1964: Golpe ou revolução?

José Horta Manzano

Todo país medianamente desenvolvido tem um exame geral para testar os adolescentes e conferir-lhes o certificado de conclusão da escolaridade , documento que lhes vai abrir caminho para o ensino superior ou para a vida profissional.

O “Baccalauréat” francês, o “Bachillerato” espanhol, o “Esame di Stato” italiano e o “Abitur” alemão são exemplos. As particularidades de cada um deles podem variar, com exigências diferentes, mas todos se inserem no mesmo princípio: atestar que o jovem recebeu formação escolar satisfatória e está capacitado a seguir adiante.

Excluídos os regimes ditatoriais – dirigistas por natureza, todas as diretrizes emanando dos teóricos do poder –, não costuma haver interferência governamental na organização desse tipo de exame.

O bom senso indica que não faz sentido dar melhores notas a candidatos afinados com a filosofia do governo, deixando os demais na rabeira. Ter (ou não ter) afinidade com os ideólogos de turno não pode ser critério de atribuição de notas. Afinal, nenhum dos examinandos está postulando admissão numa seita.

No Brasil, o certificado é fornecido a quem tem sucesso no Enem. Às vésperas da abertura dos portões para as provas deste ano, o escândalo estourou. Nestes tempos de excesso de baixaria, quase ninguém se espantou quando o Bolsonaro declarou que o Enem deste ano tinha “a cara do governo”. A frase presidencial foi muito comentada, mas sem espanto. Todos já sabem que bom senso é mercadoria em falta crônica nas prateleiras do Planalto.

Ficou-se sabendo que o capitão tinha pedido que, em vez de se falar no Golpe de 1964, se mencionasse a Revolução de 1964. O mundo veio abaixo. Não por uma questão semântica, mas porque é de conhecimento público a paixão presidencial por ditaduras, militares, regimes autoritários, transformação de adversários em inimigos a aniquilar. Logo, se o capitão recomenda, boa coisa não pode ser.

Este blogueiro junta-se à maioria da população e arreganha os dentes quando lê qualquer pronunciamento do Bolsonaro. Sinto por ele o mesmo profundo desprezo que tantos outros conterrâneos sentem. Acredito que o distinto leitor, se me leu até aqui, não faça parte dos devotos do capitão. Vamos baixar a bola por um instante.

Repito mais uma vez: sinto asco pelo presidente. Agora, vamos em frente.

Toda mudança de regime, a não ser que seja resultado de plebiscito, cheira a golpe. Grande parte dos golpes de Estado que já ocorreram em nossa história (e houve muitos) receberam nomes poéticos, até charmosos. Mas nem por isso deixaram de ser golpes.

O Grito do Ipiranga ou Proclamação da Independência não passou de golpe contra a Coroa Portuguesa. Pior ainda, foi golpe de filho contra o próprio pai, o destino de todo um povo decidido numa rusga de família.

A Proclamação da República foi outro caso de golpe que sobrevive com nome poético e é festejado todos os anos. Foi golpe militar contra a monarquia, que era o regime legítimo que vigorava então.

Nossa história guarda também memória de golpes e contragolpes que passaram à história com o charmoso apelido de “revolução”.

A Revolução de 1930, por exemplo. Foi um golpe armado assestado por Getúlio Vargas contra um presidente em fim de mandato. Nesse ponto, guarda pontos de semelhança com a Proclamação da República: em ambos os casos, o chefe do Estado foi destituído e condenado ao exílio no exterior. Ainda que não se festeje mais a Revolução de 1930, que instituiu uma ditadura de 15 anos, o nome continua sendo “revolução”, não golpe.

Em 1932, espocou em São Paulo um contragolpe armado contra a ditadura Vargas. Houve morte e destruição nos quase 3 meses de combate, mas a tentativa fracassou. O ditador continuou firme e forte. Assim mesmo, o contragolpe é conhecido até hoje como Revolução Constitucionalista. Uma revolução que não chegou a revolucionar, em suma.

E chegamos a 1964. Das dezenas de sobressaltos que sacodem nossa história, é o mais recente. Assim que se consumou, naquela manhã de 1° de abril, foi chamado “revolução”, que era o nome que se dava a todas as quarteladas, pequenas ou grandes. Se a tentativa tivesse fracassado, teria passado à história como Revolução de 1964, sem contestação de ninguém. Só que…

Só que foi vitoriosa. Começou de mansinho, sem tiros nem sangue derramando, com apoio popular, mas, em poucos meses, apertou. Mandatos cassados, gente presa, desterrada, torturada, perseguida, censurada. Foi uma noite que durou duas décadas.

Enquanto durou o regime militar, não passaria pela cabeça de ninguém qualificar o movimento de ‘64 de “golpe”. Podia dar cadeia. O nome oficial era Revolução de 1964. No entanto, mesmo depois de enterrada a ditadura, o termo “revolução”, tão arraigado no falar das gentes, não foi imediatamente execrado nem substituído por “golpe”. Foi preciso esperar a chegada dos governos petistas.

Hoje em dia, é verdade, já não ocorreria a ninguém dizer “Revolução de 1964”. Convém referir-se àqueles acontecimentos como “Golpe de 1964”. Só alguns saudosistas dos tempos da ditadura ousam ainda se referir ao movimento de 1964 como “revolução”.

Este blogueiro entra numa categoria especial. Cheguei a morar alguns anos no Brasil durante o período militar. No entanto, dado que não vivo em território nacional há décadas, não experimentei o dia a dia dos anos petistas. Quando saí, todos ainda se referiam à “Revolução de ’64”, sem medo de levar pedrada. Será por isso que essa expressão não me choca.

Repito, caso não tenha ficado claro: não sou militarista, nem saudosista da ditadura, nem muito menos bolsonarista. Pelo-sinal, minha gente, pelo-sinal!

Ensaio geral?

arquivo pessoal deste blogueiro

José Horta Manzano

Este blogueiro, embora fosse bem jovem, já estava em idade de ouvir o zum-zum que correu a cidade na manhã de 1° de abril de 1964. Ouvir e escutar é uma coisa; entender é outra. Acho que, tirando os galardoados que tinham dado as ordens, ninguém entendia direito o que estava acontecendo. Nem mesmo – e principalmente – os que conduziam os brucutus.

Foi no fim da manhã que a voz correu e chegou até nós, povinho ignaro e sem importância. Falava-se em golpe de Estado. Como é que é? De novo? Mais um? Quem foi desta vez? (Sem ser corriqueiro, golpe de Estado não era algo que espantasse naqueles tempos.)

Numa época sem internet, sem redes sociais, com rádio transmitindo em cadeia única e com as raras tevês tocando música, as notícias se arrastavam a passo de tartaruga. Para nós, adolescentes, a novidade não fedia nem cheirava. A vida continuou, a escola pra quem estudava, o trabalho pra quem trabalhava.

Para os mais velhos, especialmente para os que se lembravam dos bombardeios sofridos pela cidade na Revolução de 1924, restou o temor de ver de novo gente sendo esmagada por bombas largadas por aeroplanos. Fora isso, como todos tinham na memória recente os movimentos de 1924, 1930, 1932, 1935, 1945 e 1955, esse não passava de um a mais.

Não foi senão algum tempo depois que nos ensinaram que aquilo não tinha sido um golpe de Estado, mas uma Revolução. Sei que, hoje em dia, pôr na mesma frase as expressões “31 de março” e “Revolução” causa frisson. Mas, na época, ninguém se abalou. Assim foi.

É claro que, “golpe” ou “revolução”, os acontecimentos da madrugada de 1° de abril de 1964 não surgiram do nada, resultado do mau humor de dois ou três generais que houvessem comido salada de pepino à meia-noite. O movimento estava fermentando fazia semanas, meses talvez. Naquela noite, amadureceu e estourou. Só que, como todo levante que se preze, germinou em silêncio, no escurinho dos quartéis, em conciliábulos para meia dúzia de iniciados. Para os demais, boca de siri.

Neste 2021, o capitão que imagina nos governar, sentindo que perde rapidamente o pouco apoio que tinha, determinou que manobras militares ostensivas se realizassem em Brasília, ao vivo e em cores, bem no dia em que o Congresso deve votar uma matéria ultrassensível. Todos interpretaram a exigência presidencial como expediente intimidatório sobre os parlamentares – e sobre a população. Uma espécie de “Quem manda no meu exército sou eu”.

Jair Bolsonaro ainda usava calça curta em 1964. Há de ser por isso que não se dá conta de uma verdade elementar: golpe de Estado não se anuncia de véspera, especialmente pondo brucutus no asfalto. Ele está assumindo um tremendo risco. Sem necessidade, está apostando no tudo ou nada antes da hora. Há dois caminhos possíveis. Só dois, não vejo mais nenhum.

Se os parlamentares se intimidarem com os canhões e votarem como deseja o capitão, ele vai conseguir alguns pontos. Não será o vencedor da guerra, mas terá ganhado uma batalha, o que lhe permitirá continuar no páreo.

Já se os parlamentares não ligarem a mínima para os canhões e derrubarem a medida tão desejada pelo capitão, este último terá perdido o pouco que lhe resta de moral. Todos vão ficar sabendo que o desprezo pelo presidente é tamanho, que nem brucutus no asfalto assustam mais ninguém.

Em matéria de golpe de Estado, não há ensaio nem ameaça – só a ação definitiva conta. E ela tem de ser única, imprevista, radical e certeira. Não há segunda chance.

O meu primeiro de abril

José Horta Manzano

Folhinha 1964-1Podem dizer o que quiserem do Grito do Ipiranga, da Guerra do Paraguai ou da Revolução de 1930. Desses acontecimentos antigos, só tive notícia pelos livros de História. A visão que tenho deles terá sido obrigatoriamente filtrada pelas lentes de outrem.

Os eventos de 1964 são outros quinhentos. Fazendo eco ao bordão do velho Repórter Esso, fui «testemunha ocular da História». Quem viveu os fatos não depende de relatos.

O golpe de 1889, que despachou a família imperial para o exílio e instaurou um regime republicano, inaugurou uma era de instabilidade política. Entre golpes, revoluções e tentativas, fica difícil nomear todos. O nome que se dava a golpes de Estado bem-sucedidos era revolução. Do verbo revolver, virar de ponta-cabeça.Folhinha 1964-2

De memória familiar, todos já tínhamos ouvido falar nas revoluções de 1924, de 1930, de 1932. A intentona de 1935 estava na memória de nossos pais, assim como os putsches de 1937, 1945, 1955. O último movimento insurrecional, a Revolta de Jacareacanga, tinha acontecido fazia apenas 8 anos. Revolução e golpe de Estado não costumavam assustar ninguém.

Naquele fim de março, embora não fosse ainda adulto, eu já era bem crescidinho. Frequentava o último ano do ensino médio e já me preparava para prestar vestibular no fim do ano.

Dia 1° de abril caiu numa quarta-feira. Era um dia fresquinho, de pouco sol, um antegosto do inverno. Lá pelo meio-dia, voltando da escola de ônibus, alguém veio espalhar a notícia:

Interligne vertical 14― Você soube da revolução?

― Revolução? Não. Como é que foi?

― Parece que o exército derrubou o presidente da República.

― Ah, é? Mas aqui está tudo tão calmo. Será que vai ter confusão?

― Acho que não.

Pronto, encerrado o assunto. Confusão, não houve. Cada um voltou pra casa e a vida continuou, como tinha sempre continuado após cada golpe e cada revolução. Logo de cara, a mudança de regime não teve particular incidência na vida da imensa maioria do povo do Brasil. Não me lembro de multidões que tenham saído às ruas na sequência da destituição do presidente ― nem para aplaudir, nem para amaldiçoar. As preocupações eram outras. O golpe de 1964 foi apenas mais um.

Assim foi o 1° de abril que eu vi.