido nossos ouvidos e olhos bombardeados com gritos de goool, patriotadas, análises, janelas embandeiradas, carreatas, trombetas, buzinaços. E continhas de chegar.

Nós outros, expatriados, vivemos imersos em ufanismos múltiplos. As carreatas e os buzinaços não correspondem necessariamente às conquistas daquela que antigamente chamávamos Seleção canarinho. Dependendo do país onde se esteja, as continhas de chegar podem até ir em sentido contrário ao que nos interessaria. É natural. Vivemos na casa dos outros.

Já se disse e redisse, já se pisou e repisou o assunto: a dinheirama que o povo brasileiro ― através de seus representantes, evidentemente ― despejou na organização da Copa e na construção de estádios ma-ra-vi-lho-sos teria sido mais bem utilizada em projetos de educação e saúde.

Assim não foi feito, que é que se há de fazer? O que está feito está feito. Resta fazer das tripas coração. Os bilhões de reais arrancados do povo brasileiro estão, pelo menos, servindo de maxipromoção do País em nível planetário. Será?

Fifa vinhetaComo salientou Ruy Castro, nenhuma das atrações do País tem sido mostrada à plateia brasileira. Querem saber mais? Tampouco os espectadores estrangeiros têm tido direito a conhecer, nem que fosse por alguns segundos, alguma coisa além das “arenas” de padrão Fifa.

A vinheta ― acho linda essa palavra(*) ― tem sua beleza plástica, não há que negar. Falo daquele desenhozinho animado de alguns segundos que nos repetem umas dez vezes por dia. Aquele que sobrevoa uma praia, atravessa uma floresta, mostra uma selva de prédios e termina com um menino com cara de pobrezinho, encarapitado em sua favela, com o olhar maravilhado ao vislumbrar ― bem longe ― um estádio iluminado. Estádio padrão Fifa que ele, pobrezinho, visivelmente não tem condições de frequentar.

Gastar tantos bilhões suados dos brasileiros para reiterar ao mundo a imagem de um país marcado pela desigualdade social? Que escolha infeliz.

Interligne 28a

(*) Vinheta, do francês vignette. No século XII, quando entrou na língua francesa, a palavra fazia alusão à decoração de folhas de vinha com que se ornava o bordo de utensílios de louça.

Unesco tomba as Sete Maravilhas do Caos da Copa

Diego Rebouças (*)

Notícia azeda de tão velha: Brasil não vai conseguir maquiar todos os seus problemas até a Copa do Mundo! Pensando nisso, a Unesco decidiu tombar as «Sete Maravilhas do Caos da Copa do Brasil». Não é o máximo? Agora, os gringos não vão poder reclamar. E nem você, mané! A não ser que queira levar de brinde da PM uma arma que eles chamam de não-letal, mas que mata que é uma beleza. Papel e caneta na mão para a lista:

1) O caos aéreo
Welcome, gringaiada! Primeira parada obrigatória: o aeroporto. Nós temos tanto orgulho de termos aeroportos que nenhum brasileiro passa menos de duas horinhas preso em um. Tanto é que a gente vota na mesma corja que promete ajeitar as coisas e não ajeita nada. Ajeitar pra quê? A gente gosta assim! Filas, malas trocadas, voos superlotados. Se espremam na confusão e welcome!

Parece cheio, mas cabe mais gente by Roberto Capote, Folhapress

Parece cheio, mas cabe mais gente
by Roberto Capote, Folhapress

2) Trens, metrôs e ônibus superlotados
Conseguiu sair do aeroporto, Gringo? Mas a superlotação continua nos trens, metrôs e ônibus. Esse assunto irritou alguns brasileiros em 2013, muitos foram até pras ruas protestar, dizendo que “Não é só por 20 centavos”, mas a CPI dos Ônibus do Rio de Janeiro morreu, todo mundo esqueceu do assunto e tenta entrar aí no trem, Gringo, com mala e tudo. Não conseguiu? Não tem problema, porque a gente acha que Gringo é tudo rico e por isso temos a honra de apresentar a Terceira Maravilha do Caos da Copa!

3) Taxistas monolíngues
Símbolo do nosso folclore, o taxista fala pouco quando você precisa de uma informação crucial e entope os seus ouvidos quando você não está nem aí pra saber a opinião dele sobre como as novelas das 21h prejudicam a educação das crianças. Gringo, saiba desde já uma coisa: seu taxista vai falar pouco. Ou vai falar muito. Mas quase nunca vai falar o que você quer. Ainda bem que isso não importa porque nós temos a Quarta Maravilha do Caos da Copa!

4) Os maxiengarrafamentos
Bem-vindo, Gringo! Seu taxista não diz coisa com coisa e esse táxi bandeira dois não sai do lugar. É que nós, brasileiros, adoramos ficar parados. Em aeroporto, transporte público ou no carro. Tanto que todo ano a gente vota em pessoas que têm até uma cara diferente, mas são financiadas pelos mesmos empreiteiros. Que ganham maravilhas fazendo megaviadutos, que tapam a visão e dão uma maquiada no trânsito daqui, só pra meio quilômetro mais na frente afunilar tudo de novo. Isso é que é bacana do Brasil, gringo! Não importa em que cidade você esteja, você sempre estará em Gambiarra City. E olha, que máximo! Enquanto você lia esse item, clic, clic, o precinho do seu taxímetro só fez aumentar. Tá achando ruim? É porque você ainda não viu o próximo item da lista, o…

Parece cheio, mas cabe mais água by Marcella Nunes, Facebook/RioWaterPlanet

Parece cheio, mas cabe mais água
by Marcella Nunes, Facebook/RioWaterPlanet

5) Alagamento pós-chuva
Recapitulemos a sua situação, Gringo: você levou uma surra no aeroporto, está preso numa avenida que não anda, com um taxista que consulta um dicionário cada vez que você pronuncia uma palavra. Eis que começa a chover. Carros começam a buzinar. Uns sobem na calçada, outros sobem no posto e quem não consegue sobe sua prece em direção a Deus. Mais 15 minutos e tudo estará debaixo d’água.
Mas antes temos a Sexta Maravilha do Caos da Copa, a…

6) Violência urbana
Com os carros parados e a chuva caindo, décadas de negligência dos governos municipais, estaduais e federal de todos os partidos dão suas caras: crianças que não tiveram acesso à escola viraram jovens sem acesso ao mercado de trabalho e pior – sem acesso à autoestima. Vão respeitar pra quê, se o Estado brasileiro nunca os respeitou? Eles não estão nem aí. Tanto que estão mandando você entregar sua carteira e sua mala no meio do engarrafamento, antes que a rua alague. E é bom entregar, Gringo.

7) Estádios überfaturados
ÊêÊêÊê!!! Chuva passou, táxi andou, Gringo precisou parar num caixa 24 horas para poder pagar a corrida, mas é hora de comemorar. Sem malas nem carteira, você está muito mais leve. E como o taxista não entendeu onde ficava o seu hotel, então, ele te trouxe para um dos nossos estádios überfaturados. Isso mesmo: über. Afinal, nem a Muralha da China e as pirâmides do Egito JUNTAS custaram tanto. E daí que mais da metade da população brasileira não tem cacife para assistir os jogos da Copa? Se você tem ingresso, Gringo, pode entrar. Por isso, seja muito welcome. Entre no estádio. Ache a sua cadeira-padrão-Fifa, que a partida vai começar.

(*) Diego Rebouças é roteirista e jornalista. O artigo acima foi publicado pela Folha de São Paulo, 26 dez° 2013.

Este artigo foi publicado neste blogue no fim do ano passado. No entanto, com a aproximação da “Copa das copas”, está mais atual que nunca. Daí a republicação.

O trem das onze

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 1° fev° 2014

Desde que Nostradamus escreveu suas centúrias, faz meio milênio, profecias passaram de moda. Técnicas previsionais vêm evoluindo, mas ainda não são infalíveis. A curto prazo, é até fácil prever. A médio prazo, a margem de incerteza se amplia e a coisa se complica. A longo prazo, é missão quase impossível. Mais fácil tirar a sorte grande do que predizer a situação do planeta daqui a dez anos.

Em outubro de 2006, com a oportuna desistência da Argentina, do Chile e da Colômbia, a candidatura brasileira a sediar a Copa do Mundo de 2014 foi sacramentada pela Fifa. Faz mais de 7 anos. Pareceu a todos — por que negá-lo? — uma excelente perspectiva. O tempo era de vacas gordas, obesas até. Tudo era sorrisos. Nosso povo, embevecido, acreditava que o futuro tinha chegado, que estávamos no Primeiro Mundo, que a pobreza tinha desaparecido. Semicerrando os olhos, dava até para ouvir o silvo de trens-bala cortando montes e cerrados.

Trem da Cantareira Fonte: Expotremdasonze.blogspot

Trem da Cantareira
Fonte: Expotremdasonze.blogspot

A euforia era tamanha que nossos descuidados dirigentes sapecaram seu jamegão numa Lei Geral da Copa, demandada pela Fifa, em que abandonávamos parte de nossa soberania. Afinal, o privilégio de sediar o evento justificava um que outro arranhão em nossa legislação. Nossos mandachuvas já antegozavam a consagração suprema de seu peculiar modo de governar.

No entanto… a vida reserva surpresas. Nenhum guru foi capaz de prever que, um ano antes da copa, num certo junho, o gigante adormecido estremeceria e daria sinal de vida. Não vale a pena repisar aqui o susto que o Brasil e o mundo levaram. Aconteceu.

De lá para cá, um incômodo concurso de circunstâncias arrefeceu a euforia. Economia em perdição, corrupção às escâncaras, desmandos, volta da inflação trouxeram desalento. Black blocs, rolezinhos, acidentes em estádios, atraso nas construções, gente graúda na cadeia, nós logísticos encruados atiçaram o fogaréu. Parece que as coisas teimam em não dar certo. E essas redes sociais, então! Desprezando soberbamente o empenho do governo em manter discrição sobre fatos desagradáveis, botam a boca no trombone. Todo o mundo fica sabendo de tudo! Um desplante e uma dor de cabeça.

Uma semana atrás, o gigante mostrou que continua a se mexer na cama. Manifestações violentas voltaram. Nossa presidente, em viagem ao exterior na companhia de comitiva pletórica, teve de escafeder-se para evitar cobranças embaraçantes.

Os ventos estão soprando desnorteados. Promessas já não parecem mais surtir efeito. Um clima pré-anárquico se insinua. E pensar que, daqui a pouco mais de quatro meses, um pontapé marcará o início da «Copa das Copas». Que fazer? Como fugir ao vexame que se prenuncia — em transmissão direta a bilhões de telespectadores? Mais que isso: terminada a copa, como assegurar o apaziguamento dos ânimos?

À primeira vista, parece que não tem mais jeito. Mas sejamos otimistas. O que passou, passou — não dá para voltar atrás. Mas ainda resta uma esperança de evitar o pior. No apuro, é respirar fundo, arregaçar as mangas, fazer das tripas coração e dar ao povo o que ele reclama. Um Brasil esgarçado por anos de desleixo não se transfigurará em quatro meses. Mas resta um último recurso para acalmar o gigante.

Estação Jaçanã Fonte: Expotremdasonze.blogspot

Estação Jaçanã
Fonte: Expotremdasonze.blogspot

Todos sabem o que transtorna os brasileiros: corrupção, compadrio, malfeitos, promiscuidade entre o público e o privado, permissividade, fiscalidade extorsiva, desleixo no trato da coisa pública, nível de instrução cronicamente baixo. Discursos e palavrório não servem mais. Convocação de plebiscito tampouco. Mas os mesmos congressistas que foram capazes de costurar, tim-tim por tim-tim, os mais de 100 artigos da Lei Geral da Copa ainda têm tempo hábil para alinhavar uma Lei Geral do Brasil Decente — um elenco de normas apto a repor o país nos trilhos. E dentro do «padrão Fifa», faz favor!

As próximas semanas são cruciais e não podem, sob nenhum pretexto, ser descuradas. Uma legislação nova e rígida tem de ser preparada, discutida, votada, aprovada e sancionada dentro do mais curto prazo possível. Que respeitem a Constituição, mas que não nos venham com promessas. De pactos não cumpridos, estamos até aqui. E que trabalhem a toque de caixa, que faltam cinco para a meia-noite.

O momento é grave. Esta é a chance derradeira, senhoras e senhores do andar de cima! É o trem das onze — e já está apitando a partida. Se bobear, só amanhã de manhã. Se houver amanhã.

Unesco tomba as Sete Maravilhas do Caos da Copa

Diego Rebouças (*)

Notícia azeda de tão velha: Brasil não vai conseguir maquiar todos os seus problemas até a Copa do Mundo! Pensando nisso, a Unesco decidiu tombar as «Sete Maravilhas do Caos da Copa do Brasil». Não é o máximo? Agora, os gringos não vão poder reclamar. E nem você, mané! A não ser que queira levar de brinde da PM uma arma que eles chamam de não-letal, mas que mata que é uma beleza. Papel e caneta na mão para a lista:

1) O caos aéreo
Welcome, gringaiada! Primeira parada obrigatória: o aeroporto. Nós temos tanto orgulho de termos aeroportos que nenhum brasileiro passa menos de duas horinhas preso em um. Tanto é que a gente vota na mesma corja que promete ajeitar as coisas e não ajeita nada. Ajeitar pra quê? A gente gosta assim! Filas, malas trocadas, voos superlotados. Se espremam na confusão e welcome!

Parece cheio, mas cabe mais gente by Roberto Capote, Folhapress

Parece cheio, mas cabe mais gente
by Roberto Capote, Folhapress

2) Trens, metrôs e ônibus superlotados
Conseguiu sair do aeroporto, Gringo? Mas a superlotação continua nos trens, metrôs e ônibus. Esse assunto irritou alguns brasileiros em 2013, muitos foram até pras ruas protestar, dizendo que “Não é só por 20 centavos”, mas a CPI dos Ônibus do Rio de Janeiro morreu, todo mundo esqueceu do assunto e tenta entrar aí no trem, Gringo, com mala e tudo. Não conseguiu? Não tem problema, porque a gente acha que Gringo é tudo rico e por isso temos a honra de apresentar a Terceira Maravilha do Caos da Copa!

3) Taxistas monolingues
Símbolo do nosso folclore, o taxista fala pouco quando você precisa de uma informação crucial e entope os seus ouvidos quando você não está nem aí pra saber a opinião dele sobre como as novelas das 21h prejudicam a educação das crianças. Gringo, saiba desde já uma coisa: seu taxista vai falar pouco. Ou vai falar muito. Mas quase nunca vai falar o que você quer. Ainda bem que isso não importa porque nós temos a Quarta Maravilha do Caos da Copa!

4) Os maxiengarrafamentos
Bem-vindo, Gringo! Seu taxista não diz coisa com coisa e esse táxi bandeira dois não sai do lugar. É que nós, brasileiros, adoramos ficar parados. Em aeroporto, transporte público ou no carro. Tanto que todo ano a gente vota em pessoas que têm até uma cara diferente, mas são financiados pelos mesmos empreiteiros. Que ganham maravilhas fazendo megaviadutos, que tapam a visão e dão uma maquiada no trânsito daqui, só pra meio quilômetro mais na frente afunilar tudo de novo. Isso é que é bacana do Brasil, gringo! Não importa em que cidade você esteja, você sempre estará em Gambiarra City. E olha, que máximo! Enquanto você lia esse item, clic, clic, o precinho do seu taxímetro só fez aumentar. Tá achando ruim? É porque você ainda não viu o próximo item da lista, o…

Parece cheio, mas cabe mais água by Marcella Nunes, Facebook/RioWaterPlanet

Parece cheio, mas cabe mais água
by Marcella Nunes, Facebook/RioWaterPlanet

5) Alagamento pós-chuva
Recapitulemos a sua situação, Gringo: você levou uma surra no aeroporto, está preso numa avenida que não anda, com um taxista que consulta um dicionário cada vez que você pronuncia uma palavra. Eis que começa a chover. Carros começam a buzinar. Uns sobem na calçada, outros sobem no posto e quem não consegue sobe sua prece em direção a Deus. Mais 15 minutos e tudo estará debaixo d’água.
Mas antes temos a Sexta Maravilha do Caos da Copa, a…

6) Violência urbana
Com os carros parados e a chuva caindo, décadas de negligência dos governos municipais, estaduais e federal de todos os partidos dão suas caras: crianças que não tiveram acesso à escola viraram jovens sem acesso ao mercado de trabalho e pior –sem acesso à autoestima. Vão respeitar pra quê, se o Estado brasileiro nunca os respeitou? Eles não estão nem aí. Tanto que estão mandando você entregar sua carteira e sua mala no meio do engarrafamento, antes que a rua alague. E é bom entregar, Gringo.

7) Estádios überfaturados
ÊêÊêÊê!!! Chuva passou, táxi andou, Gringo precisou parar num caixa 24 horas para poder pagar a corrida, mas é hora de comemorar. Sem malas nem carteira, você está muito mais leve. E como o taxista não entendeu onde ficava o seu hotel, então, ele te trouxe para um dos nossos estádios überfaturados. Isso mesmo: über. Afinal, nem a Muralha da China e as pirâmides do Egito JUNTAS custaram tanto. E daí que mais da metade da população brasileira não tem cacife para assistir os jogos da Copa? Se você tem ingresso, Gringo, pode entrar. Por isso, seja muito welcome. Entre no estádio. Ache a sua cadeira-padrão-Fifa, que a partida vai começar.

(*) Diego Rebouças é roteirista e jornalista. O artigo acima foi publicado pela Folha de São Paulo, 26 dez° 2013.

Candura e caradura

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 2 nov° 2013

Libellus vere aureus nec minus salutaris quam festivo de optimo statu rei publicæ deque nova insula Utopia. Sem brincadeira, esse era o título original do livro ― escrito em latim, como se usava ― que Sir Thomas More publicou em 1516. Passou de moda dar nomes tão longos. Para se referir à obra alegórica do humanista inglês, basta hoje chamá-la Utopia. Aliás, o termo genial criado pelo erudito britânico está hoje no balaio das palavras comuns, prestígio máximo reservado a raros nomes próprios.

A Utopia de Sir Thomas encerrava uma crítica, velada mas acerba, à orientação que tomavam os costumes da sociedade e dos governantes de seu tempo. Não cabe aqui discutir os prós e os contras da visão política do autor. Meio milênio escorreu, o mundo já não é o mesmo, comparações não fazem sentido. O fato é que utopia, neologismo autêntico, entrou nas línguas modernas com o sentido de ideal inatingível, quimera, sonho impossível de realizar.

Já faz mais de 10 anos que estrategistas obram para implantar no Brasil uma hegemonia política. Ideólogos, políticos e marqueteiros compõem o grupo. Alguns rostos, daqueles que aparecem à luz do dia, são ultraconhecidos. Há também aqueles de quem pouco se fala, eminências pardas a mover-se nos bastidores palacianos. O ponto comum entre todos é que têm arregaçado as mangas, muita vez com invulgar ousadia. Têm dado o melhor de si com vista ao objetivo comum que estipularam: perpetuar-se no comando do país.

São cândidos sonhadores. Estão tomando a utopia ao pé da letra sem se dar conta de que a missão é impossível. Já faz tempo que o povo, esperto, sabe que não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe. Tudo tem um começo e um fim. Acreditar na perenidade de uma situação é devaneio.

Nossos sagazes planejadores não são os primeiros a tentar desafiar a finitude de todas as coisas. Ao ser implantado em 1933, o III Reich estava previsto para durar um milênio. Durou 12 anos. A União Soviética, ao preço de muita tristeza, de muita fome e de milhões de mortos, conseguiu resistir por algumas décadas, mas acabou desmoronando sozinha, num tombo melancólico e inglório. Ao atual regime chinês, de comunista, só sobrou o nome. A realidade no Império do Meio está bem longe da senda traçada por Mao.

Utopia

Utopia

Franco, Perón, Nasser, Salazar, Stalin, Marcos, Duvalier, Tito, Saddam ― todos passaram. A energia que dedicaram à tarefa de se enraizar no poder foi tamanha que não lhes sobrou tempo para cuidar da biografia. Foram todos varridos do palco e nem sequer deixaram rastro charmoso na História.

A casta que se alojou no governo federal está cada dia mais numerosa. Vai-se tornando mais e mais difícil manter coesa essa multidão. Trincas, rachaduras e dissensões já estão começando a surgir ― é inevitável. Não por acaso, dois frutos do mesmo eito estão entre as figuras mais cotadas para competir com a atual presidente nas próximas eleições, enfrentar a batalha de sucessão e encarar o veredicto das urnas. Dona Marina foi titular de um ministério alguns anos atrás. E o senhor Campos fazia parte, até anteontem, da base de sustentação do regime.

Se nossos bisonhos estrategistas deixassem a soberba e a caradura no vestiário e vestissem a túnica da modéstia, não tardariam a se dar conta de que, conquanto possam vencer uma que outra batalha, não ganharão a guerra pela eternização do statu quo.

A bolsa família, responsável por uma avalanche de votos, não deu os resultados que se podiam dela esperar. O número de beneficiários, que, segundo lógica elementar, deveria ir aos poucos diminuindo, tem paradoxalmente aumentado a cada ano. De locomotiva capaz de eliminar a miséria e alavancar a prosperidade, o programa tornou-se sombra protetora debaixo da qual estagnam famílias inteiras. Recebem peixes, sim, mas não foram iniciadas nas artes da pesca.

Temos estádios de padrão Fifa, mas serviços médicos públicos de padrão africano. O nível de instrução do povo não avançou uma polegada. A criminalidade se alastra a olhos vistos. A violência de todos os dias prospera. O vício da corrupção grassa, viçoso como nunca se viu. Vai-se insinuando na população uma percepção de decomposição social. Estão-se abrindo as portas de um futuro perigoso.

Em vez de trabalhar para permanecer no poder ad vitam æternam, melhor farão nossos diligentes dirigentes se se esforçarem para deixar boa lembrança de sua passagem pelos píncaros. Serão mencionados com admiração e simpatia nos livros de História dos séculos por vir. O resto é utopia.

De alto padrão

José Horta Manzano

Uma empresa costuma se parecer com seu dono ou com seu gerente. Se o dirigente é atencioso e gentil com a clientela, os funcionários tendem a seguir a mesma trilha. Quando o chefe é malcriado, fala aos berros uma linguagem entrecortada de palavrões e maltrata os funcionários, estes acabam se deixando contaminar. Em pouco tempo, a atmosfera na empresa estará irrespirável. E a firma vai acabar se transformando numa verdadeira casa de mãe joana.

A mesma coisa se dá com um país. O espírito reinante nas altas esferas acaba escorrendo e contaminando boa parte do povo. Um governo autoritário e paranoico perverte o povo. Aconteceu na antiga Alemanha Oriental de 1945 a 1989, quando um governo acossado por mania de perseguição converteu metade da população em espiões. Pai desconfiava de filho, irmão desconhecia irmão, todos bisbilhotavam a vida de todos.

No Brasil não chegamos ― ainda ― a esse nível de tensão. Mas os oito anos de reino de nosso messias deixaram marcas que levarão muito tempo para esmaecer.

Estádio «padrão Fifa»

Estádio «padrão Fifa»

Em sua visão distorcida de mundo, nosso antigo presidente punha o futebol no topo, a preocupação maior, o bem supremo. Suas parábolas faziam uso frequente de metáforas futebolísticas. Para apaziguar a violência do sofrido Haiti, organizou uma partida de futebol. Naturalmente, não conseguiu resolver coisa alguma. Assim mesmo, não desistiu.

Chegou a propor um jogo no conturbado Oriente Médio, como meio ― infalível, segundo ele ― de pôr fim ao conflito crônico entre árabes e israelenses. Os dirigentes daquela região trataram de enquadrar nosso criativo mandachuva. Como era de esperar, o jogo nunca se realizou.

Durante seu longo governo, o Lula deu pouca atenção a problemas graves como, por exemplo, melhorar o nível de instrução do povo. Mas, deixe estar, fez o que pôde para conseguir o bem supremo: que a Copa do Mundo se realizasse no Brasil. O dia em que a escolha do país-sede foi oficializada há de ter sido um dos mais felizes de sua vida. Deve ter-se sentido como se sentiu Napoleão no dia de sua coroação.

Por mérito de seu líder, o Brasil acabava de chegar ao topo da montanha. O acolhimento da Copa do Mundo de futebol está sendo tratado como um fim em si, o clímax, a consagração, o símbolo maior da era do Lula.

Vitória futebolística pode encher os bolsos de cartolas, mas não enche a barriga do povo. Estamos gastando o que podemos e o que não podemos para construir estádios monumentais, uma parte dos quais servirão para abrigar meia dúzia de jogos e mais nada. Ao mesmo tempo, a implantação de ferrovias está parada, a bifurcação do rio São Francisco se arrasta a passo de lesma cansada, falta o equipamento básico necessário para manter a saúde pública. Em resumo, as tradicionais mazelas do país continuam no mesmo patamar em que o presidente taumaturgo as tinha encontrado.

Grama «padrão Fifa»

Grama «padrão Fifa»

Ainda agora, um artigo do Estadão de 29 de setembro nos conta que mais alguns milhões serão gastos para adequar o gramado dos novos estádios ao «padrão Fifa». Como temos visto nestes últimos anos, o Planalto continua reverenciando mais a Fifa do que os maiores clientes do País, aqueles que compram nossas mercadorias. Mas a notícia é excelente, senhores! Teremos estádios padrão Fifa!

Continuaremos com nossa política externa padrão bolivariano, nosso atendimento médico padrão africano e nossa instrução pública padrão medieval. Mas isso não tem a menor importância.

A frase do dia – 10

“Portugal construiu dez estádios “padrão Fifa” para a Eurocopa de 2004. Sete anos depois o país estava falido. A Grécia cometeu iguais loucuras para as Olimpíadas do mesmo ano. Teve a honra de falir primeiro. Lição? Grandes acontecimentos desportivos nem sempre dão o retorno esperado.”

João Pereira Coutinho, escritor e colunista português in Folha de São Paulo online.

Interligne 37d