Saiu corrido

José Horta Manzano

Weintraub, nosso pranteado ministro da Educassão, abandonou o Brasil às carreiras, antes de sua exoneração ser publicada no Diário Oficial. O atropelo tinha dois motivos.

Em primeiro lugar, fugiu por razões sanitárias. O governo norte-americano restringiu, em razão da covid-19, a entrada de pessoas provenientes do Brasil. O ‘esperto’ Weintraub aproveitou que ainda tinha no bolso um passaporte diplomático(*) e escafedeu-se. Conclui-se que, na curiosa contabilidade americana, diplomatas estão imunizados, razão pela qual sua entrada é permitida. É que o governo americano não sabe, mas o risco representado pelo ex-ministro é de outra natureza. O moço é bem mais nocivo do que aparenta.

Em segundo lugar, fugiu por pânico. Ao perder o cargo, o doutor perde o foro por prerrogativa de função (foro dito “privilegiado”). Em termos simples: se bobear, dança; e vai pra cadeia. Com a procissão de acusações que seu comportamento rasteiro acumula, o risco é real. Nos EUA, fica temporariamente longe dos braços da Justiça brasileira. Mas um dia acaba voltando. Que tome cuidado!

(*) Já me exprimi, em outras ocasiões, sobre o uso – e principalmente o abuso – que vêm sendo feitos do tal passaporte diplomático. Em princípio, o documento destina-se a diplomatas e a funcionários que viajam a serviço do país. No entanto, depois que Lula da Silva, no último dia de mandato e antes de apagar a luz, concedeu passaporte diplomático a todos os parentes, avacalhou de vez.

Doutor Weintraub, que não está nos EUA em missão oficial, não tem direito a viajar com o documento. Mas vivemos uma situação em que crimes maiores ofuscam ‘delitozinhos’ como esse. Estivéssemos em país civilizado, ele ainda teria de responder, diante da Justiça, pelo uso indevido de documento oficial não autorizado. Seria gratificado com pesada multa. Em país civilizado, disse eu.

Tudo errado

José Horta Manzano

Nem tudo o que é legal é moral. Há muita imoralidade transvestida em regra ou até em lei. A prática que envolve a atribuição de passaportes diplomáticos é bom exemplo. Como o próprio nome já informa, esse tipo de passaporte destina-se a diplomatas ou a pessoas encarregadas de missão assimilável à diplomacia.

Subentende-se também que o fim da missão implica devolução imediata de todos os atributos do cargo, passaporte incluído. Veja-se, por exemplo, o caso do parlamentar. Assim que termina o mandato, devolve carro, motorista, secretária, assessores, gabinete, apartamento funcional. O fato de ter exercido a função não o autoriza a conservar nenhum “souvenir”.

Reportagem publicada no Estadão informa que a emissão de passaportes diplomáticos volta a crescer este ano. A justificativa é que o documento é distribuído a granel, a parlamentares e líderes religiosos que o solicitem. Há milhares de passaportes diplomáticos em circulação no Brasil. A distribuição indiscriminada inflaciona, enfraquece e desvirtua a especificidade do documento.

Nada justifica a atribuição de passaporte diplomático a parlamentares, a não ser que viajem em missão assimilada à diplomacia. Neste caso, é concebível que se lhes atribua o documento – mas com validade unicamente para aquela viagem. Ao retorno, deverá ser devolvido. Não há razão para que deputados e senadores se apoiem em passaporte diplomático para levar a família passear na Disneylândia. Chega a ser imoral.

Mais problemático ainda será sustentar o direito de “líderes religiosos”(*) a obter esse documento. Não estão a serviço da pátria. O Brasil não é Estado religioso, como Irã ou Arábia Saudita. Portanto, que esses dirigentes espirituais façam fila no aeroporto de Miami ou de Paris como qualquer mortal, cáspite!

Se já era uma aberração ser titular de um documento dessa natureza, enormidade maior será retê-lo ao deixar o mandato. Segundo a reportagem do jornal, o Itamaraty tem grande dificuldade em recolher passaporte dos que deixam o parlamento. Todos guardam o livretinho como ‘souvenir’, exatamente como aqueles que levam ‘lembrancinha’ do hotel, do restaurante ou do último emprego.

Está tudo errado.

(*) A expressão ‘líderes religiosos’ inclui imames muçulmanos? E donos de terreiro de umbanda? Se eles apelarem para a Justiça e invocarem o princípio de isonomia, têm forte chance de obter o direito. Aviso aos navegantes!

Missionário no exterior

José Horta Manzano

Sem intenção de afrontar a notória abertura de espírito do culto ministro Ernesto Araújo, pergunto-me em que medida o passaporte diplomático que ele concedeu ao casal Edir Macedo Bezerra pode ajudar o eclesiástico a “desempenhar de maneira mais eficiente suas atividades em prol das comunidades brasileiras no exterior”.

Que tem o passaporte a ver com atividades episcopais do titular? Um doce pra quem puder informar. Cartas para a redação, por favor.

Nota da redação postada em 17 abr 2019
Um juiz federal do Rio de Janeiro confortou este blogueiro no entendimento de que não tem cabimento conceder passaporte diplomático a um eclesiástico sob pretexto de que costuma partir para viagens missionárias. Em sábio juridiquês, o magistrado deu despacho cassando o documento.

Aguardemos o próximo capítulo. Num país extremamente judiciarizado como o nosso, nunca se sabe. Batalhas judiciais são intermináveis, principalmente para quem tem (muito) dinheiro. É voz corrente que donos de igrejas neopentecostais vivem em abastança.

Aceita um passaporte?

José Horta Manzano

Se o distinto leitor faz parte dos ingênuos que acreditavam que passaporte diplomático é expedido unicamente para diplomatas em missão no exterior, perca as ilusões. Entre os detentores de passaporte diplomático ou oficial, diplomatas são pequena minoria. Na realidade, toda a casta do andar de cima tem direito garantido a receber um desses dois documentos. São milhares de pessoas, que não necessariamente viajam a serviço do país.

Entre outros cidadãos, podem solicitar passaporte diplomático ou oficial os que se enquadrem nas seguintes categorias:

  • Presidente, vice-presidente e governadores
  • Senadores e deputados federais
  • Ministros do STF, do TSJ e do TCU
  • Servidores da administração direta em missão oficial
  • Servidores de todas as autarquias federais e estaduais, ainda que não estejam em missão oficial

Se, aos servidores, adicionarmos mulher e filhos, são muitos milhares de privilegiados.

Um mortal comum tem de pagar mais de 250 reais pelo passaporte normal. Já o documento diplomático que, pela importância simbólica, deveria custar mais caro, sai de graça para o titular. Pagamos nós.

Em se tratando de funcionário não diplomático, o passaporte deveria ser válido pelo tempo que durará a missão. Se, por exemplo, um grupo de deputados viaja à China por dez dias, cada parlamentar deveria receber passaporte válido para a China e por dez dias. Na prática, no entanto, não funciona assim. Os documentos são expedidos com validade de 2 ou até 4 anos, independentemente da duração da missão. Ora vejam!

Tirando diplomatas de carreira, que deixam o país com a família e partem para longas missões, os demais não levam necessariamente familiares. Se decidem levar a família a tiracolo para um giro turístico, isso deveria ser problema deles. Mas nossa administração é generosa. Passaportes diplomáticos ou oficiais válidos por anos são concedidos a granel: ao titular, à esposa, aos filhos e a eventuais dependentes.

Ah, que perca as ilusões também quem tinha esperança de que a chegada de novos parlamentares estreantes fosse pôr freio a esses desequilíbios dignos de outras eras. O Globo informa que, só durante o mês de fevereiro, atendendo à solicitação de Suas Excelências, a Câmara Federal concedeu 78 passaportes diplomáticos a parlamentares mais 77 aos respectivos cônjuges e filhos.

Antes da eleição, é fácil pregar a moralização de práticas tortas. Na hora agá, a conversa muda. Nas trevas dos velhos vícios, ainda não se enxerga luz no fim do túnel.

PS
Passaporte oficial e diplomático não trazem grande vantagem ao titular. Em princípio, permitem furar fila, só que esse costume de dar carteirada é desconhecido em terras mais civilizadas. O que esses passaportes especiais fazem, no fundo, é afagar o ego do detentor. O bobão se sente importante como um potentado africano.

Famílias e famílias

José Horta Manzano

Assim como ninguém imagina que dona Dilma consiga refrear seus ataques de fúria, ninguém espera coerência nos gestos e palavras de seu antecessor. Já faz tempo que a defasagem entre o discurso e a ação de nosso messias deixou de chocar. Tornou-se proverbial, quase esperada. No entanto, o balaio de contradições do personagem é de bom tamanho. Ele às vezes consegue exceder toda expectativa.

Desde sempre, o Lula se apresentou como o defensor-mor dos pequeninos, dos oprimidos, dos injustiçados. Recolhendo o ensinamento dos ideólogos de seu partido, pregou a justiça social, a igualdade entre os brasileiros, o tratamento equânime que todos merecem. Esse era o discurso, lindo de morrer. Mas na prática… ah! na prática… É na hora do vamos ver que a porca torce o rabo.

No apagar das luzes de seu exótico governo, nosso justo, igualitário e equânime guia entregou-se a um afligente desvio de conduta. Considerou que ― ainda que todas as famílias brasileiras sejam iguais e mereçam ser tratadas com civilidade e justiça ― família de presidente da República é um pouco mais igual que as outras. Se o banquete sai de graça, por que então não se empanturrar? Concedeu passaporte diplomático a mulher e filhos. Ninguém jamais saberá se o gesto deselegante e desajeitado estava planejado havia tempo ou se terá sido decisão de última hora, soprada por algum dedicado assessor.

Diferentes passaportes emitidos pelo Brasil: comum, laissez-passer, de emergência, diplomático, oficial

Diferentes passaportes emitidos pelo Brasil:
comum, para estrangeiros, laissez-passer, de emergência, diplomático, oficial

Passaporte, que seja diplomático, comum, temporário, verde, azul ou vermelho, sempre passaporte é. Funciona como cartão de crédito: dourado, acinzentado ou solferino, só será aceito pelo comerciante se a operadora der seu acordo. O importante no passaporte diplomático é a simbologia. Seu portador, pisando firme e de cabeça erguida, traz no bolso a prova de que não é cidadão comum. A vantagem maior não é furar fila em aeroporto. O valor daquele livretinho é transmitir a seu titular um sentimento de superioridade. Sem dúvida combina, na cabeça de nosso antigo presidente, com as honras devidas à família do maior presidente que o Brasil já conheceu. Ora, pois.

A notícia da esperteza presidencial correu o Brasil rápido. Todos ficaram sabendo no dia seguinte. Mas o fato é que a maioria das gentes, anestesiada, nem sequer sabe o que é um passaporte. Os que sabem deram pouca importância ao fato. Afinal, depois de todos os descalabros que tinham marcado os longos oito anos do finado governo, esse era um mal menor.

No entanto, sem que a gente se aperceba, o Brasil ainda conta com instituições sérias, que prestam à comunidade os serviços para os quais foram criadas. Aleluia! É o caso do Ministério Público. Poucos dias depois do gesto de largueza do presidente taumaturgo, o MP instaurou investigação. Queria saber quem eram os titulares de passaportes diplomáticos. Queria também conhecer o motivo pelo qual o documento tinha sido concedido a cada um deles.

Outras instâncias arrastaram o chinelo. A Procuradoria da República e o Itamaraty não deram mostra de grande diligência e deixaram que o caso se espichasse por quase 3 anos. Estes dias, finalmente, a notícia veio a público: um dos rebentos do antigo presidente não devolveu o passaporte recebido irregularmente. É compreensível. De criança, não lhe devem ter ensinado que é de bom-tom reconhecer seus reveses e cumprir determinações oficiais.

Não sei se será da alçada do Ministério Público ― provavelmente não. Mas fica como lembrete para o futuro: seria importante que se investigasse a validade dos motivos que vêm guiando a atribuição da Ordem de Rio Branco. Há casos em que mais é menos ― nunca há que abusar da regra três. Outorgada a mancheias, a Ordem criada para honrar grandes personagens está tão diluída que perdeu seu encanto.

Vale lembrar que nosso messias autorizou que fosse concedida… a sua própria esposa. Pelos relevantes serviços prestados à pátria. Decididamente, o Brasil é o país de todos, ainda que família de presidente possa até não ser exatamente igual às outras.

Posso entrar?

José Horta Manzano

Em despacho de 23 de junho, o diário South China Morning Post informa que Edward Snowden escapou de Hong Kong. Embarcou num voo da companhia Aeroflot em direção a Moscou. No momento em que escrevo estas linhas, deve estar sobrevoando território russo. A previsão de pouso é por volta das 10h da manhã deste domingo, pela hora de Brasília.

Conheço muito bem as formalidades de imigração em vigor em Hong Kong. A cidade-estado está longe de ser uma peneira. Os controles de entrada e de saída aliam o antigo rigor comunista à eficiência britânica. De olhos perscrutantes, os agentes são mal-encarados, silenciosos, inflexíveis.

Se Snowden deixou o território, fez isso com a anuência das autoridades. É possível ― e mesmo bastante provável ― que Pequim tenha fechado um olho na esperança de se livrar de um problema cabeludo. O homem está sendo procurado pelo governo dos EUA sob a acusação de espionagem, crime ultrapesado pela lei de qualquer país.

Os dirigentes russos, pelo menos por enquanto, alegam estar completamente alheios ao que se passa. Acredite quem quiser.

Robin Hood

Robin Hood

O destino final do fugitivo, segundo o South China Morning Post, poderia ser a Islândia ou o Equador. Eu acrescento: poderia também ser o Brasil, por que não?

A Islândia acolheu, 4 anos atrás, um cirurgião plástico brasileiro, que, condenado a 47 anos de prisão por homicídio, havia escapulido de sua prisão. Mas o problema foi resolvido em pouco tempo. O governo brasileiro solicitou e obteve a extradição do condenado.

O Equador abriga em sua embaixada londrina, há mais de um ano, um Robin Hood dos tempos modernos. O original, a quem a lenda confere uma aura de honra e magnanimidade, roubava dos ricos para distribuir aos pobres. O clone atual roubou segredos diplomáticos e os publicou ao planeta inteiro. Segredo é para quatro paredes. Espalhar troca de correspondência confidencial, além de ser feio, não traz vantagem a ninguém. Tanto o Robin Hood original quanto o moderno agiram mal. Nenhum deles transformou o mundo.

No apagar das luzes de seu governo, como quem põe o morango em cima do bolo, no mesmo dia em que concedeu passaporte diplomático a seus filhos e netos, o Lula negou definitivamente a extradição de um fugitivo da Justiça italiana, já condenado em seu país por participação em quatro assassinatos.Interligne 38

A Islândia é país pequeno, sem árvores e sem calor. Para um jovem de 30 anos, como Snowden, a perspectiva de passar o resto da vida naquele lugar é desmoralizante.

Já o Equador é um pouco melhor. Tem árvores, tem calor, mas o território é diminuto. Para quem chega, saber que não vai nunca mais poder sair deve ser frustrante.

Robin Hood

Robin Hood

Se eu fosse Snowden, sondaria o governo brasileiro. Generosos, estamos sempre prontos para acolher assassinos, ex-ditadores e outros bandidos. Por que não traidores? O País é vasto como coração de mãe. Cabem todos.

No entanto, caso a Islândia decida abrigar o fugitivo, resta-nos a possibilidade de convidar aquele país hermano para integrar o Mercosul. Seria mais ou menos como se nós mesmos tivéssemos acolhido o fugitivo. É sempre um consolo, não é mesmo?Interligne 38

Complemento
Sabe aquela batata quente, aquela que ninguém quer segurar na mão e joga no colo de quem estiver mais distraído? Pois é. Este caso Snowden está ficando assim. Tornou-se um abacaxi que ninguém quer descascar.

No momento em que escrevo este complemento, o homem deve estar desembarcando em Moscou. A Agência Reuters informa que seu destino poderia ser Caracas, via Havana. Faz sentido.

A Islândia, finalmente, não vai precisar ser convidada a fazer parte do Mercosul. Não faz jus ao convite, além do que a Venezuela já é membro de pleno direito. Snowden vai se sentir em casa. A velha máxima do tempo de nossos tataravós continua válida: dize-me com quem andas, e dir-te-ei quem és.

Que o destino final seja Cuba, o Equador, a Venezuela, tanto faz. Pode ser até um País gigante por natureza, por que não? Quem viver verá.

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