José Horta Manzano
Como se ainda precisasse, doutor Bolsonaro deu mais uma prova de não ter entendido em que consiste sua função. Para o bem ou para o mal, ele representa nosso país perante as demais nações do planeta. Nossa Constituição estipula que, além de chefe do governo, ele é chefe do Estado brasileiro – realidade que ainda não lhe entrou na cabeça. São dois bonés. A cada momento, precisa saber qual deles enfiar no cocuruto.
A função de chefe de Estado é honra suprema. Governos são efêmeros, o Estado fica. Mas nossa Constituição determina que assim seja; não há nada que se possa fazer, a não ser mudar a Lei Maior. Enquanto isso não acontece, temos de ir levando o barco com os remos que temos.
O chefe de Estado é o representante maior do povo brasileiro. Em relações exteriores, principalmente, não convém misturar as duas funções. Governo, com suas futricas, intrigas e conchavos, é uma coisa; Estado é bem diferente.
Faz algumas semanas, señor Fernández foi eleito presidente da Argentina, país vizinho e hermano. É praxe que se prestigie a tomada de posse de todo novo dirigente de país vizinho e hermano. Não se espera que doutor Bolsonaro compareça pessoalmente à cerimônia de entronização de todos os presidentes do mundo. Fizesse isso, passaria o tempo todo viajando, coisa que, em princípio, não é conveniente. Para nós, no entanto, a Argentina não é um país qualquer. Terceiro parceiro comercial do Brasil, sócio no Mercosul, vizinho de parede. O par Brasil – Argentina corresponde ao casal França – Alemanha: vizinhos, rivais tradicionais, sócios, parceiros inseparáveis.
Ao ser informado de que Lula da Silva e Evo Morales perigam aparecer na hora da festa, doutor Bolsonaro fez beicinho e bateu o pé: «Eu não vou, nem ninguém do governo vai.»
O que é isso, santo Deus? Tomada de posse de presidente não é festa de família, em que parentes brigados não comparecem, com medo de dar de cara. Doutor Bolsonaro não se dá conta de que, ao se comportar dessa maneira, dá recado errado. É como se o Brasil inteiro estivesse menosprezando o chefe do Estado vizinho. O Brasil inteiro fazendo beicinho e batendo o pé. Isso é coisa de adolescente espinhudo que ainda não consegue entender o mundo em que vive.
O próprio Bolsonaro já fez coisa parecida, se não pior. Quando tomou posse, todos hão de se lembrar que o convidado de honra era Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, pessoa detestada por meio mundo. Que se saiba, nenhum convidado deixou de comparecer em virtude da antipatia do hóspede incômodo. É sempre possível evitar aparecer na mesma foto que um desafeto. Presidentes dispõem de um exército de assessores justamente pra cuidar dessa parte.
Pessoalmente, não tenho nenhuma simpatia por Lula da Silva nem por Evo Morales. Mas, gostemos ou não, ambos foram presidentes. Por muitos anos. Não me parece anormal que sejam convidados para a cerimônia em Buenos Aires.
Mas não adianta. Ainda que passasse anos no Planalto, doutor Bolsonaro dificilmente se compenetraria do alcance de suas palavras e da solenidade de suas funções. Ele não consegue desgrudar do chão e alçar voo majestoso para mostrar que está acima dessas platitudes. Um presidente que faz beicinho para o vizinho… Mas vejam só. Só faltava essa.
Pior a emenda
(Adendo acrescentado em 10 dez° 2019)
Depois de levar uma cotovelada de alguém de bom senso, doutor Bolsonaro resolveu mandar o vice-presidente como representante do Brasil na cerimônia de tomada de posse de señor Fernández. Seria mal menor, mas o estrago já estava feito. Não tivesse feito beicinho e batido o pé, até seria uma saída honrosa mandar o segundo personagem do Estado. Mas… honra é artigo raro na prateleira de qualidades presidenciais. Fazer o quê?