Assessoria indigente

José Horta Manzano

 


Pra que vamos criar problema?


 

O assunto já está na praça há três dias. Tenho de correr pra escrever antes que ele saia da mira. Com o capitão, os escândalos se sucedem, vertiginosos, cada novo episódio condenando o anterior ao esquecimento. A gente tem a impressão de estar sempre correndo atrás pra não perder o bonde.

Sábado passado, o Instituto PoderData publicou o resultado de sua pesquisa sobre a aceitação da vacina por parte dos brasileiros. A pergunta era se o entrevistado já tomou ou pretende tomar vacina contra o coronavírus. Dentre as 3.000 pessoas questionadas – em 489 municípios das 27 unidades federadas ––, somente 2% não souberam ou não quiseram responder à pergunta. As demais responderam afirmativamente. Trocado em miúdos, isso significa que somente 1 em cada 50 habitantes, com 16 anos ou mais, é contrário à vacina. O que se ouviu foi um quase unânime “SIM” nacional.

O povo brasileiro é o mais entusiasta, na América Latina, e quiçá no mundo, com relação à vacina. Dois porcento de ‘vacino-hesitantes’ é praticamente nada. Pode-se concluir que o brasileiro amou a vacina, se jogou em cima dela, abraçou-a, beijou-a, espichou o braço, levou a picada e saiu feliz, pedindo mais.

Dito isso, fica cada dia mais difícil entender o posicionamento do capitão. Não é que, no mesmo sábado em que saiu a pesquisa, ele afirmou ser contrário ao passaporte vacinal exigido de viajantes que chegam do estrangeiro? Soltou frase reveladora: “Pra que vamos criar problema?”

É que, na visão doentia de Bolsonaro, correr o risco de deixar entrar a nova variante mal conhecida do vírus não é problema. Para ele, o verdadeiro problema está em se assegurar que o viajante não está infectado. Pode?

E pensar que, desde que o ser humano vive em comunidade, a função primeira do chefe é justamente a de proteger o grupo. Desde a pré-história, o líder tem sido escolhido por ser capaz de transmitir segurança a seu povo. Bolsonaro prefere importar doença a “criar problema” para viajantes potencialmente infectados.

O capitão não conhece a História da Humanidade. Na escola, pouco aprendeu; durante a vida, nada acrescentou a seu parco capital intelectual. Não consegue se dar conta de que os líderes – bons ou maus – que o povo carregou um dia nos braços foram os que mostraram estar em sintonia com a população. Churchill, Stalin, Hitler, De Gaulle, Mussolini entram nessa conta. Evidentemente, Bolsonaro jamais será membro do clube. Nem dos bons, nem dos maus.

O capitão não perde ocasião pra escancarar sua falta de inteligência. Só dois porcento dos brasileiros rejeitam a vacina. Isso quer dizer que os 10% ou 15% que (ainda) apoiam o presidente já se vacinaram ou pretendem fazê-lo, ou seja, fazem parte do contingente que abraçou a vacina. Ao insistir em se posicionar contra vacina, contra vacinados e contra passaporte vacinal, ele está pisando o calo dos próprios devotos.

Será que ele não tem nenhum assessor menos tapado, capaz de orientá-lo? Parece que não.

Trilha com sabor de chocolate

José Horta Manzano

Você sabia?

Os suíços sentem muito orgulho por seu país não ter sido invadido por tropas alemãs nem italianas na Segunda Guerra Mundial. É realmente surpreendente que a pequena Suíça não tenha sido engolida, com casca e tudo, pelos exércitos do Eixo. Afinal, excluindo um minúsculo trecho que a separa do Principado do Liechtenstein, a Suíça estava completamente cercada por nações em guerra. Tinha (ainda tem) fronteira com a Alemanha, a Itália, a França (ocupada pela Alemanha) e a Áustria (anexada à Alemanha). No país helvético, muita gente atribui essa não intervenção à força de dissuasão representada pelo poderio militar suíço.

Bunker disfarçado de chalé de madeira

Há quem sorria ao ouvir essa explicação. Seja como for, tanto Berlim quanto Roma sabiam que seria bastante complicado dominar e ocupar um território montanhoso como este. Sabiam também que os suíços estavam muito bem armados e equipados, além de serem conhecidos como combatentes aguerridos.

Toblerone de verdade

Hitler e Mussolini devem ter feito a conta duas vezes. Chegaram à conclusão de que não valia a pena perder tempo, dinheiro, esforço e vidas humanas para conquistar um território pouco industrializado e totalmente desprovido de riqueza mineral. De qualquer maneira, não saberemos nunca o que realmente passou pela cabeça dos dois ditadores.

Linha dos toblerones

Linha dos toblerones

Eu acrescentaria mais uma razão. Numa Europa conflagrada, interessava a todos respeitar a neutralidade de um pequeno território, situado bem no centro geográfico do conflito. Era um lugar seguro, de onde não se receava que viesse nenhuma ameaça. Mais que isso, era um lugar onde todos podiam guardar, na confiança, seus dinheiros, seus ouros, suas obras de arte e suas joias. Mais ainda: um lugar superconveniente para eventuais encontros secretos e confabulações discretas e confidenciais. Todas essas razões hão de ter contribuído para que o país fosse poupado.

Isso hoje faz parte da História. Como diz o outro, «Depois que aconteceu, qualquer um é profeta; difícil mesmo é adivinhar o futuro». Naqueles anos 1930, um bafo de guerra soprava no continente, embora ninguém soubesse de que lado nem com que força viria a tempestade. As autoridades suíças não podiam cruzar os braços e apenas torcer para que o país não fosse invadido. Todos tinham de estar prontos para repelir tropas inimigas.

Linha dos toblerones, hoje utilizada para caminhadas a pé

A inteligência militar planejou um complexo sistema de defesa. Naqueles tempos, a referência mais próxima era a Primeira Guerra (1914-1918), durante a qual os ataques se faziam por via terrestre, com tanques e blindados. Foi pensando nisso que bolaram o sistema defensivo suíço, basicamente terrestre àquela época. Incluía numerosos pontos, alguns dos quais são hoje conhecidos do grande público, enquanto outros ficarão secretos para sempre. Talvez seja melhor assim.

Todas as pontes do país estavam minadas. Ao menor sinal, as vias de comunicação seriam interrompidas, o que dificultaria tremendamente o avanço de tropas inimigas. A região de Genebra, fronteiriça com a França, trazia um problema espinhoso para os militares. Por ser constituída de terrenos planos e pela ausência de rios, foi considerada indefensável. Tomou-se a decisão tática de dar a cidade como perdida e implantar o sistema de defesa uns 30km mais para o interior do país.

Villa Rose Fortaleza disfarçada de casa de campo

Villa Rose
Fortaleza disfarçada de casa de campo

Construíram-se fortalezas com aparência de pacíficas casas de campo. Foram levantados bunkers com aspecto externo de inofensivos chalés de madeira. Instalaram-se discretos postos de observação em pontos mais elevados ― naqueles tempos não havia street view nem espionagem por satélite. Para completar, uma verdadeira obra de arte defensiva foi construída, uma versão helvética da muralha da China. Ficou conhecida popularmente como Ligne des toblerones, a linha dos toblerones.

O que era e por que lhe deram esse nome?
Era – e ainda é – uma linha de 10km de blocos de concreto que impossibilitam a passagem de tanques de guerra. São quase 3000 blocos monstruosos de 9 toneladas cada um. Têm forma peculiar de tetraedro que lembra um pedaço de chocolate Toblerone, daí o apelido.

Villa Rose Janela com cortina falsa

Detalhe da Villa Rose: janela com cortina falsa

Não se tem notícia de que nenhum tanque tenha jamais tentado superar o obstáculo. A guerra acabou faz muito tempo. A Suíça não foi invadida. Mas os toblerones continuam lá até hoje. Quem é que vai arrastar aqueles imensos blocos? E o que fazer com eles depois? Assim, foram deixados onde estavam e, aos poucos, acabaram se tornando atração turística. Uma trilha própria para caminhadas a pé serpenteia por quilômetros, dentro da floresta, ao longo da barreira de concreto. É conhecida hoje como o Sentier des Toblerones, a Trilha dos Toblerones.

Taí uma obra militar que soube envelhecer. Em escrupuloso respeito ao espírito atual, não foi atirada a um lixão mas acabou reciclada.

Publicado originalmente em 28 nov° 2013.

Trilha dos toblerones

José Horta Manzano

Você sabia?

Os suíços sentem muito orgulho por seu país não ter sido invadido por tropas alemãs nem italianas na Segunda Guerra Mundial. É realmente surpreendente que a pequena Suíça ― cercada por Alemanha, Itália, Áustria (anexada pela Alemanha) e França (ocupada por tropas de Berlim) ― não tenha sido engolida, com casca e tudo, pelos exércitos do Eixo. A maioria do povo atribui essa não intervenção à força de dissuasão representada pelo poderio militar suíço.

Bunker disfarçado de chalé de madeira

Há quem sorria ao ouvir essa explicação. Seja como for, tanto Berlim quanto Roma sabiam que seria bastante complicado dominar e ocupar um território montanhoso como este. Sabiam também que os suíços estavam muito bem armados e equipados, além de serem conhecidos como combatentes aguerridos.

Toblerone de verdade

Hitler e Mussolini devem ter feito a conta duas vezes. Chegaram à conclusão de que não valia a pena perder tempo, dinheiro, esforço e vidas humanas para conquistar um território pouco industrializado e totalmente desprovido de riqueza mineral. De qualquer maneira, não saberemos nunca o que realmente passou pela cabeça dos dois ditadores.

Linha dos toblerones

Linha dos toblerones

Eu acrescentaria mais uma razão. Numa Europa conflagrada, interessava a todos respeitar a neutralidade de um pequeno território, situado bem no centro geográfico do conflito. Era um lugar seguro, de onde não se imaginava poder vir nenhuma ameaça. Mais que isso, era um lugar onde todos podiam guardar, na confiança, seus dinheiros, suas obras de arte, seus objetos de valor. Mais ainda: um lugar onde se podiam organizar eventuais encontros secretos e manter conversações discretas e confidenciais. Todas essas razões hão de ter contribuído para que o país fosse poupado.

Isso hoje faz parte da História. Como diz o outro, «depois do fato consumado, é fácil ser profeta». Difícil mesmo é adivinhar o que está por ocorrer. No final dos anos 30, um bafo de guerra soprava no continente, mas ninguém sabia de que lado nem com que força chegaria a tempestade. As autoridades suíças não podiam cruzar os braços e apenas torcer para que o país não fosse invadido. Todos tinham de estar prontos para repelir tropas inimigas.

Linha dos toblerones

Linha dos toblerones – hoje utilizada como trilha para caminhada a pé

A inteligência militar planejou um sistema de defesa. A referência mais próxima era a Primeira Guerra, durante a qual os ataques se faziam por via terrestre, com tanques e blindados. Foi pensando nisso que bolaram o sistema defensivo suíço, basicamente terrestre àquela época. Incluía numerosos pontos, alguns dos quais são hoje conhecidos do grande público, enquanto outros ficarão secretos para sempre. Talvez seja melhor assim.

Todas as pontes do país estavam minadas. Ao menor sinal, as vias de comunicação seriam interrompidas, o que dificultaria tremendamente o avanço de tropas inimigas. A região de Genebra, fronteiriça com a França, trazia um problema espinhoso para os militares. Por ser constituída de terrenos planos e pela ausência de rios, foi considerada indefensável. Tomou-se a decisão tática de dar a cidade como perdida e implantar o sistema de defesa uns 30km mais para o interior do país.

Villa Rose Fortaleza disfarçada de casa de campo

Villa Rose
Fortaleza disfarçada de casa de campo

Construíram-se fortalezas com aparência de casas de campo. Foram levantados bunkers com aspecto externo de inofensivos chalés de madeira. Instalaram-se discretos postos de observação em pontos mais elevados ― naqueles tempos não havia street view nem espionagem por satélite. Para completar, uma verdadeira obra de arte defensiva foi construída, uma versão helvética da muralha da China. Ficou conhecida popularmente como Ligne des toblerones, a linha dos toblerones.

O que era e por que lhe deram esse nome?
Era ― e ainda é ― uma linha de 10km de blocos de concreto para barrar a passagem de tanques de guerra. São quase 3000 monstros de 9 toneladas cada um. Têm forma peculiar de tetraedro que lembra um pedaço de chocolate Toblerone, daí o apelido.

Não se tem notícia de que nenhum tanque tenha jamais tentado superar o obstáculo. Mas os toblerones continuam lá até hoje. Viraram atração turística. Trilhas próprias para caminhadas a pé serpenteiam por quilômetros, dentro da floresta, ao longo da barreira de concreto. É hoje o Sentier des Toblerones, a Trilha dos Toblerones.

Villa Rose Janela com cortina falsa

Detalhe da Villa Rose
Janela com cortina falsa

Taí uma obra militar que soube envelhecer. Em escrupuloso respeito ao espírito atual, não foi atirada a um lixão mas acabou reciclada. Incluí algumas imagens dos bunkers disfarçados de chalé e dos toblerones.

Publicado originalmente em 28 nov° 2013.

 

Presidente eterno

José Horta Manzano

Subir ao topo do poder e lá permancer… quem dera! É o sonho de muitos poderosos. Tanto poderosos experientes e confirmados quanto aprendizes em começo de carreira. Mas não é tarefa fácil. Requer um punhado de circunstâncias que poucas vezes se conjugam. O mais das vezes, a perenização no poder é fruto de ação violenta que, como tudo o que é engendrado na violência, periga também terminar na valentona.

Hitler e Mussolini, para se segurar no topo da escada, lançaram mão de artilharia pesada: guarda pretoriana, coerção, ameaça, perseguição feroz a adversários, eliminação da concorrência. Como se sabe, o tombo final também ocorreu brutalmente, ao final de guerra que custou milhões de vidas.

Os bondosos irmãos Castro subiram no bojo de uma revolução que começou com ares de redenção nacional e acabou se transformando em brutal repressão que dura há meio século. Cubanos com menos de setenta anos de idade sequer se lembram de como era a vida quando cada um tinha liberdade de viver como bem entendesse.

O sírio Bachar e o norte-coreano Kim(*) rezam pela mesma cartilha dos Castros. Com uma diferença, todavia: já chegaram lá como herdeiros da violência dos antepassados. Menos hábeis que os predecessores, têm trocado os pés pelas mãos. Defrontam um mundo que já tem dificuldade em tolerar regimes a tal ponto brutais. Terão sorte se conseguirem escapar ao destino do fascista Mussolini ‒ dependurado de cabeça pra baixo num posto de gasolina.

Um caso fora dos padrões apareceu estes dias. Foi na China. Desejoso de eternizar-se no topo do poder, Xi Jinping(*) conseguiu extraordinária façanha. Conseguiu que a assembleia aprovasse mudança na Constituição. Onde antes limitava a permanência na presidência a dois mandatos, o texto permite agora tantas reeleições quantas o ocupante do cargo desejar. Com um congresso amestrado, ninguém vai conseguir tirar o homem de lá.

O resultado do voto dos representantes do povo chinês foi de deixar babando qualquer aprendiz de ditador: a alteração da lei foi aprovada com o resultado soviético de 2958 votos a 2. (Corajosos, esses dois!) Três deputados se abstiveram. A mídia global comentou o acontecido. Mas não se ouviu o mais leve sussurro de desaprovação. Nenhum governo estrangeiro exprimiu o mais débil desagrado.

Imagino que um certo senhor que presidiu o Brasil por oito anos ‒ e hoje está um bocado enrolado com a justiça ‒ há de estar verde de inveja. Bobagem. No Brasil, essa façanha não passa de sonho irrealizável. Em nossa terra, diferentemente do que acontece na China, seria preciso corromper meia assembleia. E sairia caro, pode acreditar. O patrimônio integral de uma Petrobrás não bastaria. Precisava umas duas ou três petroleiras.

(*) Nome de chineses e coreanos segue ordem diferente da nossa. Primeiro, vem o sobrenome (nome de família). Depois aparece uma combinação de duas palavras que servem de prenome. Em Xi Jinping, por exemplo, Xi é o nome de família enquanto Jin Ping é o prenome dado pelos pais. Na mesma linha, o nome do ditador coreano é composto de Kim (sobrenome) e de Jung Il (prenome).

Mãe de todas as bombas

José Horta Manzano

Ainda bem que a memória humana é curta. A esmagadora maioria dos fatos acontecidos em passado próximo ou distante já nos teria saído da lembrança se não fossem registros escritos e livros de história.

Nos tempos que correm, a enxurrada de tragédias de que a gente fica sabendo deixam a impressão de que vivemos tempos terríveis, extraordinários, pontos fora de toda curva. Achamos que o mundo está sendo conduzido por desequilibrados e irresponsáveis dos quais nada de bom se pode esperar. Os impressionantes delírios de um Trump, de um Bachar, de um Maduro, de um Kim Jong-Un nos fazem esquecer que Hitler, Stalin, Mussolini, Napoleão já seguraram as rédeas e já fizeram das suas.

Dementes atuais relegam mentecaptos antigos ao baú do esquecimento. É melhor que seja assim. A cada época bastam seus desatinados.

Donald Trump se gabou, estes dias, de ter lançado a «mãe de todas as bombas» sobre um covil de djihadistas. Fica-se sabendo do prodigioso poder desse artefato bélico. Não se passaram dois dias, e Vladimir Putin manda dizer que dispõe de dispositivo de potência muito superior. Dá-lhe o nome de «pai de todas as bombas» e informa que sua arma tem poder ainda maior que o do rival. Seu potencial de explosão é quatro vezes superior ao dos EUA. Diz que já foi testada com sucesso e que está pronta para ser lançada se e quando necessário.

Hoje é Sábado de Aleluia, dia de malhar o Judas. Data venia, vamos sonhar um pouco, que não faz mal a ninguém. Sonho, qualquer dicionário confirma, é plano ou desejo absurdo, sem fundamento. Nestes dias em que grande parte da humanidade comemora a chegada da primavera, com sua simbologia de renascimento e renovação, por que não dar asas à fantasia e sonhar com algo (por ora) impossível?

Vamos imaginar que, no futuro, cientistas espremam seus miolos para inventar um engenho que, ao explodir, não destrua mas construa. Imagine o distinto leitor que se fabrique a «patriarca de todas as bombas». Ao ser acionada, consertaria, em um instante, as cidades e vilas destruídas na Síria. Reporia de pé monumentos milenares dinamitados por talibãs fanáticos. Reconstruiria localidades arrasadas por terremotos.

Essa, sim, seria uma criação digna de despertar respeito e admiração. Eu iria até mais longe. Lançaria a «patriarca de todas as bombas» sobre o Brasil, na esperança (e na expectativa) de que repusesse o país nos trilhos, que desse fim à corrupção que arruina o futuro de milhões em benefício do enriquecimento de um punhado de seres desprezíveis.

Infelizmente, acho que já estou pedindo demais. Certas coisas não são imagináveis nem em sonho.

Murió el comandante

José Horta Manzano

Os que conheceram um mundo sem Fidel Castro já se aposentaram. Nove entre dez cubanos não conheceram a ilha sem o líder máximo. Os poucos que chegaram a passar a infância antes da revolução já não se lembram mais de como era. Afinal, são quase sessenta anos ‒ é muita coisa.

A ilha de Cuba antes da tomada do poder pelos revolucionários castristas ‒ que se diga sem firulas ‒ era, com o perdão da palavra, um bordel. Os cassinos, a luxúria, a tropicalidade e a permissividade faziam de Havana um destino recreativo barato e accessível. A ultracorrupta ditadura de Fulgencio Batista atiçava as brasas e exaltava a libido. A proximidade geográfica dos EUA cuidava de fornecer os turistas. Alguns vinham em família, mas a maioria dos visitantes eram homens em busca de aventura fugaz regada a rum e embalada por rumbas e mambos.

Fidel Castro e Juscelino Kubitschek

Fidel Castro e Juscelino Kubitschek, 1959

Todo exagero acaba mal. O desequilíbrio alimentado pela ditadura decadente de Batista foi perfeito estopim para a aventura libertária de um grupo de jovens. Valeram-se da «guerrilha», termo criado pela língua espanhola justamente para designar a «guerrinha», esse estado permanente de tensão bem diferente da guerra tradicional, feita de aviões e de tanques. Na guerrilha, todas as pequenas ações acontecem de surpresa. Vive-se em alerta constante sem saber de onde virá o ataque.

Responsável por um regime apodrecido, sanguinário e sem sustentação popular, Fulgencio Batista caiu. Assim que o bando de Fidel Castro se aproximou de Havana, o ditador fugiu para o exterior, peregrinou por um tempo e acabou encontrando exílio na Espanha, onde ficou até o fim de seus dias.

No começo, até que não foi mal. Em busca de apoio internacional, Fidel percorreu mundo. Até no Brasil esteve em 1959, quando se encontrou com o presidente Juscelino Kubitschek. Dois anos mais tarde, chegou a receber visita de nosso folclórico presidente Jânio Quadros.

Fidel Castro e Jânio Quadros

Fidel Castro e Jânio Quadros, 1961

Quanto à ideologia, o bando revolucionário cubano hesitava. Embora, mais tarde, tenham jurado ter sido comunistas desde a infância, a coisa é mais complicada. Despachado o velho ditador, chegou a hora de procurar sustento e reconhecimento internacional. Os Estados Unidos, dados os laços históricos e a proximidade geográfica, foram procurados em primeiro lugar.

O governo americano cometeu então um erro estratégico. Não deu grande importância aos jovens barbudos. Naqueles tempos de Guerra Fria foi atitude fatal. Não restou aos revolucionários senão buscar o apoio da União Soviética, que aceitou agradecida. Daí pra frente, deu no que deu. Cuba tornou-se bastião do comunismo fincado a 150km das costas americanas. Cara feia, embargo e ostracismo não resolveram o problema: o mal estava feito. O regime antigo foi substituído por nova ditadura, tão sanguinária quanto a anterior.

Dizem que o bem é mais poderoso que o mal. Pode ser. Mas tem uma coisa. Ainda que você tenha andado na linha a vida inteira ‒ respeitoso, bondoso, correto, direito ‒, basta dar um mau passo, unzinho só, e será grande o risco de pôr tudo a perder. Leva-se muito tempo para construir uma reputação, mas, para destruí-la, basta muito pouco.

Fidel Castro e o Lula

Fidel Castro e o Lula

Fidel Castro terá tido seus méritos, principalmente no início da gestão. Aliviou a miséria dos concidadãos, melhorou o acesso à alfabetização e à saúde. Por seu lado, as liberdades individuais sofreram um baque. Julgamentos sumários e execuções secretas, cidadãos vigiados e fichados, desconfiança disseminada, prisão de dissidentes, proibição de viagens internacionais, pobreza generalizada, escassez de alimentos, partido único, ausência de debate, bloqueio de acesso à informação ‒ os cubanos conheceram tudo o que um Estado policial, onipresente e onipotente pode oferecer.

Não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe. Hoje foi-se o comandante. Antes dele, tantíssimas outras personagens controversas já conheceram glória e decadência. Hitler, Mussolini, Stalin, Berlusconi e até nosso genial guia, o Lula, seguiram a mesma trilha. Subiram, foram incensados, e, inexoravelmente, acabaram caindo. Uns desabaram fragorosamente, outros foram resvalando aos poucos, mas ninguém escapou.

Assim é a vida. A História, cruel, costuma esquecer os momentos de glória. O que acaba ficando para sempre é a decadência, que é mais «sexy» e vende mais. Tremei, ó grandes do mundo!

Europa e Brasil: parceria contestada

José Horta Manzano

Como todo agrupamento de gente que bota os miolos pra tabalhar, também o Parlamento Europeu é percorrido por correntes de pensamento diversas e muitas vezes divergentes. Os 751 componentes vão desde os que sentem saudades de Mussolini até os que gostariam de ressuscitar Stalin. Entre esses extremos, todos os matizes da política estão presentes.

Faz anos que o Brasil ‒ atado ao Mercosul ‒ tenta conseguir regime de parceria preferencial com o bloco europeu. A lentidão da negociação deve-se a corpo mole de ambos os lados. Do lado nosso, é aquela bagunça que se conhece: querelas entre Brasil e Argentina, suspensão do Paraguai, entrada perturbadora da Venezuela, ideologização do grupo.

Parlamento europeu

Parlamento europeu

Do lado europeu, o interesse pela negociação é escasso. As exportações brasileiras para a Europa constituem-se basicamente de produtos agrícolas. A Europa, embora nem todos se deem conta, é grande e tradicional produtor agrícola. Até frutos tropicais vêm sendo produzidos nas redondezas. Com sucesso.

Temos hoje bananas das Canárias (Espanha) e da Martinica (França). Abacates são israelenses ou espanhóis. Laranjas e outros cítricos vêm da Itália e da Andaluzia. Come-se arroz italiano, tailandês ou americano. Vagem, hortaliças e feijão são cultivados na Lombardia. A Holanda, apesar da alta densidade populacional, encontra espaço para ser o maior fornecedor de tomates e pimentões do continente. Não sobra muito para o Brasil exportar além da gabiroba e outros produtos de minguada demanda. Estou exagerando, mas não muito.

Chegou ontem intrigante notícia. Um grupo representando pouco menos de 5% dos deputados do Parlamento Europeu apresentou moção exigindo que as negociações entre a UE e o Mercosul sejam suspensas. Os peticionários, figurinhas carimbadas da assembleia, argumentam que o afastamento de Dilma Rousseff seja sinal de um golpe urdido por parlamentares corruptos.

Parlamento europeu

Parlamento europeu

A meu ver, a petição tem motivação complexa. Há numerosos ingredientes nesse molho. Por trás da moção, há parlamentares alinhados com a extrema esquerda ‒ gente que, apesar de já ter deixado pra trás a juventude, conservou os ideais incendiários dos anos 70. Há também apoio conivente dos grandes produtores agrícolas europeus ‒ com a França na linha de frente ‒ que não veem no Brasil uma solução, mas um sério concorrente.

Há ainda os maria vai com as outras, aqueles que enxergam os acontecimentos brasileiros como quem observasse um golpe de Estado na Birmânia. Tanto faz como tanto fez. Afinal, para um parlamentar da Estônia ou da Eslováquia, pouco interessa o que estiver acontecendo em Brasília, desde que o tomate continue a lhe ser servido na salada. Situa-se nesse grupo a esmagadora maioria dos parlamentares. Não têm visão exata do que ocorre na política brasileira.

É precisamente aí que entra a necessidade de o Brasil acionar lobby ativo junto ao Parlamento Europeu. A ação do chanceler Serra é um começo promissor. Esclarecer, explicar, insistir, convencer ‒ eis a chave que poderá abrir o mercado. A suspensão forçada do Paraguai para permitir a entrada fraudulenta da Venezuela no Mercosul, quatro anos atrás, não comoveu a UE. Mais que isso, diante do evidente atropelo dos fundamentos da democracia venezuelana, não se ouve um pio dos europeus. Como é possível que uma mudança de governo clara e dentro das regras, como a que ocorre no Brasil atual, possa ser contestada?

by Amarildo Lima, desenhista capixaba

by Amarildo Lima, desenhista capixaba

A movimentação proativa do atual governo brasileiro está na direção certa e deve ser intensificada. Se a decisão for deixada unicamente nas mãos da UE, a parceria privilegiada com o Brasil periga não se concretizar tão cedo. Será que estaríamos dispostos a contribuir para exterminar o futuro?

O fim da República Corporativa?

José Horta Manzano

No anoitecer da atual legislatura, que se encerra no último dia do ano, a Câmara Federal deu um presente ao País: derrubou o inqualificável Decreto n° 8243(*), aquele que plantava a semente da República Corporativa do Brasil.

À vista da submissão que suas excelências têm demonstrado com relação ao Executivo, era pouca a esperança de que o famigerado ucasse presidencial fosse refugado pelos eleitos. No entanto, aconteceu. Por que será?

Há várias pistas. Uma delas – a mais evidente – é que o dispositivo amputaria um naco do poder do Congresso. Os «conselhos populares» autorizados pelo decreto se contraporiam àqueles que foram eleitos pelo sufrágio universal. Essa concorrência produziria efeito evidente: diminuiria a influência do Congresso e compensaria o peso dos deputados oposicionistas. Ninguém se alegra em ver escapar uma parte de sua autoridade – foi o que aconteceu com suas excelências.

“Marcia su Roma” com Mussolini e seguidores by Giacomo Balla (1871-1958), pintor italiano

“Marcia su Roma” com Mussolini e seguidores
by Giacomo Balla (1871-1958), pintor italiano

Outra possibilidade é o fato de boa fatia da Câmara estar-se despedindo. Falo daqueles que não se reelegeram. É possível que se tenham sentido livres para soltar o canto do cisne e exprimir, nem que fosse uma vez, sua convicção íntima e sincera.

No fundo, cada deputado votou segundo motivação pessoal, por razões que lhe são próprias. Melhor assim. O importante é que o decreto tenha sido rejeitado.

Não sei quem estaria por detrás dessa ideia anacrônica, que nos propunha um mergulho no universo fascista de cem anos atrás. O movimento capitaneado por Mussolini começou com a Marcha Sobre Roma, em 1922. Centralizador, criou uma república na qual corporações faziam as vezes de representantes do populacho. Todos sabem como terminou a aventura.

Desta vez, escapamos. Olho atento! Nunca se sabe o que pode vir por aí.

Interligne 18e

(*) Os distintos leitores que desejarem refrescar a memória e conhecer a integralidade do decreto de 23 mai 2014, ora derrubado, podem clicar aqui . Os nove «conselhos», «fóruns», «comissões» e «mesas de diálogo» estão explicadinhos tim-tim por tim-tim.

Um partido fascista

Sebastião Nery (*)

MUSSOLINI
Em 1922, na Itália, Benito Mussolini dizia-se um “líder socialista”. Criou seus camisas negras, seus grupos de assalto, os Fascio, organizou uma Marcha Sobre Roma, recebeu plenos moderes do Parlamento, prendeu seus antigos companheiros Antonio Gramsci, Silvio Pelico, matou milhares, criou o Movimento Social Italiano tendo como pedra angular a “unicidade sindical”, impôs à Itália o regime fascista e se aliou a Hitler. Deu no que deu.

Fanfarrão como o Lula, acabou pendurado de cabeça para baixo, berrando como um bode imundo, em um posto de gasolina.

Charles Chaplin in O Grande Ditador, 1940

Charles Chaplin in O Grande Ditador, 1940

LULA
Lula começou a pôr as unhas de fora. Apareceu como um inofensivo líder sindical, retirante protegido pelo delegado legalista Romeu Tuma, agarrado às batinas da Igreja e às botas do general Golbery. Tantos de nós, direta ou indiretamente, de uma forma ou de outra, o ajudamos.

Fascismo 1Criou o PT, o “Partido dos Trabalhadores”, como se só eles fossem trabalhadores, e a CUT, a Central “Única” dos Trabalhadores, como se só ela representasse os trabalhadores. Era a repetição da “unicidade sindical” de Mussolini.

De repente, Lula convocou o PT a ser um partido fascista sob o comando de seu presidente Rui Falcão ― indisfarçado teórico fascista ― e a “sair para a guerra, guerra total a quem ameaçar a conquista da hegemonia em torno do nosso projeto de sociedade”.

HEGEMONIA
Em política, em matéria de conquista de poder, hegemonia está com toda simplicidade muito bem definida pelo saudoso mestre Houaiss:

Interligne vertical 15Hegemonia: Supremacia ou superioridade cultural, econômica ou militar de um povo… supremacia, influência preponderante… autoridade soberana… liderança, predominância ou superioridade”.

É toda a base do fascismo.

Antes, o PT rosnava. Agora, já começaram a morder. Na TV, o deslumbrado baiano aprendiz de Goebbels (chefe da propaganda de Hitler) João Santana apela para o mais escrachado terrorismo querendo fazer do medo o centro das próximas eleições.

Com Dilma derrapando toda semana nas pesquisas, vaiada toda vez que aparece em público, só podendo mostrar a cara nos fundos do Planalto ou nos convescotes do Alvorada, eles estão com medo de perder as bocas sujas, os conselhos fajutos, as maracutaias passadenas.

Interligne 18b

(*) Sebastião Nery é jornalista, advogado e professor. Sua coluna é publicada por jornais de 20 estados brasileiros. www.sebastiaonery.com.br/

Incongruência

José Horta Manzano

Ninguém jamais saberá dizer com exatidão quantos mortos deixou a Segunda Guerra (1939-1945). Estimativas situam a quantidade de vítimas entre assustadores 50 milhões e 70 milhões de pessoas. Foi o conflito mais mortífero que o planeta já conheceu.

Até o Brasil, posto que não tenha travado batalha em seu próprio solo, deplorou por volta de duas mil vítimas: mil militares da Força Expedicionária (FEB) enviada à Itália e mais mil civis massacrados em ataques de submarinos alemães contra navios de cabotagem da marinha mercante nacional junto às costas brasileiras.

Dieudonné M'bala M'bala

Dieudonné M’bala M’bala

Certos países da Europa Oriental chegaram a perder ¼ de sua população, uma monstruosidade. A Europa ficou profundamente marcada. Até hoje, passados quase 70 anos, ainda se fala da guerra como se tivesse terminado anteontem.

Milhares de homens, mulheres, anciãos e recém-nascidos foram sumariamente exterminados pelo simples fato de serem judeus ou ciganos. É tão estarrecedor que nós, que não vivemos aquela época, temos dificuldade em conceber que atos tão ignóbeis possam ter sido cometidos por seres humanos.

Essa perseguição racial foi pra lá de traumatizante. Em consequência, muitos países europeus inseriram em sua legislação dispositivos destinados a sufocar no nascedouro toda e qualquer manifestação racista. Na França, atos ou palavras que possam ser enquadrados como incentivo ao ódio racial são passíveis de processo criminal.

Uma coincidência interessante une três dos ditadores protagonistas da última guerra. Há uma dose de estrangeirice em todos eles.

Hitler, ao nascer, era súdito do Império Austro-Húngaro. Tornou-se alemão por naturalização.

Stalin tampouco nasceu russo, mas georgiano. Não precisou naturalizar-se, dado que a Geórgia ― hoje país independente ― era, à época, território pertencente ao Império dos Tsares.

Mussolini nasceu italiano, mas viveu anos da juventude como emigrante em terra estrangeira. Morou na Suíça, onde, aliás, seu espírito turbulento deixou marcas.

É curioso observar a frequência com que rebeliões, revoltas ou simples escândalos são protagonizados por pessoas cuja história de vida diverge da maioria.

A conflagração que abalou a França em maio 1968 era norteada por um estrangeiro (Daniel Cohn-Bendit). A política externa dos EUA foi conduzida, de 1969 a 1977, por Heinz (Henry) Kissinger, americano naturalizado. O atual ministro dos Negócios Interiores da França ― cargo preeminente ― nasceu em Barcelona e emigrou ainda criança: Monsieur Vals é hoje francês naturalizado.

Dieudonné M'bala M'bala

Dieudonné M’bala M’bala

Os brasileiros, que já têm suficientes problemas internos, não devem estar muito preocupados com escândalos estrangeiros. Há um que está sacudindo a França já faz alguns dias. Está sendo causado por Dieudonné, um humorista que já está deixando de fazer rir. Alguns já o qualificam abertamente como ativista.

Nascido em 1966, Dieudonné M’bala M’bala é filho de pai africano da República dos Camarões e de mãe francesa. No começo de carreira, fazia graça, que é o ganha-pão de todo comediante. De uns tempos para cá, sabe Deus por que, decidiu enveredar pelo caminho perigoso do antissemitismo. Considerando-se que o homem é afrodescendente ― como diriam no Brasil ―, é surpreendente.

Suas piadas e seus esquetes adquiriram tons sombrios de estímulo ao ódio racial. Há quem goste ― há gosto para tudo. Mas 70% dos franceses desaprovam. O governo resolveu agir: proibiu seus espetáculos. Os advogados do humorista invocaram a liberdade de expressão e conseguiram liminar para o show de 9 de jan°. A Justiça contra-atacou argumentando que, em vista do sério risco de perturbação da ordem pública, o espetáculo estava definitivamente anulado.

Foi uma primeira vitória. Mas o artista, que tem apresentações já programadas para os próximos meses, pretende contestar a proibição de cada espetáculo, um por um. Temos pela frente batalhas jurídicas a perder de vista.

A mim me choca ver um profissional do riso fazer graça ― e ganhar a vida ― tripudiando sobre a desgraça alheia. Além de ser contrário à lei, é comportamento indigno. Mais que isso, que um triste espetáculo antissemita seja concebido e estrelado por um afrodescendente, é, no mínimo, grotesco.

Algumas manifestações da imprensa francesa estão aqui:
Le Nouvel Observateur
Les Echos
Le Monde

A trilha dos toblerones

José Horta Manzano

Você sabia?

Bunker disfarçado de chalé de madeira

Bunker disfarçado de chalé de madeira

Os suíços sentem muito orgulho por não terem tido o país invadido por tropas alemãs nem italianas na Segunda Guerra Mundial. É realmente surpreendente que a pequena Suíça ― cercada por Alemanha, Itália, Áustria (anexada pela Alemanha) e França (ocupada por tropas de Berlim) ― não tenha sido engolida, com casca e tudo, pelos exércitos do Eixo. A maioria do povo atribui essa não intervenção à força de dissuasão representada pelo poderio militar suíço.

Toblerone de verdade

Toblerone de verdade

Há quem sorria ao ouvir essa explicação. Seja como for, tanto Berlim quanto Roma sabiam que seria bastante complicado dominar e ocupar um território montanhoso como este. Sabiam também que os suíços estavam muito bem armados e equipados, além de serem conhecidos como combatentes aguerridos.

Hitler e Mussolini devem ter feito a conta duas vezes. Chegaram à conclusão de que não valia a pena perder tempo, dinheiro, esforço e vidas humanas para conquistar um território pouco industrializado e totalmente desprovido de riqueza mineral. De qualquer maneira, não saberemos nunca o que realmente passou pela cabeça dos dois ditadores.

Linha dos toblerones

Linha dos toblerones

Eu acrescentaria mais uma razão. Numa Europa conflagrada, interessava a todos respeitar a neutralidade de um pequeno território, situado bem no centro geográfico do conflito. Era um lugar seguro, de onde não se imaginava poder vir nenhuma ameaça. Mais que isso, era um lugar onde todos podiam guardar, na confiança, seus dinheiros, suas obras de arte, seus objetos de valor. Mais ainda: um lugar onde se podiam organizar eventuais encontros secretos e manter conversações discretas e confidenciais. Todas essas razões hão de ter contribuído para que o país fosse poupado.

Isso hoje é História. Como diz o outro, «depois do fato consumado, é fácil ser profeta». Difícil mesmo é adivinhar o que está por ocorrer. No final dos anos 30, um bafo de guerra soprava no continente, mas ninguém sabia de que lado nem com que força chegaria a tempestade. As autoridades suíças não podiam cruzar os braços e apenas torcer para que o país não fosse invadido. Todos tinham de estar prontos para repelir tropas inimigas.

Linha dos toblerones

Linha dos toblerones – hoje utilizada como trilha para caminhada a pé

A inteligência militar planejou um sistema de defesa. A referência mais próxima era a Primeira Guerra, durante a qual os ataques se faziam por via terrestre, com tanques e blindados. Foi pensando nisso que bolaram o sistema defensivo suíço, basicamente terrestre àquela época. Incluía numerosos pontos, alguns dos quais são hoje conhecidos do grande público, enquanto outros ficarão secretos para sempre. Talvez seja melhor assim.

Todas as pontes do país estavam minadas. Ao menor sinal, as vias de comunicação seriam interrompidas, o que dificultaria tremendamente o avanço de tropas inimigas. A região de Genebra, fronteiriça com a França, trazia um problema espinhoso para os militares. Por ser constituída de terrenos planos e pela ausência de rios, foi considerada indefensável. Tomou-se a decisão tática de dar a cidade como perdida e implantar o sistema de defesa uns 30km mais para o interior do país.

Villa Rose Fortaleza disfarçada de casa de campo

Villa Rose
Fortaleza disfarçada de casa de campo

Construíram-se fortalezas com aparência de casas de campo. Foram levantados bunkers com aspecto externo de inofensivos chalés de madeira. Instalaram-se discretos postos de observação em pontos mais elevados ― naqueles tempos não havia street view nem espionagem por satélite. Para completar, uma verdadeira obra de arte defensiva foi construída, uma versão helvética da muralha da China. Ficou conhecida popularmente como Ligne des toblerones, a linha dos toblerones.

O que era e por que lhe deram esse nome?
Era ― e ainda é ― uma linha de 10km de blocos de concreto para barrar a passagem de tanques de guerra. São quase 3000 monstros de 9 toneladas cada um. Têm forma peculiar de tetraedro que lembra um pedaço de chocolate Toblerone, daí o apelido.

Não se tem notícia de que nenhum tanque tenha jamais tentado superar o obstáculo. Mas os toblerones continuam lá até hoje. Viraram atração turística. Trilhas próprias para caminhadas a pé serpenteiam por quilômetros ao longo da barreira de concreto. É hoje o Sentier des Toblerones, a Trilha dos Toblerones.

Villa Rose Janela com cortina falsa

Detalhe da Villa Rose
Janela com cortina falsa

Taí uma obra militar que soube envelhecer. Em escrupuloso respeito ao espírito atual, não foi atirada a um lixão mas acabou reciclada.

O Brasil e a Idade Média

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 3 de agosto de 2013

A História não se repete. Acontecimentos novos podem até evocar situações passadas, mas cada caso é um caso.

Em novembro de 1923, um punhado de indivíduos se reuniram numa cervejaria de Munique para encenar o que lhes parecia o ato final de um rocambolesco plano de tomada do Estado alemão pela força. O golpe foi um rotundo fracasso. Vistos como loucos mansos, os cabeças, presos e processados, foram condenados a penas leves. Quis o destino que, dez anos mais tarde, o chefe da malta, um certo Adolf Hitler, fosse içado ao posto máximo da nação. O resto da história todos conhecem.

Nos primeiros anos do século XX, um jovem italiano, violento e rebelde, fugiu de seu país e ganhou a Suíça. Más línguas afirmam que era para escapar do serviço militar. Em território helvético, o moço turbulento continuou fazendo das suas. Rebelde e arruaceiro, viveu de expedientes e chegou até a ser preso por vadiagem. Voltou à Itália em 1904. Quis o destino que, dezoito anos e muitas peripécias mais tarde, nosso impetuoso anarco-sociossindicalista ― Benito Mussolini era seu nome ― se visse alçado à função de chefe do governo. Sabem todos o que veio depois.

Caravela portuguesa

Caravela portuguesa

A tentativa de tomada do quartel cubano de Moncada, levada a cabo em 1953 por uma turma de jovens iluminados, todos no vigor de seus 30 anos, foi um desastre total. Prisão, tortura, degredo dos rebeldes remanescentes foi o resultado. Naquele momento, ninguém imaginou que o chefe do grupo, um certo Fidel Castro, havia de se tornar senhor absoluto do país 6 anos mais tarde. Os capítulos seguintes são conhecidos.

Faz pouco mais de um mês, o Brasil foi palco de um fenômeno desconcertante. Dirigentes boquiabertos assistiram a passeatas espontâneas formadas por gente comum. Não eram revolucionários nem putschistas. Não pretendiam derrubar o regime, muito menos tomar o poder. Não eram movidos por ideologia. Não carregavam armas. À exceção de grupelhos insignificantes de energúmenos imbecis, protestaram pacificamente.

Agora sossegaram. Mas que ninguém se engane: os acontecimentos de junho foram um divisor de águas. Daqui a um século, baixada a poeira, a História dará a 2013 a mesma importância que dá hoje a 1822 ou 1889. A sagacidade caseira do inefável Conselheiro Acácio ensina que as consequências, naturalmente, vêm sempre depois.

O brasileiro é um povo de sorte. No espaço de pouco mais de 10 anos, teve duas ocasiões de dar um salto à frente, na boa direção. A primeira foi quando Lula da Silva chegou ao posto máximo da República. Dono de apoio quase unânime do povo e de seus representantes, não lhe teria sido difícil impor as reformas indispensáveis para curar a esquizofrenia do País. Pareceu a todos que, finalmente, o Brasil deixaria de ter um pé na modernidade e outro ancorado na Idade Média.

Estava na hora de banir traços antediluvianos tais como o paternalismo, o nepotismo, o cartorialismo, o rigor reservado ao vulgo enquanto privilegiados são tratados com leniência. Queríamos todos ver desaparecer a desigualdade entre os do andar de cima e os do andar de baixo. Queríamos ver o fim de anacronismos que não combinam com o mundo civilizado.

Desgraçadamente, nenhuma reforma radical foi empreendida que acelerasse nosso processo civilizatório. Os donos do poder agiram como o cirurgião que anestesia o paciente mas esquece de operá-lo. Ninaram o povo com doces sonhos de grandeza, mas não se deram ao trabalho de eliminar os tumores que minam a sociedade. Entre mercurocromo e curativos, descuraram-se de servir ao povo. Usaram a arraia-miúda como massa de manobra e, insolentes, dela se serviram. Os protestos são a prova patente da ineficiência e do fracasso da atual maneira de governar.

Castelo medieval

Castelo medieval

Mas temos sorte. Diferentemente de Alemanha, Itália e Cuba, temos uma segunda chance. Nossa «revolução» não tem cabeças nem porta-bandeiras. Não prenuncia episódios violentos nem sangrentos. As demandas do povo brasileiro, a anos-luz da luta de classes, não são ideológicas, nem sectárias, nem elitistas, nem sindicais.

Medidas pontuais podem gerar alguma curta trégua, mas não resolverão o problema. O brasileiro, farto de que lhe zombem das fuças, quer ser tratado com dignidade. Plebiscitos e referendos não condizem com a situação atual. O povo já disse o que quer. Do governo, não se espera que faça mais perguntas, mas que dê as respostas que esperamos todos. E logo.

O governo que se dizia «popular», no fundo, não o era. Popular é o movimento que a todos surpreendeu, essa energia espontânea e sem lideranças. Estamos vivendo o começo do fim do Brasil medieval.

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A hora é agora

José Horta Manzano

Regimes autoritários cujo mando está em mãos de um homem só dificilmente sobrevivem ao desaparecimento do guia, do timoneiro, do number one, ou como se queira chamá-lo. Assim foi na China de Mao, na Itália de Mussolini, na Espanha de Franco, no Portugal de Salazar e até no Haiti de Duvalier.

Há exceções que apenas confirmam a regra. São pouquíssimas. Entre elas, a mais conhecida: a Coreia do Norte. Poucas informações passam pela malha finíssima de segredo que envolve o país, mas tudo indica que sai líder, entra líder, e tudo continua como antes.

A partida de Chávez deixou órfãos. Não penso tanto nos eleitores que, fanáticamente ou não, o apoiavam. Para os venezuelanos, até que o futuro não se anuncia tão sombrio. Pior do que estava, é difícil que fique. Alguém terá de dirigir o país. Será aquele que o quase ditador havia ungido, será algum outro, será o chefe da oposição, pouco importa: alguém surgirá. E esse alguém estará a léguas do carisma do predecessor. Como disse François Hollande ao substituir Nicolas Sarkozy, o país terá, por fim, um presidente «normal». Seja ele quem for, o novo dirigente venezuelano será menos exótico.

Os verdadeiros órfãos de Chávez estão fora das fronteiras venezuelanas. Como é que ficará o clã dos Castros em Cuba? E a Nicarágua de Ortega? E a Bolívia, o Equador? E a Argentina, nossa vizinha tão próxima? Todos eles dependiam, em maior ou menor medida, do apoio venezuelano. Um precisava de ajuda econômica, outro carecia de sustentação política, aqueloutro necessitava esteio ideológico. Alguns precisavam de tudo isso. Todos terão de encarar um futuro incerto. Nenhum deles tem chance de sair ganhando.America latina

No fundo, no fundo, o Brasil não é o maior prejudicado pela a falta do comandante. Pelo contrário. Não se pode contrariar o destino, nem refazer a História. Se uma luz miraculosa lograsse iluminar meia dúzia de decididores em Brasília, o que hoje parece uma contrariedade poderia ser transformado em tremenda oportunidade de “remettre l’église au milieu du village”, como dizem os franceses, de repor as coisas nos devidos lugares no âmbito do Mercosul.

Nosso bizarro clube está cada vez mais para agremiação ideológica que para associação de promoção comercial. O pequeno Paraguai, punido por respeitar sua própria Constituição, já foi botado para escanteio faz meses. Um Uruguai espremido entre dois vizinhos gigantescos não tem como fazer ouvir sua voz. A Venezuela, antes de retomar o caminho do crescimento equilibrado, assistirá a inevitáveis querelas intestinas que tendem a enfraquecê-la ainda mais. A Argentina, já afligida por crônicos problemas econômicos, será estrangulada pela falta dos dólares bolivarianos. Nesse cenário de infortúnio, o Brasil tem duas opções: ou continua sua obra estéril de bom samaritano, ou assume de vez as rédeas do clube e impõe-lhe as normas que o farão desempacar.

Pode insistir, como vem fazendo há anos, na tentativa de salvar a economia argentina. Até hoje, tem sido perda de tempo, de esforço e, principalmente, de dinheiro. Um poço sem fundo. Temos passado anos a discutir troca de geladeiras por chuveiros elétricos, enquanto muitos trens passaram. Não lhes fizemos caso, perdemos todos eles e continuamos a discutir geladeiras e chuveiros.

As cabeças pensantes de Brasília ― que ainda as há, tenho certeza ― podem agarrar a oportunidade para desempoeirar o Mercosul e para abrir o subcontinente a novos acordos comerciais e a novos horizontes condizentes com os tempos atuais. Que se ponham de lado as ideologias que nos atravancam e que se pense no crescimento econômico do País. O subcontinente nos acompanhará, é certeza.

Continuo torcendo para que os que decidem em nossas altas esferas virem a página dos ressentimentos pessoais e deem ouvidos ao chamado dos novos tempos. Não tenho muita esperança, mas não custa sonhar. Sai de graça e não faz mal a ninguém.

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Nota: Fala-se no diabo, e logo aparece o rabo. Li um post da Sylvia Colombo, correpondente da Folha de SP em Buenos Aires. Achei que era um bom complemento ao texto acima. Se quiser conferir, o caminho está aqui.