Festejar o 31 de Março?

José Horta Manzano

A história dos países é marcada por uma sucessão de deslealdades, golpes e revoluções. Não há outro meio de empurrar (ou emperrar…) a história de um povo. Se nunca tivessem ocorrido desvios da ordem estabelecida, ainda estaríamos nos cobrindo de peles e desenhando bichos na parede de acolhedoras cavernas úmidas. Talvez até estivéssemos engolindo comida crua, por não termos domado o fogo.

Todos os Estados carregam um histórico de cambalhotas. A meu conhecimento, nenhum escapou, nem menos nosso Brasil, apesar de ser visto como nação pacífica. Grandes passos da humanidade foram resultado de grandes golpes contra a ordem então vigente.

A Revolução Francesa, golpe pesado e magistral no sistema em vigor, foi um marco no processo civilizatório da humanidade. A Revolução de Outubro de 1917, que instaurou o regime comunista na Rússia, pautou a vida do planeta durante 70 anos.

Vamos agora ser cínicos (mas realistas). A partir de que momento um golpe contra a lei vigente se torna legal? Ou, em outra abordagem: Qual é o nome da lavanderia que aceita roupas manchadas de ilegalidade e, depois de lavar e passar, devolve as peças imaculadas, com virgindade refeita, prontas pra serem cultuadas?

A resposta é realista (mas cínica). Legal é a revolução que deu certo. Revolução que deu certo é o ponto inicial de nova etapa de uma civilização. Golpe que teve sucesso é marco de novo ordenamento de uma sociedade. Grandes fases de nossa história tiveram início como um ataque contra a ordem então vigente.

O 14 de Julho da Revolução Francesa é comemorado até hoje, enquanto que todas as datas da Revolução Russa desapareceram do calendário oficial daquele país. É a prova evidente do sucesso da primeira e do fracasso da segunda.

O Brasil-colônia tornou-se independente da metrópole em virtude de um golpe familiar, uma obscura deslealdade de filho pra pai, um golpe palaciano que reafirmou nosso sistema clânico de governança, já então em vigor. Tendo dado certo, o Dia da Independência é lembrado e festejado até hoje.

O Império do Brasil virou República em virtude de um golpe militar, uma desleal revolução de palácio. Tendo dado certo, também o Dia da República é lembrado e festejado até hoje.

A Revolução de 3 de Outubro de 1930 marcou o fim da República Velha e instaurou a ditadura de Getúlio Vargas. O novo regime durou 15 anos. Com a redemocratização do país, o movimento que levou Vargas ao poder perdeu o qualificativo de “revolução” e passou a ser chamado de “golpe”. É natural, visto que não se eternizou. Com o fim do regime, o 3 de Outubro deixou de ser comemorado e caiu no esquecimento.

A Revolução de 31 de Março de 1964 marcou o fim do período democrático que tinha tido início com a queda de Vargas, e instaurou nova ditadura – militar, desta feita. Durou 21 anos. Com a queda da ordem militar e a redemocratização do país, o 31 de Março deixou de ser comemorado. Pela ordem natural das coisas, seu destino deveria ser o esquecimento, que é o fim de todas as mudanças que não perduram. O que se costumava chamar de “revolução” passou a ser conhecido como “golpe”.

Curiosamente, no entanto, o finado regime continua sendo cultuado por uma franja estreita de sebastianistas barulhentos que parecem ter fixação num passado que muitos deles nem vivenciaram. Esse culto tem sido potencializado desde que a Presidência foi assumida por Bolsonaro, ele mesmo saudosista doentio.

Ainda esta semana, o general Braga Netto, ministro da Defesa, declarou que a ditadura imposta pelo regime militar “fortaleceu a democracia”(sic) e foi um “marco histórico da evolução da política brasileira”(sic sic).

Soou tão fora de esquadro quanto a declaração de Putin de que a invasão da Ucrânia visa a “desnazificar” o país. Coisa de manicômio.

Um ou outro político de segunda grandeza resmungou. E a imprensa, distraída e ainda fascinada com o estapeio do Oscar, publicou o resmungo como nota de pé de página.

E assim vamos banalizando o absurdo.

Pandeiro e bandolim

José Horta Manzano

Você sabia?

O que é que pandeiro e bandolim têm em comum? São instrumentos que tocam juntos em certos conjuntos regionais. É verdade, mas não é só. A intimidade entre os dois é mais antiga e mais profunda. Vamos ver.

Você já ouviu falar em Assurbanípal ou em Semíramis? Se não ouviu, não tem a menor importância. O nome deles só aparece aqui pra impressionar. São personagens históricos que viveram no Império Assírio, civilização que começou a se desenvolver 5 mil anos atrás, no tempo em que os bichos falavam. No auge de sua expansão, a nação assíria cobria partes do território do Iraque, da Turquia, da Síria e do Irã atuais. O povo falava uma língua do grupo semítico, família representada hoje pelo hebreu e pelo árabe.

Num trabalho de paciência, os linguistas conseguem identificar aqui e ali, nas línguas que falamos atualmente, palavras de origem assíria. Dado que não subsistiram documentos escritos, nem sempre é possível afirmar com certeza.

Estudiosos acreditam que a palavra latina pandura, tomada emprestada do grego, vem da língua assíria. Na antiguidade, designava um instrumento de corda, espécie de alaúde, antepassado do violino e do violão atuais. Tanto o instrumento como a palavra evoluíram.

De pandura, o nome passou por pandore e mandore pra desembocar em mandola (ó). Na Itália, uma mandola de pequenas dimensões chamava-se mandolino. A mandola, instrumento pouco sonoro, desapareceu faz tempo. Mas o mandolino ficou e seu nome deu origem – vocês já adivinharam – ao nosso bandolim.

Como curiosidade, note-se que nossos dicionários ainda hoje trazem a palavra bandurra, a significar antigo instrumento de cordas espanhol. Na origem desse nome, não é difícil identificar a pandura grega.

E o que tem o pandeiro a ver com isso? Joan Corominas, o mais conceituado etimologista das línguas ibéricas (castelhano, português e catalão), dá nosso pandeiro como descendente do pandero castelhano, que, por sua vez, vem do latim pandura. E o círculo se fecha.

O distinto leitor há de se perguntar como é possível que a mesma palavra (pandura) tenha se bifurcado para designar ao mesmo tempo dois instrumentos tão diferentes como o pandeiro e o bandolim. Eu também fico surpreso, mas assim é.

Como confirmação dessas voltas que a língua dá, o Houaiss ensina que a origem de nosso tambor é o étimo árabe at-tanbúr. Acontece que, no original, a expressão at-tanbúr significa guitarra.

Para nós, do século 21, é impossível confundir tambor com guitarra ou pandeiro com bandolim. Para os antigos, parece que a individualidade dos instrumentos não era assim tão importante. Todos eram válidos desde que tocassem.

Capitalização

José Horta Manzano

Pouco a pouco, o Brasil vai se dando conta de que, do jeito que está, a Previdência Social vai direto pro buraco. Gradualmente vai-se desfazendo a noção de que a entidade abstrata chamada «governo» tudo pode. Todos entendem que este é o país do toma lá dá cá, ou seja, a terra em que tudo tem seu preço e nada vem de graça. No entanto, curiosamente, a população tem dificuldade em entender que, para poder pagar a pensão dos aposentados, o «governo» tem de receber dinheiro dos que estão na ativa. Afinal, dinheiro não dá em árvores. Mas parece que a ficha está caindo e mensagem está passando. Era hora.

Esta mudança, apresentada como A reforma, não é senão um ajuste. A longevidade se espicha, os jovens entram cada vez mais tarde na vida ativa, casais têm menos e menos filhos ‒ enfim, a sociedade evolui. Que não se imagine que, feitos estes acertos, nada mais mudará nas próximas décadas. Não será assim. A reforma atual é significativa porque o corpo social evoluiu e as regras não têm sido adaptadas desde o tempo do Onça. O segredo de evitar choques traumáticos gerados por reformas drásticas é ir adaptando as regras aos poucos.

A grande medida a ser implantada agora, por ter sido descurada por muito tempo, tornou-se a principal anomalia da Previdência brasileira: a fixação de idade mínima para aposentadoria. No mundo civilizado, ninguém acreditaria se ficasse sabendo que brasileiros em boa saúde têm o direito de se aposentar por volta dos 55 anos de idade. É de admirar que a estrutura ainda não tenha arrebentado.

Aproveitando o atual debate, há quem fale em substituir o sistema de repartição pelo de capitalização. A meu ver, seria tremendo erro conceptual. O princípio da Previdência Social é a solidariedade nacional. Todos contribuem para alimentar a poupança comum, cada um conforme seus ganhos. Chegada a hora da aposentadoria, todos receberão da mesma sacola. O benefício variará conforme parâmetros individuais e profissionais.

Sistema de capitalização é outro capítulo. É cada um por si, longe de toda solidariedade nacional. É poupança individual, que nada tem a ver com Previdência Social. Pode servir como complemento ao benefício básico, mas não deve substitui-lo. Espero ‒ e acredito ‒ que o legislador evitará pautar a reforma por esse princípio.

Tráfego pesado

José Horta Manzano

A Ponte Velha (Ponte Vecchio), de Firenze, foi erguida no ano de 1345, faz quase sete séculos. E está lá até hoje, galharda e elegante, o que é normal. De fato, não é corriqueiro ver ponte cair. Ninguém imagina que a ponte medieval que liga as duas margens do Rio Arno possa desmoronar assim, de uma hora pra outra.

Faz uns dias, a pista de um viaduto paulistano afundou bem na junção de duas placas de concreto. O sinistro criou um degrau na pista. Esse desnível, além de ameaçar derrubar o viaduto sobre os trens que circulam mais abaixo, impossibilita o trânsito de veículos.

Chamada Estadão, 20 nov° 2018

Este blogueiro é do tempo em que trânsito significava tráfego, passagem, movimento de pessoas ou de veículos, o ato de atravessar ou de circular. No entanto, dado que o trânsito de veículos nas desorganizadas megalópoles brasileiras costuma ser lento e encrencado, o significado da palavra evoluiu. Hoje em dia, trânsito deixou de ser palavra neutra, sem qualificação. Passou a ser sinônimo de tráfego pesado.

O jovem estagiário do jornal responsável pelas chamadas não conheceu a época em que o trânsito, conhecido então como tráfego, era pacato. Para o jovem, trânsito é engarrafado por natureza. Daí o título esquisito que informa que vias estão abertas à circulação «para evitar trânsito», quando um incauto imaginaria o contrário, isto é, que as vias tivessem sido abertas justamente «para facilitar o trânsito» e não para evitá-lo. É conversando que a gente se entende.

Ressignificando

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Aula de ciências naturais e biológicas em um abrigo 5 estrelas para cães

Professora
Bom, meus queridos alunos, hoje eu queria falar um pouco sobre a teoria da evolução das espécies. Embora ela não tenha sido formulada por um de nós, nossos cientistas corroboraram suas descobertas. Acho importante que vocês a conheçam porque ela nos ajuda a entender melhor como se deu nosso processo de domesticação… Como vocês já devem saber, nossa espécie evoluiu a partir dos lobos…

Aluno 1
Péra aí, fessora. Eu não descendo de lobo, não. Nunca ataquei nem mordi ninguém e sempre respeitei tanto meus coleguinhas de grupo quanto meus tutores. Essa teoria aí que a senhora tá falando, acho que só vale pros cachorros pretos e de rua.

Professora
Que absurdo, garoto! Quem foi que te disse uma asneira dessas?

Aluno 1
Foi meu pastor, que, por sinal, não é alemão, mas suíço porque é todo branco. Ele disse – e meu pai confirmou – que foi o Deus de Quatro Patas quem criou a raça dos golden retriever. Pode ver, entre nós só tem criaturas com essa carinha de anjo que conquista tantos humanos. Isso sem falar de nosso lindo pelo dourado…

Crédito: Mamietitine.centerblog.net

Professora
Não, meu amor, você deve ter entendido mal. Está certo que, segundo a religião dominante entre nós, Deus criou todos os seres vivos. Mas uma coisa não anula a outra, a ciência já comprovou que uma espécie foi evoluindo e se transformando em outra, a partir de um ancestral comum. No nosso caso, o ancestral comum é o lobo. E, através de sucessivos cruzamentos, eles deram origem a filhotes mais mansos e com pelagens de todas as cores, umas mais claras e outras mais escuras. Também é verdade que, ao longo do tempo, os humanos passaram a dar preferência aos de pelagem clara, acreditando que eles eram mais confiáveis e menos traiçoeiros porque estavam mais distantes da aparência selvagem de seus antepassados. Mas isso é lamentável, só demonstra a ignorância dessa gente que se orgulha de andar em duas patas. Muitos de nossos irmãos de pelagem escura acabaram sendo abandonados na rua por causa disso…

Aluno 2
Então, tia, minha mãe disse que esses escurinhos foram jogados nas ruas porque nunca aprenderam a viver em sociedade. Só sabiam comer e dormir e, de tão gordos, não serviam mais nem como reprodutores. Daí, como não tinham pai nem mãe por perto para cuidar deles, foram perdendo todos os limites. Não se envergonhavam de cruzar o tempo todo com qualquer cachorrinha que passasse por eles, até mesmo com as mais feias, que não mereciam o esforço. Alguns até subiam em outros machos, um horror, uma aberração. Não respeitavam mais nem nossas leis sagradas e chegaram ao ponto de adorar o diabo…

Professora
Não, querido, nada disso é verdade. Primeiro, nossa espécie ainda obedece aos instintos animais mais primitivos, não só o da violência, mas inclusive os de ordem sexual, e isso independe de raça. Segundo, quando um macho sobe em outro macho, ele está só querendo demonstrar dominância, não tem nada a ver com cópula. Finalmente, onde é que sua mãe estava com a cabeça para inventar uma barbaridade religiosa assim?

Aluno 2
É que lá perto da minha casa tem um centro de encontro dos cães pretos. Precisa ver como eles latem, uivam, pulam feito loucos, correm de um lado para outro, mordem e se esfregam uns nos outros, uma bagunça só…

Professora
Não é porque eles têm um ritual diferente do nosso que eles são adoradores do diabo. Acho que alguns teólogos caninos de classe média confundem aquele som de latido de hiena com o de uma gargalhada para propor uma estupidez dessas. Não se deixe impressionar por crenças tão disparatadas e respeite mais os princípios de outras religiões.

Aluno 3
É, pode ser que a senhora tenha razão. Mas já ouvi dizer que esse pessoal escurinho é do mal, dá azar para quem chega perto. Além disso, quando chega a hora da gente casar, nossos tutores não deixam a gente cruzar com as cadelas que frequentam esses centros. Cá pra nós, a gente também prefere aquelas fêmeas jeitosinhas, limpinhas e bem comportadas. Pra casar, tem de ser bela, recatada e do lar, pode conferir.

Aluno 4
Tem mais, professora. Não tem nada a ver essa estória de que nós temos de estender a pata para ajudar nossos irmãos desfavorecidos. Isso já era. Nosso líder de matilha anterior é que deu moleza a eles, só para continuar dando as cartas. Esse pessoal é folgado, não trabalha, vive pedindo comida e um cantinho para dormir. Se a gente engole o mimimi deles e abre o coração, eles ficam mamando nas nossas tetas o resto da vida, só sabem fazer baderna…

Aluno 5
Outro dia eu estava na minha aula de adestramento e um desses caras entrou com tudo na sala e pulou nas pernas da minha tutora. Coitada, ela ficou desesperada, foi um vexame só o carinha se esfregando nela, com a língua para fora. Não é justo. A gente que é do bem tem que suportar horas sem fim para aprender a obedecer a tantos comandos. Tem que tomar banho toda semana, passar perfume, sair na rua só com coleira e guia, usar gravatinha ou lacinho na cabeça, tem de respeitar as fêmeas do bairro e ainda não pode peitar os machos mais atrevidos. E aí vem um sujeito sem berço desses, quebra todas as regras de disciplina e ninguém faz nada. Esse tipo de cachorro tinha que ser mandado para um reformatório já na segunda vez que aprontar alguma e ainda levar um pau daqueles no lombo pra aprender de vez. Que nosso Deus me perdoe, mas às vezes acho melhor não perder tempo tentando domesticar esses sem noção. O que devia ser feito era, isso sim, colocar chumbinho na comida deles. Aí resolvia o problema para sempre.

Professora
Chega de tanta asneira, por hoje é só. Na semana que vem vamos conversar sobre como os animais gregários, como nós, aprenderam a desenvolver tolerância para sobreviver às calamidades naturais que impliquem falta de comida, de água, de território ou de parceiros sexuais. Procurem no Google outros detalhes sobre a evolução da nossa espécie. Se sobrar um tempinho, leiam também com atenção as informações sobre o conceito do choque entre a cultura e as pulsões caninas.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Regras de aposentadoria

José Horta Manzano

Tudo está em movimento permanente, nada é estático. Até o tempo entra nessa dança. Quando a gente termina de pronunciar a palavra «presente», ela já virou passado. Mas hoje não é dia de filosofia. Comecei este escrito pensando nas transformações que a sociedade atravessa, num ritmo que parece cada vez mais acelerado.

O código suíço de leis trabalhistas é de 1964, um calhamaço velho de mais de meio século. Embora não cheguem nem perto da rigidez das normas brasileiras, guardam anacronismos tais como o princípio de proibição de trabalho dominical, a obrigatoriedade de pausa para almoço, a ausência da noção de horário corrido. Nestes tempos de trabalho à distância, teleconferência, empregados disfarçados de autônomos, a adaptação ou a eliminação sumária de normas obsoletas tornou-se imprescindível. O parlamento suíço já está debruçado sobre o assunto. O arcabouço legal tem de se ajustar às novas tendências.

Velhice 4As leis trabalhistas brasileiras foram consolidadas em 1943, faz 73 anos. Acudiam aos reclamos do Brasil de então, rural, pouco industrializado, com saneamento básico ainda pior que o atual, um país onde a esperança de vida era curta. Um monte de brasileiros continua sem acesso a cuidados básicos, assim mesmo, a evolução da expectativa de vida aumentou de pouco mais de 40 anos em 1940 para cerca de 75 anos atualmente.

Algumas leis caducaram, outras foram modificadas, a regulamentação ganhou pequena flexibilidade. Não se pode dizer que «liberou geral», mas está melhor que antes. Um ponto, no entanto, ficou parado no tempo, como se ainda estivéssemos nos tempos da ditadura getulista: as regras relativas à aposentadoria. Nestes três quartos de século, muito se falou, muito se prometeu, mas pouco se fez. De medo de se tornar antipático, nenhum governante ousou enfrentar o problema. Como resultado, temos, ainda hoje, gente que se aposenta antes de chegar aos cinquenta anos. Estatisticamente, essas pessoas deverão ser sustentadas pela sociedade durante seus últimos 25 anos. Não deve haver muitos países com regras similares.

velhice-6Está para ser votada uma atualização da regulamentação da aposentadoria. Não se sabe ainda exatamente como ficará. Reclamam alguns que vamos passar de oito a oitenta, que a mudança é brutal. É bem possível. De quem é a culpa? Dos governos que se sucederam desde que a CLT foi implantada, que não souberam (ou não quiseram) adaptar as leis à evolução da sociedade. Paramos no tempo. O salto para emparelhar com a realidade atual terá de ser vertiginoso.

As novas regras não serão perfeitas, já se sabe. Tampouco serão definitivas. Aos eleitores, caberá pressionar nossos futuros parlamentares para que não descuidem do assunto como fizeram os antecessores. Revisões e pequenas correções frequentes são menos dolorosas e mais eficazes. O importante é o problema ter sido identificado. Com bom senso e boa vontade, soluções virão antes da explosão do sistema.

Petrolõezinhos

Pavao 1José Horta Manzano

Este blogueiro é do tempo em que, na hora de pôr diminutivos no plural, as regras eram outras.

Primeiro, a gente punha o substantivo no plural. Só então, eliminava o s e acrescentava o sufixo ‒ geralmente zinho, às vezes zito ou zico. Ficava assim:

   pavão → pavões → pavõezinhos

   cão → cães → cãezinhos

   capitão → capitães → capitãezinhos

   caminhão → caminhões → caminhõezinhos

   coração → corações → coraçõezinhos

   arpão → arpões → arpõezinhos

   avião → aviões → aviõezinhos

   jaquetão → jaquetões → jaquetõezinhos

   petrolão → petrolões → petrolõezinhos

As coisas mudam e a língua evolui. A tendência atual é a inversão das regras. Primeiro, acrescenta-se o sufixo (zinho); em seguida, vai tudo junto para o plural. Está aí a chamada do sério Estadão, que não me deixa mentir.

Chamada do Estadão, 22 abr 2016

Chamada do Estadão, 22 abr 2016

Fica estranho, mas… que fazer? Ninguém segura o progresso.

Novidades que incomodam

José Horta Manzano

radio 1A sociedade evolui, é fato. Novidades surgem todos os dias. Certas invenções têm vida longa – o rádio é uma delas. Começou a ser explorado comercialmente faz um século e está aí até hoje. O estilo das emissões se modificou e se adaptou ao gosto de cada época, mas, no fundo, o princípio é sempre o mesmo.

Cinquenta anos atrás, quando a televisão começou a se popularizar, muitos acreditaram no fim do rádio. Não foi o que aconteceu. Os dois passaram a compartilhar horário: rádio de dia, no carro, no banheiro, no café da manhã; e tevê à noite, na hora da poltrona.

KodakOutras novidades foram agressivas a ponto de destronar ramos inteiros da indústria ou até costumes arraigados. A foto digital está entre elas. Quem tem mais de 35, 40 anos há de se lembrar do tempo em que a gente comprava o filme (caro!), tirava os retratos, enrolava a bobina, levava até a loja de revelação, encomendava as cópias e, se tudo desse certo, três dias depois podia ir buscar as fotos. O processo se manteve firme e forte durante um século – de 1890 a 1990.

De repente… difundiu-se a foto digital. Kodak, o conglomerado que dominava o setor, desmilinguiu, capotou e foi à falência. Toda a cadeia de processamento tradicional de fotografia, perturbada, acabou desaparecendo. Que fazer? É a vida. Ninguém segura o progresso.

Internet ainda está engatinhando. Assim mesmo, novidades têm aparecido a cada dia, benéficas para uns, catastróficas para outros. Os aplicativos de comparação de preços de hotel e de passagens aéreas estão acabando com as agências de viagem. Operações bancárias se fazem mais e mais via internet, resultando em fechamento de agências físicas. Correspondência comercial e privada, antes encaminhada pelos Correios, deslocou-se para a internet, causando rebuliço na estatal.

UberEstes últimos tempos, tem-se falado muito na aplicação Uber, que põe em contacto motoristas não profissionais com eventuais clientes. À vista da ameaça frontal, a corporação dos taxistas entrou em pânico. Cada país – para não dizer cada cidade – vem reagindo às carreiras, na base do susto e do improviso.

Na França, por exemplo, a aplicação foi proibida. Está simplesmente fora da lei, decisão já homologada pelo Conseil Constitutionnel, equiparável a nosso STF. Sabe o distinto leitor quanto custa uma licença para operar táxi no município de Paris? Sai por ‘módicos’ 200 mil euros – algo próximo de 900 mil reais! Um patrimônio. Compreende-se que os profissionais tenham se rebelado contra a concorrência desbalanceada. O sujeito paga essa fortuna para poder praticar a profissão; de repente, aparece um gaiato para surrupiar-lhe a clientela? Foi um deus nos acuda. A Justiça, impelida a dar a palavra final, proibiu os não profissionais.

E agora, como é que fica? Bola de cristal, não tenho. Assim mesmo, é previsível que, dentro em breve, essa novidade venha a ser digerida como já foram tantas outras.

Taxi 2Os mil dólares que eu tinha investido, nos anos 80, para comprar uma linha telefônica fixa viraram pó nos anos 90, quando a telefonia se expandiu e telefone deixou de ter valor comercial. Trinta anos atrás, mil dólares eram uma fortuna. A quem, como eu, perdeu dinheiro, sobrou a solução de ir reclamar com o bispo. Acho que ninguém foi.

Assim será com o Uber e com outras novidades que estorvam alguma categoria. As novidades vão acabar entrando no dia a dia de todos nós, não há como escapar. Um sábio ditado nordestino ensina que «é no tranco da carroça que as abóboras se ajeitam». E a carroça segue.

Rito de passagem

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 1° março 2014

O senso comum enxerga a evolução como um percurso contínuo, retilíneo e, em princípio, ascendente. A tecnologia, os indivíduos, as ideias, os conceitos progridem. Países e civilizações também. Mas as coisas nem sempre são simples. O mais das vezes, o caminho é lento, as pedras são muitas, há altos e baixos, retrocessos e avanços. Há momentos em que precisa recuar para melhor saltar.

Desenvolvimento não costuma fluir em reta ascendente ― está mais para escadaria que para rampa. Desde tempos imemoriais, os humanos intuíram que a evolução se dá por patamares. Estabeleceram ritos de passagem. Tradições religiosas e leis seculares definem o momento em que o indivíduo é considerado apto a galgar mais um degrau.

Na impossibilidade de aferir o grau de desenvolvimento de cada fiel, o legado judaico-cristão fixou uma idade a partir da qual é permitido passar a estágio superior. A lei retomou essa mesma noção de avanço por patamares. Estabeleceu-se que certas idades são mais significativas que outras. É o caso dos 7 anos, dos 14, dos 18, dos 21. A cada um desses degraus, corresponde o abandono de um estágio e o acesso a um grau mais elevado.

Mas toda mudança implica um momento de transição. Em alguns casos, a passagem ao novo estatuto é rápida, fluida, indolor, imperceptível. Já em outros, a metamorfose é lenta, hesitante, penosa. Isso tanto vale para indivíduos quanto para sociedades, países e civilizações.

Os gregos antigos valeram-se do radical «kríno» para referir-se a essas fases agudas em que é preciso retroceder para avançar melhor. Da raiz grega, herdamos um vocábulo já quase gasto de tanto uso: a crise.

Embora se atribua hoje um sentido negativo a esse termo, a crise, no sentido originário, é o momento que separa duas maneiras de ser ― uma antiga e uma nova. Quando uma pessoa ou uma instituição passa por uma crise, temos tendência a prestar mais atenção aos sintomas do que ao horizonte novo que se está descortinando. É postura compreensível, mas pouco perspicaz.

Psicólogos estão familiarizados com a crise da adolescência. Astrólogos conhecem os solavancos que o returno de Saturno causa a quem passa pela crise de seus 28-29 anos. No entanto, quando um país inteiro atravessa um momento de crise, temos mais dificuldade em analisá-la racionalmente. Conceda-se o desconto: crises de adolescência e eventos estelares são mais frequentes que transformações nacionais.

Acredito que nós, brasileiros, andamos exagerando no pessimismo. Anda muito difundida a percepção de que a ladeira que estamos descendo nos conduzirá a uma inevitável catástrofe. Não é um sentimento produtivo.

Depois da tempestade, vem a bonança

Depois da tempestade, vem a bonança

É verdade que os tempos atuais são estranhos. É verdade que a violência se tornou tão banal que já deixou de ser notícia ― só aparece no jornal se o falecido tiver sido pessoa importante, se não, nem nota de rodapé vai merecer. É verdade que a corrupção, que levava vidinha recatada e discreta desde 1500, passou a se exibir, despudorada, como se instituição nacional fosse.

É verdade que não é mais necessário ser doutor em Ciências Políticas para se dar conta de que a governança anda errática, que promessas não se cumprem, que se aplicam emplastros em perna de pau. É verdade que protestos de rua se avolumam, cada vez mais descontrolados. É verdade que barbáries que nenhum filme de horror ousaria imaginar ocorrem dentro de cadeias. É verdade que autoridades de alta patente se desafiam, com gestos vulgares, diante de câmeras de tevê ― e que tudo fica por isso mesmo.

É assustador? Sem dúvida. A percepção de caos tem-se acentuado? Tem. É sinal do fim dos tempos? Depende.

Se, por «fim dos tempos», nos referimos ao fim de uma era, a resposta é afirmativa. Mas temos de aguentar mais um pouco, que não chegamos ao fim da ladeira. Para erguer um futuro mais civilizado, há que esconjurar o passado e consumi-lo até a última gota. Nosso país está atravessando, aos trancos, uma crise. Fazemos mal em passar nosso tempo a nos lamuriar. Mais vale olhar para a frente e preparar um futuro menos nevoento.

Se já atingimos o paroxismo? Se já tocamos o fundo do poço? Ninguém sabe. Talvez ainda falte um bocado, pouco importa. Sobre os erros do passado, constrói-se a sabedoria do futuro. Vamos dar aos acontecimentos a relevância que eles têm. O importante não é a crise atual ― dela sairemos qualquer dia destes. Fundamental é entender que este rito de passagem nos está fazendo subir um degrau na escala da civilização. Ânimo, minha gente!