O presidente e os sem-voto

José Horta Manzano

Quando se dispõe a atacar o Judiciário – uma atitude que adota com frequência –, doutor Bolsonaro costuma encher a boca para proclamar a própria legitimidade. Argumenta que recebeu 57,8 milhões de votos, enquanto os magistrados não receberam nenhum.

À primeira vista, o raciocínio parece cristalino. No entanto, quando se tenta seguir essa lógica até o fundo, a imagem se turva. Se o número de votos fosse determinante da legitimidade do homem político, um bocado de gente passaria à frente dos sem-voto.

Logo após Bolsonaro, viria – adivinhem quem? – Fernando Haddad, ora pois. Seus 47 milhões de votos lhe conferem legitimidade comparável à do presidente, muito acima do magma dos que não passaram pelas urnas. Está correto o que estou dizendo? De onde sai essa salada?

O distinto leitor há de ter se dado conta de que, esticado até o limite da ruptura, o raciocínio do presidente acaba por romper-se. É que, ainda que tenha recebido um caminhão de votos, ele não será nem mais nem menos legítimo do que o vereador de pequeno município, escolhido por poucas dezenas de eleitores. A legalidade do presidente tampouco será menor que a de um ministro do STF ou de um parlamentar. Todos eles, escolhidos segundo as normas da lei, estão no mesmo nível de legitimidade.

Portanto, será falácia o presidente pretender-se mais ‘legítimo’ do que parlamentares ou ministros do Judiciário. Desde que o caminho que os levou lá tenha seguido rigorosamente os preceitos legais, gozam todos de idêntica legitimidade.

Só pra chatear 1
Pela lógica de doutor Bolsonaro, que confunde os conceitos de legitimidade e de proporção de eleitores, tanto o Lula quanto a doutora eram mais ‘legítimos’ que ele. Vejamos o resultado de cada um (em proporção do total de votos válidos):

2018  Jair Bolsonaro  55,1%
ooooooooooooooooooooooooooo
2010  Dilma Rousseff  56,1%
2006  Lula da Silva   60,8%
2002  Lula da Silva   61,3%

Só pra chatear 2
Há questão de 3 meses, doutor Bolsonaro afirmou que as eleições de 2018 haviam sido fraudadas. Garantiu ainda que tinha provas disso. Ora, desde que o mundo é mundo, a fraude em votações serve pra garantir a eleição de um dos candidatos. Quem ganhou foi ele; portanto, conclui-se que, se fraude houve, foi a seu favor. Será por isso que, até hoje, não mostrou as provas de que dispõe. Se o fizer, a fraude ficará comprovada e sua eleição será impugnada.

Segundo turno

José Horta Manzano

A Constituição em vigor, promulgada em 1988 e dita «cidadã», respondia às aspirações e às necessidades da época. Considerando aquele momento histórico, com um Brasil recém-saído de longo período autoritário, a Lei Maior foi uma conquista e tanto. Aos constituintes ‒ e ao povo também ‒ pareceu que o período de trevas estava superado. Em certo sentido, estava. Só em certo sentido.

Urna 2Passaram-se já quase trinta anos. O mundo mudou e o Brasil também. Algumas das transformações foram pra lá de positivas; outras, menos. Temos menos analfabetos que antes, coisa boa. O aumento do número de escolas superiores subiu degraus de dois em dois, mas fica a desagradável impressão de que o iletrismo subiu de elevador. Um exemplo ilustra o drama. Temos bacharéis em Direito às baciadas, porém, de cada 10 candidatos, 9 são reprovados no exame que lhes daria o direito de exercer a profissão. É estonteante.

A Constituição já foi emendada e remendada numerosas vezes, mas parece saco sem fundo: a cada dia aparece um escolho, um pedregulho, um paralelepípedo no caminho. Dado que a convocação de nova assembleia constituinte não está prevista para tão já, o remédio é continuar remendando.

Um detalhe que volta à ordem do dia a cada quatro anos me incomoda. Reapareceu domingo passado, quando das eleições gerais para prefeito e vereador. O texto constitucional determina que apenas municípios cujo eleitorado supere 200 mil inscritos têm o privilégio de promover um segundo turno de votação, caso nenhum dos pretendentes tenha atingido maioria absoluta. Por que só grandes aglomerações beneficiam da medida?

Chamada Estadão, 4 out° 2016

Chamada Estadão, 4 out° 2016

Por décadas, eleições majoritárias se fizeram em turno único. Megalópoles, como São Paulo, já tiveram prefeito eleito com menos de 30% dos votos. É situação inconcebível hoje. Ignoro qual tenha sido a intenção do legislador ao restringir o segundo turno a 92 municípios. Se foi evitar gastos, foi decisão furada. Não há preço que pague a legitimização que um segundo turno traz. O ungido terá recebido, necessariamente, a benção da absoluta maioria dos governados.

Ademais, custos são relativos. Numa metrópole, campanhas custam os olhos da cara. Já em pequenos municípios, o gasto é infinitamente menor. A equidade ensina que todos os cidadãos devem ser submetidos às mesmas leis e que todos merecem receber o mesmo tratamento. Esse equilíbrio não será atingido enquanto o legislador não estender a todos os municípios o direito de realizar dois turnos de eleição a fim de legitimar o prefeito.

Interligne 18cPara completar
Os eleitores inscritos nos grandes municípos, com direito a dois turnos, são 54,3 milhões. O eleitorado total atinge 144 milhões. O resultado é que, grosso modo, menos de 38% da população tem prefeito legítimo e incontestável, eleito com maioria absoluta. Os 62% restantes ficam de fora. Têm de se contentar com um prefeito assim assim.

Que golpe?

José Horta Manzano

Aos que julgam que o Congresso, não tendo legitimidade para destituir Dilma Rousseff, perpetrou um golpe de Estado, lembro que os votos que elegeram a presidente foram os mesmos que elegeram deputados e senadores.

Dilma 17Parlamentares representam exatamente os mesmos eleitores que escolheram a presidente. Desonesto será, portanto, dizer que a chefe do Executivo tinha «mais legitimidade» que o conjunto do Legislativo.

Cada um é livre de simpatizar ou não com esta ou com aquela figura política. Questionar a genuinidade do chefe do Executivo ou dos parlamentares ‒ todos eleitos pelo voto do mesmo povo ‒ é pura pilantragem.

Ambos os poderes estão em pé de igualdade. Ao destituir a presidente, os parlamentares cumpriram a prerrogativa que a Constituição lhes confere.

Reflexões sobre o voto da Câmara

José Horta Manzano

Reconhecimento apressado
Neste domingo 17 abril 2016, a Câmara pediu a cada deputado que se pronunciasse a favor ou contra a aceitação de processo de destituição da presidente da República.

Lá pelas tantas, durante o voto individual, lento, arrastado, o líder do partido da presidente decidiu subitamente convocar conferência coletiva de imprensa. É inusitado. Se já não fosse estranho uma votação importante ser interrompida por coletiva de imprensa, mais surpreendente foi ouvir do entrevistado a confissão de que o Executivo reconhecia a derrota. Por que jogar a toalha tão cedo? Duas razões me ocorrem.

Em primeiro lugar, um reconhecimento antecipado poderia ter sustado a votação, o que limitaria a extensão do estrago. Se assim acontecesse, não haveria placar final.

Em segundo lugar, eventual interrupção poderia levar à invalidação do voto.

Seja como for, não deu certo. O voto foi até o fim e deu no que deu. Para o Executivo, foi verdadeiro 7 x 1.

Tchau 1Incerteza política
Muitos analistas temem que o voto da Câmara tenha dado abertura a um período de incerteza política. Discordo. Acho que, muito pelo contrário, o período de incerteza começou a se desanuviar. A situação está mais clara hoje que ontem.

Quem representa quem
Durante o voto, alguns parlamentares favoráveis à permanência da presidente argumentaram que os cinquenta e tantos milhões de votos que ela tinha recebido a legitimavam no cargo. Esqueciam-se de que o conjunto dos deputados federais reunia cem milhões de votos. Legitimidade por legitimidade, a da Câmara é bem mais significativa. Todos os eleitores estão representados lá.

Sondagem x voto real
Pesquisas têm indicado 60%, 70%, 80% até 90% de rejeição popular ao governo de Dilma Rousseff. Sacumé, pesquisa é pesquisa ‒ o que vale mesmo é o voto. Foi o que tivemos ontem. A Câmara, que representa 100% dos eleitores, votou. E mostrou que 71,5% rejeitam a presidência de dona Dilma. A conta é fácil: 367 votos representam 71.5% de 513, número total de deputados federais.

Tchau, mãe!
«Tchau, querida!» ‒ foi cartaz apresentado por muitos durante o voto. Embora combinasse pouco com a solenidade do momento, foi jocoso. O mais revelador, no entanto, foi a argumentação com que quase todos decidiram anteceder o voto. Houve quem proclamasse que votava “pelo Brasil”, “por meu Estado”, “por meus eleitores”. Era a lógica, não precisava mencionar. Houve outros que, bizarramente, puseram a família à frente. Vi gente votando porque a esposa mandou, outros mencionaram o nome da mãe ‒ tchau, mãe! ‒ dos filhos, dos netos, até dos avós. Ficou a impressão de que reuniões familiares substituíram convicção íntima dos deputados e consulta aos eleitores. Pegou mal pra caramba.

Dilma e a legitimidade

José Horta Manzano

Dilma 1Legítimo é filhote de lei. O adjetivo latino legĭtĭmus é formado por lex/legis (a lei) com acréscimo do mesmo sufixo que se encontra em último, marítimo, íntimo.

Em sentido próprio, designa aquilo que é fruto da lei, amparado nela, justificado por ela. Em sentido figurado, diz-se também do que for genuíno, procedente, lógico, verdadeiro.

Dona Dilma, de visita a Rondônia, aproveitou uma cerimônia de distribuição de bondades para reafirmar, num discurso, sua relutância em reconhecer a rejeição maciça de que é alvo. Afirmou, com todas as letras, que o voto popular confere legitimidade a seu mandato e que, por via de consequência, o cumprirá até o último dia.

Não sofresse de um vício de origem, o raciocínio seria irrepreensível. De fato, o voto popular outorgou a dona Dilma mandato para segurar as rédeas do Executivo por quatro anos. Mas… cuidado! A mão que afaga é a mesma que castiga. A legitimidade que a lei concede ao eleito não é incondicional nem ilimitada. A lógica tem de ser respeitada até o fim.

O consumidor que, enganado pela propaganda, adquire um produto que não corresponde ao que dele se espera tem direito a devolvê-lo e a receber seu dinheiro de volta.

O mesmo vale para governantes. Somente será legítimo o presidente que não se tiver valido de subterfúgios ilícitos que possam ter pervertido o resultado das urnas. Em português claro: irregularidades na campanha eleitoral confiscam a legitimidade da eleição.

Dilma 11Pois é exatamente o caso de dona Dilma. Todos os brasileiros se dão conta agora: a campanha presidencial foi eivada de mentiras e de meias verdades. Incautos, muitos votaram na candidata justamente por acreditarem em suas promessas. Tomaram por ouro as barras de latão que dona Dilma expunha diante de seus olhos crédulos e esperançosos.

Embora desconfie da lisura do processo apuratório, não tenho meios de comprovar trapaça. Um dia, quem sabe, vai-se acabar descobrindo que a contagem dos votos escapou aqui e ali da lhaneza. Por enquanto, não há meios de afirmar. Portanto, sou constrangido a dar de barato.

No entanto, as mentiras que mancharam a campanha são amplamente suficientes para deslegitimar o resultado da eleição. Que dona Dilma não encha a boca pra proclamar a pertinência do mandato que recebeu.

by Lezio Jr, desenhista paulista

by Lezio Jr, desenhista paulista

Diante da tremenda desaprovação popular de que é alvo, volto a sugerir a nossa presidente a saída que lhe recomendei meses atrás. Para escapar da enrascada sem perder a face, só resta a dona Dilma convocar um plebiscito. Que pergunte aos brasileiros se desejam que ela toque o mandato até o fim. E que respeite a decisão do povo, seja ela qual for. Em seguida, não se falará mais nisso.

Como diz o outro, «quem paga mal paga duas vezes». Portanto, quem se elege mal…

Na lábia ou na raça?

José Horta Manzano

Quem é que manda num grupo? Aquele que conseguir provar à turma que é o mais forte. Desde os tempos do homem de Cro-Magnon, tem sido assim. Antes, se decidia no braço, no fio da espada ou na ponta da lança. Hoje mudou. Como não fica bem ensanguentar arenas para escolher chefe, costuma-se dar preferência a métodos mais aveludados.

Nos países civilizados, inventaram-se outros meios de escolher líder. O voto, por exemplo. Cada cidadão exprime sua vontade (mais ou menos) secretamente, e pronto! Aquele que a maioria tiver decidido assume a chefia.

O método é menos sanguinário, mas nem por isso menos brutal. A selvageria, antes escancarada, manifesta-se agora por outros canais. Mentira, agressão verbal, calúnia, propagação de boato, produção de dossiê, cooptação de testemunhas duvidosas, ocultação da realidade, negação de fatos evidentes, engodo, terrorismo imagético – eis a nova face da violência.

Dilma 8Mas assim é, gostemos ou não. O preocupante é que, a cada eleição, mais violentos vão-se tornando os expedientes. Sabe-se lá onde vamos parar. Para 2014, alguns já tinham prometido «fazer o diabo». Digo-vos: do diabo, não vimos ainda nem o rabo. Com o perdão de Shakespeare, há muito mais demônio do que possa imaginar nossa vã filosofia.

Por um lado, a escolha menos sanguinolenta nos tranquiliza. Por outro, abre alas para falsos líderes, para gente que não tem os atributos mínimos pra assumir as rédeas. É vitória mais na lábia que na raça. O resultado é desastroso: líderes fracos, bizarros, ilegítimos, rejeitados por grande parte dos comandados.

E não pense o distinto leitor que nosso País é o único a enfrentar esse problema. O nosso é caso emblemático, tão profunda é a rejeição que nossa líder desperta em boa parte da população. Mas acontece também alhures.

Veja o caso da França. Quando assumiu seu trono, em jun° 2012, Monsieur Hollande usufruia da confiança de 55% de seu povo. De lá pra cá, o crédito foi rolando ladeira abaixo. Neste nov° 2014, está batendo no fundo do poço. Consegue suscitar a confiança de escassos 13% dos cidadãos.

Cota de confiança de François Hollande em porcentagem, de jun° 2012 a nov° 2014

Índice de confiança de François Hollande
em porcentagem, de jun° 2012 a nov° 2014

Mister Obama é outro caso sintomático. Reeleito dois anos atrás, acaba de sofrer severa derrota eleitoral. Por via de eleição de representantes, o povo negou-lhe maioria em ambas as câmaras. Assim como o presidente da França, o líder americano terá de amargar estes próximos dois anos num limbo de legitimidade.

Que fazer? Instituir mandato anual, com eleições todo mês de outubro? Optar por um regime parlamentar que relegue o presidente a papel decorativo? Voltar a decidir a chefia no muque ou no sangue das arenas? Ou, mais simples, censurar pesquisas que avaliem a popularidade de dirigentes?

Cá pra mim, tenho a impressão de que, malgrado os defeitos que o atual sistema possa ter, estamos condenados a conviver com ele ainda por muito tempo.

Sic est res – a coisa é assim.