A pequena rainha

Bicicleta 2

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José Horta Manzano

Você sabia?

O pouco caso que se faz da bicicleta no Brasil contrasta com o prestígio de que ela goza em outras partes do mundo. Na Europa em particular. Na França, por sinal, tem o apelido de «petite reine» ― a pequena rainha.

Os primeiros veículos de transporte pessoal apoiados sobre duas rodas já existiam desde princípios do século XIX. No entanto, não eram dotados de pedal, o que tornava seu uso problemático na subida.

Nos anos 1860, o estabelecimento parisiense Maison Michaux lançou a bicicleta com pedais, novidade absoluta para a época. A partir de então, o veículo se popularizou. Numa época sem automóveis, poder triplicar ou quadruplicar a velocidade de deslocamento era uma revolução!

A minha também é Peugeot!

A minha também é Peugeot!

A Europa do Norte conheceu, em poucos anos, uma revoada de “magrelinhas”. A novidade teve especial sucesso em regiões de planície ― é fácil entender por quê. Norte da França, Inglaterra, Bélgica, Holanda, norte da Alemanha, norte da Itália são bons exemplos.

Com a popularização, o novo veículo foi objeto de melhoramentos constantes. Foi-se tornando mais confiável, mais seguro, mais resistente, mais veloz. Quem fala em velocidade, pensa em competição. Foi exatamente o que aconteceu.

Na virada do século XIX para o século XX, surgiram grandes concursos nacionais de corrida por etapas. Cada país fez questão de ter o seu. O Tour de France (1903), o Giro d’Italia (1909), a Vuelta a España (1935), competições prestigiosas, têm sido disputadas sem interrupção até hoje. Só foram suspensas durante períodos de guerra.

Trecho da corrida Paris-Roubaix

Trecho da corrida Paris-Roubaix

Além dos incontornáveis concursos nacionais, que duram de uns poucos dias a três semanas, há inúmeras corridas regionais ou locais, com duração de algumas horas. Uma das mais antigas é a Paris-Roubaix, que se realiza a cada ano, sempre no mês de abril.

Como seu nome indica, o percurso original levava da capital a Roubaix, no extremo norte, fronteira com a Bélgica. Já faz quase 50 anos que, apesar do nome, a largada é dada em Compiègne, a uns 70km da capital. Essa corrida é conhecida como Inferno do Norte.

Campeão Paris-Roubaix 2013

O troféu da corrida Paris-Roubaix

A razão de qualificativo tão drástico é o fato de uma parte da corrida se efetuar em estrada de paralelepípedos (em geral úmidos, visto que a região é chuvosa). Sem ser ciclista, cada um pode imaginar o que esses 257 km representam de sacolejo, escorregão e pneu furado.

Ciclistas belgas constituem a vasta maioria dos campeões do passado. De cada duas edições, nos últimos 50 anos, uma foi vencida por um corredor belga.

Uma curiosidade dessa corrida é o troféu. O vencedor tem direito a… um paralelepípedo! Limpinho, lavado, escovado, montado sobre uma base, é verdade, mas sempre paralelepípedo será. O mais difícil é, depois de horas de suadeira, ainda encontrar força para fazer o tradicional gesto de levantar os 15-20kg do troféu e exibi-lo à multidão.

Até hoje, a História não registra nenhum vexame.

Publicado originalmente em 13 abril 2014.

Monark e Caloi

José Horta Manzano


Na minha adolescência, duas marcas de bicicleta disputavam o mercado brasileiro: a Monark e a Caloi.


A Monark, mais prestigiosa, era de origem sueca. Nos primeiros anos, era importada. Mais tarde, os veículos passaram a ser fabricados no Brasil. No ano de 1956, a matriz sueca contava com 2500 funcionários, enquanto a filial brasileira já dava emprego a 1000 pessoas, o que mostra a importância da marca no Brasil. Alguns anos mais tarde, a Monark brasileira gritou seu “Independência ou Morte” e passou a seguir caminho próprio. Hoje, as duas versões coexistem: tanto a Monark sueca quanto a brasileira continuam fabricando bicicletas.

Caloi era a outra marca de bicicleta. Seus primeiros anos foram semelhantes aos da concorrente. O imigrante italiano Luigi Caloi começou importando bicicletas italianas. Um negócio cômodo, que não dava dor de cabeça nem exigia grande investimento. Mas chegou a Segunda Guerra, e a fonte secou. Dedicada integralmente à indústria bélica, a Itália parou de exportar bicicletas. Para continuar vendendo, Signor Caloi foi obrigado a montar, às carreiras, uma fábrica nacional. Assim nasceu a Caloi genuinamente tupiniquim.

Agora, vamos à hora da saudade. Durante toda a infância e a adolescência, minha preferida – hoje se diria meu “sonho de consumo” – foi uma Monark. Papai Noel andava meio apertado naquele tempo. A bicicleta só chegou aos 16 anos, quando o sonho já tinha evaporado. Décadas mais tarde, por um desses acasos que a vida nos reserva, cheguei a conhecer a viúva do fundador da fábrica, uma senhora magrinha e já bem velhinha. Todo o mundo a chamava de Dona Caloi. Fim da hora da saudade.

Dia desses, um retardado com nome de bicicleta apoiou, numa laive na internet, a criação de um partido nazista. Acho que não preciso dar aqui detalhes, que o Brasil inteiro ficou sabendo da história. Se faltasse uma prova, está aí a demonstração que os ditos “influenciadores” (que pretensão!) do povão não passam de ignorantes. Os seguidores agem como bando de cegos guiado por caolho.

Com a petulância que só a ignorância lhe permite, o rapaz sustentou sua tese, mostrando desconhecer a História. Na sua cabecinha vazia, nazismo é uma doutrina como qualquer outra. Não é. O nazismo tem um defeito de nascença, que o torna incompatível com o mundo civilizado. Preto no branco, seu programa afirma o objetivo de promover a superioridade da “raça” ariana (em cujos cânones, aliás – cabelos loiros e olhos azuis – o tal influenciador parece não se encaixar). Paralelamente, essa malfadada doutrina põe como objetivo exterminar fisicamente judeus, ciganos, homossexuais e todos aqueles que se opuserem a ela.

Essas diretivas já estavam, aliás, explicitadas no livro Mein Kampf (Meu Combate), que Adolf Hitler escreveu em 1925. Orientais, pretos e índios não são mencionados simplesmente porque, quando a doutrina foi elaborada, não estavam presentes em número significativo em solo europeu. Nazismo é ideologia que, já na cartilha do partido, prega o genocídio – postura proibida por nossa Constituição.

Portanto, que um infeliz “influenciador” não concorde com os termos de nossa Constituição, é problema interno dele. Pode gostar ou deixar de gostar, assim como gosta de costela de porco e detesta sorvete. Pode até comentar numa rodinha de amigos na intimidade de seu chatô. Só não tem o direito de propagar suas ideias em praça pública, comportamento agravado, aliás, pelo fato de ser “influenciador”.

Em matéria de conselhos tortos, quanto maior for a audiência, maior será a culpa de quem os dá. Em nosso país, toda pregação contra os preceitos da Constituição é crime. As queixas-crime que tramitam contra o capitão o demonstram.

Bolsonaro não teve outra opção se não repudiar a fala do rapaz com nome de bicicleta. Só que, mesmo sendo menos “influenciador” que o rapaz ignorante, mostrou ser tão (ou mais) ignorante que ele. Aproveitando o embalo, repudiou também o comunismo, sua obsessão, alegando ser “doutrina que prega o antissemitismo”(sic).

Como é que é? O comunismo prega o antissemitismo? ¡Vaya ignorancia!, como diriam os espanhóis. Quanta ignorância! O capitão precisa urgentemente ler duas linhas sobre o assunto. Vale até a Wikipédia, que, pra ele, já está de bom tamanho. É pra não soltar tanta asneira em público. Acaba pegando mal.

E se alguns daqueles dez ou doze porcento de eleitores que (ainda) o apoiam forem menos ignorantes que ele e souberem que a doutrina comunista, teorizada pelo judeu Karl Marx, não prega o antissemitismo? Vão corar de vergonha? Ou a devoção ao mito do “mito” vai sobrepujar?

Romaria

A basílica de Santiago de Compostela

José Horta Manzano

Na tradição cristã, São Tiago Maior foi um dos doze apóstolos de Jesus, um dos mais chegados ao Mestre. Nasceu nas terras áridas da Palestina, região onde viria a ser martirizado com pouco mais de quarenta anos de idade. Conta a lenda que teria vivido alguns anos espalhando a nova fé na Hispania – a atual Espanha, então província romana. Morto o apóstolo, seguidores dedicados teriam carregado seus despojos para enterrá-los na região onde ele havia passado grande parte da vida e onde posteriormente se formou uma cidade que leva seu nome: Santiago de Compostela (Galiza, Espanha).

No centro da cidade, ergue-se monumental catedral onde estão custodiadas relíquias do santo. Faz mais de um milênio que a devoção por São Tiago é forte entre os cristãos europeus. Já na época de Carlos Magno, no século 9°, havia gente que se abalava de muito longe numa peregrinação que podia levar meses, para chegar à Galiza e recolher-se junto às relíquias do santo. Dirigentes europeus incentivavam essa devoção, principalmente numa época em que a expansão islâmica ameaçava o continente. Um povo coeso e aglutinado em torno da fé é poderosa arma para enfrentar invasões – já conjecturavam os antigos.

A tradição da visita ritual a Santiago de Compostela nunca esmoreceu. Até hoje, no século materialista em que vivemos, muitos e muitos romeiros(*) fazem a peregrinação. Há quem faça uma vez na vida, há quem aprecie refazer o percurso várias vezes. As estatísticas indicam a chegada de mais de 300 mil peregrinos todos os anos, metade deles vindos do estrangeiro. São espanhóis, portugueses, franceses, alemães, suíços, belgas. Pode-se cruzar até com algum inglês ou irlandês ou até com um polonês ou lituano.

Nem todos fazem o percurso inteirinho a pé, como manda a tradição medieval. Esse exercício de milhares de quilômetros na força das pernas não é pra qualquer um. Muitos, seja por falta de tempo, seja por impossibilidade física, percorrem a maior parte do caminho de carro. Em seguida, deixam o veículo e terminam o percurso com uma caminhada de 5km ou 10km, dependendo da disposição, do tempo e dos calos de cada um. Há também quem faça o percurso inteiro de bicicleta. Os romeiros são, na maioria, jovens – gente que está pelos vinte e poucos ou trinta e poucos anos.

Caminhos, há muitos, todos balizados. Há rotas que partem de longe – Alemanha, Áustria, Suíça, Inglaterra – mas todas atravessam necessariamente a França e, naturalmente, boa parte da Espanha. As estradinhas são caminhos vicinais, estreitos, por onde se consegue circular a pé ou de bicicleta. Pode-se ver, aqui e ali, algum veículo agrícola em seu trabalho habitual. Nada de automóveis, muito menos caminhões. As rotas são sinalizadas por placas que portam o símbolo dos Caminhos de Santiago.

Ao longo do percurso, há albergues simples, especializados no atendimento de peregrinos. Dotados de beliches, oferecem pousada em amplos dormitórios concebidos para várias pessoas. A refeição da noite é servida em mesas comunitárias. Tudo isso é proposto a preços módicos. As romarias se espalham pelo ano todo, com especial concentração de abril a outubro, os meses em que a temperatura não é tão baixa.

Para os que têm a intenção de caminhar somente os 5km ou 10km finais, há grandes áreas em que o automóvel pode ser estacionado durante vários dias gratuitamente. É a maneira que as autoridades encontraram para desafogar o tráfego na cidade de Santiago, que, não fosse isso, seria infernal.

Com espanto e tristeza, leio a notícia do atropelamento mortal de quase meia dúzia de romeiros que se dirigiam a Aparecida na semana que precedeu o 12 de outubro. Tirando os jornais regionais, o assunto mereceu duas linhas na imprensa. Tenho dificuldade em entender o descaso. Eram gente! Estavam viajando do jeito que podiam, uns a pé, outros de bicicleta, uns pra pagar promessa, outros por pura devoção. Nenhum deles estava ali pra exigir fechamento do Congresso nem do STF. Eram brasileiros – pobres, como a grande maioria.

Por que foram atropelados? Porque circulavam por uma via expressa, em dia de chuva e pouca visibilidade. E por que faziam essa loucura? Porque não tinham outra opção. Ou iam por ali, ou desistiam de pagar a promessa.

Desde que uma imagem de N. Sra. da Conceição, enegrecida por longo período de imersão, foi pescada no Rio Paraíba do Sul, 300 anos atrás, a devoção popular foi crescendo, ao ponto de a Igreja fazer dela a Padroeira do país. Formado nas cercanias, o arraial cresceu e hoje se chama Aparecida. Abriga atualmente a maior basílica do Brasil, uma das mais amplas do mundo, que há de ter custado verdadeira fortuna.

Só que os peregrinos que preferem (ou que são obrigados a) se locomover à antiga foram esquecidos. Talvez eu esteja desatualizado, mas nunca ouvi falar dos Caminhos de Aparecida, assim como todo católico europeu conhece os Caminhos de Santiago. Pela complexidade – concepção, obtenção de autorizações, revestimento de caminhos – somente o poder público é capaz de encampar essa obra. Devia haver não um, mas vários caminhos que levassem romeiros a Aparecida. Tinham de partir do Rio, de São Paulo, do sul de Minas, de Campinas.

Somos um país de poucas tradições. A Igreja e os governos estaduais da região deveriam se unir para fomentar e dar corpo a esse costume popular. Se essas peregrinações não se tornam mais concorridas é justamente porque não é qualquer um que está disposto a arriscar a vida de bicicleta na Via Dutra.

Viajar de ônibus e fazer o caminho a pé não são a mesma coisa. Uma via pedregosa leva mais rápido ao céu.

(*) Romeiro, em princípio, é palavra que designa o peregrino que vai a Roma. Mas é costume estender seu sentido para todos os que vêm de longe para uma visita ritual a um lugar santificado.

Vou de táxi

José Horta Manzano

Na Suíça, assim que a quarentena começou a afrouxar, o tráfego de automóveis teve aumento brutal. Sumiu o canto dos pássaros e voltou a poluição por partículas finas. A volta à vida pré-pandemia foi recaída brutal.

Diferentemente do que ocorre no Brasil, as atividades econômicas deste país não estão geograficamente concentradas. Para trabalhar, não são todos obrigados a convergir em direção a alguma metrópole. Os focos de atividade econômica – indústrias ou serviços – estão disseminados pelo país. No entanto, dado que nem todos residem ao lado do trabalho, grandes contingentes se deslocam diariamente em todas as direções. Boa parte desses “pendulares” viaja de trem.

Acontece que, mesmo as autoridades tendo informado que o risco de infecção é diminuto, o povo anda ressabiado; afinal, ninguém é besta. Muitos hesitam em botar de novo os pés num trem. Os citadinos, que tinham o hábito de ir ao trabalho em transporte público, também estão com medo de apanhar covid-19 no ônibus. O resultado é que muitos habitués da estrada de ferro e do trasporte público urbano renunciaram ao costume, desempoeiraram o automóvel, encheram os pneus, completaram o tanque e agora trafegam sobre quatro rodas.

Dá pra imaginar o congestionamento provocado pelo repentino afluxo de veículos. Logo nos primeiros dias de desconfinamento, pra evitar que a pandemia fosse substituída por um pandemônio, as autoridades das principais cidades do país decidiram delimitar, às pressas, novas faixas de rolamento de bicicletas, as conhecidas ciclovias.

Dois corpos não costumam ocupar o mesmo lugar no espaço – é lei da Física, cláusula pétrea da natureza. Pra criar faixa de bicicleta, tem de diminuir a largura da faixa de automóvel. Em ruas estreitas do centro de cidades antigas, não tem perdão: ou passa automóvel, ou passa bicicleta; se vierem os dois juntos, vai dar problema.

Ciclofaixa do futuro

A grita anda feia. Automobilistas reclamam por ter perdido parte da rota habitual; ciclistas reclamam porque a nova faixa ciclável é às vezes exígua. Em resumo: muita gente descontente. Mas não há jeito. É ilusão imaginar que, daqui a 50 anos, cada um vai continuar a sair por aí no seu carrinho particular. No futuro, congestionamento de tráfego será lembrança de um passado de selvageria. Já que é assim, por que não começar desde já?

De bicicleta

José Horta Manzano

A queixa mais recorrente que se faz contra homens públicos é a de se dedicarem mais a benefícios pessoais e menos ao interesse da população. O modo de agir de grande parte dos representantes do povo é, de fato, desleal. Eleitos que foram para cuidar do bem comum, desvirtuam-se. Uma vez instalados nas confortáveis poltronas das casas legislativas, mandam para escanteio o interesse dos eleitores e passam a cuidar dos próprios.

Um exemplo atualíssimo é a reticência dos parlamentares em promover reformas no sistema previdenciário. Toda pessoa de bom senso, com um mínimo de informação, consegue entender que, do jeito que está, a regra atual não tem condições de se sustentar. Nem a médio prazo. É falência certa, débâcle pela qual todos pagarão: ativos e aposentados, válidos e inválidos, ricos e pobres.

Apesar dessa evidência estatística, suas excelências resistem. O interesse eleitoral imediato de cada um prevalece sobre o bem comum, hipotecando o futuro dos cidadãos. Se trancam a pauta e sonegam o voto, não é por convicção nem por ideologia. Respondem apenas à mesquinha estratégia de passar por simpáticos e assim aumentar a chance de reeleição.

O exemplo vem de cima. Queiram ou não, o comportamento das excelências que nos governam dá o tom. Desvios de conduta lá em cima incentivam atitudes tortas cá embaixo. Fica difícil exigir do zé povinho um comportamento aprumado quando a safadeza de figurões frequenta quotidianamente a mídia.

Estes dias, tornou-se pública a informação de que um cidadão, interessado em conquistar a coroa de recordista mundial de rapidez em bicicleta, conseguiu a impressionante façanha de circular em velocidade superior a 200km/h. O fato se deu no Paraná em novembro último. Parabéns ao campeão. Mas.. como é que ocorreu?

BR-277 sem espetáculo ciclista

Para atingir o recorde, não havia outro meio senão correr no vácuo de outro veículo. O governo do Paraná e a Polícia Rodoviária Federal se acumpliciaram para dar uma ajudazinha ao rapaz. Passando por cima do interesse dos usuários, autorizaram o fechamento de longo trecho de uma rodovia federal. O “espetáculo” teve lugar na BR-277, importante via expressa que liga Curitiba ao litoral. Em plena luz do dia, o tráfego foi interrompido ‒ nos dois sentidos ‒ por longos 20 minutos.

O poder público não se comoveu com a aflição do honesto cidadão que tivesse de apanhar um avião no aeroporto nem com o desespero da mulher prestes a dar à luz que não tivesse outro caminho para a maternidade. Tampouco pensaram em ambulâncias, veículos de bombeiros ou viaturas policiais que porventura tivessem premência de circular por ali. Sem mencionar o contratempo causado aos demais usuários, que são, ao fim e ao cabo, os que pagaram pela construção da estrada e continuam pagando pela manutenção.

Ainda falta muito para o dia em que o interesse público primará sobre conveniências pessoais.

Nota 1
Segundo o locutor televisivo que comentou o “evento”, faz tempo que esse ‘campeão’ ciclista foi banido de competições regulares por motivo de dopagem. Eis por que se dedica a outro tipo de espetáculos. Ficam aqui nossos parabéns às autoridades que patrocinaram a pavonada.

Nota 2
Tanto o recordista quanto as dezenas de veículos que o acompanhavam no eletrizante show circularam em flagrante excesso de velocidade. Não há registro de que algum deles tenha sido multado. Pontos na carteira? Isso é pra nós, que somos menos iguais.

Frase do dia — 244

«Se a doutora Dilma for pedalar na orla da Lagoa Rodrigo de Freitas com sua bicicleta importada, da grife Specialized (R$ 2.350), no mínimo ficará sem o brinquedo.

A doutora defende a proteção à indústria brasileira, mas pedala bicicleta americana e, durante a campanha eleitoral, foi fotografada calçando sapatos de Louis Vuitton.»

Elio Gaspari em sua coluna d’O Globo, 7 jun° 2015.

Paraciclos

José Horta Manzano

Muitas das mazelas do Brasil vêm da confusão entre o que é público e o que é privado. Essa mistura não é nova nem é exclusividade brasileira. A discussão é antiga e vem de longe.

Na Idade Média europeia, o senhor feudal tinha direitos absolutos sobre seu domínio. Tudo lhe pertencia: terras, águas, construções e… gentes. O bem público simplesmente não existia.

Bicicleta 4No século 18, o conceito perdurava. Embora a propriedade privada já começasse a ser reconhecida, o rei ainda era visto como virtual proprietário do país. Na França, a mudança foi brutal. Aconteceu durante a Revolução Francesa, com a abolição dos privilégios. Em outros países, a evolução foi mais suave.

No Brasil, a separação entre o que é de cada um e o que é de todos tem-se feito com lentidão e ainda está longe de ter sido assimilada por todos. Até hoje, boa parte dos cidadãos não se deu conta dos limites.

Bicicleta 5Um exemplo recente está no assalto a empresas públicas – falo do petrolão. Os assaltantes têm vaga noção de haver cometido um “erro”, mas não se compenetram de que meteram a mão no dinheiro do povo. Podem até, numa hipótese extrema, admitir que levaram a grana de uma empresa, sem se dar conta de que embolsaram, na verdade, dinheiro suado do contribuinte. O pior é que o contribuinte assaltado continua acreditando que os facínoras levaram dinheiro «da Petrobrás», sem perceber que o lesado foi ele mesmo.

Li, estes dias, que a prefeitura paulistana publicou manual destinado a instruir os cidadãos que desejarem instalar um paraciclos – neologismo saboroso que nomeia dispositivo onde se pode estacionar uma bicicleta. Que ninguém reclame: escapamos de um «stopbike». Uff.

A intenção ecológica seria louvável, não fosse o reforço que traz à confusão entre o que é de cada um e o que é de todos. Proprietários de imóvel ficam autorizados, desde que sigam algumas regras, a plantar o dispositivo na calçada, no passeio público.

Bicicleta 7Para quem vive em terras onde é nítido e rigoroso o limite entre o público e o privado, a prática paulistana é desnorteante. Com que então, todo cidadão fica autorizado a instalar no espaço público – chumbado em caráter permanente – um bem móvel que lhe pertence? A mim, deixa-me perplexo.

Bicicleta 6A nova regra alimenta e reforça um dos grandes vícios nacionais. O que é de cada um tem de ser cuidado por cada um. O que é de todos só pode ser cuidado pela autoridade pública. Cabe à prefeitura montar paraciclos, assim como lhe cabe instalar postes, pontos de ônibus, placas de sinalização, bancos de jardim, estátuas e todo o mobiliário público urbano.

Muitos reclamam – com razão – da atitude de cidadãos que se apoderam de ruas sem saída e as fecham, impedindo a entrada a concidadãos e privatizando, assim, o bem público. Pois a permissão dada a particulares para instalar paraciclos é passo na direção errada. Borra a nitidez da linha divisória entre o público e o privado.

A rainhazinha

José Horta Manzano

Bicicleta 2

Você sabia?

O pouco caso que se faz da bicicleta no Brasil contrasta com o prestígio de que ela goza em outras partes do mundo. Na Europa em particular. Na França, por sinal, tem o apelido de «petite reine» ― a rainhazinha.

Os primeiros veículos de transporte pessoal apoiados sobre duas rodas já existiam desde princípios do século XIX. No entanto, não eram dotados de pedal, o que tornava seu uso problemático na subida.

Nos anos 1860, o estabelecimento parisiense Maison Michaux lançou a bicicleta com pedais, novidade absoluta para a época. A partir de então, o veículo se popularizou. Numa época sem automóveis, poder triplicar ou quadruplicar a velocidade de deslocamento era uma revolução!

A minha também é Peugeot!

A minha também é Peugeot!

A Europa do Norte conheceu, em poucos anos, uma revoada de magrelinhas. A novidade teve especial sucesso em regiões de planície ― é fácil entender por quê. Norte da França, Inglaterra, Bélgica, Holanda, norte da Alemanha, norte da Itália são bons exemplos.

Com a popularização, o novo veículo foi objeto de melhoramentos constantes. Foi-se tornando mais confiável, mais seguro, mais resistente, mais veloz. Quem fala em velocidade, pensa em competição. Foi exatamente o que aconteceu.

Na virada do século XIX para o século XX, surgiram grandes concursos nacionais de corrida por etapas. Cada país fez questão de ter o seu. O Tour de France (1903), o Giro d’Italia (1909), a Vuelta a España (1935), competições prestigiosas, têm sido disputadas sem interrupção até hoje. Só foram suspensas durante períodos de guerra.

Trecho da corrida Paris-Roubaix

Trecho da corrida Paris-Roubaix

Além dos incontornáveis concursos nacionais, que duram de uns poucos dias a três semanas, há inúmeras corridas regionais ou locais, com duração de algumas horas. Uma das mais antigas é a Paris-Roubaix, que se realiza a cada ano, sempre no mês de abril. A edição 2014 tem lugar neste 13 de abril.

Como seu nome indica, o percurso original levava da capital a Roubaix, no extremo norte, fronteira com a Bélgica. Já faz quase 50 anos que, apesar do nome, a partida é dada em Compiègne, a uns 70km da capital. Essa corrida é cognominada Inferno do Norte.

Campeão Paris-Roubaix 2013

Campeão Paris-Roubaix 2013

A razão de qualificativo tão drástico é o fato de uma parte do percurso se efetuar em estrada revestida de paralelepípedos. Sem ser ciclista, cada um pode imaginar o que isso representa de sacolejo, escorregão e pneu furado.

Ciclistas belgas constituem a vasta maioria dos campeões do passado. De cada duas edições, nos últimos 50 anos, uma foi vencida por um corredor belga. Vamos ver quem será o primeiro a cumprir os 257km hoje.

Uma curiosidade dessa corrida é o troféu. O vencedor tem direito a… um paralelepípedo! Limpinho, lavado, escovado, montado sobre uma base, é verdade, mas sempre paralelepípedo será. O mais difícil é, depois de horas de suadeira, ainda encontrar força para fazer o tradicional gesto de levantar os 15-20kg do troféu e exibi-lo à multidão.

Até hoje, a História não registra nenhum vexame.

Interligne 18b

Informação complementar:
Um ciclista holandês venceu a Paris-Roubaix 2014. E não deixou cair o paralelepípedo.

A bicicleta do senhor padre

Todos os domingos, num lugarejo do interior, dois padres costumavam cruzar, de bicicleta, cada um a caminho de sua paróquia para rezar a missa. Certo dia, um deles vinha a pé. Surpreso, o outro padre parou, cumprimentou e perguntou:
«Onde está sua bicicleta, Padre João?» «Sumiu! Acho que foi furtada do pátio da igreja.»

«Que absurdo!» ― exclamou o ciclista. «Eu tenho uma ideia para saber quem é o culpado: na hora do sermão, cite os 10 mandamentos. Quando chegar ao “Não roubarás”, faça uma pausa e percorra os fiéis com o olhar. O culpado com certeza vai-se denunciar!»

No domingo seguinte, os dois cruzam de novo na estrada. Ambos de bicicleta. O que tinha dado a ideia diz:
«Parece que o sermão deu certo, não é, Padre João?»

«Mais ou menos», ― responde ele ― «na verdade, quando cheguei ao “Não cobiçarás a mulher do próximo”, acabei por me lembrar onde é que tinha deixado a bicicleta.»