O presidente e os sem-voto

José Horta Manzano

Quando se dispõe a atacar o Judiciário – uma atitude que adota com frequência –, doutor Bolsonaro costuma encher a boca para proclamar a própria legitimidade. Argumenta que recebeu 57,8 milhões de votos, enquanto os magistrados não receberam nenhum.

À primeira vista, o raciocínio parece cristalino. No entanto, quando se tenta seguir essa lógica até o fundo, a imagem se turva. Se o número de votos fosse determinante da legitimidade do homem político, um bocado de gente passaria à frente dos sem-voto.

Logo após Bolsonaro, viria – adivinhem quem? – Fernando Haddad, ora pois. Seus 47 milhões de votos lhe conferem legitimidade comparável à do presidente, muito acima do magma dos que não passaram pelas urnas. Está correto o que estou dizendo? De onde sai essa salada?

O distinto leitor há de ter se dado conta de que, esticado até o limite da ruptura, o raciocínio do presidente acaba por romper-se. É que, ainda que tenha recebido um caminhão de votos, ele não será nem mais nem menos legítimo do que o vereador de pequeno município, escolhido por poucas dezenas de eleitores. A legalidade do presidente tampouco será menor que a de um ministro do STF ou de um parlamentar. Todos eles, escolhidos segundo as normas da lei, estão no mesmo nível de legitimidade.

Portanto, será falácia o presidente pretender-se mais ‘legítimo’ do que parlamentares ou ministros do Judiciário. Desde que o caminho que os levou lá tenha seguido rigorosamente os preceitos legais, gozam todos de idêntica legitimidade.

Só pra chatear 1
Pela lógica de doutor Bolsonaro, que confunde os conceitos de legitimidade e de proporção de eleitores, tanto o Lula quanto a doutora eram mais ‘legítimos’ que ele. Vejamos o resultado de cada um (em proporção do total de votos válidos):

2018  Jair Bolsonaro  55,1%
ooooooooooooooooooooooooooo
2010  Dilma Rousseff  56,1%
2006  Lula da Silva   60,8%
2002  Lula da Silva   61,3%

Só pra chatear 2
Há questão de 3 meses, doutor Bolsonaro afirmou que as eleições de 2018 haviam sido fraudadas. Garantiu ainda que tinha provas disso. Ora, desde que o mundo é mundo, a fraude em votações serve pra garantir a eleição de um dos candidatos. Quem ganhou foi ele; portanto, conclui-se que, se fraude houve, foi a seu favor. Será por isso que, até hoje, não mostrou as provas de que dispõe. Se o fizer, a fraude ficará comprovada e sua eleição será impugnada.

Collegium

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 29 dezembro 2018.

A palavra colégio, relacionada ao latim collegium, é formada pela preposição cum (com) e pelo verbo leggere (colher). Vale dizer: colher junto. Na acepção original, os integrantes dum colégio se reúnem para colher juntos o que vieram plantar. O colégio eleitoral, por exemplo, colhe o sentimento de cada integrante e apresenta resultado unificado. Toda instituição colegiada é formada por membros com poderes iguais que, após deliberação, dão decisão única, unívoca e uniforme.

Excelente exemplo de colégio eficiente, em função há dois séculos, é a Presidência suíça. A chefia do Executivo não é confiada a um único indivíduo, mas a sete presidentes, todos com o mesmo poder. Reúnem-se a portas fechadas e dão despacho unificado. Jamais alguém saberá quais membros estiveram a favor ou contra cada decisão. Jamais será divulgado se o voto foi unânime ou disputado. Publica-se a decisão do colegiado. Ponto e basta.

Em dezembro de 1941, no dia seguinte ao do ataque desfechado pelo Japão contra a base militar do Havaí, o presidente Franklin D. Roosevelt pronunciou discurso no Congresso americano. Na fala, ele declarou que aquela seria «a date which will live in infamy» ‒ uma data marcada pela infâmia. A citação me passou pela cabeça outro dia, quando doutor Marco Aurélio, ministro do STF, de uma canetada, causou comoção nacional. Naquele dia, em ato solitário, ele mandou soltar os encarcerados que ainda não tivessem esgotado os recursos processuais ‒ um total estimado em 160 mil indivíduos. Um ucasse desajuizado!

Hoje, passada a exacerbação de sentimentos provocada pelo magistrado, não vale a pena lançar lenha à fogueira. É mais útil especular sobre a origem do mal e farejar o melhor caminho pra corrigir a distorção. Sim, porque distorção há. O STF é, por definição, tribunal colegiado. As normas da colegialidade ensinam que decisões serão sempre tomadas pelo conjunto dos membros, jamais por um só. Deliberações públicas e, pior ainda, transmitidas ao vivo são incompatíveis com a colegialidade. Propiciam a quebra de coesão e favorecem a eclosão da vaidade.

Ah, a vaidade!… É irmã gêmea do orgulho e mãe de muitos defeitos. Traço inerente ao ser humano, afeta-nos a todos, em maior ou menor grau. Na vida do mortal comum, ataques de vaidade explícita não fazem mais que azedar o entorno do vaidoso. Já quando o soberbo exerce função pública de destaque, é mais grave. Imodéstia descontrolada pode extravasar a banheira do poderoso e alagar o país inteiro. Isso ocorre a cada vez que um magistrado é acometido por xilique de prima-dona ferida.

Por que razão esses sentimentos se exacerbam no Judiciário, enquanto se mantêm sob controle nos outros Poderes? A resposta é clara: integrantes do Executivo e do Legislativo são eleitos por mandato limitado no tempo. Se se deixarem levar por paixões em desacordo com o comportamento que deles se espera, correm o risco de ser sancionados na próxima eleição. Se ministros do Tribunal Maior se permitem a impudência de atropelar jurisprudência e bom senso, é porque sabem que nada têm a temer. O caráter vitalício do cargo é perfeita blindagem contra retaliações. Inalvejáveis, Suas Excelências permanecem longe do alcance da turba, por mais enfurecida que esteja. Que se lhes manche a biografia, não parece ser a preocupação maior dos magistrados. Outros interesses, à evidência, passam adiante.

Que fazer pra refrear o ímpeto dos togados-mores e pra blindar o país contra sacolejos? O mal se extinguirá no momento em que o cargo de juiz supremo deixar de ser vitalício. Num próximo e bem-vindo reajuste do arcabouço institucional, essa questão deveria ser levantada. É de crer que o será. Como ocorre em outras repúblicas, mandato não vitalício (e renovável) deveria ser outorgado a ministros do STF. Será de quatro, cinco, seis anos ‒ melhor menos que mais.

A designação dos togados tampouco deveria ser atribuição solitária do presidente, ainda que sacramentada por sabatina parlamentar pro forma. Um colégio de grandes eleitores ‒ olhe o conceito aí de novo! ‒ deverá ser criado para o fim específico de escolher novos ministros. Será formado por parlamentares e por personalidades de reconhecida erudição. Vitaliciedade e decisões monocráticas caem bem em monarquias, regime que o golpe de 1889 aboliu.

Abaixo-assinado

José Horta Manzano

Ai, dona Cármen! A senhora de novo! Não tem jeito. Quando a gente pensa que essa gente está criando juízo e que as coisas estão entrando nos eixos, eis que ‒ catapimba! ‒ lá vem bomba outra vez.

Doutora Cármen Lúcia é personagem importante da República. Está entre os raros que já presidiram dois poderes: o Judiciário e o Executivo. Seus atos e gestos são acompanhados com lupa; qualquer entortada acaba respingando no andamento da nação. Gente assim deveria ser muito cautelosa. Doutora Cármen, no entanto, tem-se distraído.

Faz uma semana, desapontada com o resultado de um voto colegiado do STF, fez questão de declarar alto e bom som não ter nada com isso, muito pelo contrário, já que tinha votado contra. Declaração impertinente e inoportuna. Não cabe a um componente de tribunal colegiado expor sua discórdia em praça pública. É atitude que quebra a colegialidade e desmerece o discordante.

Poucos dias se passaram, e eis que a presidente do Tribunal Maior reincide. Desta vez, fez pior. Com o sorriso de sempre, deu acolhida a uma comitiva que lhe trazia um abaixo-assinado com milhares de assinaturas pedindo a liberdade de Lula da Silva.

Não se deve repreender ninguém por um gesto de cordialidade. No entanto, não fica bem a mais alta autoridade do Judiciário receber pessoalmente abaixo-assinado. Fica ainda menos bem quando se sabe que o documento exige a soltura ‒ ao arrepio da lei ‒ de condenado que cumpre pena. Fica pior ainda quando se sabe que o documento acusa o Judiciário de condenar à masmorra presos políticos.

Deve haver, entre os milhares de funcionários do STF ‒ todos pagos por nós, não nos esqueçamos ‒ algum que pudesse ser encarregado de acolher a comitiva, tomar posse do documento, agradecer e prometer encaminhá-lo a quem de direito. Ou não? Seria atitude civilizada e digna, mas também inócua e incapaz de comprometer personalidades.

Que a presidente do tribunal, em pessoa, receba comitivas é insensato. Faz mal ao país.

Voz ativa

José Horta Manzano

«Alguém precisa ter voz ativa nesta casa!» ‒ exclamava meu pai quando as coisas lhe pareciam fora de esquadro e ele resolvia botar ordem na tribo. No âmbito familiar, a distribuição do mando é simples. Os pais detêm todos os poderes. Formulam as regras, impõem o ritmo e ainda julgam e castigam quem sair da linha. Tudo isso sem contestação possível. Já no nível de um país, a coisa é um pouco mais complicada.

De fato, a organização de um Estado é uma teia complexa em que cada fio tem sua utilidade e sua função. No Brasil, a Constituição determina que o poder se baseie num tripé formado pelo Executivo, pelo Legislativo e pelo Judiciário. Cada um tem função claramente definida.

Acontece que, por razões que nem o diabo explica, os legisladores eleitos pelo povo não se têm mostrado à altura do mandato. Reformas urgentes e necessárias estão bloqueadas há anos. O buraco da Previdência Social se aprofunda mais e mais, sem que as excelências tomem iniciativa. Baciadas de leis pedem alterações prementes sem que nenhuma solução venha do parlamento.

By R. Paschoal, ilustrador

No samba ‘Maria, toma juízo’, Paulo Vanzolini diz: «Mulher que se vira pro outro lado ‘tá convocando a suplente». Nossos congressistas que, absorvidos por pequenos interesses pessoais, não se abalam… estão nessa situação. Dão sinal verde para suas funções privativas acabarem sendo exercidas por outros.

Está aí a chave do que tem sido etiquetado como intromissão do STF nas atribuições do parlamento. A evidente omissão da Câmara e do Senado abriu as portas para que o Judiciário pulasse a cerca e passasse a legislar descaradamente.

É verdade que não está certo. A intromissão contraria a estrutura do Estado. Mas fazer o quê? Alguém precisa ter voz ativa nesse circo. No dia em que os congressistas tomarem vergonha e assumirem suas obrigações, o Judiciário se recolherá a seus afazeres. Sem isso, o quadro atual periga continuar.

Recurso por cinco mil

José Horta Manzano

Li outro dia que um cidadão, que havia sofrido um processo em que lhe reclamavam cinco mil reais de indenização por danos morais, perdeu o processo. Foi condenado a pagar a indenização. Pois sabem o que fez o condenado? Em vez de pagar e encerrar o assunto, entrou com recurso em segunda instância.

Ora, senhores, francamente, isso já é abusar do judiciário. A soma de cinco mil reais não justifica uma apelação para instância superior, é questão de bom senso. Ao fim e ao cabo, tramitação e julgamento do recurso hão de ter seu custo ‒ e esse dinheiro sairá do bolso da coletividade. Afinal, quem paga o salário dos juízes, o custo operacional do Palácio de Justiça e o salário de todo o pessoal somos nós. Se adicionarmos a tramitação e os honorários dos advogados, o custo final vai superar de longe os cinco mil reais.

Por não ser especialista na área, não sei exatamente como coibir esse tipo de abuso, mas algo deveria ser feito. Há gente que precisa realmente da Justiça, gente que entra com recurso por necessidade verdadeira. Atulhado por processos e recursos abusivos, o judiciário funciona lentamente. Quem sai perdendo é quem realmente precisa.

Pontaria ruim

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Gente, como é que pode?!? Quando é que tudo isso vai ter fim? Será que ninguém mais percebeu o que está acontecendo com a mira do nosso Judiciário?

Promotores estaduais e federais, policiais federais, procuradores regionais e gerais, juízes de primeira e segunda instâncias ‒ além do Supremo, é claro ‒ dão seguidas provas de sua incompetência, seu despreparo técnico, seu viés ideológico, seu descompromisso com a letra fria da lei, além de, arrogantemente, colocarem-se acima das paixões humanas. Por que digo isso? Ora, só os cegos não veem que, por maiores que sejam seus esforços de comprovar suas teses, até agora não atingiram um único alvo legítimo sequer, não encaçaparam nenhuma bola.

A estatística comprova. Do lado dos corruptores, em especial entre os empresários, apenas um minguado percentual, que não deve chegar nem a 10%, confessa-se culpado. Do lado dos pretensamente corrompidos, o que temos? Só inocentes! Repito, 100% de INOCENTES!

By Ray Clid, desenhista francês

Insones há anos, temos assistido ao desfile macabro de políticos acusados injustamente e perseguidos sem dó nem piedade simplesmente por estarem fazendo seu trabalho costumeiro de arrebanhar votos, conquistar adesão, articular apoios, tudo com o único intuito de favorecer suas comunidades de base. Não é para isso que se elegeram representantes do povo?

Dá pena ver o olhar compungido de presidentes e ex-presidentes, ministros e ex-ministros, governadores, prefeitos, senadores, deputados estaduais, deputados federais e vereadores diante das câmeras na tentativa de proclamar inocência. Ouvindo suas vozes esganiçadas pela indignação, como não acreditar que estão, sim, sendo vítimas das artimanhas de seus opositores, dolorosamente traídos por assessores de confiança, matreiramente envolvidos em armadilhas preparadas por bandidos confessos que nada mais almejam do que diminuir seu tempo de pena?

Nenhum – repito, NENHUM – assumiu até agora ter sequer um dia cogitado burlar a confiança que o povo neles depositou. São todos servidores dedicados, verdadeiros livros abertos, gente de passado transparente e meritório, almas puras e bem-intencionadas, verdadeiros guerreiros e mártires da causa pública, tementes a Deus, cônscios de seu papel histórico de promover a igualdade, a justiça e o desenvolvimento do país.

Como, senão por ingenuidade extrema e um certo grau de perversidade, acreditar que sabiam dos malfeitos de seus apaniguados, que se deram ao desplante de exigir vantagens pessoais, amealhar fortunas desviadas dos cofres públicos, usar seu poder de forma espúria para influenciar a tomada de decisões estratégicas para o país?

Onde, afinal, estão as provas de seus supostos delitos? Podem seus perseguidores gastar o tempo de vida que lhes resta procurando por elas que nada encontrarão! Pela simples razão de que não há prova alguma, material, palpável, incontestável. Só delações, delações e mais delações de gente comprometida até o pescoço com o hábito de comprar consciências.

By Sniper, desenhista francês

E, não posso deixar de indagar, quem está por trás de tanto delator interessado em apontar impunemente o dedo para terceiros? Muita gente, distraída com as novelas e ocupada em votar no participante que deve ganhar o BBB, ainda não ligou os pontinhos para visualizar a figura oculta desses procuradores, moleques impertinentes mal saídos das fraldas que, só por terem aprendido a brincar de Powerpoint, acham que podem dar lição de moral a gerações de políticos experimentados e profundos conhecedores da realidade cultural brasileira.

Não sou adepta de teorias conspiratórias, mas não dá mais para tapar o sol com peneira. É uma questão de lógica concluir que o dedo da CIA está metido fundo em todo esse imbróglio. Não dá para esquecer que esse juizeco da Lava a Jato foi treinado nos Estados Unidos e deve ter aprendido essas táticas de destruição de reputações para conquistar espaço. Foi ele que começou com esse negócio cansativo de exigir moralidade pública, essa mania de divulgar conversas particulares gravadas ilegalmente e ver sempre duplo sentido nelas, não foi?

Pois é, acreditem senhores, é corroendo a base de credibilidade de tantas figuras públicas, antes tão respeitadas entre nós, que eles vão conseguir diminuir a importância do Brasil no cenário internacional e nos alijar do mercado de exportação de bens de consumo. Será que ninguém se lembra do que eles fizeram com as carnes brasileiras e estão tentando fazer agora com o aço e o alumínio?

Acordem, brasileiros! O tempo é o senhor da razão e o tempo vai mostrar de que lado está a verdade. Óculos de grau já para nosso Judiciário!

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Come è brutta la vecchiaia!

José Horta Manzano

Tive, muitos anos atrás, um colega de trabalho italiano que, por conviver com a mãe velha e doente, filosofava: «Come è brutta la vecchiaia!» ‒ Como é feia a velhice!

Eu, que andava pelos trinta e poucos anos à época e não convivia com nenhum velho doente, não dei grande importância à observação. Mas guardei a frase, que solto ‒ em sonoro italiano! ‒ sempre que o momento me parece adequado.

Hoje, abrigado já há muitos anos sob o manto do Estatuto do Idoso, posso opinar em conhecimento de causa. Em princípio, não estou de acordo com a frase do colega ‒ que, aliás, perdi de vista há décadas. Percebo que todas as idades têm um lado bom e outro menos agradável.

A criança e o adolescente têm energia pra dar e vender. No entanto, têm de se conformar com regras e obrigações que nem sempre lhes parecem agradáveis. O jovem adulto, se já se liberou das imposições dos pais e da escola, tem de sofrer a pressão do chefe e da família que constituiu. Na idade madura, cada um se sente já dono do próprio nariz, mas é invadido pela preocupação com o que está por vir: como é que vou me virar quando me aposentar e tiver de encarar brusca diminuição de renda?

by Jacques Faizant (1918-2006), desenhista francês

Minha avó costumava dizer que «tudo na vida tem conserto, só para a morte não há remédio». Tinha razão. Chegada a velhice, as coisas se ajeitam. Pouco a pouco, o indivíduo tem a agradável sensação de ser menos participante e mais espectador. Enquanto a saúde permite, a gente vê a vida passar. Com bonomia e com certo desapego, observamos as queixas e preocupações dos mais jovens. Certas coisas que antes eram primordiais hoje nos parecem tão insignificantes…

No entanto, ainda estamos vivos, que diabos! Eu, que passei a vida sem dar importância à política, nunca imaginei que a situação no Brasil fosse chegar ao descalabro atual. Vejo que a coisa não se ajeita, que a débâcle é cada dia mais evidente, que os valores estão subvertidos, que Executivo e Legislativo estão corroídos pela corrupção desabrida, que até a Justiça dá sinais de estar-se corrompendo moralmente. À vista disso tudo, acaba-se sentindo que alguma coisa tem de ser feita. Sem se dar conta, a gente se vai transformando numa espécie de ativista político.

Acontece sem querer, mas é irrefreável, que ninguém tem sangue de barata. O passar dos anos apaga muitos fogos, é verdade, mas o intelecto continua aceso. Enquanto a cabeça «está boa», a gente permanece agudamente sensível ao comportamento dos que nos governam. Com uma vantagem sobre os mais jovens: já liberados de muitas obrigações, temos mais tempo à disposição.

Cada um combate com as armas que tem. Quando digo «ativista político», não imaginem que eu vá sair enrolado numa bandeira a brandir palavras de ordem na avenida. Cada um na sua. Minha campanha é modesta. Minha grande arma é este blogue, que, aliás, não existiria não fossem as visitas do distinto leitor ‒ a quem agradeço. Não vou parar de atirar minhas pedrinhas nos que me parecerem indignos da posição que ocupam, podem ficar tranquilos.

Por enquanto, para a presidência, não tenho candidato. Mas uma coisa é certa: darei meu voto àquele (ou àquela) que me parecer mais bem armado para ocupar o trono. Do jeito que vão as coisas, os candidatos brilharão não tanto pelas qualidades que têm, mas pelos defeitos que não têm. O postulante ideal terá a ficha limpíssima, imaculada. Será firme sem ser brutal. Terá espírito vivo ainda que não seja um portento de inteligência. Terá um verniz de cultura sem ser necessariamente um filólogo. Será hábil na política mesmo que não seja uma raposa. Terá experiência no métier ainda que não seja um profissional da política.

Por enquanto, na amostragem de que dispomos, a escolha está difícil. Mas o tempo é bom remédio. Quarta-feira que vem é dia crucial ‒ o «dia D do Lula», expressão sugestiva que li em algum lugar. Vamos deixar passar a tempestade. Seja qual for a decisão do Supremo, ela orientará a campanha eleitoral. Sejamos pacientes. Quem viver, verá.

Coisas nossas

José Horta Manzano

As peripécias judiciais que nossos figurões têm atravessado estes últimos anos estão forçando a um curioso (e torto) raciocínio. Criminosos de colarinho branco dão mostra de dissociar condenação e cumprimento de pena.

Pelo que se lê, vê e ouve, o Lula & coorte de aduladores adotam esse conceito bizarro. Chegam a aceitar, ainda que de cara torcida, a condenação imposta pela Justiça. Não costumam se insurgir contra o comprimento da pena, mas contra o cumprimento dela.

E muitos incautos caem na cilada, reparem. Poucos se espantam com o rigor da sentença mas muitos aderem inconscientemente à tese de que a pena é mera abstração, desconectada da execução. Em resumo, admite-se que este ou aquele tenha sido condenado a cinco, dez ou vinte anos de cadeia, mas a o encarceramento propriamente dito nos parece impensável, inadmissível.

Em outras terras, a pena e seu cumprimento são uma sequência lógica e inexorável. Entre nós, são realidades independentes, figuras jurídicas que não se conhecem nem de elevador.

A coisa não vem de hoje. Doutor Maluf, condenado há quase vinte anos, continuou livre e solto. Seu encarceramento efetivo em dezembro último, ao invés de ser visto como consequência natural da condenação, é considerado por muitos como injusto, um exagero, uma obstinação do judiciário, uma vingança, uma crueldade.

Outro que tem reforçado a tese da dissociação entre condenação e prisão é o próprio Lula. Das declarações dele e dos que o rodeiam, depreende-se que uma coisa não tem nada que ver com a outra. Condenado, vá lá. Preso? Nunca!

São coisas nossas.

Nota
Coisas nossas é o título de um maxixe de Noel Rosa, gravado em 1932.

Da inutilidade do vice ‒ 3

José Horta Manzano

Volta e meia, novo episódio vem confirmar que, na política, já faz tempo que a figura do vice deixou de ter razão de ser. Que seja vice-presidente, vice-governador, vice-prefeito ou suplente. Na era da comunicação instantânea, não faz sentido.

Na escola, há professoras substitutas. É compreensível. Na ausência da titular, como é que fica? Os pequeninos não podem passar um dia sem alguém para orientá-los. A falta da mestra tem de ser remediada imediatamente. No pronto-socorro, como na escola, há médicos substitutos. Não se pode permitir que a ausência de titulares prive doentes e acidentados de assistência.

Já o Executivo, o Legislativo e o Judiciário funcionam em outro ritmo. Por um lado, decisões coletivas podem ser tomadas ainda que o colegiado não esteja integralmente presente ‒ o que é o caso do Congresso e do STF. Por outro, decisões individuais (do Executivo) podem esperar pela disponibilidade do titular. Se, por urgência, a palavra do chefe for imediatamente necessária, os modernos meios de comunicação estão aí pra garantir o funcionamento da máquina.

Doutor Janot & doutor Gilmar Mendes em vizinhança forçada

Quer um exemplo de decisão tomada na ausência física do titular? Saiu na mídia ontem. Na quinta-feira, doutor Gilmar Mendes viajou à Europa. Como presidente do Superior Tribunal Eleitoral, foi convidado a acompanhar as eleições alemãs deste domingo. Por uma dessas artes que o destino apronta, o ministro embarcou no mesmo voo que doutor Janot, desafeto seu, procurador-geral da República até poucos dias atrás. Pior ainda: viajaram em fileiras contíguas. Passaram dez horas cochilando a metro e meio um do outro.

Já em território europeu, doutor Mendes deu decisão negativa ao pedido de habeas corpus impetrado por aqueles réus de nome simplório e sobrenome pio. Os encarcerados continuam enjaulados. O documento, pra lá de oficial, foi assinado «digitalmente» na data de sexta-feira 22 de setembro, quando o ministro já estava dando entrada na Alemanha.

“Habeas corpus” indeferido por doutor Gilmar Mendes

Está feita a prova de que até ausência física de figurões das altas esferas deixou de ser empecilho para a tomada de decisões urgentes e importantes. Doutor Mendes assinou «digitalmente» complexa decisão de sete laudas, com farta argumentação em juridiquês. O texto deixa evidente que o ministro conta com excelente equipe de juristas. Vice… pra quê?

No fundo, a figura do vice só tem servido pra atrapalhar. Custa um dinheirão e não ajuda. Haja vista o problemão que a investidura de doutor Temer no cargo de presidente da República tem causado. Não tivéssemos vice, já teriam sido convocadas novas eleições e o problema da legitimidade teria sido resolvido há tempos.

Todos culpados

José Horta Manzano

O Instituto Ipsos, especializado em pesquisa de opinião, testou a percepção que os brasileiros têm de 20 personalidades. Foram escolhidos 19 personagens políticos ou da alta administração. Para completar os 20, selecionaram ‒ sabe-se lá por que razão ‒ um homem de televisão.

Pesquisa Ipsos – Infográfico Estadão
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Excluindo justamente o homem de televisão, todos os personagens são mais rejeitados que aprovados. Não sobra nenhum. Os entrevistados torcem o nariz para todos eles, sem exceção. Começa com doutor Michel Temer, alvo da desaprovação mais eloquente, e vai até doutor João Doria, que recolhe a rejeição menos brutal. A desaprovação de doutor Aécio é fenomenal. Há que reconhecer que aquele que recolheu metade dos votos nas mais recentes eleições presidenciais foi o que mais decepcionou. É mais repelido que o próprio Lula, que, por sua vez, é mais rejeitado que doutor Bolsonaro.

Nota-se que algumas figurinhas carimbadas da política ficaram fora do questionário. Penso em doutor Maluf, doutor Sarney, doutor Collor, dona Marta Suplicy. Enfim, a selva de gente enrolada com a justiça ou com a opinião pública é tão densa que fica difícil estabelecer uma lista.

O mesmo instituto testou também a aprovação popular de sete figurões da Justiça tomados ao acaso. (Ou, talvez, não tão ao acaso assim.) No topo da desaprovação, aparece doutor Gilmar Mendes. Doutor Sergio Moro é quem sai melhor na foto. Surpreendentemente, medalhões como doutores Lewandowski e Toffoli não entraram na seleção.

Pesquisa Ipsos – Infográfico Estadão
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Ao fim e ao cabo, que me perdoe o distinto leitor pela vulgaridade, fica a impressão generalizada de saco cheio. Dado que boa parte dos entrevistados não deve ter ideia precisa de quem possam ser doutores Paulo Skaf, Tasso Jereissati ou Nélson Jobim, é de acreditar que a reprovação vale para todos. Parafraseando George Orwell, fica assim: embora alguns sejam mais culpados que outros, no fundo, são todos culpados.

O rodamoinho da corrupção traga todo o andar de cima, que sejam culpados, condenados, suspeitos ou juízes. Sobra para todos. Só não será reprovado… quem não for mencionado.

Observação
Seria extremamente interessante se a pesquisa tivesse ido mais fundo. Deveriam ter perguntado a razão da aprovação (ou desaprovação) de cada nome citado. Do jeito que está, embora pareça espetacular, a análise dos resultados não permite ir além de conjecturas.

Colégio e cacofonia

José Horta Manzano

A Constituição brasileira determina que os três poderes da República sejam harmônicos entre si. Estão no mesmo nível e gozam de idêntico grau de importância. Essa é a teoria.

Na prática, há distorções. O Executivo, encarnado por um solitário presidente (ou uma solidária presidenta), tem visibilidade maior que a dos outros poderes. É compreensível. O Legislativo se dilui entre 594 eleitos cuja identidade nem especialistas conseguiriam recitar de memória. O Congresso é, por princípio, lugar de debates e de embates públicos. Cada membro carrega a bandeira de seu partido e de seus eleitores.

Resta o Judiciário, coroado por um grupo de magistrados que formam o Supremo Tribunal Federal. Os onze magistrados-mores, aos quais se costuma dar o título de ministro, formam, em princípio, um colegiado(*). Diferentemente do Executivo, proferem decisões e sentenças colegiais, resultado de reflexão conjunta.

Supremo Tribunal Federal, Brasília

Em lugar de um presidente do Judiciário ‒ em contraponto ao presidente do Executivo ‒ o legislador optou por instituir um colégio de magistrados. Por detrás dessa decisão, está a ideia evidente de que onze cabeças pensam melhor que uma.

Na Suíça, talvez exemplo único no mundo, não só o Legislativo e o Judiciário, mas também o Executivo é exercido por um colegiado. São sete componentes eleitos. A ideia é sempre a mesma: sete cabeças pensam melhor que uma. A cada ano, um dos sete é escolhido como presidente proforma por um ano. Além de conservar suas funções habituais, representa o país no estrangeiro e aperta a mão de visitantes. Sua voz não se eleva acima da dos demais. Os debates entre os membros do colégio executivo se fazem a portas fechadas. Quando uma resolução vem a público, aparece sempre como decisão do colegiado. Ninguém fica sabendo da opinião de cada componente.

No Brasil, os debates do STF são travados em público. Por um lado, esse modo de operar tem a vantagem da transparência, eliminando a desconfiança de conluio, de reunião de compadres. Por outro, no entanto, a divulgação da opinião de cada magistrado tem efeito pernicioso: cria-se uma fogueira de vaidades em que ministros se criticam, dão entrevista para marcar território, procuram sutilmente desqualificar colegas que não pensam como ele. Não tenho certeza de que decisões colegiais devam ser tomadas dessa maneira.

Esse modo de proceder transforma nosso STF em miniatura do Congresso. Parte dos cidadãos é fã de determinado integrante, enquanto outros o detestam. Como num Fla-Flu, forma-se verdadeira torcida em torno de decisões de justiça. Os votos chegam a conta-gotas. Um ou outro pede vistas, enquanto outros já proferiram seu voto. Antes da finalização das discussões, até ministros que já votaram podem voltar atrás e modificar o voto. Uma cacofonia.

Reconheço que, se debates fossem feitos a portas fechadas e o resultado final só fosse revelado depois de sacramentado, ficaria no ar desagradável impressão de conjuração. Assim mesmo, no âmbito de uma futura reforma do sistema, a possibilidade de deliberações a portas fechadas deveria ser considerada.

Não há sistema perfeito. Mas o estrelismo deste ou daquele ministro do STF contrasta com a modéstia daquele outro. Decisões que chegam «à prestação» também são irritantes. Mudança de voto já proferido, então, é surpreendente. O modelo merece ser repensado.

(*) Colégio, do latim collegium, é composto de cum (=com, junto) e de legere (=colher, escolher). Transmite a ideia de colher (escolher) em conjunto.

Conflito entre Poderes

José Horta Manzano

«Vai-se o rei, fica a majestade» ‒ diz o povo. Certos vícios e cacoetes martelados durante séculos têm vida longa. Regime entra, regime sai, certas práticas continuam. E o mais incrível é que parecem normais.

A Revolução Francesa, que espocou nos anos 1790, acabou com o absolutismo na França. No Brasil, a novidade chegou algumas décadas depois. Em 1824, a primeira Constituição do país independente já fixava os limites do poder do chefe do Executivo.

Luís XIV

Luís XIV,  rei da França

Ainda assim, a Constituição francesa guarda resquícios do «direito divino», herdados do “Ancien Régime”. O presidente da República, que agora representa o papel do rei, conserva certos poderes discricionários. O Artigo 17, curto e grosso, dá a ele o direito de perdoar penas individuais.

Nossa Constituição não inventou grande coisa. Assim como diversas outras, inspirou-se em princípios já expressos na lei maior de grandes democracias. O Artigo 84 de nossa carta atribui ao presidente da República o direito de conceder indulto e comutar penas (…). Data venia, discordo vigorosamente.

Bem no comecinho, logo no segundo artigo, nossa Constituição explicita que os Poderes da União são independentes e harmônicos. A atribuição dada ao presidente do Executivo de comutar pena de condenados pelo Judiciário manda pro espaço essa harmonia. Como é que é? Um condena e outro perdoa? É incongruente.

No Brasil, vamos mais longe que na França: assistimos a esse filme todos os anos. Todo Natal, repete-se o ritual da concessão de indulto a condenados. Se o intuito do legislador era instaurar a desarmonia entre Poderes, conseguiu o intento.

O juiz, baseado em estudo objetivo do processo, absolve o indivíduo ou o considera culpado e lhe impõe a pena. Caso o condenado queira contestar, a segunda e a terceira instância estão aí para isso. Após o trânsito em julgado, não deveria ser possível reabrir o processo, a menos que haja surgido fato novo, não conhecido à época do julgamento. De toda maneira, toda a movimentação deveria ocorrer no âmbito do Judiciário.

Constituição 4Nada mais frustrante para o poder Judiciário que assistir, impotente, à soltura de criminosos por uma canetada do presidente. Parece-me descabido que um só homem possa anular, num ato de pura vontade pessoal, o resultado de um processo que pode ter levado anos de trabalho e de estudo.

Foi assim que um certo José Genoino ‒ «herói do povo brasileiro» ‒ foi solto, dois anos atrás. Por decreto presidencial. No outro extremo de nossa proverbial desigualdade entre cidadãos, volta e meia surgem histórias tristes de inocentes que passaram décadas atrás das grades. Para esses, nunca terá havido indulto nem perdão.

O decreto de 2016, conhecido como indulto de Natal, já foi assinado pelo presidente semana passada. Essa incoerência embutida na Constituição não é a única. Está passando da hora de aposentar a atual carta magna e substitui-la por uma novinha em folha.

O direito de nascer

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 29 out° 2016

Precisa ser velho pra se lembrar do tempo das radionovelas. Para quem não conheceu, dou umas pinceladas. Capítulos eram diários, irradiados ao vivo, sem gravação. Na falta de imagem, toda a informação vinha pelo som. Era importante que atores tivessem voz personalíssima e identificável. Tinham de articular bem, com dicção excelente.

A sonoplastia era capital. A abertura de uma porta era sugerida por um rangido; um tapa tinha de ser distintamente ouvido; numa cavalgada, ouvia-se com clareza o ruído dos cascos. Outra peculiaridade era o elevado número de capítulos. Radionovelas eram intermináveis, com desdobramentos inesperados, filhos que surgiam do nada, personagens que sumiam, situações que viravam de cabeça pra baixo.

Radio 6O advento da televisão matou o teatro radiofônico mas pôs em seu lugar a telenovela. No fundo, por ter guardado as características principais, esta é continuação daquela. Na Europa, telenovelas não ocupam lugar de destaque. As que há são geralmente importadas e não passam no horário nobre. Muito poucos europeus se disporiam a acompanhar, num ritual diário e compulsivo, as centenas de capítulos de uma novela brasileira. Os brasileiros, sabe-se lá por que, acostumaram-se a seguir diariamente os desdobramentos de tramas televisivas. É como um vício, um hábito de que poucos escapam. Contam que até um antigo presidente da República, fã incondicional desse gênero de dramaturgia, mandava gravar capítulos quando estava de viagem internacional para poder degustá-los na volta.

Esse apego a histórias sem fim mostra que brasileiro é gente paciente. De fato, poucos reclamam por alguma novela estar demorando demais pra acabar. Ao contrário, muitos lamentam o término de algumas delas: «Estava tão boa…» Tivesse sido deflagrada noutras terras, uma operação como a Lava a Jato dificilmente vingaria. Quando a gente pensa que está chegando ao fim, lá vem mais um capítulo, como filho clandestino que surge no meio de novela. E pronto: a operação, revigorada, se ramifica, envereda por outras trilhas, incorpora personagens, enriquece a trama.

Tudo isso é bom? É ruim? Dizem que um final feliz compensa os pedregulhos do caminho. Eu diria que depende do tamanho dos pedregulhos. Não convém considerar que o fim justifique qualquer meio. Esse filme é batido e mostra raciocínio arriscado.

esporte-5À medida que a operação avança, mais e mais personagens se adicionam. Vai-se cristalizando a impressão de que, em maior ou menor medida, todos estão envolvidos: políticos de alto e baixo coturno, empresários de alto e médio nível, facilitadores, pombos-correio, familiares, aparentados, acumpliciados, um mundaréu de gente. Uns estão subindo à ribalta enquanto outros já foram inocentados ou despachados para uma temporada na cadeia. Com o termômetro do nervosismo latejando, ataques e contra-ataques estão sendo desferidos abaixo da cintura, para usar linguagem de boxeador.

Dia destes, em conversa telefônica transmitida ao vivo pelo rádio, o presidente da Câmara, ao ser acusado de patrocinar jantares à custa do erário, insinuou que os jornalistas já deveriam se dar por satisfeitos pelo fato de ele ter concordado em dar entrevista. Confirmou, sem se dar conta, que representantes do povo vivem num universo paralelo, divorciados dos que os elegeram, convencidos de que não devem satisfações a ninguém nem mesmo em matéria pública. Rematada arrogância.

Discussão 1As diatribes a que temos assistido se aceleram num inacreditável e insuportável crescendo. Invectivas do tipo «patrocinador de rega-bofes», «fascista», «chefete de polícia», «juizeco», que já seriam grosseiras em conversa de boteco, têm saído da boca de inquilinos do andar de cima, de medalhões-mores, em pronunciamentos oficiais. Estamos chegando a um momento confuso, em que já não se sabe onde estão as estribeiras. Polícia prende polícia. Presidente do Senado ofende juiz. Ministro do Supremo ataca presidente do Senado. Os Poderes da República se engalfinham em público. Um cafarnaum.

Telenovelas, ainda que acompanhadas com paixão, não passam de ficção. A tragicomédia que a nação atravessa é real, mexe com os fundamentos do Estado, repercutirá sobre a vida de todos nós por anos e anos. Todo excesso é negativo. A exaltação é inimiga da reflexão. Que se dê um basta nesse frege. Que se mande pra cadeia quem tiver de ser mandado, e que se desça logo o pano. Ninguém aguenta mais essa novela. O Brasil tem o direito de renascer.

O presidente do Senado e o pijama

José Horta Manzano

«Criança que brinca com fogo faz pipi na cama!» ‒ era o pito que levavam os pequeninos quando, principalmente em época de São João, fabricavam balões ou manipulavam bombinhas e busca-pés. Ainda que não se tenha notícia de pequerrucho acordando de pijama molhado depois de ter soltado rojão, a advertência costumava funcionar. O medo do castigo bastava pra refrear ardores piromaníacos.

A língua está cheia de ditados que incitam à prudência. «Não se cutuca onça com vara curta» ‒ previnem uns. «Quem tem telhado de vidro não atira pedra na casa do vizinho» ‒ advertem outros. Parece até que nem precisava, pois são coisas tão evidentes! Quem tem rabo comprido deve tomar cuidado ao fechar a porta pra evitar que o rabo fique lá fora.

balao-1Por tudo isso, parece incrível que ainda haja gente que não dá ouvidos a esses conselhos. Um caso surpreendente está acontecendo estes dias. Estamos assistindo a uma turra entre os três Poderes da República. Briga de gente fina. Resumindo em três palavras, foi assim:

• A Polícia Federal ‒ órgão vinculado ao Executivo ‒ cumpriu missão surpresa dentro do Senado e prendeu membros da polícia interna daquela Casa. Polícia prendendo polícia é meio estranho, mas assim aconteceu.

• O presidente do Senado ‒ braço do Legislativo ‒, o inefável senhor Calheiros, não apreciou e decidiu encarar. Soltou o verbo. Valendo-se de termos pejorativos, desancou Executivo e Judiciário.

• A presidente do STF ‒ instância maior do Judiciário ‒ sentiu o baque. Tomando as dores do juiz ofendido por Calheiros, declarou que todo ultraje a magistrado constituía automaticamente ofensa ao STF.

A estas alturas, depois de todos descarregarem o excesso de tensão, seria de imaginar que o termômetro baixasse. Não foi o que aconteceu. Senhor Calheiros preferiu dar sequência às hostilidades.

Chamada do Estadão, 27 out° 2016

Chamada do Estadão, 27 out° 2016

Será por excesso de confiança, dizem uns: o homem se sente inatingível. Já outros julgam que, ao contrário, é desespero de quem se sabe condenado e vê sua hora chegando. Como não tem mais nada a perder, escolhe cair atirando. Difícil saber. Uma coisa é certa: senhor Calheiros se esqueceu dos conselhos de prudência apregoados pela sabedoria popular.

Em vez de esperar que a poeira baixasse, o senador preferiu martelar para enfiar o prego ainda mais fundo. Anunciou «pacote de reação» em represália à ação da Polícia Federal. Num momento em que o melhor a fazer seria tirar duas semanas de férias, sumir de cena, viajar para um paraíso tropical e esperar que o ambiente se acalmasse, senhor Calheiros fez o inverso. Mostrado os músculos, chamou os holofotes para si. Pode ser que ganhe a queda de braço, mas é pra lá de duvidoso.

fogos-artificio-3Esse senhor fechou a porta muito rápido e esqueceu o rabo de fora. Está, assim, de rabo preso. Mais dia, menos dia, a enchente vai-lhe bater nas canelas. É terrível imprudência indispor-se com aqueles que podem, amanhã, vir a julgá-lo. Brincando com fogo desse jeito, periga acordar de pijama molhado.

Bravata, ministrinho e padrinho

José Horta Manzano

Bravata
O deputado Cunha, presidente da Câmara, desafiou o Judiciário. Disse que concorda em ser chamado para acareação com seus acusadores. Pura bravata: a Justiça, quando determina confronto entre indivíduos, dispensa consentimento do acusado. Se for convocado, tem de ir. Caso não se apresente, sujeita-se a ser conduzido manu militari.

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

Afundemos juntos
A valentia do deputado bravateiro durou uma frase só. Na sequência, apelou para o velho abraço de afogados. Sugeriu às autoridades judiciárias que, caso o chamem para acareação, que aproveitem o embalo para chamar também dona Dilma e alguns de seus ministros. Vamos todos juntos!

Ministrinho
Segundo o deputado, um dos que deviam ser chamados para acareação é um ministro de Estado chamado “Edinho”. Este blogueiro é do tempo em que diminutivos serviam de apelido pra criança. Ministro Edinho? Tira a seriedade do cargo.

Pirulito 1Defesa do padrinho
Dona Dilma pediu a seus ministros que saiam em «defesa pública» do Lula. No âmbito privado, é compreensível ditar a auxiliares o caminho a seguir. Deixar vazar esse tipo de determinação pega mal. Fica a impressão de que nosso guia e seus advogados são incapazes, sozinhos, de assumir a defesa.

Escolha de ministro do STF

José Horta Manzano

Conflitos são desagradáveis, mas têm, às vezes, seu lado bom. Como todos já se deram conta, Executivo e Legislativo andam às turras desde o começo do ano. Hostilidade solta faíscas, mas pode também exalar algum resultado produtivo.

Um exemplo acaba de surgir. É notório que senhor Eduardo Cunha, presidente da Câmara, não é, digamos assim, o melhor amigo de nossa presidente. Pois o medalhão mandou desengavetar um projeto de emenda constitucional que estava bloqueado fazia tempo.

STF 2A PEC 342/09 propõe modificar alguns parâmetros do cargo de ministro do STF. Aprovada, é mais que provável que venha a desagradar profundamente à presidente. Dois são os pontos notáveis cuja alteração é proposta: forma de designação e duração do mandato dos nomeados.

É indisfarçável que o intuito principal é tirar do Executivo o poder de apontar, sozinho, os ministeriáveis. Até aqui, de fato, cabe à presidência da República a prerrogativa de indicar o escolhido. A sabatina pela qual o ungido deve em seguida passar, diante dos parlamentares, costuma ser mera formalidade. Não me ocorre nenhum caso de reprovação. Nem mesmo de postulante que tenha ficado pra segunda época.

O outro ponto crucial diz respeito à duração do mandato que, pela regra atual, é vitalício, tornando o ministro virtualmente inamovível. A muitos, vitaliciedade pode combinar com monarquia, mas destoa no regime republicano. Mais que isso: em princípio, a idade mínima para nomeação é de 35 anos, com demissão compulsória aos 70. Contas feitas, um mandato, pelas regras em vigor, pode durar teoricamente 35 anos, tempo que alguns consideram demasiado longo.

STF

A prerrogativa concedida a um só indivíduo – o presidente da República – de designar membros do colegiado que chefia um outro poder quebra o equilíbrio republicano. Para eliminar o carimbo autocrático, a PEC propõe que, dos onze ministros do STF, cinco sejam indicados pelo presidente da República, dois pela Câmara, dois pelo Senado e dois pelo próprio STF.

O projeto entende também que a vitaliciedade deve ser abolida. Em seu lugar, propõe um mandato de 11 anos. Único, contínuo e não renovável.

Noves fora inimizades e retaliações entre personalidades do andar de cima, a ideia não me parece má. Vai no bom sentido para amenizar o atual desequilíbio entre poderes.

Por que me ufano de meu país

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Perdoem-me a falta de números precisos. É que sempre estive do lado das ciências qualitativas e, por isso, desaprendi a me importar com estatísticas. Em nosso curso de Estatística na Faculdade de Psicologia, circulava até mesmo uma piada a respeito da importância das análises baseadas na quantificação: “A estatística mostra tudo, menos o essencial”.

Estatísticas 3Se você puder abandonar por um instante a expectativa de dimensionar a importância real das circunstâncias abaixo, provavelmente vai se surpreender com a face oculta dos feitos nacionais, quando filtrados por olhos de qualidade. Acredito que, uma vez elaborado o impacto dessas constatações, será possível recorrer a sites especializados para obter os números que você necessitar.

Um alerta importante: não há nada de novo ou original neste condensado de motivos para nos orgulharmos de nossa pátria. Tudo já foi dito e repisado ad nauseam e a emoção contida originalmente nas palavras foi se perdendo ao longo do tempo. Assim, por favor, entenda este arrazoado como uma simples tentativa de resgatar a pulsação emocional de nossos concidadãos.

Eu me ufano de meu país porque:

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● Somos um dos países com a maior carga tributária do planeta e campeões absolutos em não retornar à população os serviços essenciais de que ela necessita e pelos quais pagou.

● Estamos na liderança das nações mais corruptas do planeta, se considerados em conjunto nossos governantes, nossos parlamentares, nosso sistema judiciário, nossos empresários, nossa elite social, nossa elite religiosa e boa parte de nossos cidadãos comuns.

● Estamos na vanguarda das maiores concentrações de renda dentre os países ditos civilizados do mundo contemporâneo.

● No plano social, não perdemos para ninguém no mundo em termos de desassistência às populações de rua, aos idosos, às crianças e aos cuidados materno-infantis.

Pobreza 1Interligne vertical 10● Nosso sistema educacional nos enche de orgulho por figurar nas primeiras colocações dentre aqueles que ainda não conseguiram universalizar o acesso ao saber e à tecnologia de ponta, e no qual a desautorização e o desrespeito aos mestres são os grilhões que nos prendem à era medieval.

● Nosso sistema público de saúde bem poderia ser usado para ilustrar textos científicos sobre a forma como a medicina era praticada nos burgos feudais. Poderia também servir de referência para análises científicas a respeito da qualidade do atendimento médico e psicossocial em países conflagrados por guerras civis.

● Nosso sistema judiciário é líder planetário no que tange à lentidão na distribuição da justiça, ao foco em tecnicalidades legais, ao tratamento desigual dispensado aos cidadãos de maior e menor renda e aos privilégios concedidos a certas autoridades e a certas categorias profissionais.

Atoleiro 1Interligne vertical 10● Nossa capacidade de investimento em infraestrutura é campeã em atraso na aprovação e execução de projetos, na má distribuição dos recursos disponíveis, na burocracia e no desvio de dinheiro público.

● Nossa segurança pública é das mais combalidas em todo o planeta. Atingimos o primeiro lugar honrosamente graças à má gestão na seleção, treinamento e remuneração tanto dos oficiais de nossas forças armadas quanto de nossas polícias estaduais e federal. Mais importante, devemos esse galardão à forma como nossos governantes voltam as costas para nossas demandas de participação na administração.

● Nossa capacidade de dar acolhimento a ex-ditadores, ex-governantes corruptos e a fugitivos da justiça de toda espécie não encontra paralelo em nenhum outro país. Ao mesmo tempo, nos excedemos em não dar abrigo a cidadãos de outros países atingidos por cataclismas naturais, guerras ou perseguição religiosa e ideológica.

Assalto 1Interligne vertical 10● Nosso potencial para atingirmos a excelência em diversas outras áreas, como, por exemplo, o patrocínio oficial a atividades culturais, é gigantesco e consolida em definitivo nosso epíteto de “país do futuro”.

● Finalmente, porque somos um país de dimensões continentais que se rege por um único idioma oficial. Mesmo assim, ganhamos o campeonato mundial de distância entre a linguagem culta e a linguagem das ruas. Graças a essa soberana característica nacional, impedimos que o cidadão comum absorva intelectualmente os ditames políticos, o jargão usado por especialistas de todas as áreas – em especial médicos e juristas – e nos confraternizamos com expressões compartilhadas por todos: “É nóis na fita, mano! kkkkkkkk”

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(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Aqui não é crime

José Horta Manzano

Acabo de voltar da secção eleitoral onde voto, em Genebra. A viagem de ida e volta dá uns 90 km. Mas não posso reclamar. Em determinados países, brasileiros têm de viajar centenas – às vezes milhares – de quilômetros para cumprir sua obrigação.

Se fosse facultativo, seria um direito. Como é compulsório, deixa de ser direito para se tornar obrigação. Pior que isso: o não comparecimento transforma-se em contravenção sancionada com multa. O perfume não é muito democrático, mas assim é.

Eleição 2Você acredita, distinto leitor, que havia gente fazendo boca de urna debaixo da marquise, do lado de fora do local onde se vota? Em pleno Palácio das Convenções de Genebra, Suíça? Pois é isso mesmo. Vi com estes olhos que a terra há-de comer.

Era um grupozinho de militantes, daqueles bem mequetrefes, enrolados em bandeira estrelada, com o nome da candidata deles escrito em letras garrafais. Paravam todos os que se dirigiam à entrada. Aquilo me revoltou e me fez perder o sangue-frio. Dei uns gritos, disse que aquilo era proibido. Desassombrados, responderam que podia ser proibido no Brasil, mas não aqui. E continuaram impávidos.

Chamei então a atenção do pessoal consular. Imediatamente, a embaixadora, acompanhada de um pequeno comitê, dirigiu-se ao local onde estavam os boqueiros. Foram parlamentar.

Boca de urna 3Enquanto isso, fui votar. Na saída, percorrendo o mesmo caminho, que vejo? Primeiro, a embaixadora e acompanhantes, já retornando ao local de votação. Em seguida… o grupelho. Enrolados nas mesmas bandeiras, continuavam a apostrofar todos os que passavam.

E pensar que tudo isso está sendo financiado com o meu, com o seu, com o nosso dinheiro! É revoltante.

Se o senhor Aécio vencer hoje, é porque é forte mesmo. Os braços longos da máquina governamental já estão chegando até o exterior. Alguém produziu e transportou – em viagem de 10 mil quilômetros! – aquelas bandeiras e aqueles santinhos. Alguém remunerou os militantes, nem que seja uma tubaína, um sanduíche, a condução e mais uns trocados.

Arca 1Caso a oposição ganhe, que se cuidem! Os que hoje detêm o poder estão com as burras abarrotadas de dinheiro. São cuecas, malas, arcas e baús transbordando. Sem mencionar os bilhões encafuados em paraísos fiscais. É dinheiro suficiente pra comprar Legislativo e Judiciário inteirinhos. E quem mais for necessário.

Dentro de mais algumas horas corre a loteria. Veremos de que lado sai a sorte grande. Neste momento, uma única certeza: o vencedor será mineiro.

O meio voto

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 4 out° 2014

O grande dia está aí. Todos os eleitores brasileiros vão escolher presidente, governador, senador e deputado. Infelizmente, felicidade perfeita não existe: o voto, por ter caráter compulsório, deixa de ser direito para tornar-se obrigação, o que, convenhamos, tira a graça e estraga a festa.

Expat 1Melhor dizer que os eleitores brasileiros serão obrigados a comparecer às urnas amanhã. Para escapar (de graça), só há duas vias: voto nulo ou voto em branco. Ao fim e ao cabo, se o cidadão ficasse em casa, o efeito seria o mesmo. Por que, então, obrigá-lo a declarar pessoalmente, a uma máquina, que não lhe apetece escolher ninguém? Um dia alguém ainda há de desvendar essa norma bizantina.

Seja como for, é melhor que nada. Considerando que metade da humanidade não goza do direito de designar dirigentes nem representantes, não podemos nos queixar. E é bom ter juízo ao escolher. Depois, não vale reclamar com o bispo.

Muita gente desconfia daquela engenhoca eletrônica que aposentou e substituiu a boa e velha urna. Prática, ela é. Mas por que será que nenhum outro país sucumbiu a seus encantos nem ao avanço revolucionário que ela garante? Tão prática, segura e rápida, mas… ninguém quer saber dela. Sei não. Fico meio cismado com essa singularidade nacional.

Chega de divagar – vamos aos fatos. Nossa Constituição reza que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário são Poderes da União, independentes e harmônicos. Diz ainda que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos.

Expat 2A lei exige a escolha, por sufrágio universal e direto, do chefe do Executivo e dos membros do Legislativo. Características específicas do Poder Judiciário fazem que seus dignitários sejam designados por concurso ou por nomeação. Então, regozijemo-nos! Todos os eleitores brasileiros estão prestes a escolher os protagonistas do Executivo e do Legislativo. Correto?

Não, a verdade é outra. Todos os brasileiros não são iguais perante a urna. Importante franja de cidadãos – maiores, vacinados, civilmente capazes e munidos de título de eleitor – não votará como os demais. Falo dos que residem fora do território nacional, entre os quais me incluo.

Expat 3Se a obrigatoriedade do voto já incomoda muito brasileiro domiciliado em terra pátria, nós outros, residentes em outras plagas, vivemos situação ainda mais esquisita. Somos obrigados a votar, pouco importando que centenas de quilômetros possam nos separar da urna mais próxima. No entanto, nosso voto é cerceado, circunscrito à escolha do chefe do Executivo nacional. Não nos é permitido escolher nosso representante no Legislativo. Temos direito a meio voto. Por que essa bizarria?

Porque a lei não prevê representação para os 3 milhões de brasileiros do exterior – população mais numerosa que a do DF ou a de Mato Grosso do Sul! E pensar que somos justamente os que não reivindicam bolsa nenhuma. Ao contrário, as remessas enviadas pelos compatriotas do estrangeiro revigoram as finanças nacionais. Estima-se que entre 6 e 7 bilhões de dólares sejam por nós injetados, ano sim, outro também, na Economia nacional. Em moeda forte, líquida e certa.

Em 1988, quando se fez a Constituição, brasileiros no exterior eram poucos. De lá para cá, o aumento foi exponencial, mas o legislador não se deu conta. Para defender nossos interesses, continuamos a depender da boa vontade de algum parlamentar caridoso.

Expat 4A França, que tem apenas um milhão e meio de expatriados, acode seus filhos distantes. A Itália também. Ambas permitem que os não residentes elejam certo número de parlamentares para representá-los. Nós não temos esse direito.

Há injustiça e incoerência nessa negação de representação democrática. Se servimos para escolher o presidente, não há razão para que nos soneguem o direito de eleger nossos deputados. Nossos interesses são específicos: transmissão da nacionalidade, serviço militar, casamento misto, registro civil, atos notariais, compra de uma casinha em Xiririca do Brejo, validação de contribuição previdenciária feita no exterior para aposentadoria no Brasil, dupla cidadania, acordos de bitributação. E muito mais.

Para esta eleição, já não há mais jeito, que as apostas estão feitas e a roleta está girando. Rien ne va plus! Só nos resta torcer para que algum parlamentar clarividente – escolhido pelo distinto leitor e pela gentil leitora – se apiade de nossa desdita e lance um projeto de emenda constitucional.

Quem sabe, daqui a quatro anos, o brasileiro do exterior já terá deixado de ser o primo pobre da República.