O público e o privado

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 26 novembro 2022

Monsieur Pierre Maudet é um político suíço. Talentoso, aos 33 anos já era prefeito de Genebra. Poucos anos depois, chegou ao posto máximo de seu cantão, o de presidente do Executivo colegiado. Muitos já vislumbravam para o jovem prodígio um posto de primeira gandeza no plano federal.

Em 2015, ele aceitou convite do príncipe herdeiro de Abu Dabi para passar três dias no emirado. Durante a visita, Maudet encontrou-se com dirigentes do país, inclusive com o emir. O episódio passou despercebido até que, três anos depois, o MP de Genebra abriu inquérito sobre o passeio. Queria saber se a viagem era privada ou de cunho político.

Monsieur Maudet jurou que tinha sido viagem de lazer com despesas pagas de seu próprio bolso. Mas nosso mundo digital não perdoa: tudo fica gravado e a verdade acaba vindo à tona. O inquérito prosseguiu e acabou descobrindo que o político estava mentindo: ele tinha viajado a convite do emir – e com todas as despesas pagas, inclusive o voo em primeira classe.

A carreira do promissor político estancou. Foi expulso do partido. O Tribunal Federal, última instância judiciária do país, acaba de confirmar sua condenação definitiva. Ele é culpado de ter aceitado favores indevidos, pouco importando a existência ou não de contrapartida aos mimos recebidos.

Outro dia, Lula da Silva, nosso presidente eleito, tomou a iniciativa de ir ao Egito para a Cúpula do Clima. Embarcou no jato particular de um empresário. O detalhe incômodo é que este último, enroscado na Lava a Jato, fez acordo de delação e devolveu 200 milhões ao erário.

A imprensa sentiu o cheiro de queimado. Indagado, o presidente eleito não se mostrou constrangido e informou com candura: “Não pedi o avião, foi ele quem me ofereceu. Não foi empréstimo, foi carona.”. Em outros tempos ou em outras terras, esse passo em falso teria potencial de ofuscar a totalidade do mandato, podendo até justificar o impedimento do recém-eleito.

Mas não estamos em outros tempos nem em outras terras. Em nosso leniente Brasil, em geral dá-se um jeito. Assim mesmo, há momentos em que fica difícil dar jeitinho. Os destituídos Collor e Dilma estão aí para provar. Assim como os condenados na Lava a Jato. E também os bolsonaristas enredados na justiça. Lula que tome cuidado.

O novo presidente vai governar num cenário diferente do de mandatos anteriores. Em vez de parlamentares bonachões, terá diante de si uma oposição do tipo “quatro pedras no bolso e faca entre os dentes” – uma espécie de PT ao quadrado, feroz, pronto a agarrar qualquer pretexto para tocar trombone e bater panela. Não terá a vida fácil.

Com razão ou não, a imagem de Lula no papel de chefe de quadrilha está cristalizada na mente de muitos eleitores. A justiça julgou, penas foram purgadas, mas o estigma ficou. Se todo homem público tem de escolher com atenção as pedras em que pisa, Lula tem de tomar cuidado redobrado, que há muita gente de olho em seu primeiro escorregão.

Na equipe de transição, já há um grupo de trabalho para o combate à corrupção. A preocupação com o tema é louvável. A ideia deveria ser levada adiante, quiçá com a criação de uma secretaria permanente. No entanto, por mais que uma secretaria cuide de apontar e coibir casos de corrupção, ela será sempre consituída de funcionários subordinados ao governo. No frigir dos ovos, temos funcionários do governo que tentam controlar o próprio governo. Como se sabe, certas verdades costumam ser edulcoradas para agradar ao chefe.

O ideal será que essa secretaria seja complementada por um Observatório da Corrupção, organismo independente, composto de conselheiros maduros e de ilibada reputação. Podem ser juristas, ex-juízes, ex-parlamentares, professores, cientistas, empresários, gente de bom senso. É vital que não sejam remunerados. Farão trabalho voluntário e serão apenas ressarcidos de despesas. Só um controle externo como esse tem o poder de chegar direto à Presidência, sem preocupação de agradar ou desagradar ao chefe.

O Observatório da Corrupção seria o órgão adequado para convencer o presidente a não mais mesclar o público com o privado, como na viagem ao Egito. Contra uma oposição feroz, todo cuidado é pouco.

De bicicleta

José Horta Manzano

A queixa mais recorrente que se faz contra homens públicos é a de se dedicarem mais a benefícios pessoais e menos ao interesse da população. O modo de agir de grande parte dos representantes do povo é, de fato, desleal. Eleitos que foram para cuidar do bem comum, desvirtuam-se. Uma vez instalados nas confortáveis poltronas das casas legislativas, mandam para escanteio o interesse dos eleitores e passam a cuidar dos próprios.

Um exemplo atualíssimo é a reticência dos parlamentares em promover reformas no sistema previdenciário. Toda pessoa de bom senso, com um mínimo de informação, consegue entender que, do jeito que está, a regra atual não tem condições de se sustentar. Nem a médio prazo. É falência certa, débâcle pela qual todos pagarão: ativos e aposentados, válidos e inválidos, ricos e pobres.

Apesar dessa evidência estatística, suas excelências resistem. O interesse eleitoral imediato de cada um prevalece sobre o bem comum, hipotecando o futuro dos cidadãos. Se trancam a pauta e sonegam o voto, não é por convicção nem por ideologia. Respondem apenas à mesquinha estratégia de passar por simpáticos e assim aumentar a chance de reeleição.

O exemplo vem de cima. Queiram ou não, o comportamento das excelências que nos governam dá o tom. Desvios de conduta lá em cima incentivam atitudes tortas cá embaixo. Fica difícil exigir do zé povinho um comportamento aprumado quando a safadeza de figurões frequenta quotidianamente a mídia.

Estes dias, tornou-se pública a informação de que um cidadão, interessado em conquistar a coroa de recordista mundial de rapidez em bicicleta, conseguiu a impressionante façanha de circular em velocidade superior a 200km/h. O fato se deu no Paraná em novembro último. Parabéns ao campeão. Mas.. como é que ocorreu?

BR-277 sem espetáculo ciclista

Para atingir o recorde, não havia outro meio senão correr no vácuo de outro veículo. O governo do Paraná e a Polícia Rodoviária Federal se acumpliciaram para dar uma ajudazinha ao rapaz. Passando por cima do interesse dos usuários, autorizaram o fechamento de longo trecho de uma rodovia federal. O “espetáculo” teve lugar na BR-277, importante via expressa que liga Curitiba ao litoral. Em plena luz do dia, o tráfego foi interrompido ‒ nos dois sentidos ‒ por longos 20 minutos.

O poder público não se comoveu com a aflição do honesto cidadão que tivesse de apanhar um avião no aeroporto nem com o desespero da mulher prestes a dar à luz que não tivesse outro caminho para a maternidade. Tampouco pensaram em ambulâncias, veículos de bombeiros ou viaturas policiais que porventura tivessem premência de circular por ali. Sem mencionar o contratempo causado aos demais usuários, que são, ao fim e ao cabo, os que pagaram pela construção da estrada e continuam pagando pela manutenção.

Ainda falta muito para o dia em que o interesse público primará sobre conveniências pessoais.

Nota 1
Segundo o locutor televisivo que comentou o “evento”, faz tempo que esse ‘campeão’ ciclista foi banido de competições regulares por motivo de dopagem. Eis por que se dedica a outro tipo de espetáculos. Ficam aqui nossos parabéns às autoridades que patrocinaram a pavonada.

Nota 2
Tanto o recordista quanto as dezenas de veículos que o acompanhavam no eletrizante show circularam em flagrante excesso de velocidade. Não há registro de que algum deles tenha sido multado. Pontos na carteira? Isso é pra nós, que somos menos iguais.