Esse negócio de direita e esquerda

José Horta Manzano

«O povo, de maneira geral, não entende esse negócio de direita e esquerda.»

Numa síntese feliz, doutor Marcio França, governador em exercício de São Paulo, matou o coelho. A entrevista saiu hoje no Estadão. Tem razão, o doutor. Enquanto em outras terras é primordial colar na testa de cada político a etiqueta do campo a que pertence, no Brasil a coisa não é tão rigorosa. Nosso panorama pluripartidário é menos rígido, bem mais ameboide.

Entre nós, o conceito de fidelidade partidária passa ao largo do Parlamento. Político que, no percurso ‘profissional’, já tiver mudado três, quatro ou cinco vezes de partido não será menos considerado que outro que tiver permanecido fiel ao primeiro amor. A fidelidade não agrega valor ao currículo de nosso homem público.

Uma foto icônica tirada faz uns cinco anos mostra doutor Haddad, um dos atuais pretendentes à Presidência, ladeado por Lula da Silva e por doutor Paulo Maluf. Sabe-se que o Lula é o símbolo maior da ‘esquerda’ brasileira, tal como a torcida caviar a enxerga. Por seu lado, doutor Maluf é, desde os anos 1970, a encarnação da adesão à ditadura, aos generais, a tudo o que, em qualquer cartilha, constitui a ‘direita’. Assim mesmo, poucos se escandalizaram com a imagem, tanto que doutor Haddad foi eleito, logo em seguida, prefeito da maior capital do País.

Tenho constatado, nestes dias que se sucedem ao primeiro turno das eleições brasileiras, grande preocupação por parte da mídia europeia. Artigos de fundo, mesas-redondas, entrevistas, debates se organizam em torno do resultado do voto de domingo passado. É unânime a opinião de que uma «maré conservadora» está lambendo as praias do país e ameaça tragar o território inteiro. É voz corrente que o Brasil se inscreve na crescente lista de países que se deixam enfeitiçar pelo canto de sereia da extrema-direita. Doutor Bolsonaro vem sendo comparado à francesa Marine Le Pen, ao italiano Matteo Salvini e até ao perigoso Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria.

Os europeus andam assustados com o crescimento de movimentos identitários, separatistas e xenófobos que pipocam por toda parte. Catalunha, Países Vascos, Itália do norte, Bélgica de fala holandesa, Escócia são regiões onde boa parte da população anseia pela independência. Movimentos independentistas somados a governos de extrema-direita compõem coquetel explosivo. Daí a preocupação que muitos sentem ao ver o Brasil descambar ‒ na análise deles ‒ para a perigosa ladeira do extremismo.

Enganam-se os que analisam dessa maneira. Se tendências extremistas há entre os dois finalistas de nossa corrida eleitoral, são mais marcadas no campo de doutor Haddad que no de doutor Bolsonaro. Para convencer-se, basta dar uma espiada no programa de governo preconizado pelo Partido dos Trabalhadores, uma proposta autoritária, estatizante, corporativista, excludente, racialista, liberticida, retrógrada. A rechaçar absolutamente.

Mas não tem jeito. Cada um enxerga o mundo através dos próprios óculos. É perda de tempo tentar ensinar a um europeu que o Brasil não é exatamente como ele imagina. E vamos em frente, que atrás vem gente.

Nossas eleições e a ingerência russa

José Horta Manzano0-Sigismeno 1

‒ Então, Sigismeno, quanto tempo sem conversar, hein!

‒ É verdade, andei meio sumido. Coisas da vida. Como é que vai você?

‒ Vai-se levando, Sigismeno. Vosmicê?

‒ Sempre indignado, caro amigo, sempre indignado. É a maneira que encontrei de me sentir jovem. Imagine que o ano de 1968, que marcou o Brasil e o mundo, completa o 50° aniversário. E poucos se lembram, pouco se fala daquele período. É uma pena. Quem esquece o passado está condenado a revivê-lo.

‒ Tem razão, é importante reter as lições do passado. É justamente isso que anda me preocupando.

‒ Em que sentido?

‒ Tem-se falado muito na ingerência russa nas mais recentes eleições americanas e no plebiscito que o Reino Unido organizou para decidir se ficavam ou se saíam da Europa. Sem falar na consulta selvagem que o governo provincial catalão convocou em outubro. Há quem garanta que a influência de Moscou distorceu o resultado de todas essas votações. Você se interessou pelo problema, Sigismeno?

‒ Claro, eu me interessei como todo o mundo. E acredito que uma pressão insistente e bem organizada exercida por meio de redes sociais pode, sim, perverter o voto. Principalmente quando a disputa é acirrada, com o colégio eleitoral dividido praticamente ao meio. Mas por que é que você anda preocupado com isso? Esses votos já ocorreram.

‒ É que este ano é nossa vez. Em outubro, teremos eleições para vários cargos, entre eles o mais importante: o de presidente da República. Se os russos influíram lá, podem perfeitamente fazer o mesmo aqui.

‒ Concordo com você. Poder, podem. Precisa ainda querer. Precisa «combinar com os russos» ‒ com o perdão de sucumbir ao trocadilho.

‒ Ora, Sigismeno, com um Lula candidato (ou um poste dele, que é a mesma coisa) não precisa nem combinar. Assim como agiram para apoiar o Trump, um candidato que lhes parecia mais interessante, podem perfeitamente apoiar um Lula.

‒ O Lula? E por que razão, criatura de Deus? Que interesse teriam os russos em facilitar a vitória do demiurgo?

‒ Ora, Sigismeno, me parece claro. O Trump é meio bobão, pouco interessado em política internacional, isolacionista. Em suma, tem todas as qualidades para agradar ao regime de Moscou. O Lula também é meio bobão. E venal. A mim, parece óbvio que a vitória do baixinho raivoso interessa aos russos.

‒ Pois eu não estou de acordo com você.

‒ E por que não, Sigismeno?

‒ Você há de se lembrar daquele episódio grotesco em que um (então) presidente Lula, mal aconselhado pelo assessor especial para assuntos internacionais, tentou interferir no caldeirão do Oriente Médio. Não se lembra?

‒ Lembro, sim, Sigismeno. Eles procuraram a cumplicidade do semiditador da Turquia e entraram no picadeiro como elefantes em loja de porcelana. Mas foi um fiasco total. Levaram puxão de orelhas de todo o mundo, até do governo de Israel. Acabaram desagradando a todos.

‒ Especialmente à Russia! Das grandes potências, o país de Putin é ‒ de longe ‒ o que maior influência exerce sobre aquela parte do mundo. Influência, aliás, que só faz aumentar com a retirada de Washington da cena internacional. Se a guerra terminou na Síria e se os djihadistas foram derrotados, foi em decorrência da intervenção russa.

‒ E o que é que isso tem a ver com eventual ingerência russa nas eleições brasileiras, Sigismeno?

‒ Ora, é simples. A última coisa que Moscou deseja é que sua hegemonia na região seja contestada. O Lula já mostrou que é capaz de tentar «resolver» sozinho o emaranhado do Oriente Médio, por obra e graça do Espírito Santo, com dois ou três discursos de efeito. Logo ele, o especialista em dividir as gentes entre «nós & eles», veja você a ironia. O fato é que se mostrou suficientemente ingênuo para fazer cócegas nos russos. Russo não brinca em serviço. O Oriente Médio tornou-se o quintal da casa deles. Não querem saber de interferência de ninguém, nem dos EUA, nem do Brasil, nem do Zimbábue.

‒ Então você não acredita que eles possam intervir nas nossas eleições a favor do Lula?

‒ Não, seria incoerente. Se o fizessem, estariam marcando desastroso gol contra. Se ingerência da Rússia houver, caro amigo, não será em favor do messias de Garanhuns. Será, ao contrário, em apoio ao candidato que estiver em melhores condições de derrotá-lo.

‒ É, Sigismeno, o que você diz faz sentido. Ninguém vai ajudar alguém que lhe pode atrapalhar a existência amanhã.

Menu dos guardas

José Horta Manzano

Tantos problemas internos temos que acabamos deixando em segundo plano o que ocorre além-fronteiras. Nem que seja de vez em quando, vale a pena dar uma olhada em torno pra ver o que anda acontecendo. Este período natalino, em que o tempo parece suspenso, é boa ocasião.

Já faz anos que o governo da província espanhola autônoma da Catalunha vem soprando as brasas do independentismo. Historicamente, a região sempre teve um terço da população permeável a ideias separatistas. A insistência com que o assunto foi martelado pelos sucessivos governos da região nos últimos quinze anos fez o percentual subir. Grosso modo, de cada dois catalães, um vê hoje na independência da província e na instauração de uma república a solução para todos os males.

Menu dos policiais

Quem assiste ao espetáculo de longe, sem estar contaminado por paixões nacionalistas, sabe não é bem assim que a coisa funciona. A ligação da Catalunha com o resto da Espanha é secular e visceral. São gêmeos xifópagos. Se um espirrar, o outro apanhará pneumonia. Os catalães separatistas não estão conseguindo se dar conta do caráter de mútua dependência entre as duas partes. Uma vez separadas, a Espanha se ressentirá e a Catalunha definhará. A união é vital para ambas.

Assim mesmo, o governo provincial teimou em convocar um plebiscito para 1° de outubro passado para os cidadãos se pronunciarem sobre a independência. Pela Constituição, a consulta era ilegal. Madrid enviou policiais da Guarda Civil Nacional para impedir que a lei fosse violada.

Dado que não há alojamento para os guardas, eles foram hospedados num navio militar ancorado até hoje no porto de Barcelona. Como a temperatura política local não baixou, faz três meses que continuam dormindo no barco. Do lado político, meia dúzia de parlamentares que organizaram o plebiscito ilegal foram presos e estão em Madrid, atrás das grades, à espera de julgamento.

Profiteroles à la crème

Na véspera de Natal, tanto para policiais quanto para prisioneiros, o jantar costuma sair do habitual. Os policiais hospedados no navio receberam macarrão com mariscos, croquetes, bacalhau à milanesa e pãezinhos. De sobremesa, turrones e polvorones, doces típicos da estação.

Por seu lado, os políticos presos em Madrid foram brindados com uma “salada de Natal” composta de aspargos, iscas de siri, milho e atum. Como prato de resistência, filé com molho e batata frita. E “profiteroles à la crème” de sobremesa. É menu pra nenhum gourmet botar defeito.

Foi a conta. Os guardas, alguns dos quais estão há três meses sem visitar a família, se irritaram. Alguns compartilharam sua zanga com o distinto público: nas redes sociais, postaram fotos da refeição e comentários aborrecidos.

Em nosso país, que eu saiba, nada foi publicado sobre a mesa de Natal de policiais e de encarcerados. Mas algo me diz que não há de ter sido muito diferente do que ocorreu na Espanha.

Golpe de Estado

José Horta Manzano

Não deu outra. Assim que a procuradoria pública argentina pediu a prisão da ex-presidente Doña Cristina Fernández de Kirchner, nossa (ainda não presa) ex-presidente Doutora Dilma Rousseff se abalou para Buenos Aires.

Tinha duas motivações. Por um lado, ainda que a elegância não seja seu forte, achou que caía bem prestar solidariedade à vizinha e antiga homóloga. Por outro, reforçando a imagem de vitimismo que convém ostentar em horas assim, procurou o apoio da companheira de infortúnio. Afinal, ambas são mulheres, «de esquerda», eternas vítimas de sexismo, de machismo, de perseguição, de ingratidão, de injustiça. Em resumo: farinha do mesmo saco.

Ambas alegam ter sofrido golpe de Estado. É o argumento preferido dos dirigentes que caem nas malhas da justiça. Não são as primeiras nem serão as últimas a recorrer a esse pretexto. Ainda estes dias, Senyor Carles Puigdemont ‒ presidente destituído da região espanhola da Catalunha, hoje refugiado na Bélgica ‒ está fazendo igualzinho. Fugido depois de ter violado a Constituição de seu país, apregoa a quem quiser ouvir ter sido vítima de golpe de Estado.

Em encontro semana passada, Dilma conta sua experiência como “desafuerada”

Para levar Doña Cristina ao cárcere, a Justiça argentina pediu à assembleia nacional que lhe suspenda a imunidade. É que ela é hoje senadora e goza de imunidade parlamentar. Nesse particular, um problema de portuñol tem conduzido comentaristas brasileiros por caminhos equivocados.

O arcabouço legal argentino conta com a «Ley de Fueros», que protege a senadora. Numa leitura apressada, muitos entenderam que essa lei garante foro privilegiado a parlamentares, exatamente como no Brasil. Não é assim. Apesar do nome, a «Ley de Fueros» apenas regulamenta a imunidade que blinda os eleitos durante o mandato. Estipula as condições para que se suspenda a imunidade. Caso ela seja suspensa, o acusado responderá diante da justiça comum.

Portanto, antes de ser julgada, a ex-presidente tem de ser «desafuerada». O termo é exatamente esse. A não confundir com nossa forma popular «desaforada». Uma coisa não tem nada que ver com a outra. Ou talvez tenha.

Ciberpiratas

José Horta Manzano

AQUI
Parece milagre. Para nós todos, tão acostumados com a lentidão e o desleixo dos guardiães da língua na tarefa de aportuguesar palavras estrangeiras, é um espanto. Tomando a dianteira sobre o francês, o espanhol, o italiano e outras línguas próximas, o mui oficial Volp ‒ Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa ‒ já abonou o termo «ciberpirata», perfeita adaptação do inglês «hacker». A transposição foi muito feliz. A palavra portuguesa evoca exatamente a figura do indivíduo que passeia pela rede recheado de más intenções. Estamos liberados para usar e abusar do termo sem aspas e sem sentimento de culpa. Aleluia!

Ciberpirata 1


O governo espanhol confirma ter constatado, estas últimas semanas, a invasão do espaço cibernético nacional. As redes sociais do país estão inundadas de milhares de perfis falsos que propagam «pós-verdades»(*). Todas elas seguem clara linha de incentivo à independência da Catalunha. Está comprovado que as investidas vêm da Rússia e… da Venezuela, veja só.

O fenômeno se assemelha ao que se viu nos EUA durante a campanha para as eleições presidenciais do ano passado. Naquela ocasião, a pirataria só foi descoberta tarde demais, quando Mr. Trump já estava eleito. Escaldados, os peritos que investigam esse tipo de ataque já acenderam o sinal vermelho no caso da Catalunha.

Ciberpirata 3

O assunto é delicado. Apesar da certeza sobre a origem dos ataques, o governo espanhol optou por manter certa discrição, pelo menos por enquanto. À boca pequena, corre a informação de que Madrid tem provas que incriminam a Rússia. Mas certas verdades são incômodas. Se acusados, os russos vão imediatamente negar. Será palavra contra palavra. Ao final, um incidente diplomático estará criado sem que a piratagem cesse. Não vale a pena.

Mas que interesse tem a Rússia numa hipotética independência catalã? ‒ deve estar-se perguntando o distinto leitor. À primeira vista, nenhum. Muito pelo contrário. Abrigando em seu vasto território dezenas de povos com línguas e religiões diferentes, a Federação Russa não deveria ver com bons olhos uma onda secessionista que partisse da Catalunha, varresse o continente e despertasse sentimentos nacionalistas no interior de seu imenso território.

Ciberpirata 2

No entanto, um exame mais atento desvela a razão da intervenção. À Rússia de Putin, não interessa uma Europa forte e unida. O enfraquecimento da União Europeia ‒ seu esfacelamento, se possível ‒ está entre as prioridades de Moscou. Farão tudo o que puderem para semear a discórdia no continente. O sonho do Estado russo é ver a Europa de novo subdividida em dezenas de pequenos países fracos e desunidos. É uma evidência: uma Europa despedaçada será um concorrente a menos.

E a Venezuela, o que faz nesse imbróglio? Abandonados por todos, nossos hermanos do norte precisam desesperadamente de aliados. Chineses, que são comerciantes na alma, não costumam se meter em política alheia. A Europa tem sérias restrições em apoiar a ditadura de Maduro. Resta a Rússia. Eis por que Caracas dá uma forcinha a Moscou na romântica tentativa de «quebrar» a Europa com a força de redes sociais.

Por mais exímios que sejam seus ciberpiratas, os russos não têm chance de conseguir, a médio prazo, o que desejam. A grande firmeza mostrada por Madrid deixa claro aos independentistas catalães que não conseguirão separar-se. E, ainda que isso desagrade a Moscou, a Europa segue firme e unida no apoio à Espanha.

(*) Faz mês e meio, escrevi sobre «pós-verdades». Clique aqui quem quiser recordar.

A Venezuela e a Revolução Bolchevique

José Horta Manzano

Este 7 de outubro marcou o centésimo aniversário da Revolução Bolchevique. Durante o período soviético e mesmo depois do esfacelamento da União Soviética, a data era comemorada com festa, impressionante desfile militar, multidão de espectadores, rojão e banda de música.

Depois da ascensão de Vladimir Putin, a celebração perdeu importância. Não foi por obra do acaso, mas por ordem do dirigente máximo. De fato, o mandachuva preferiu dar maior ênfase à grande festa nacional, aquela que comemora a vitória sobre a Alemanha nazista.

Na época comunista, a verdade sobre os milhões de vítimas do regime era escamoteada. Nada se divulgava sobre as multidões de fuzilados, de banidos nos gulags, dos encarcerados por delito de opinião ou por simples capricho de um comissário qualquer. Esses fatos são hoje de conhecimento público.

Putin, se pudesse, anularia tudo o que pudesse fazer lembrar a revolução de 1917. Prefere focar em acontecimentos que contribuam para a coesão nacional, daí o interesse pela vitória contra Hitler. Há que levar em conta também que cidadãos com menos de 35-40 anos não conheceram o período comunista. Para essa camada mais jovem da população, Stalin e Lenin fazem parte dos livros escolares, como Vargas ou o Marechal Deodoro para nós.

Na contramão da história, como é seu hábito, o ditador Nicolás Maduro convocou os sindicatos venezuelanos para um grande desfile de comemoração do centenário da Revolução Russa. A Assembleia ‒ inteiramente composta por parlamentares a serviço da ditadura ‒ juntou-se aos festejos. Maduro discursou em cadeia nacional de rádio e televisão. Expressões empoeiradas como «socialismo libertário», «dignidade dos povos sul-americanos», «união dos povos do sul», «revolução socialista, camponesa e proletária» fizeram parte do pronunciamento.

Como é possível que a Rússia, pátria do comunismo, tenha optado por tirar o foco da revolução, enquanto a Venezuela se esforça para dar peso a um acontecimento que não lhe diz respeito? Há uma explicação.

Vladimir Putin tenta banir do inconsciente coletivo russo a ideia de que toda mudança de regime tenha de vir pela força de uma revolução ou de um golpe de Estado. Assim, tenta convencer os russos de que ele ‒ Putin ‒ encarna o grande passo à frente. Sem lutas, sem manifestações, sem revolta popular.

Por seu lado, Nicolás Maduro procura incutir no imaginário de seu povo que só uma revolução ‒ a dele, naturalmente ‒ garantirá felicidade para todos. Incentiva passeatas, desfiles, discursos guerreiros, atos violentos. Desde que sejam em seu favor, diga-se.

Países que rechaçaram explicitamente a independência catalã

Nota
A esmagadora maioria dos países condenou explicitamente a declaração unilateral de independência catalã. Señor Nicolás Maduro, no entanto, não quis acompanhar o resto do planeta. Tem aproveitado, sempre que a ocasião aparece, para lançar flechas contra o governo espanhol. É difícil entender por que razão o ditador bolivariano se levanta justamente contra um dos países que mais investem na Venezuela.

Turismo à nossa custa

José Horta Manzano

Corrupção, peculato, prevaricação, concussão, malversação são termos que se ouvem quotidianamente. Embora se os chame pudicamente «malfeitos», são atos criminosos tipificados pelo Código Penal Brasileiro no capítulo que trata dos crimes praticados por funcionário público(*) contra a administração.

Estes últimos anos, o aumento de volume deles coincidiu com a expansão vertiginosa da propagação de notícias. O resultado é um jorro contínuo de coisas tortas. Francamente, não dá pra esconder mais nada. Mesmo assim, na maior parte do tempo, terminam em nada. Ou em pizza, se preferirem.

O exemplo mais recente de malversação de dinheiro público está sendo dado estes dias por ninguém menos que o presidente da Câmara Federal ‒ o primeiro nome na atual linha sucessória da presidência da República. Doutor Maia convocou a esposa e mais nove(!) deputados federais para um giro de uma semana por Oriente Médio, Itália e Portugal. A orla mediterrânea tem clima muito quente no verão, razão que deve ter levado Sua Excelência a escolher este comecinho de novembro. Passeia-se mais à vontade.

A razão oficial da viagem não ficou clara. Falou-se vagamente em «motivação diplomática», seja lá o que isso queira dizer. Vários indícios põem em dúvida a alegação. O primeiro-ministro de Israel recusou-se a receber os parlamentares. O prefeito de Jerusalém idem. Dois ou três encontros com parlamentares locais foram de mera cortesia e não duraram mais que 20 minutos. Na maior parte do trajeto, a presença de jornalistas e de fotógrafos não foi admitida.

A viagem se fez em avião da FAB. Hospedagem em hotel de cinco estrelas e alimentação também vão para a conta do contribuinte brasileiro. O deputado Orlando Silva, do Partido Comunista, faz parte da comitiva. É aquele que foi ministro do Esporte tanto do Lula quanto da doutora. O moço é lembrado por ter usado cartão corporativo do governo federal, certa ocasião, para pagar uma tapioca. Supõe-se que, no Oriente Médio, não se tenha contentado com churrasquinho grego. Por lá, há restaurantes supimpas. Os preços são elevados, mas… que importa? Quem paga somos nós.

Sabe o distinto leitor o que vai acontecer com esses parlamentares quando voltarem? É claro que sabe: nada.

Malversación
Semana passada, os deputados regionais da Catalunha (Espanha) votaram a independência do território. Considerando que os parlamentares cometeram uma ilegalidade e violaram a Constituição, a Justiça nacional abriu processo contra os principais implicados.

Entre os crimes dos quais são acusados, está a malversação, o desbarato de dinheiro do contribuinte. De fato, o plebiscito que organizaram, à valentona, em 1° de outubro custou mais de um milhão de euros aos cofres públicos. Caso sejam considerados culpados com circunstâncias agravantes, a pena pode chegar a oito anos de prisão acrescida de perda dos direitos civis por um prazo de até 20 anos.

Se o mesmo rigor fosse aplicado aos parlamentares brasileiros, não sobraria muita gente no Congresso.

(*) Funcionário público
No Artigo 327, o Código Penal Brasileiro define como funcionário público, para efeitos penais, «quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública». Durante o exercício do respectivo mandato, portanto, todo parlamentar é funcionário público.

Suicídio à catalã

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 28 outubro 2017.

Em 1939, disparado o último tiro da sangrenta guerra civil, a Espanha mergulhou numa ditadura longeva. Foram quase quarenta anos durante os quais nem Catalunha nem província espanhola alguma tinha direito de utilizar a língua regional. Pra se exprimir na língua materna, catalães, bascos, galegos e demais bilíngues tinham de fechar portas e janelas. E falar baixo, que o controle era pesado. Foram décadas de medo e de opressão, em que pai desconfiava de filho e irmão desconhecia irmão.

Promulgada três anos depois da morte do caudilho, a Constituição de 1978 devolveu aos cidadãos espanhóis as liberdades que lhes haviam sido sonegadas pela ditadura. Ampla autonomia foi concedida às províncias históricas. Dos catalães, o referendo convocado para validar a carta magna recebeu aprovação de 91%, taxa superior à média nacional. A língua local ganhou estatuto oficial em pé de igualdade com o castelhano. De lá pra cá, nas ruas, nas escolas, nas administrações e no governo provincial, o catalão é língua veicular. Nove em cada dez funcionários públicos respondem à administração local e não a Madrid. Os cidadãos contam com assembleia provincial eleita pelo sufrágio universal. Têm até um corpo de polícia regional. Não se pode, em sã consciência, classificar os catalães como povo oprimido.

No entanto, já faz anos que os dirigentes da província vêm soprando as brasas do sentimento nacionalista. Cada um dos sucessivos presidentes da região parece nutrir a vaidade de se tornar um Bolívar dos tempos modernos, um herói da independência. De tanto apregoarem que a secessão traria riqueza e felicidade para todos, conseguiram convencer parte dos cidadãos. Muitos acreditaram e o movimento foi crescendo até desembocar num plebiscito organizado à valentona e considerado ilegal por Madrid.

A partir daí, episódios desastrosos se sucederam. Por um lado, manifestações independentistas; por outro, passeatas unionistas. Intervenção enérgica da polícia nacional contra benevolência da polícia local. Declarações madrilenhas ancoradas na Constituição versus pronunciamentos barceloneses assentados numa (romântica) exaltação nacionalista. Se revoluções não estivessem fora de moda, todas as condições estariam reunidas para um levante armado. Por sorte, povo de barriga cheia não costuma pegar em armas.

Mas o dinheiro ‒ ou a perspectiva de empobrecer ‒ está forçando os catalães a encarar a realidade. Inquietas com a querela, muitas empresas se estão prevenindo contra más surpresas. Cerca de 1500 delas, por recear dupla tributação, já se transferiram para outros recantos da Espanha. De fato, o temor é de que tanto Madrid quanto a província rebelde cobrem impostos, o que criaria um enrosco fiscal inaceitável.

Tem mais. Para existir, um estado independente tem de ser reconhecido. A União Europeia já deixou claro que não reconhecerá o novo país. Dado que numerosas regiões europeias nutrem veleidades separatistas, a aceitação da independência catalã encorajaria movimentos semelhantes na França, na Itália, na Bélgica, no leste europeu. Nenhum Estado vê com bons olhos manobras que possam afetar sua integridade territorial. O novo país teria até dificuldade em se tornar membro da ONU, pois França, Rússia e China, que têm direito a veto, tenderiam a bloquear a adesão. Uma Catalunha independente periga ficar solta no mapa, como navio fantasma, um Estado não reconhecido.

Na altura em que escrevo, é impossível prever o desenrolar dos fatos num futuro próximo. Os dirigentes provinciais ultrapassaram a linha vermelha e se meteram num dramático dilema. A opinião pública catalã exige que cumpram o que alardearam e proclamem, por fim, a independência. Se o fizerem, no entanto, incorrerão em crime de alta traição, passível de ser punido pela justiça espanhola com 30 anos de cárcere. Foram longe demais, ultrapassaram a encruzilhada. Sero in periclis est consilium quærere ‒ quando se está no meio do perigo, é tarde demais para pedir conselho.

Por essas e outras, os independentistas catalães têm de botar água na fervura. Na (remota) hipótese de conseguirem o que pretendem, seriam rejeitados e boicotados por todos os vizinhos. Não teriam outra solução senão tornar-se semicolônia russa ou chinesa. Ou centro europeu de jogatina, uma espécie de Las Vegas mediterrânea. Seria verdadeiro suicídio. Mais vale deixar como está.

Nota
Artigo escrito antes do simulacro de proclamação de independência encenado pela assembleia provincial catalã em 27 de outubro.

O Lula não mudou

José Horta Manzano

Este domingo, o jornal espanhol El Mundo publicou entrevista concedida pelo Lula. A leitura do documento é aflitiva. Ao final, a gente fica sem saber se o ex-presidente acredita realmente no que afirmou ou se está apenas representando um papel. Talvez as duas opções sejam verdadeiras. As respostas oscilam conforme a pergunta do repórter. Em certos assuntos, ele diz o que acredita ser verdadeiro. Em outros, dá a resposta que imagina que os leitores estejam esperando. No cabeçalho da reportagem, o próprio jornal fez um elenco das respostas mais marcantes. Vale a pena dar uma vista d’olhos.

Candidato em 2018
«Vou-me apresentar, aos 72 anos, porque ninguém sabe, como eu, cuidar do povo mais necessitado»

Observação 1
Nosso guia continua passando por cima da evidência de que presidente não é eleito para cuidar apenas do povo mais necessitado. Recebe mandato para governar o país inteiro ‒ pobres, ricos e remediados.

Observação 2
O país foi dirigido pelo ex-sindicalista, direta ou indiretamente, durante 13 anos. Se soubesse cuidar dos pobres, estes já deveriam ter desaparecido. Em vez disso, o desastre foi tão grande que o povo ‒ incluídos os «mais necessitados» ‒ se rebelou e derrubou a turma toda. Querer voltar agora é demais ousado.

Observação 3
Na época das eleições de 2018, nosso guia já estará completando 73 aninhos, não 72.

Corrupção
«O processo que me movem é uma farsa. Ninguém achou provas.»

Observação
As acusações contra o demiurgo estão entre as mais embasadas. Há toneladas de provas documentais e testemunhais.

Venezuela
«Não entendo por que a Europa se preocupa tanto com Nicolás Maduro. Foi eleito democraticamente.»

Observação
No meu tempo, diríamos que o moço está dando uma de joão sem braço. Está-se fazendo de ingênuo. Todos sabem como funciona o processo eleitoral venezuelano, movido a fraude maciça e a brucutus.

Felipe VI
«Numa situação de tensão como a que se vive na Catalunha, o rei não deveria tomar partido mas mediar.»

Observação
O Lula mostra atroz ignorância. O rei não “tomou partido”, mas lembrou aos súditos que o país tem uma Constituição a respeitar. Nosso guia continua firme na visão conflituosa de mundo: ou se está de um lado, ou se está de outro. Sem nuances. É a mais pura expressão do “nós x eles”.

Catalunha
«Entendo que o nacionalismo catalão vem de longe, mas eu prefiro uma Espanha unida.»

Observação
O Lula não se dá conta de que ninguém está interessado em saber que Espanha ele prefere. Com esta última declaração, ele anulou o pito que havia passado no rei da Espanha na resposta anterior. Quem se considera “estadista” não deve opinar em assuntos internos de outro país.

Como pode o distinto leitor constatar, o ex-presidente não mudou nadinha. Continua exatamente como sempre foi: ego inflado, recalcado, mentiroso, intrometido, presunçoso, demagogo. O passar do tempo não lhe foi benéfico. Que Deus nos livre de ter de aguentá-lo de novo no Planalto.

Votaron cuatro veces!

José Horta Manzano

«Hay ciudadanos que votaron cuatro veces!» ‒ foi uma das observações que contribuíram para desqualificar o plebiscito realizado pelo governo provincial da Catalunha no dia primeiro de outubro. Determinados eleitores são acusados de ter votado diversas vezes. De qualquer maneira, a consulta não havia sido autorizada pelo governo espanhol, fato que a tornou ilegítima e mesmo ilegal.

A organização do plebiscito, sua execução, o cômputo dos votos e a proclamação dos resultados foi feita pelo mesmo grupo de independentistas, sem controle externo. Eles próprios, ao anunciar o total de votantes, admitiram que menos da metade do eleitorado havia comparecido. Ainda que houvesse uma nesga de legitimidade, a consulta padeceu de falta de quorum. Voto descontrolado nunca dá bom resultado. Mas esses são problemas espanhóis. Vamos aos nossos.

Urna transparente

A Secretaria de Tecnologia da Informação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) andou fazendo um levantamento no cadastro de eleitores. Descobriu irregularidades ‒ surpreendente mesmo seria não descobri-las…

Um dos casos mais emblemáticos é o de um cidadão goiano que tinha 52 títulos de eleitor, 52 identidades, 52 CPFs. Cinquenta e dois exemplares de cada documento! Esse não fez as coisas pela metade. Um caso desse quilate deixa possuidores de «apenas» dez, vinte ou trinta títulos em segundo plano. Os indivíduos que têm nada mais que duas ou três identidades, então, passam despercebidos.

Essa notícia reforça a desconfiança que tenho ‒ e não sou o único ‒ na confiabilidade do voto eletrônico. Se, com fichas de papel e arquivos, que têm existência física e podem ser consultados a qualquer tempo, cidadãos conseguem manter múltiplas identidades, a urna eletrônica potencializa o perigo de fraude. De fato, na ausência da cédula de papel como comprovante, quem garante que cada voto foi computado corretamente? Em caso de litígio, como recontar?

Ouvi, ainda hoje, que piratas informáticos da Coreia do Norte invadiram sites militares da Coreia do Sul e sugaram zilhões de dados ultraconfidenciais. Ora, quem consegue entrar na casa dos outros e roubar informação deve também ser capaz de modificar dados. A meu ver, o debate vai além da segurança garantida pelo cadastramento biométrico. O que está em jogo é aquela torrente de dados que, embora ninguém veja, correm, anônimos, pelos cabos informáticos e determinam a vitória ou a derrota de cada candidato.

O risco de manipulação e de fraude maciça é bem maior que o perigo de um ou outro bugre votar 52 vezes. Um cavalo de troia introduzido no sistema eletrônico de apuração não altera 52 votos: pode adulterar 5 milhões. Ou mais.

A Cesare o que é de Cesare

José Horta Manzano

Notícias importantes atropelam e mandam pra escanteio as de menor peso. Grandes manchetes abafam fatos considerados de menor importância. No entanto, a régua que mede a importância de cada acontecimento varia de um lugar a outro.

Estes dias, enquanto o Brasil continua mergulhado em sua crise político-policial crônica, a França mostra grande preocupação com o problema catalão. De fato, as manobras secessionistas do vizinho podem abrir uma brecha na estabilidade do continente e acabar se alastrando, tal fogo morro acima.

Os alemães acompanham com interesse as tratativas, empreendidas pela mais que provável futura chanceler, para formar coalizão capaz de garantir o contrôle das câmaras e a governabilidade. Em tempo: governabilidade, por aquelas bandas, não é sinônimo de cooptação nem de corrupção. Costuma ser negociação lícita, em que acertos políticos não rimam com assalto aos cofres da nação.

Cesare Battisti
Crédito: Cláudio Lahos

Já a Itália anda alvoroçada com a possibilidade de revisão do asilo político concedido pelo Lula, em seu último dia de governo, a signor Cesare Battisti. Os italianos não esqueceram que esse senhor, julgado à revelia pela Justiça de seu país, foi considerado culpado por participar de quatro assassinatos e condenado à prisão perpétua. Passaram-se quarenta anos, mas as famílias das vítimas ainda guardam os estigmas dos homicídios. As autoridades italianas receberam a bizarra decisão do Lula como uma afronta. E não se conformaram até hoje.

Semana passada, o jornal O Globo deu notícia de pedido apresentado pela República Italiana ao Planalto no sentido de rever a incompreensível decisão de conceder ao fugitivo o estatuto de asilado político. Diz o jornal que, após uma primeira análise técnica, o governo brasileiro não vê empecilhos jurídicos na reabertura do dossiê.

Signor Battisti, que hoje se apresenta como escritor, está casado com uma brasileira, com quem tem uma filha. Aos 62 anos, vive em São José do Rio Preto (SP). Mesmo sem o respaldo dos antigos «companheiros», hoje fora do poder e dizimados pela prisão de alguns e pela ameaça de encarceramento de outros, o asilado se diz tranquilo. Acredite quem quiser.

Bem farão nossas autoridades competentes se, finalmente, se decidirem a fazer o óbvio: devolver o estrangeiro aos italianos. Repararão, assim, a afronta cometida contra a Itália na desvairada era lulopetista. Mostrarão que o Brasil deixou de ser valhacouto de criminosos. De quebra, retribuirão o gesto da Justiça italiana, que nos devolveu o criminoso Pizzolato ‒ que, não nos esqueçamos, era cidadão daquele país.

Temos quantidade suficiente de criminosos nacionais de sangue nas mãos ou de colarinho branco. Não nos fazem falta estrangeiros. Xô!

Tudo errado

José Horta Manzano

Contra a atual corrente que leva pequenos Estados a unir forças para atingir «massa crítica», como se costuma dizer, o movimento independentista tem-se exacerbado na Catalunha, uma das regiões autônomas que formam o Reino da Espanha. Liberdade de usar a própria língua e permissão de ser dirigidos por governo autônomo não lhes parecem suficientes. Muitos catalães querem cortar o cordão umbilical e conseguir independência total.

As motivações são tão diversas quanto o número de adeptos da independência: cada um tem avaliação própria do assunto. Não há um objetivo único. Cada cidadão tem sua visão pessoal. Visto assim, de fora, é difícil entender.

Entre os partidários da separação, há de tudo. Alguns se sentem oprimidos pelo governo central, como se não passassem de colônia de Madrid. Outros, menos altruístas, julgam que o fato de não serem independentes atravanca o progresso da região que, afinal, tem o PIB per capita mais elevado do país. Há ainda os ressentidos, aqueles que viveram os anos da ditadura franquista e não conseguem esquecer o (longo) tempo em que, rebaixados e humilhados, não tinham sequer o direito de utilizar a própria língua.

Do outro lado da cerca, estão os que se opõem à separação. Mais realistas, dão-se conta de que a Espanha é o maior comprador da produção catalã e que, sem esse importante cliente, a produção local periga desabar. Muitos se lembram também de que, uma vez independentes, serão automaticamente excluídos da União Europeia. Para toda nova admissão no clube, a regra exige aprovação unânime. É aí que a porca torce o rabo: como conseguir aprovação da Espanha? Não será tarefa simples. Tem mais. Os mais idosos se perguntam quem garantirá sua pensão de velhice? E a questão da nacionalidade, como é que fica? Que fatores determinarão quem será e quem não será catalão? E a dupla nacionalidade será reconhecida? E a moeda ‒ obterão permissão para continuar dentro da zona do euro?

Muitas são as questões em aberto. Tenho, cá pra mim, a impressão de que, se Madrid permitisse a realização do plebiscito, o resultado poderia ser decepcionante para os independentistas. Embora sejam muito barulhentos, nada garante que sejam majoritários.

Por seu lado, a atitude que está sendo tomada pela Espanha é prepotente e antipática. Proibir a consulta popular, confiscar urnas e cédulas de voto pode ficar bem numa Venezuela. Na Espanha, não combina. Antipatia gera antipatia. Prepotência provoca violência. O empenho de Madrid em impedir a realização do plebiscito deixa a impressão de que o direito à independência está sendo negado a uma imensa maioria de cidadãos. Pode ser que não passem de minoria. Sem plebiscito, quem saberá?

Entendo que a Espanha não queira ver seu território amputado de uma região importante. Assim mesmo, julgo que, se os catalães querem seguir o próprio caminho, que assim seja. Tchau e bênção. Madrid deveria adotar atitude menos prepotente. O fato de proibir o atual plebiscito não sufocará o anseio independentista de muitos catalães. Melhor seria deixar que votassem. Se, como imagino, o voto unionista fosse majoritário e o plebiscito confirmasse isso, os ânimos se acalmariam por dez anos pelo menos.

Nota
O território da Catalunha, cuja capital é a cidade de Barcelona, se estende por 32 mil quilômetros quadrados, pouco mais que nosso estado das Alagoas. Conta com 7,5 milhões de habitantes, um pouco mais que a população do estado do Maranhão.

Barcelona e os atentados

José Horta Manzano

Nestes últimos cinquenta anos, nenhum país europeu sofreu tantos atentados quanto a Espanha. Os mais jovens talvez não se deem conta, mas o violento bando separatista ETA (Euskadi ta Askatasuna = País Basco e Liberdade), especialmente ativo nos anos 70, 80 e 90, terrorizou a nação ao cometer mais de 700 atentados, que deixaram centenas de mortos e milhares de feridos.

O grupo combatia o governo central espanhol e batalhava pela independência das províncias bascas ‒ região de Bilbao, San Sebastián e Biarritz (França). Noventa porcento do território basco se situa na Espanha e os dez porcento restantes, na França. A organização está hoje praticamente extinta. Mataram muita gente, causaram muita desgraça, mas não conseguiram o que queriam.

Esquema do atentado mais espetacular perpetrado por ETA. Foi em 1973, quando forte quantidade de explosivos projetou o carro do chefe do governo espanhol a uma altura de 30 metros.
Clicar para ampliar.

Em meio século de experiência em matéria de ataques terroristas, a polícia espanhola desenvolveu técnicas específicas, especialmente de prevenção de atentados. Uma vez explodida a bomba, é tarde demais. É importante agir a montante, na origem, antes que o atentado seja perpetrado. Por mais prática que tenha, nenhuma polícia será capaz de prevenir todos os atentados, mas o exercício constante contribui para inibi-los.

Estes últimos anos, tem-se exacerbado um sentimento nacionalista na Catalunha, região autônoma com território pouco mais extenso que o do Estado de Alagoas, povoada por sete milhões e meio de almas. A cidade capital é Barcelona. Dado que a Catalunha exibe um dos PIBs mais elevados da Espanha, seus habitantes têm a impressão de servir de locomotiva e de trabalhar para sustentar o resto do país.

Não se dão conta de que esse «resto do país» é justamente seu maior cliente. Não percebem que uma eventual (e improvável) independência lhes traria muito mais problemas do que vantagens. O «resto do país», por certo, não lhes facilitaria a existência. Muitas indústrias catalãs abandonariam o recém-criado estado para estabelecer-se na Espanha. Dificilmente seriam aceitos pela União Europeia, visto que o ingresso de novos membros depende de aceitação unânime e a Espanha, imagina-se, votaria contra.

Bandeira independentista da Catalunha

A hostilidade entre Catalunha e as demais regiões tem crescido nos últimos anos. Uma das consequências é o menor entrosamento entre a polícia nacional espanhola e a polícia local catalã. Quando o contacto é tenso, problemas aparecem, a linha crepita e a circulação da informação sofre. Seria exagerado afirmar ser essa a causa principal de os recentes atentados terem sido planejados e executados em território catalão. Há outras razões. Assim mesmo, um bom entrosamento entre forças policiais sempre ajuda.

Daqui a mês e pouco, as autoridades catalãs vão organizar um plebiscito ‒ não autorizado por Madrid ‒ para consultar os habitantes sobre a independência. Os recentes atentados devem levar alguns eleitores à conclusão de que a união faz a força. Essa reflexão os pode impelir a votar pela união. Será decisão sensata.

Plebisul

José Horta Manzano

Nestes tempos de eleições, um plebiscito informal ‒ sem validade legal ‒ está passando em brancas nuvens. De fato, um coletivo de cidadãos formou-se para promover consulta popular no Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul com vista a desmembrar os três Estados sulinos do resto do Brasil. Os eleitores foram convocados para este sábado 1° de outubro.

Embora a iniciativa pareça desfocada, merece algumas considerações. Movimentos separatistas sempre existiram no mundo e tudo indica que assim continuará. Para que um divórcio seja viável, é imperativo que exista um problema permanente e insolúvel. Não vislumbro nenhum motivo válido nem irremediável a sustentar o pleito do comitê separatista.

plebisul-2O Brasil, como um todo, vai mal. Disso sabemos todos. Mas sabemos também que há soluções para repor nosso país no bom caminho. Os acontecimentos políticos e sociais dos últimos dois anos, com Lava a Jato & companhia, estão mostrando a via. Embora ainda haja resistência e esperneio de setores interessados em que nada mude, o tempo é senhor do destino: sabemos que as mudanças que estão começando a tomar forma são passos no bom sentido. Portanto, a situação de débâcle que atravessamos não deve nem pode ser considerada definitiva. É grande a esperança de que o amanhã seja melhor.

O planeta está repleto de separações ‒ já consumadas ou apenas desejadas ‒ por razões de absoluta incompatibilidade de coexistência. Motivos religiosos são fonte de fortes atritos: Irlanda, Iraque, Síria, Sudão são exemplos conhecidos. São regiões em que divergências de fé podem levar a enfrentamentos sangrentos. Não é o caso do Sul do Brasil.

Há casos de disparidade linguística. Metade da Ucrânia fala ucraniano, enquanto outra metade fala russo. Uns e outros não se entendem e não fazem questão de conviver sob o mesmo teto. Catalães falam língua própria, diferente do castelhano ‒ língua dominante na Espanha. Em casos assim, muitos advogam a separação como solução. Não é o que acontece no Sul do Brasil. Por lá, todos assistem às mesmas novelas e identificam os diálogos como língua materna, exatamente como ocorre nos demais Estados da União.

plebisul-1Há casos mais cabeludos. A nação curda, unida pela língua, pela religião e pelas tradições, encontra-se espalhada por quatro países. Vicissitudes históricas privaram a nação curda de um Estado. A situação, difícil de resolver, é ponto importante de discórdia entre turcos, sírios, russos e americanos na atual guerra travada naquela região. O «fator curdo» torna a leitura das razões do conflito incompreensível para nós. Nada disso ocorre no Brasil.

Os Estados do extremo sul tanto têm pontos comuns entre si quanto têm parecença com o resto do país. Nem mais, nem menos. Naquelas bandas, faz mais de século que não se ouve falar em províncias oprimidas por um poder central tirânico. Nem mesmo durante a última ditadura isso aconteceu ‒ não foram mais nem menos oprimidos que os demais brasileiros. Aliás, diga-se de passagem que, dos cinco presidentes militares, três eram gaúchos.

Não sei qual é exatamente a intenção do comitê que incentiva esse extravagante movimento separatista. Seja ela qual for, um anseio tão radical não se justifica. Fica a impressão de ser obra de um pequeno grupo que, em vez de baralhar as cartas, melhor faria se contribuísse para o bem comum. Todos temos outras prioridades neste momento. Generosidade é bom.

Reino desunido

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 25 junho 2016

Ontem, a Europa despertou aturdida e zonza com o veredicto dos eleitores britânicos: «Good bye, Europe!», o divórcio estava sacramentado. O Brexit, como é chamada a retirada do Reino Unido da UE, põe um ponto final na Europa do pós-guerra e prenuncia uma redistribuição de cartas no pano verde planetário. É cedo para imaginar como será o equilíbrio mundial daqui a dez anos. A poeira levantada pela decisão britânica vai demorar a baixar e a onda de choque vai-se propagar além da Europa. Marolinhas hão de chegar até nossos verdes mares.

Brexit 2O voto escancara a caixa de Pandora. Os britânicos não estão de acordo nem entre si. Enquanto os ingleses e os galeses votaram pelo divórcio, os escoceses e os irlandeses do norte optaram por ficar. Está plantada, dentro do próprio reino, a semente da discórdia. Os aguerridos escoceses, que se viam menos oprimidos ao ostentar passaporte europeu, voltam a sentir-se cidadãos de segunda classe, confundidos com ingleses, morando de favor no puxadinho de um reino ora desunido. Feridas seculares se reabrem.

No resto da Europa, populistas, separatistas, regionalistas e extremistas sentem-se encorajados. Na França, a Frente Nacional, de extrema-direita, exulta. Não sonhavam que, a um ano das eleições gerais, lhes caísse no colo um presente tão precioso. Há anos pregam o abandono da UE como remédio para frear imigração indesejada e recuperar a soberania perdida. Na Espanha, dinâmicas separatistas – sensíveis na Catalunha mas não só – se revigoram. Se os outros podem, por que não nós?

Dinheiro 6A decisão britânica influencia, por tabela, a política interna da Hungria e da Áustria, dando sustento a inquietantes correntes ultranacionalistas. O federalismo belga, costurado para evitar a cisão do país, treme nas bases. Movimentos separatistas que dormitam, em estado latente, no norte da Itália ganham alento. Até na longínqua Letônia, cuja população conta com quase 40% de russos, os dirigentes hão de estar inquietos.

Que fazer? A razão de ser da União Europeia foi evitar nova guerra. Nos anos 50, poucos anos depois do conflito, fazia sentido. Todos os dirigentes e figurões tinham vivenciado a conflagração. Prevenir novo enfrentamento era necessidade absoluta, uma evidência. Com o passar das décadas, a preocupação se dissipou. Nenhum dirigente atual conheceu a guerra. Paz e concórdia, hoje, parecem favas contadas.

Brexit 1Ao longo dos anos, dois erros capitais plantaram as sementes do desenlace atual. Um deles foi a não designação de uma língua comum. Um falar compartilhado por todos aplaina dificuldades, apara arestas e facilita, ao fim e ao cabo, compreensão, acordos e conciliações. Dos seis países fundadores da UE, três eram grandes. Desse três, dois haviam perdido a Segunda Guerra. A França, encaixada no campo dos vencedores, dava as cartas.

Logo nos primeiros anos, cogitou-se introduzir ensino obrigatório de um segundo idioma, paralelo ao falar materno de cada país. O esperanto, língua bem estruturada, apolítica e neutra, não privilegiaria nenhum dos povos. A França, comandada à época por Charles de Gaulle, enterrou a ideia. O general imaginou que o francês pudesse recobrar o prestígio perdido e se tornar língua continental. Não deu certo.

O segundo equívoco foi apostar na expansão territorial intempestiva, com agregação desenfreada de novos membros. Em 2004, a entrada, de uma tacada só, de dez países foi temporã. Nem os recém-chegados estavam maduros para integrar a UE nem o clube estava preparado para digerir os debutantes. Eliminadas as antigas fronteiras, populações em estágio de desenvolvimento assimétrico afluíram à Europa Ocidental. A crise de 2008 só fez agravar o sentimento de invasão que agora levou britânicos a optarem por fechar as comportas.

by Yasar 'Yasko' Kemal Turan, desenhista turco

by Yasar ‘Yasko’ Kemal Turan, desenhista turco

E como é que fica? Ninguém sabe. Fronteiras vão-se reerguer. Qual será o estatuto dos (agora) estrangeiros que vivem no Reino Unido? E que será dos britânicos que vivem na UE? Em que medida barreiras alfandegárias serão ressuscitadas? E os milhares de tratados e convenções, alinhavados durante um casamento de 43 anos, como ficam? Serão todos abolidos ou só alguns? Nem o mais arguto dos observadores terá, neste momento, resposta pronta.

Temos, nós, nosso mambembe Mercosul, criado sob evidente inspiração da UE. A desordem em que a Europa acaba de mergulhar é momento propício para reflexão. É hora de repensar, reestruturar e, numa hipótese extrema, proclamar um «BrasExit» tropical. Quando o bonde enguiça, é melhor andar com as próprias pernas.

Com a Escócia

José Horta Manzano

A voz da razão prevaleceu, melhor assim. Certas coisas fazem sentido, outras, não. Não fazia sentido a Escócia apartar-se do Reino Unido. A meu ver, tirando o orgulho de ter um país pra chamar de seu, todos saíam perdendo nessa história. Sentimentos nacionalistas têm lugar e hora ― não era hora nem lugar.

Embora ache que os escoceses tenham feito a escolha certa, compreendo o anseio que certos territórios acariciam de deixar de fazer parte de determinado Estado. É o caso da Ucrânia oriental, principalmente a região de Donetsk e Lugansk. São territórios tradicionalmente povoados por russoparlantes.

Regiões europeias onde vigora sentimento separatista

Regiões europeias onde, segundo certas fontes, vigora sentimento separatista

Enquanto a União Soviética esteve de pé, pouco importava a que «república» pertencesse o território. De toda maneira, as ordens vinham de Moscou. As quinze repúblicas que formavam União estavam lá pra inglês ver. Tinham menos valor ainda que os Estados que compõem a cambaleante «federação» brasileira.

No dia em que a valente URSS se despedaçou, os problemas vieram à tona. Os russos, que formam a maioria dos habitantes de certas regiões da Ucrânia, tornaram-se, da noite para o dia, estrangeiros. Está aí a semente da briga atual.

É compreensível que os países europeus se unam na defesa das atuais fronteiras russo-ucranianas, ainda que, artificiais, elas não respondam a critérios étnicos e linguísticos. Se abrirem exceção para o leste ucraniano, estarão abrindo as comportas para reivindicações identitárias e independentistas dentro de suas próprias fronteiras. E a Europa está polvilhada por regiões, grandes ou pequenas, que sonham em ser países autônomos.

Regiões europeias onde vigora sentimento separatista

Regiões europeias onde, segundo outras fontes, vigora sentimento separatista

O Norte da Itália tem anseio de tornar-se independente. O novo Estado já tem até nome: Padânia, em alusão ao Rio Po, coluna dorsal da região. Córsega, País Vasco, Catalunha, Tirol do Sul, Transnístria são territórios que, há tempos, reivindicam independência ou autonomia.

A força do sentimento secessionista em cada região varia segundo as fontes. Mas é compreensível que, uma vez abertas as porteiras, a manada tenda a estourar. No fundo, foi bom que os escoceses tenham sido comedidos. Mais vale não bulir com gato que está dormindo.

Premi Internacional de Catalunya

José Horta Manzano

Poucos meses atrás, o governo da Região Autônoma da Catalunha solicitou, a contragosto, ajuda de Madrid. Suas contas estavam tão sufocadas que, sem um rescate de 5 bilhões de euros, simplesmente não fechariam.

Alguns dias atrás, o mesmo governo da rebelde região entregou ao Lula o Premi Internacional Catalunya, representado por uma estatueta mais um polpudo cheque de 80 mil euros (215 mil reais). Essa distinção honra pessoas «cuja trajetória tenha contribuído para promover valores culturais, científicos e humanos».

EuroPor uma dessas coincidências de que a História conserva o segredo, a cerimonia de entrega da honraria coincidiu com o desfecho do julgamento do Mensalão pelo STF. Os jornalistas queriam, a todo custo, colher as primeiras impressões e os comentários do Lula. Tirando o antigo presidente do Brasil, ninguém estava preocupado com o prêmio. O que todos queriam mesmo era ouvir o que o figurão tinha a dizer.

Perderam seu tempo. O Grande Timoneiro tupiniquim terá grandes qualidades, no entanto, a valentia não é a que sobressai. O homenageado esgueirou-se pelos muros, entrou e saiu pela porta de serviço. Tem mais: deu a sua guarda pretoriana ordens peremptórias para que não fosse tolerada a aproximação de nenhum jornalista.

Veja a informação sobre o prêmio no site da United Press International. E não perca a reportagem do enviado do Estadão sobre a entrega da honraria.

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