Irã e prisões de segurança máxima

José Horta Manzano

O ataque lançado pela República Islâmica do Irã sobre o Estado de Israel, na noite de sábado passado, envolveu mais de 300 foguetes, incluindo 170 drones, 30 mísseis de cruzeiro e pelo menos 110 mísseis balísticos.

Para se defender, Israel contou com a ajuda de três potências: os EUA, a França e a Grã-Bretanha. Esses países contam com bases militares na região, e conseguiram deter e destruir boa parte das armas voadoras antes que atingissem território israelense. O exército de Israel fez o resto. Daí os estragos terem sido tão limitados.

Não precisa ser especialista em assuntos militares pra se dar conta de que o Irã lançou mão de apreciável quantidade de foguetes – arsenal fabricado por eles, ainda por cima. Tivessem atirado três bombinhas, é possível que Israel, ao constatar a fragilidade do inimigo, já estivesse enviando seus próprios foguetes para destruir Teerã.

Acredito que a amplidão do ataque seja um dos fatores que estão fazendo o governo de Tel Aviv hesitar. Se os dois países entrarem em guerra de verdade, o risco é grande de o equilíbrio regional (e talvez mundial) sentir o baque e sair abalado.

Faz quase duas décadas que o Irã vive sob sanções pesadas aplicadas pelos EUA e também pelos países aliados. Na teoria, o Irã deveria estar exangue, com a língua de fora, pedindo arreglo. Não foi o que se viu sábado passado. Analistas tentam minimizar a força do Irã, argumentando que o arsenal é antiquado, fora de moda, impreciso e isto e aquilo. Me parece mais é desculpa de despeitado.

Antiquado ou não, o arsenal despachado pelo Irã não bate com a imagem de um país mendigo, de pires na mão, pária do mundo civilizado. Como é possível? “Fatta la legge, fatta la burla”, como dizem os italianos (a lei nem bem acabou de ser feita, já se dá um jeito de fraudá-la).

Nosso cândido Lula da Silva gosta de se apresentar como “aliado” deste ou daquele país, o Irã entre eles. Ser aliado é mais do que sair na foto ao lado do “parceiro”. Inclui unir forças em busca de um objetivo comum. Qual é o objetivo comum entre Brasil e Irã, além de buscar o progresso do povo respectivo? Concluo que o Brasil não é “aliado” de fato do Irã. Ainda bem.

O fato é que o Irã tem petróleo e o mundo precisa de petróleo. Pronto, a conexão está feita. Dinheiro não compra tudo, mas quase. Petróleo pode ser excelente moeda de pagamento. Se uns se recusam a comprar óleo iraniano, outros fecham os olhos para os excessos do regime dos aiatolás e entram na fila dos compradores.

Assim, com dinheiro na mão e meio quilo de esperteza, qualquer país “pária” dá logo um jeito de passar por cima das sanções e adquirir tudo o que quiser. Com os equipamentos assim importados, os iranianos vão construindo seus drones e seus mísseis. Não vamos esquecer que, junto com a Turquia, o Irã está entre os melhores fornecedores de drones da Rússia.

Tudo isso mostra que impor sanções é o mesmo que tapar um cano d’água com peneira de taquara: o fluxo pode até diminuir, mas a água continua passando.

Os protocolos de segurança de uma prisão “de segurança máxima” funcionam de forma semelhante. Por mais medidas que se tomem, como celas revistadas, algemas no passeio, informação compartimentada e encarcerados isolados, sempre resta alguma brecha. E é por ali que passa toda a comunicação que não devia passar.

Em conclusão, vamos dizer que não somos “aliados” de papel passado do Irã nem temos prisões de absoluta “segurança máxima”. Jair Messias já quebrou os dentes quando levou um ‘chega pra lá’ de Viktor Orbán, seu “aliado” húngaro. Não me venha agora Luiz Inácio com suas manias de considerar seus ditadores de estimação como “aliados do Brasil”.

Tanto Bolsonaro quanto Lula estão errados. O capitão, após a decepção da embaixada, já caiu na realidade. Entendeu que, em política internacional, não existe amizade.

E tu, Lula, vais continuar batendo na mesma tecla?

O Brasil está de volta

José Horta Manzano

Ao assumir a Presidência, Lula da Silva proclamou ao mundo: “O Brasil está de volta!”. Depois da maré baixa bolsonárica, que tinha rebaixado nosso país ao status de pária, a fala do novo presidente soou como um bem-vindo tsunami.

Países civilizados (e outros nem tanto) aplaudiram juntos, num coro de aprovação. Feliz, o planeta saudou um Brasil ressuscitado. Luiz Inácio foi convidado por inúmeros países para uma visita. Nesse aspecto, o governo Lula 3 começou com pé direito.

Só que tem uma coisa: embora Lula não pareça estar se dando conta, o mundo mudou muito desde seu primeiro mandato. No tabuleiro global, os atores principais já não ocupam a posição que ocupavam em 2002. A China cresceu incrivelmente e “se empoderou”. Os Estados Unidos continuam na dianteira, permanentemente ameaçados pela China.

A desastrosa invasão da Ucrânia pela Rússia – que Lula qualificou de simples “erro” – desestabilizou o coreto. A Alemanha, maior economia da Europa, abandonou 75 anos de pacifismo e está se rearmando a toque de caixa. Suécia e Finlândia, tradicionalmente neutras, pediram admissão na Otan, uma aliança militar. Os EUA, como haviam feito em guerras do passado, acudiram com forte apoio militar em favor do país invadido. A Rússia, sob pesadas sanções econômicas, dá sinais de estar sentindo o baque.

Até países neutros como a Suíça aderiram às sanções econômicas aplicadas pelos EUA, Canadá, União Europeia, Japão e Austrália. Em Berna, se diz que “neutralidade não rima com indiferença”. A situação é clara. A Ucrânia, um país livre e soberano, com fronteiras mundialmente reconhecidas, foi invadida por um outro país soberano, numa guerra de conquista. Isso contraria as bases da convivência entre nações. Fechar o olho para essa agressão é dar gás à Rússia para seguir invadindo seus demais vizinhos. Quem será o próximo?

Lula não dá mostra de estar entendendo a gravidade da situação. Com sua peculiar visão de política internacional, ele tem mostrado certa incapacidade de entender o mecanismo. Lula consegue distinguir conflitos localizados, como a questão da Palestina, o embargo americano a Cuba, a guerra desencadeada pela Rússia contra a Ucrânia. No entanto, nosso presidente não parece entender que nem todos os conflitos são brigas de rua, que se resolvem com uma boa conversa ou com um jogo de futebol.

O mundo parece estar se dando conta dessa lacuna de Lula. Esta semana, tivemos dois exemplos que convergem para esse ponto.

Tomemos o caso do par de navios de guerra iranianos alegremente amarrados no cais do Rio de Janeiro. Sob o pretexto de que “o Brasil conversa com todas as partes”, o governo autorizou a estadia das embarcações em porto brasileiro. Os EUA já tinham solicitado que o Planalto não permitisse que os barcos acostassem. O Brasil deu de ombros. Agora é Israel, país que os aiatolás declaram ter intenção de destruir, que se dirige a Brasília solicitando que a permissão de amarração seja retirada.

Realmente, fica esquisito um país como o Brasil, que se esforça de promover a igualdade entre todos os sexos, acolher navios de guerra do Irã, país onde mulheres não têm nem o direito de sair sozinhas de casa, e perigam ir parar na cadeia se ajeitarem mal o véu obrigatório. Além disso, o Irã é bom fornecedor de uma parte das armas com que os russos castigam os ucranianos.

Outro caso recente é a conferência de vídeo que se realizou entre Lula e Volodímir Zelenski, a pedido deste último. Vendo que Lula não dá sinais de haver percebido a importância de apoiar a Ucrânia nessa guerra calamitosa, Zelenski convidou seu homólogo de Brasília para fazer uma visita a Kiev. As dezenas de dirigentes estrangeiros que já desfilaram por lá não esperaram convite: foram por achar que era importante. Até Joe Biden foi.

Lula agora não tem desculpa. Até convite oficial já recebeu. Que vá à Ucrânia o mais rápido possível. E que escute com atenção o que o presidente ucraniano tem a lhe dizer e mostrar.

Embora meio atolado em ideologias do passado, Lula já declarou ser “uma metamorfose ambulante”. Chegou a hora de provar. Que escolha seu lado numa disputa em não é permitido ficar em cima do muro. Ou se apoia a democracia ou se apoia a barbárie.

Baía de Guanabara

Lado a lado, IRIS Dena e IRIS Makran
navios de guerra iranianos atracados no Rio de Janeiro

José Horta Manzano

Dias atrás, contei a história dos dois navios de guerra iranianos que percorriam os oceanos à cata de algum porto de certa importância onde lançar âncora e pavonear-se do poderio bélico da república islâmica.

Na Europa, América do Norte, Austrália ou Japão, nem pensar – a porta está trancada. A Rússia e a China, embora mantenham algum tipo de diálogo com Teerã, preferiram que os barcos fossem se exibir em outras plagas. Países pequenos e de pouca reverberação não servem à finalidade a que a marinha iraniana se propõe.

Sobraram as potências médias. A Indonésia permitiu a atracação dos dois navios. Depois disso, o Irã solicitou autorização para entrar em algum porto da América Latina. O Chile recusou. Afim de não criar ruídos com os EUA, o governo brasileiro não quis resolver antes da volta de Lula de Washintgon. Os Estados Unidos pediram que o Brasil não acolhesse os navios, que não têm nada que fazer por aqui.

Aqui entra em ação uma incrustada tendência do socialismo latino-americano, há tempos incorporada pelo lulopetismo: convém rejeitar tudo o que vem dos Estados Unidos. A diretiva é clara e não deixa margem a interpretação. Apesar de estarmos em plena reconstrução da relação Brasil-EUA, esgarçada por Bolsonaro, Lula não resistiu. Preferiu deixar uzamericânu falando sozinhos. Deu autorização aos barcos.

O almirante da miniesquadra iraniana deve estar muito feliz. Afinal, embora não seja a mesma coisa que Nova York ou Rotterdam, o Rio de Janeiro é uma cidade grande, importante, belíssima e conhecida no planeta inteiro. Atracar na Baía de Guanabara não é pra qualquer plebeu.

Os navios já lançaram âncora no Rio ontem, domingo, logo de manhã cedinho. A estadia prevista é de sete dias, até sábado 4 de março. Os barcos, que tinham passado as últimas semanas feito zumbis, vagando por águas internacionais enquanto aguardavam resposta do Brasil, finalmente encontraram um porto de prestígio para atracar. Lula da Silva preferiu alfinetar Biden enquanto dava palco e holofotes à teocracia islâmica, aquela terra simpática em que mulher que não usar o véu obrigatório vai para a cadeia.

Não há de haver grandes consequências, mas é legítimo perguntar se não teria sido mais razoável alfinetar Teerã em vez de Washingon.

Navios de guerra

José Horta Manzano

IRIS Makran, maior navio de guerra iraniano

Neste momento, o governo brasileiro está embaraçado diante de um dilema. Mas vamos começar pelo começo. Na origem do problema, está o Irã, esse “enfant terrible” do tabuleiro mundial, aquela batata quente que passa de mão em mão e que ninguém quer segurar.

Desde que passou pela revolução de 1979, que o transformou numa teocracia xiita, o Irã passou a trafegar do lado sombrio da rua, sancionado pelos EUA, hostilizado pelos vizinhos, olhado com desconfiança pelos países democráticos. Desde então, a antiga Pérsia vai se virando como pode.

Faz décadas que seu objetivo maior é fabricar uma bomba nuclear. Nem pensar em lançá-la sobre a cabeça de algum país inimigo, que ninguém é besta. A finalidade é puramente dissuasiva. No dia em que conseguirem, terão provado ao mundo que são fortes, que sobrevivem apesar das sanções econômicas, que têm nível superior de tecnologia. Será uma vitória psicológica.

Acontece que o resto do mundo, em especial os países que já possuem a tecnologia nuclear, não estão nada interessados em receber novo membro no clube. Imaginam que quanto mais membros houver, maior será o risco de um dia ocorrer algum acidente ou erro de manipulação de consequências imprevisíveis.

Sem verdadeiros amigos entre os grandes, o Irã procura contacto entre os países de segunda linha. Os iranianos querem mostrar que, apesar de não terem (ainda) a bomba, já contam com imponente marinha de guerra. Com esse fim, despacharam dois navios para uma volta ao mundo. Um deles é a maior nave da frota iraniana, um antigo petroleiro adaptado para portar canhões, lançar mísseis e receber helicópteros. A outra nave é uma fragata de dimensões convencionais, também armada de canhões e mísseis.

Gostariam de lançar âncora em todos os países importantes. O problema é que os portos estão fechados para eles. Nem América do Norte, nem Europa, nem Japão, nem Austrália. Rússia e China fazem de conta que não é com eles. Sobraram potências regionais. Os dois navios já passaram pela Indonésia e agora se dirigem ao Brasil.

IRIS Dena, fragata da marinha de guerra iraniana

A autorização de atracar no Rio de Janeiro está incerta. Num primeiro momento, o Brasil deu seu acordo. Em seguida, em razão da viagem de Lula aos EUA, a licença foi suspensa, dado que o momento não era conveniente. Agora, passada a visita de Lula a Biden, os iranianos insistem em vir. Por trás, os EUA pressionam para que não seja dada autorização de atracar em nenhum porto brasileiro.

Nosso governo está entre a cruz e a espada, num dilema cabeludo. Se autorizar os navios de guerra a lançar âncora no Rio, vai desagradar muita gente fina, como EUA, Europa e demais democracias. Se negar permissão, como é que fica a “neutralidade” da política externa brasileira, que Lula apregoa dia sim, outro também?

Na minha visão, se a neutralidade dá liberdade de comerciar com todos os países, não implica aderir à ideologia nem apoiar as guerras de nenhum deles. Já abrir os portos para receber naves de guerra carregadas de mísseis e canhões é outra coisa. Não tem nada a ver com comércio e pode passar impressão de cumplicidade. Melhor evitar.

Dependesse de mim, a autorização seria negada.

A democracia resiste

by Marcos “Quinho” de Souza Ravelli (1969-), desenhista mineiro

 

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 28 janeiro 2023

Há sinais de recuperação da democracia ao redor do globo. Embora tímidos, acanhados e quase imperceptíveis, apontam para o lado positivo. Vamos a alguns deles.

A China, entre os países importantes, é o que tem o regime mais controlado e hermético, apesar de ser mais autoritário que comunista. Na comparação, a vida na Rússia – país onde até o vocabulário do cidadão é escrutado pra vigiar que nunca associe o nome ‘Ucrânia’ à palavra ‘guerra’ – parece solta e jovial.

Pois foi essa China que nos deu, no fim do ano passado, inesperada mostra de que o rigor das regras sociais pode ser afrouxado pela pressão popular. Quase três anos de confinamento estrito, por motivo de covid, estavam fazendo mal à economia e, sobretudo, à população. Parece que a transmissão dos jogos da Copa do Mundo deu origem à ira popular. A visão de estádios cheios de gente sorridente e sem máscara foi a gota d’água. Manifestações de indignação se alevantaram nas metrópoles chinesas, com coro de “Fora, Xi Jinping!” – afronta insuportável. Poucos dias bastaram para o rigoroso regime de “covid zero” ser abolido.

No Irã, faz meses que a população manifesta seu desagrado com o rigor da ditadura dos aiatolás. O triste destino de uma jovem que morreu enquanto detida pela polícia da moralidade pelo motivo de não usar direito o véu obrigatório foi o estopim da revolta popular. Dia após dia, a obstinada e corajosa juventude iraniana manifesta nas ruas sua insatisfação com o regime. A dura repressão já deixou centenas de cadáveres, mas a ira da população tem se mostrado à altura da mão pesada do governo. Em mais de quarenta anos de regime teocrático, é a primeira vez que o povo se queixa com tal intensidade. Pode bem ser o primeiro passo para a queda da ditadura.

Nos EUA, o campo antidemocrático liderado por Donald Trump sofreu profundo revés nas eleições de “mid-term”. Quando todos já se resignavam de assistir a uma arrasadora onda de eleitos trumpistas, o eleitorado democrata deu um sobressalto e limitou as perdas. A volta do bilionário à Presidência ficou um pouco mais problemática.

Na Itália, a primeira-ministra Giorgia Meloni vem se saindo melhor que o figurino. Ao assumir a chefia do governo, abjurou Mussolini e o fascismo, regime pelo qual havia demonstrado simpatia no passado. Juntou-se aos demais países da Otan e deu seu apoio ao envio de armas para que os ucranianos defendam seu território contra o invasor russo. Em uma palavra, a Signora Meloni civilizou-se. Fez desaparecer o lado assustador da extrema-direita. Caminha na boa direção.

No Brasil, as últimas semanas de 2022 e as primeiras deste ano foram turbulentas. Jair Bolsonaro, quando presidente, passou anos prevenindo o distinto público de que, se não fosse reeleito, se insurgiria contra o resultado das eleições. Numa preparação do que estaria por vir, chegou a avisar, ao corpo diplomático lotado em Brasília, a vulnerabilidade de nossas urnas eletrônicas.

Quando as eleições chegaram e o capitão foi derrotado, forte apreensão tomou conta da população não fanatizada. E agora? Será que o perdedor nos condenará a regredir a uma era de botas na calçada e brucutus no asfalto?

Em outros tempos, talvez a pólvora tivesse assumido o protagonismo e o país tivesse de novo mergulhado nas trevas. Numa mostra de que o horizonte nacional já está desanuviado de aventuras desse tipo, Bolsonaro emburrou, enclausurou-se no palácio e lá ficou dois meses – calado para o público externo, mas certamente ativíssimo na preparação do sonhado golpe.

O resto, todo o mundo sabe. Bolsonaro fugiu, e o 8 de janeiro viu o “Exército da Loucura” em ação. Quebraram vidros, mas não quebraram a lealdade de uma maioria de fardados responsáveis. Derrubaram peças de arte, mas não derrubaram a Lei Maior. Subiram no alto de palácios, mas não atingiram o topo do poder. O Brasil balançou mas não cedeu.

Agora, o espetáculo que nos proporcionam um ex-presidente homiziado no exterior, invasores rastaqueras na cadeia e financiadores acuados traz uma lufada de ar puro a nossa nação. É a prova de que, na hora agá, nossa democracia não se rompeu.

Dois avisos

José Horta Manzano

Na quarta-feira 18 de maio, a Casa Branca mandou dois avisos.

Primeiro aviso
Suécia e Finlândia apresentaram seu pedido oficial de entrada na Otan. Para refrescar a memória, a Otan é uma aliança militar de defesa mútua do tipo “um por todos, todos por um”. Inclui os EUA, o Canadá e praticamente todos os países europeus, com exceção das micronações e dos países neutros (Suíça e Áustria).

No fundo, o interesse maior de cada membro do clube é abrigar-se debaixo do “guarda-chuva” nuclear dos Estados Unidos, a maior potência militar do planeta. É a melhor garantia contra agressões como a que a Ucrânia está sofrendo.

Só que tem um problema. A admissão da Suécia e da Finlândia não será imediata. O processo pode levar 6 meses ou mais. Enquanto isso, tecnicamente os dois países não fazem parte da aliança e, em princípio, não contam com sua ajuda.

É um período perigoso. Se sofrerem um ataque – da Rússia, de quem mais? – terão de se defender sozinhas.

O presidente Biden mostrou ter entendido o drama. Ontem mesmo a Casa Branca publicou um comunicado oficial garantindo que, mesmo neste período em que o procedimento de adesão não está finalizado, os EUA acudirão Finlândia e a Suécia “para deter e enfrentar toda agressão ou ameaça de agressão”. Traduzindo: para os EUA, os dois países já fazem parte do clube.

O recado foi direto para Putin: mexeu com eles, mexeu comigo. Não ouse!

Segundo aviso
No mesmo dia, Elizabeth Bagley, diplomata indicada por Biden para o cargo de embaixadora dos EUA em Brasília, foi sabatinada pelo Congresso americano.

Durante a audição, a diplomata lembrou que tem 30 anos de experiência em supervisão de eleições ao redor do mundo. Disse ter certeza de que as eleições brasileiras de outubro serão livres e justas, dada a tradição do país nesse particular.

Com estilo diplomático, fez uma referência leve mas incisiva ao comportamento do capitão, que tem feito o que pode para conturbar o processo eleitoral. A nova embaixadora mostrou estar ciente de que “os tempos serão difíceis” por causa “da quantidade de comentários”. Não chegou a apontar o autor dos “comentários”. Nem precisava.

São múltiplas as maneiras de exercer pressão sobre um país. Nem sempre é necessário recorrer a uma invasão. A futura embaixadora americana traz na sacola recados para o capitão. Se ele continuar a perturbar o processo eleitoral e, pior ainda, se ousar tentar derrubar a ordem constitucional, as consequências serão imediatas e vigorosas.

Diferentemente do que Bolsonaro parece acreditar, os países no mundo atual são interdependentes. O Brasil não é uma ilha. Nosso país depende de tecnologia estrangeira para funcionar. Um avião enguiçado precisa de peças americanas. Um aparelho de ressonância magnética é fabricado no exterior. Nossa indústria – química ou mecânica – é tributária de insumos americanos.

O que a embaixadora dirá a Bolsonaro – e que não sairá nos jornais – é justamente isto: se vosmicê ousar dar “aquele” passo torto, a torneirinha vai fechar e o Brasil vai parar. Será um caos. Um embargo americano pode ser extremamente dolorido, que o digam Cuba e o Irã.

Com o país enguiçado e o povo revoltado, quem vai levar um chute no traseiro é vosmicê.

Pronto, já lhe dei o aviso adiantado.

Tuíte – 1

José Horta Manzano

Semana que vem, começa o Ramadã, o mês sagrado dos maometanos. Depois disso, logo chegará o tempo das peregrinações, quando milhares viajarão até Meca, o que significa uma multidão de fiéis. A covid-19 vai nadar de braçada. Autoridades religiosas ficaram na dúvida entre deixar viajar ou mandar assistir por vídeo. No Irã, o aiatolá Khomeini, guia supremo e manda-chuva do país xiita, ordenou que todos fiquem em casa. Nada de viajar. Até ele entendeu que coronavírus não é gripezinha.

O Irã e o míssil

José Horta Manzano

Nos tempos atuais, o Irã é um dos países mais vigiados do planeta. Qualquer bombinha de São João que estoure será ouvida, analisada, registrada, perscrutada, estudada. E a informação ainda será arquivada para uso futuro.

Milhares de satélites circulam em volta do planeta. Muitos deles são dedicados à espionagem. Quantos? Impossível saber; normalmente os Estados não costumam deixar filtrar informação sobre os próprios espiões. Seguramente algumas dúzias desses aparelhinhos estão continuamente espionando países como a antiga Pérsia – que, desde 1935, convém chamar Irã.

Como é possível que o alto comando dos aiatolás tenha imaginado sustentar por muito tempo a versão de que o avião ucraniano tinha se espatifado por problemas mecânicos? Antes que o míssil iraniano(*) atingisse o aparelho, já devia estar nos radares de satélites bisbilhoteiros. É evidente. A tentativa de botar nos outros a culpa pelo erro imperdoável era manquitola, esfarrapada. Não enganou ninguém.

A teocracia explicada:
“Vocês votam, Deus decide.”
by Patrick Chappatte, desenhista suíço

É assustador constatar que, naquele país, míssil capaz de derrubar avião pode ser lançado com tal leviandade. Quer dizer que basta apertar um botão pra mandar pro paraíso duas centenas de nossos semelhantes? Não há filtros de contenção de doidos nessa fieira de comando militar?

Quando se veem absurdos desse calibre, compreende-se a apreensão com que o mundo civilizado cuida de impedir o Irã de fabricar bomba atômica. Imagine por um momento que, no lugar do míssil convencional, estivesse um artefato nuclear. Sente a catástrofe?

Numa região constantemente em ebulição, quando se tem pela frente uma corrente de decisões tão frouxa e pouco confiável, ter bomba atômica é tremenda ameaça. Proibir aquele país de fabricar artefatos nucleares não é birra; está em jogo a segurança do planeta.

(*) Circula a notícia de que o aparelho não foi atingido por um, mas por dois mísseis. Nada muda; a conclusão é a mesma: deixar bomba na mão dessa gente é temerário.

Golfo Pérsico

José Horta Manzano

Nosso inconsequente aprendiz de presidente teve de se dobrar.

•Apesar de ter jurado que mudaria de endereço a embaixada brasileira em Israel;

• apesar de ter asseverado que bastava estar bem com Israel para nosso comércio exterior com o Oriente Médio estar garantido(!!!);

• apesar de ter menosprezado o poderoso conjunto dos países árabes, dizendo que «não precisamos dessa gente»,

foi obrigado a se humilhar.

Desagravo indispensável

O que não deveria passar de uma rotineira visita de Estado transformou-se num ritual expiatório. Passando por cima das imposições de seu guru boca-suja, vergou-se a uma verdadeira visita de desagravo ao Oriente Médio. Não conseguiu suportar o peso econômico dos países do Golfo Pérsico. Depois de levar um choque de realidade, foi forçado a penitenciar-se.

Um dia, quem sabe, doutor Bolsonaro aprenderá que política externa não se faz insultando parceiros, nem menosprezando clientes. Ou, quem sabe, não dará tempo de aprender. Cada um que escolha a opção que lhe parecer mais realista.

Nota geográfico-linguística
Faz meio século, desde o surgimento do pan-arabismo e do sentimento nacionalista – impulsionado pelo petróleo, que lhes trouxe riqueza – os países árabes, majoritários na região, sentem-se incomodados com a tradicional denominação daquele mar interior: Golfo Pérsico.

«Por que só pérsico» – perguntam –, «se banha também uma pancada de países árabes como o Iraque, o Kuwait, a Arábia Saudita, o Sultanato de Omã, os Emirados?» Alternativas criativas têm sido propostas, como «Golfo Islâmico» ou até «Golfo Muçulmano», expressões que soam estranhas, como se aquele braço de mar fosse a entrada de um templo.

O formato atualmente aceito sem muita cara feia é Golfo Árabo-Pérsico. Pra não ofender ninguém, a mídia francesa costuma utilizar essa forma. Quanto a nós, um nome que não desagradaria e certamente pegaria bem seria «Golfo das Mil e Uma Noites». Já pensou? Dá quase pra ouvir Xerazade contando histórias.

Tudo errado

José Horta Manzano

Nem tudo o que é legal é moral. Há muita imoralidade transvestida em regra ou até em lei. A prática que envolve a atribuição de passaportes diplomáticos é bom exemplo. Como o próprio nome já informa, esse tipo de passaporte destina-se a diplomatas ou a pessoas encarregadas de missão assimilável à diplomacia.

Subentende-se também que o fim da missão implica devolução imediata de todos os atributos do cargo, passaporte incluído. Veja-se, por exemplo, o caso do parlamentar. Assim que termina o mandato, devolve carro, motorista, secretária, assessores, gabinete, apartamento funcional. O fato de ter exercido a função não o autoriza a conservar nenhum “souvenir”.

Reportagem publicada no Estadão informa que a emissão de passaportes diplomáticos volta a crescer este ano. A justificativa é que o documento é distribuído a granel, a parlamentares e líderes religiosos que o solicitem. Há milhares de passaportes diplomáticos em circulação no Brasil. A distribuição indiscriminada inflaciona, enfraquece e desvirtua a especificidade do documento.

Nada justifica a atribuição de passaporte diplomático a parlamentares, a não ser que viajem em missão assimilada à diplomacia. Neste caso, é concebível que se lhes atribua o documento – mas com validade unicamente para aquela viagem. Ao retorno, deverá ser devolvido. Não há razão para que deputados e senadores se apoiem em passaporte diplomático para levar a família passear na Disneylândia. Chega a ser imoral.

Mais problemático ainda será sustentar o direito de “líderes religiosos”(*) a obter esse documento. Não estão a serviço da pátria. O Brasil não é Estado religioso, como Irã ou Arábia Saudita. Portanto, que esses dirigentes espirituais façam fila no aeroporto de Miami ou de Paris como qualquer mortal, cáspite!

Se já era uma aberração ser titular de um documento dessa natureza, enormidade maior será retê-lo ao deixar o mandato. Segundo a reportagem do jornal, o Itamaraty tem grande dificuldade em recolher passaporte dos que deixam o parlamento. Todos guardam o livretinho como ‘souvenir’, exatamente como aqueles que levam ‘lembrancinha’ do hotel, do restaurante ou do último emprego.

Está tudo errado.

(*) A expressão ‘líderes religiosos’ inclui imames muçulmanos? E donos de terreiro de umbanda? Se eles apelarem para a Justiça e invocarem o princípio de isonomia, têm forte chance de obter o direito. Aviso aos navegantes!

Sanção econômica

José Horta Manzano

Antigamente, a gente dizia bloqueio ou embargo. Hoje, a expressão é mais sexy: ‘sanções econômicas internacionais’. Trocado em miúdos, dá na mesma: é chantagem que não diz seu nome. Manda quem pode; quem não pode, obedece. Quando um país não se comporta como manda o figurino, está se arriscando a sofrer sanções econômicas, que durarão enquanto o malcomportado não se emendar.

O mundo se acostumou a ver esse tipo de arma ser sacada principalmente por razões políticas. É o caso de Cuba, que está sob embargo americano há quase sessenta anos. Coreia do Norte e Irã também estão na berlinda, só que por outra razão: a comunidade internacional não quer que eles continuem fabricando as armas nucleares que eles insistem em desenvolver.

A Rússia é outra que enfrenta sanções por se ter apoderado da Crimeia. O território anexado por Moscou é uma península populada por russos, que foi tradicionalmente russa por séculos. Aquela terra só se tornou ucraniana nos anos 1950, quando o líder soviético Kruchev – um ucraniano – a entregou de mão beijada à Ucrânia.

Todos esses países cometeram algum pecado que a sociedade não está disposta a aceitar. Sanção econômica é medida vistosa, de efeito psicológico garantido, mas de pouca eficácia na resolução dos problemas. Haja vista a gerontoditadura cubana que, apesar de mais de meio século de embargo, continua de pé. O mesmo se pode dizer do Irã dos aiatolás e da Coreia do Norte. Da Rússia, então, nem se fala. Sanção costuma doer no bolso, mas não é garantia de acabar com os males que pretende combater.

Noruega: criação de salmão

Um grande fabricante de calçados, dono de marcas como Timberland e outras, anunciou a suspensão de compra de couro brasileiro. A regra permanecerá em vigor até que haja razoável certeza de que o couro utilizado não está contribuindo para o agravamento do dano ambiental ao país. É notícia da pesada! O comunicado da empresa abalou ânimos em Brasília e chegou ao Planalto. A partir daí, não está claro o que aconteceu, o que se sabe é que o anúncio de suspensão foi… suspenso. Algo do tipo ‘desculpem a nossa falha’.

Sente-se que, por detrás, pressão forte há de ter sido exercida. Daí o recuo do fabricante de calçados. Mas deixe estar que o problema continua a se alastrar. Por sua vez, o maior produtor mundial de salmão, uma firma norueguesa, fez uma ameaça. Anunciou que cogita suspender compra de soja do Brasil. Sabendo que esse produto é amplamente utilizado nas ‘fazendas’ de criação de salmão, a suspensão de compra periga fazer estrago grande. Como no caso da Timberland, o reclamo da norueguesa liga-se ao desleixo do Brasil com a preservação da natureza.

Se doutor Bolsonaro persistir em ofender, insultar e dar trombada em líderes mundiais e, ainda por cima, a se lixar para a preservação ambiental, é provável que, dentro de muito pouco tempo, o Brasil se torne um grande Irã, sancionado economicamente pelos compradores mais importantes. A perda pode ser duradoura: quando um cliente deixa de comprar nossos produtos e vai se abastecer em outra fonte, surge o risco de ele nunca mais voltar.

Se o distinto leitor tem o número de telefone de doutor Bolsonaro, seu dever patriótico é alertá-lo do perigo.

O Brasil à beira de sofrer sanções econômicas! Quem diria…

Boa posição

José Horta Manzano

Artigo do jornal sueco Nyheter 24 dá as mais recentes estatísticas da periculosidade do tráfego. O estudo se concentra nos dez países que apresentam o maior número absoluto de mortos na circulação. Nosso país ostenta um honroso terceiro lugar. Aqui está a lista dos dez países onde é mais perigoso dirigir:

Índia          150.000 mortos por ano
China           58.022 mortos por ano
Brasil          38.651 mortos por ano
USA             35.092 mortos por ano
Indonésia       31.282 mortos por ano
Tailândia       21.745 mortos por ano
Rússia          20.308 mortos por ano
México          16.039 mortos por ano
Irã             15.932 mortos por ano
África do Sul   14.071 mortos por ano

Para um estudo mais refinado, é preciso levar em conta o número de habitantes de cada país. Na análise final de mortes por 100 mil habitantes, nosso país perde uma colocação. Mas ainda aparece em quarto lugar, bem à frente de países mais adiantados. Veja:

Tailândia     31,4 mortos por 100 mil habitantes
África do S.  24,2 mortos por 100 mil habitantes
Irã           19,2 mortos por 100 mil habitantes
Brasil        18,2 mortos por 100 mil habitantes
Rússia        14,1 mortos por 100 mil habitantes
México        12,1 mortos por 100 mil habitantes
Indonésia     11,6 mortos por 100 mil habitantes
Índia         10,9 mortos por 100 mil habitantes
USA           10,7 mortos por 100 mil habitantes
China          4,1 mortos por 100 mil habitantes

Atenção: O estudo se limita aos dez campeões, ou seja, àqueles países que registram o número absoluto mais elevado de mortos em acidentes da circulação. Não computados neste estudo, certos países africanos ostentam taxas astronômicas quando se analisam os mortos por 100 mil habitantes. Alguns ultrapassam 50 mortos por 100 mil habitantes, o triplo da mortandade brasileira, uma verdadeira hecatombe.

Como curiosidade, note-se que os países que registram o menor número absoluto de mortos na estrada são a Islândia, a Jordânia e a Líbia. Por falta de habitantes e/ou de veículos.

Dormiu no ponto

José Horta Manzano

O Boeing da Qatar Airways decolou do aeroporto de Doha (Catar) em direção a Bali (Indonésia). Foi no domingo passado. O voo se anunciava sereno. Entre os passageiros, estava uma família iraniana: marido, mulher e criança pequena.

No Irã, o consumo de álcool é reprimido. Talvez por essa razão, o casal se aproveitou da «boca livre» ‒ melhor seria dizer «copo livre». Exageraram nos drinques. Já meio mole, o marido ferrou no sono. A esposa, guiada pela ousadia dos que tomaram um trago, valeu-se da ocasião. Apanhou o celular do marido e, encostando no escâner o dedo do homem adormecido, conseguiu desbloquear o aparelho.

Curiosa, bisbilhotou(*) a memória do telefone. Não tardou a descobrir que estava sendo traída pelo marido. Enfurecida, despertou-o e pôs-se a agredi-lo. Primeiro, com palavras. Depois, com gritos. Em seguida, diante de passageiros atônitos, chegou às vias de fato. A tripulação tentou intervir para acalmar a situação, mas também foi atacada pela viajante colérica.

A situação chegou a tal ponto que o comandante, informado do que acontecia, solicitou permissão para pouso de urgência no aeroporto mais próximo. Aterrissou em Chennai (Madras), no sul da Índia. Ali, casal e filho foram desembarcados manu militari. Livre dos turbulentos passageiros, o avião seguiu viagem.

Visto que não havia ameaça à segurança e que nenhum crime havia sido cometido, as autoridades indianas decidiram manter a família confinada no aeroporto. Horas mais tarde, quando a passageira já havia recobrado o estado normal, foram os três embarcados num voo de volta ao Catar.

Moral da história
Desbloqueio de celular por meio de reconhecimento táctil é útil e seguro. Mas é aconselhável não dormir no ponto.

(*) Nota etimológica
Bisbilhotar, voz onomatopaica, provém do verbo italiano bisbigliare, que tem o sentido de sussurrar com leve movimento dos lábios. Nessas horas, quem está por perto só consegue ouvir sons como «bis-bis» ou «pis-pis». Corresponde ao inglês whisper e ao alemão pispern.

Com informações do diário The Times of India.

Quando o assunto é dinheiro…

José Horta Manzano

23 jan° 2017
Circundado por sete homens engravatados, Donald Trump assina decreto limitando o financiamento de ongs que defendem o aborto. A imagem é simbólica: um conclave exclusivamente masculino retratado no exato momento em que, de certa maneira, cerceava a liberdade feminina de dispor do próprio corpo. A foto deu a volta ao mundo.

2017-0215-01-tsr3 fev° 2017
Indignado com a atitude do presidente americano, o governo sueco reagiu. Divulgou uma foto de uma de suas ministras cercada de equipe exclusivamente feminina. O retrato foi tirado por ocasião de assinatura de acordo sobre mudanças climáticas. Em sua página web, o governo sueco se declara feminista ‒ com muito orgulho.

2017-0215-02-tsr11 fev° 2017
Em visita a Teerã (Irã), a titular do Ministério do Comércio sueco fez-se acompanhar por um grupo de assessoras. Todas eram mulheres. Mas uma imagem vale mais que mil palavras: no momento de saudar o presidente do país, a ministra desfilou com a cabeça coberta pelo véu islâmico. Todas as integrantes do comitê traziam o adereço.

2017-0215-03-tsrO instantâneo causou estupor pelas bandas de Estocolmo. Como é possível que justamente um governo que se autodefine como «feminista» se dobre aos códigos vestimentários iranianos? A explicação é simples e pouco elegante: quando o assunto é dinheiro, ideologia não vigora.

Aliás, essa é uma lição que os brasileiros estão carecas de saber. Na prática, a teoria é outra.

Interligne 18cPS
As mandachuvas suecas entraram em saia justa por se terem «afinado» na hora H, quando, em tempos normais, costumam se gabar de ativismo feminista. Pecaram pela soberba.

Fora isso, não vejo escândalo no fato de mostrar respeito a costumes locais quando se é forasteiro de visita.

2017-0215-04-tsrQuando são recebidas pelo papa, todas as mulheres se apresentam com véu ou chapéu. E ninguém se escandaliza. Vasto mundo.

Rearranjo planetário

José Horta Manzano

As relações comerciais planetárias estão passando por uma revolução. Todos já se deram conta de que, sob inspiração do novo presidente, os Estados Unidos estão em plena guinada protecionista, numa curva fechada de cantar o pneu. Passado um primeiro momento de estupor, é chegada a hora de seguir as novas regras do jogo.

Aqui nas bandas do Mercosul, a saída da Venezuela, embora desejada por todos os que têm juízo, ainda não é oficial. Caracas, embora com a voz temporariamente neutralizada, ainda aparece oficialmente como membro do clube. Torçamos para que o galho apodrecido seja amputado quanto antes.

by Mark Knight (1960-), desenhista australiano

by Mark Knight (1960-), desenhista australiano

A mente embotada do novo dirigente da Casa Branca não lhe permite dar-se conta de que seus atos teatrais estão inaugurando nova era. Não sei quais possam ser as perspectivas para seus conterrâneos, tenham votado nele ou não. Pode ser que a vida melhore para alguns, talvez possa ser um desastre para outros. Quanto ao resto do mundo, a violência, os vaivéns, as meias verdades, o zanzar de barata tonta de Mister Trump espantam mas não empolgam.

Como diz o outro, não dá pra botar fé no indivíduo. Impetuoso, em menos de duas semanas de governo já mostrou a que veio. Feito de um bloco só, o novo presidente é como peça bruta que acabou de sair da fundição. Cheio de rebarbas cortantes, falto de facetas, o homem desconhece nuances. Lapidá-lo parece missão impossível. Tem 70 anos(*). Se não aprendeu até agora, é caso perdido.

Treze anos atrás, o Lula e señor Kirchner bombardearam a Alca ‒ um tratado de comércio que agruparia todas as Américas, do Canadá à Terra do Fogo. Preferiram jogar-se de cabeça num hipotético e folclórico mercado dito «Sul-Sul». Irã, Coreia do Norte, Venezuela, Cuba e ditaduras africanas se juntariam a nós para redirecionar o comércio mundial. Deu no que deu.

Agora que o mercado dos EUA está se tornando esquisito, não há que hesitar muito para reagir. Que ninguém se engane: o mundo todo está mexendo os pauzinhos para pôr ordem no desarranjo que Trump ameaça gerar. Não vamos deixar passar o momentum.

By Bill Day, desenhista americano

By Bill Day, desenhista americano

No Brasil, embora o governo atual seja visto como temporário ou “tampão”, não podemos nos conceder o luxo de esperar pelo próximo ocupante do Planalto. Afinal, faltam dois anos. O diálogo entre o Brasil e a Argentina, retomado pelas respectivas equipes econômicas esta semana em Brasília, é de excelente augúrio. É muito bom constatar que os governantes de ambos os países se deram conta de que está passando da hora de procurarmos bom porto.

Que se dialogue com a Aliança do Pacífico ‒ com ou sem os EUA. Que se relancem as tratativas com a União Europeia ‒ sem se preocupar com o Brexit. Que se expulse a Venezuela do Mercosul até que volte a ser uma democracia de pleno direito. Que se abrande a rigidez do Mercosul e que se dê liberdade a cada membro de concluir alianças comerciais por conta própria, segundo os interesses maiores de cada um.

Chega de ocasiões perdidas. Não vamos deixar passar este momento de reorganização de forças criado por um terremoto chamado Trump. É hora de enterrar de vez essa ingenuidade bolivariana e cair na real.

Interligne 18c

(*) Uma curiosidade: o ano de 1946 é o único que deu três presidentes aos EUA. De fato, Bill Clinton, George Bush Jr. e Donald Trump são todos da mesma safra.

Passagens: o retorno do reprimido

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Semana passada, tive a impressão de ter visitado os círculos do inferno. Por algum estranho motivo, achei que eram sete esses círculos. Como não tinha outras referências para justificar essa impressão, decidi pesquisar a obra de Dante, o autor que para mim está mais associado ao conceito de inferno. Perplexa, descobri que, ao menos na visão dele, são nove círculos. Intrigada, achei melhor consultar o significado de cada um para tentar entender porque o número 7 insistia em permanecer na minha cabeça.

A primeira surpresa veio com a descoberta de que o primeiro círculo era o Limbo. Há poucas semanas, fiz um relato a respeito de minhas frequentes experiências pessoais de limbo e o descrevi como um estado angustiante de falta de vontade para tudo, que se faz acompanhar por uma sensação de alienação da realidade e de não-pertencimento.

Esquema do Inferno de Dante

Esquema do Inferno de Dante

Depois de alguns dias patinando em areia movediça, achei que poderia dar por terminada minha passagem pelo território da abulia. Sentia, no entanto, que algo continuava travado dentro de mim. Tentava pôr no papel meus sentimentos, mas a autocrítica me impedia. Tudo me parecia falso, mentiroso, forçado. Quanto mais eu me espremia para tirar de mim alguma verdade sincera, maior minha irritação. Resolvi consultar meu anjo. Antes mesmo de exprimir minha queixa, lá veio o diagnóstico irado dele: você está desconectada de sua essência.

Não entendi de imediato. A coisa continuou num crescendo de desconforto até que comecei a experimentar sensações ainda mais terríveis… de inveja! Inveja de tudo, das coisas mais ridículas às mais estranhas ao meu psiquismo. Por dias seguidos, fervi de inveja das pessoas mais inteligentes, mais ricas, mais articuladas socialmente, mais extrovertidas, mais autoconfiantes, mais bonitas, mais descontraídas, com mais talento para escrever, desenhar, cantar…

Inferno de Dante by Salvador Dalí (1904-1989), Marquês de Dalí de Púbol

Inferno de Dante
by Salvador Dalí (1904-1989),
Marquês de Dalí de Púbol

Meu anjo estava certo. Eu estava em guerra comigo mesma, ou melhor, com as coisas que me encheriam de vergonha caso eu as assumisse como parte da minha “essência”. Eram sensações tão fortes que cheguei a achar que o segundo círculo do inferno era constituído pela inveja. Voltando à pesquisa, constatei, frustrada, que ela simplesmente não fazia parte dos nove círculos concebidos por Dante. Quando estava a ponto de desistir, esbarrei sem querer com a informação de que o purgatório, sim, era composto por 7 círculos, cada um correspondendo a um dos sete pecados capitais. E lá estava a inveja na segunda colocação, só antecedida pelo orgulho!

Foi a confirmação de que eu precisava. Meu único consolo era acreditar que meu inferno pessoal havia sido deixado para trás e que agora eu estava às voltas com a expiação dos pecados. O orgulho intelectual, a autoimagem de pessoa altruísta, a crença nos meus poderes de acolhimento das diferenças, a sensibilidade no trato da dor humana, o desejo de reconhecimento. Nada ficou de fora. Refletidas no espelho da minha mente, cada uma das minhas limitações pessoais desfilava impávida e clamava por expurgo.

Inferno de Dante Mosaico do Batistério de Florença

Inferno de Dante
Mosaico do Batistério de Florença

Foi só então que me lembrei que, desde menina, nunca pude deixar de sentir que eu não passava de uma fraude e que era apenas questão de tempo para que ela fosse denunciada e percebida por todos. As deformações do meu caráter, ocultadas de mim mesma por tanto tempo, estavam finalmente a exigir remissão.

Uma passagem terrível, talvez a mais amedrontadora de todas, pelo universo de minhas sombras pessoais. Ao mesmo tempo, uma experiência incrivelmente libertadora, capaz de me devolver a serenidade e o sentido de integração da minha personalidade. Cordeiro em pele de lobo, onça e não gato, a garota desprovida de encantos louca para matar no peito a menina boazinha que eu deveria ter sido e adoraria ser.

Como diria Fernando Pessoa, “Deus não tem unidade. Como a terei eu?”

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Obama e os nós

José Horta Manzano

Obama 2Em 2009, quando o Prêmio Nobel da Paz lhe foi atribuído, Barack Obama há de ter-se sentido meio sem graça. Até aquele momento, o gesto mais vistoso do recém-eleito presidente tinha sido o Discurso de Cairo, interpretado como guinada na política externa americana.

Foi pronunciamento importante, sem dúvida, mas daí a valer Nobel da Paz… vai um longo caminho. A opinião pública mundial ficou cismada. Por que teriam agraciado o presidente por antecipação? Que esperavam dele?

Passados quase oito anos, com o fim do mandato chegando, Obama não conta com a simpatia unânime de seu povo. Se lhe fosse permitido candidatar-se a um terceiro mandato, não é certo que viessem a reelegê-lo. E o prêmio que lhe deram adiantado como é que fica? Foi justificado ou não?

O julgamento pleno somente será dado pela História daqui a algumas dezenas de anos. No entanto, há que reconhecer que o governo de Obama desatou três grandes nós da política externa de seu país.

Nó 1Primeiro foi o Irã. Fazia mais de 35 anos que os EUA e a antiga Pérsia estavam de relações cortadas. Se nada fosse feito, a situação podia se eternizar. Prudente mas pragmático, Obama deu os passos necessários para sustar o embargo comercial e normalizar as relações. Com a bênção americana, o Irã voltou ao convívio do mundo civilizado.

Em seguida, veio Cuba, outro nó amarrado fazia já meio século. No fundo, nada tinha mudado na ilha caribenha que justificasse melhora nas relações com o “império”. A decisão unilateral da presidência americana ‒ para desespero de bolivarianos & aprendizes ‒ balançou o coreto. Por inspiração de Obama, a situação entre os dois países deu grandes passos para o descongelamento.

Obama 1O terceiro nó está sendo desfeito estes dias. A ida de Obama a Hiroshima ‒ primeira visita de presidente americano em exercício à cidade martirizada por fogo atômico ‒ é forte em simbolismo. Obama já deixou claro que não haverá pedido de desculpas, dado que considera não fazer sentido excusar-se por atos que já fazem parte da História. Seja como for, faz 70 anos que o povo japonês esperava por essa visita oficial. O primeiro-ministro nipônico já está até pensando em retribuir com uma visita a Pearl Harbor.

Diferentemente do predecessor, o famigerado Bush Júnior, Barack Obama deixará atrás de si um balanço positivo. O mundo continua cheio de problemas, como a questão israelo-palestina e o contencioso russo-ucraniano. Mas alguns nós terão sido desfeitos. Obama se esforçou pra fazer jus ao prêmio antecipado que lhe tinham atribuído.

Sem vinho, nada de almoço

José Horta Manzano

A tolerância ‒ que alguns, equivocadamente, confundem com preconceito ‒ é um dos pilares do processo civilizatório. Tolerar a diferença alheia não quer dizer aderir a ela.

Significa esforçar-se por conviver com ela. Exigir que todos ajam e se comportem como nos agrada é dar mostra de intolerância no mais alto grau. É atitude que polui o relacionamento entre as gentes. Guerras deflagradas por motivos de intolerância religiosa já mataram milhões.

Itália: estátuas ocultadas

Itália: estátuas ocultadas

O Irã, país que até o mês passado estava banido do mundo civilizado, passou por uma lavagem a jato ‒ sem trocadilhos. De supetão, os pecados foram perdoados e o país se viu reintegrado no convívio planetário. Uma ressureição instantânea.

No entanto, não convém acreditar em milagres. Nada se transforma de golpe. Assim como o grão de milho, depois de virar pipoca, guarda alma de cereal, os dirigentes da república islâmica não perderam o inconfundível viés autoritário, despótico até.

Hassan Rohani, líder religioso, é o sucessor de Ahmadinedjad na presidência do Irã. Na esteira da anulação das sanções econômicas que pesavam sobre seu país, visitou Itália e França, esta semana, para reatar relações comerciais.

Dando prova de que tolerância é conceito desconhecido na alta cúpula de Teerã, o medalhão exigiu que, nas refeições, o cardápio fosse halal(*) e que bebidas alcoólicas não fossem postas à mesa.

França & Irã: reunião de trabalho

França & Irã: reunião de trabalho

A Itália dobrou-se à imposição dos visitantes. O tradicional copo de vinho foi substituído por água. Mais que isso, esculturas do Capitólio romano mostrando corpos desnudados foram ocultadas.

Já na França, menos disposta a vergar-se, o banquete programado foi simplesmente cancelado. Sem vinho, nada de refeição. O cerimonial francês julgou a exigência inadmissível. A delegação iraniana almoçou separada dos demais.

François Hollande 8A meu ver, a decisão de Paris foi acertada. Note-se, aliás, que as normas ocidentais de etiqueta impõem que homens se apresentem em reuniões e à mesa com a cabeça descoberta. Assim como o turbante do visitante foi tolerado, cabia ao dignitário aceitar que os franceses acompanhassem a refeição com a bebida à qual estão acostumados. Cada um se serviria de vinho ou de água, conforme lhe apetecesse.

É um toma lá dá cá necessário. A tolerância ensina que cada um deve dar um passo em direção ao outro. Embora tenha progredido, a cúpula iraniana mostra que ainda não chegou lá.

Interligne 18b

(*) Diz-se refeição halal daquela em que as carnes provêm de animais abatidos segundo as normas da charia, o conjunto de preceitos maometanos.

A força dos passaportes

José Horta Manzano

Você sabia?

Símbolo de passaporte biométrico

Símbolo de passaporte biométrico

Passaporte, palavra tomada emprestada do francês passeport, é o livreto que cidadãos devem levar consigo ao atravessar fronteiras. Na origem, esse documento não se referia a pessoas, mas a mercadorias.

Na Europa do final da Idade Média, a precariedade das estradas e os perigos que as rondavam desencorajavam viagens terrestres. O transporte de bens era feito principalmente por via fluvial ou marítima. Assim, para deixar o lugar de origem e chegar ao destino, toda mercancia tinha de passar por portos ‒ daí o nome do documento.

A intensificação das trocas comerciais deu, aos poderosos e aos que detinham posições estratégicas, a ideia de cobrar pela passagem ou pela estadia de barcos. Bulas, ofícios, cartas de transporte e documentos vários foram surgindo. Entre eles, o passeport, que atestava que a mercadoria estava nos conformes.

Em nossos dias, documentos específicos continuam a ser emitidos para bens que cruzam fronteiras: conhecimento aéreo ou marítimo, fatura comercial, licença de importação ou de exportação. Já o termo passaporte perdeu a conotação comercial e passou a designar o documento que autoriza indivíduos a viajar de um país a outro.

Passaporte 1Em princípio, todos os passaportes são iguais. Na prática, uns são mais iguais que outros. A força do documento de viagem é medida pelo número de países cuja fronteira o titular pode atravessar sem precisar de visto. Quanto maior for o número de países aos quais um passaporte dá acesso sem necessidade de visto, mais «forte» será considerado o documento.

Um portal especializado analisa os passaportes emitidos por 199 países e os classifica pelo número de portas que cada um abre sem precisar pedir licença. Nestes últimos 13 anos, o governo brasileiro tentou aproximação com países olhados com desconfiança pelo resto do mundo. Falo de Irã, Cuba, Coreia do Norte, Guiné Equatorial, Venezuela. Apesar disso, nossa classificação (ainda) não parece ter sido prejudicada.

Classificados por ordem de «força», os passaportes dos EUA e do Reino Unido aparecem em primeiro lugar. Seus titulares podem entrar em 147 países sem pedir visto. Na segunda posição, empatam Alemanha, França e Coreia do Sul, com 145 países. Logo em seguida, em terceiro, aparecem Itália e Suécia, com 144 passes livres.

Passaporte brasileiro 2O Brasil surge em 17° lugar, empatado com Romênia e Mônaco. Cidadãos brasileiros podem visitar 128 países sem necessidade de visto. Os numerosos empates, porém, podem falsear a compreensão. Será mais claro dizer que cidadãos de 41 países são mais livres que nós na hora de viajar.

Mas há pior. Todos os outros componentes do Brics concedem a seus cidadãos passaporte menos poderoso que o nosso. Um russo tem direito de visitar apenas 98 países sem pedir visto. Um sul-africano pode viajar a 84 países; um chinês, a 74; um indiano, a somente 59. É um dos raros quesitos em que ultrapassamos os outros ditos emergentes.

Quem estiver interessado na lista completa deve clicar aqui.