Golpes e revoluções

José Horta Manzano

Todos os países ‒ uns mais, outros menos ‒ têm, na história, alguns sobressaltos. São tentativas ilegais de tomada do poder ou de implantação de mudança brusca de regime político. A história do Brasil está coalhada de episódios assim. Dos anos 1700 até hoje, já ocorreram muitas dezenas. Tais ‘episódios’ incluem golpes de Estado, revoltas, revoluções, insurreições, inconfidências, intentonas, levantes & outras manifestações do gênero. Alguns foram bem-sucedidos. Outros, menos.

Por razões que as particularidades de cada caso explicam, alguns desses acontecimentos entraram pela porta da frente, são oficialmente reconhecidos como glória da nação e podem ser louvados. Alguns deles tornaram-se até feriados oficiais. Eis alguns:

Golpe de 1822, um putsch palaciano, uma obscura traição familiar. As consequências foram pesadas: Portugal perdeu a colônia americana. É comemorado como feriado nacional em 7 de setembro.

arquivo pessoal deste blogueiro

Insurreição de 1789. Foi conspiração contra a ordem vigente, um golpe que não deu certo. Ficou na tentativa frustrada. Assim mesmo, é comemorado como feriado nacional em 21 de abril.

Golpe militar de 1889, traição cometida contra um imperador que estava longe de ser déspota ou tirânico. Em vez de ser condenada à vergonha nacional, a violência é comemorada a cada ano em 15 de novembro. Com festa e banda de música.

Levante militar de 1932. Inscreve-se numa época rica em sobressaltos. Foi uma revolta da força pública paulista contra o regime Vargas. O enfrentamento armado durou dois meses e meio. Apesar de fracassado, o movimento é louvado todos os anos, como feriado estadual em São Paulo, celebrado dia 9 de julho.

Já outros acontecimentos, expulsos pela porta de trás, caíram na sacola do esquecimento nacional. Não é de bom-tom celebrá-los. Eis alguns:

Revolta do Forte de Copacabana. Aconteceu em 1922 e durou apenas um dia. Foi uma das expressões do movimento conhecido como tenentista. Ocorreu num 5 de julho, mas não convém comemorar.

Revolta Paulista de 1924. Arrebentou na manhã de 5 de julho de 1924 e foi outra manifestação do tenentismo. Como a anterior, não deu certo. Durou menos de um mês. Não se deve comemorar.

arquivo pessoal deste blogueiro

Revolução de 1930. Foi o golpe militar que depôs o presidente Washington Luís e o substituiu por Getúlio Vargas. As datas mais significativas do movimento são o 3 de outubro e o 3 de novembro. Nenhuma delas é comemorada.

Intentona Comunista. Inspirado pela Internacional Comunista, foi golpe fracassado que visava a depor Getúlio Vargas. Aconteceu em 23 de novembro de 1935. Tampouco este deve ser comemorado.

O putsch

José Horta Manzano

Comemora-se, neste 15 nov° 2014, a dita «Proclamação da República», ocorrida faz 25 lustros. A meu ver, não há diferença entre o putsch militar de 1889 e o de 1964. Foram ambos golpes inconstitucionais e como tal devem ser considerados.

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A importância deste 15 nov° está um bocado ofuscada pela assombrosa prisão de gente graúda – falo dos elementos envolvidos no assalto à Petrobrás. Como dizia o outro, roubo de bilhões não pode ser obra de um ou dois: tem de ser feito coletivo, com dezenas de salafrários acumpliciados. Agora, a coisa está começando a fazer sentido.

Voltando à vaca fria
Nós, brasileiros, aprendemos na escola que a república se opõe à monarquia. Dizendo melhor: que o regime republicano é a alternativa ao regime monárquico. Não é assim tão simples.

Bandeira Brasil 1República é o regime em que uma população se governa a si mesma, por meio de representantes livremente eleitos. Na república, não existe a figura do chefe «por direito divino», por hereditariedade, nem por força das armas. O sistema republicano se opõe, na verdade, a regimes ditatoriais ou paraditatoriais, nos quais a escolha dos representantes é negada, desvirtuada, usurpada ou fraudada.

A história oficial do Brasil ensina que, «proclamada» a república em 1889, a família imperial foi despachada para o exterior e que, de lá pra cá, o País vive dias republicanos felizes e ininterruptos. Não é bem assim.

Nosso regime republicano já foi interrompido em numerosas ocasiões. Golpes puseram a legalidade entre parênteses por períodos mais ou menos longos. Alguns duraram dois ou três dias, enquanto outros se instalaram por décadas.

A ditadura de Vargas (1930-1934) e (1937-1945) marcou o período mais longo, desde o banimento de Dom Pedro II, durante o qual o Brasil foi dominado por um mesmo homem. Já a ditadura instalada a partir de 1964 foi mais longa, mas os militares permitiram rodízio no topo do Executivo.

Bandeira do Império do Brazil

Bandeira do Império do Brazil

Leis e decretos costumam ajuntar, à data de promulgação, uma menção indicando a contagem de tempo a partir de 1889. Os documentos garantem que estamos hoje entrando no 126° ano da República. Estaremos mesmo? Não concordo.

Sem ser demasiado rigorista, estamos em nossa Terceira República. A primeira começou com a saída do imperador e a entrada de Deodoro. A segunda, em 1945, com o apeamento de Getúlio. E a atual, a Terceira República, teve início no momento em que João Baptista Figueiredo deixou o Planalto – pela porta dos fundos, dizem – largando as rédeas do País nas mãos de José Sarney.

Melhor, mesmo, seria evitar a contagem de anos desde o golpe que aboliu nossa monarquia constitucional. É assunto demasiado complexo, daqueles que não reúnem consenso.

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O Neue Zürcher Zeitung , jornal suíço de referência – assim como são o francês Le Monde, o americano The New York Times e o brasileiro Estadão –, publicou extenso e interessante artigo sobre a mudança de regime pela qual o Brasil passou 125 anos atrás. Dá, aos bois, nomes verdadeiros. Trata a transição de golpe e de putsch. Como, de fato, foi. Quem se sentir à vontade em alemão pode dar uma espiada clicando aqui.

O Brasil e a Idade Média

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 3 de agosto de 2013

A História não se repete. Acontecimentos novos podem até evocar situações passadas, mas cada caso é um caso.

Em novembro de 1923, um punhado de indivíduos se reuniram numa cervejaria de Munique para encenar o que lhes parecia o ato final de um rocambolesco plano de tomada do Estado alemão pela força. O golpe foi um rotundo fracasso. Vistos como loucos mansos, os cabeças, presos e processados, foram condenados a penas leves. Quis o destino que, dez anos mais tarde, o chefe da malta, um certo Adolf Hitler, fosse içado ao posto máximo da nação. O resto da história todos conhecem.

Nos primeiros anos do século XX, um jovem italiano, violento e rebelde, fugiu de seu país e ganhou a Suíça. Más línguas afirmam que era para escapar do serviço militar. Em território helvético, o moço turbulento continuou fazendo das suas. Rebelde e arruaceiro, viveu de expedientes e chegou até a ser preso por vadiagem. Voltou à Itália em 1904. Quis o destino que, dezoito anos e muitas peripécias mais tarde, nosso impetuoso anarco-sociossindicalista ― Benito Mussolini era seu nome ― se visse alçado à função de chefe do governo. Sabem todos o que veio depois.

Caravela portuguesa

Caravela portuguesa

A tentativa de tomada do quartel cubano de Moncada, levada a cabo em 1953 por uma turma de jovens iluminados, todos no vigor de seus 30 anos, foi um desastre total. Prisão, tortura, degredo dos rebeldes remanescentes foi o resultado. Naquele momento, ninguém imaginou que o chefe do grupo, um certo Fidel Castro, havia de se tornar senhor absoluto do país 6 anos mais tarde. Os capítulos seguintes são conhecidos.

Faz pouco mais de um mês, o Brasil foi palco de um fenômeno desconcertante. Dirigentes boquiabertos assistiram a passeatas espontâneas formadas por gente comum. Não eram revolucionários nem putschistas. Não pretendiam derrubar o regime, muito menos tomar o poder. Não eram movidos por ideologia. Não carregavam armas. À exceção de grupelhos insignificantes de energúmenos imbecis, protestaram pacificamente.

Agora sossegaram. Mas que ninguém se engane: os acontecimentos de junho foram um divisor de águas. Daqui a um século, baixada a poeira, a História dará a 2013 a mesma importância que dá hoje a 1822 ou 1889. A sagacidade caseira do inefável Conselheiro Acácio ensina que as consequências, naturalmente, vêm sempre depois.

O brasileiro é um povo de sorte. No espaço de pouco mais de 10 anos, teve duas ocasiões de dar um salto à frente, na boa direção. A primeira foi quando Lula da Silva chegou ao posto máximo da República. Dono de apoio quase unânime do povo e de seus representantes, não lhe teria sido difícil impor as reformas indispensáveis para curar a esquizofrenia do País. Pareceu a todos que, finalmente, o Brasil deixaria de ter um pé na modernidade e outro ancorado na Idade Média.

Estava na hora de banir traços antediluvianos tais como o paternalismo, o nepotismo, o cartorialismo, o rigor reservado ao vulgo enquanto privilegiados são tratados com leniência. Queríamos todos ver desaparecer a desigualdade entre os do andar de cima e os do andar de baixo. Queríamos ver o fim de anacronismos que não combinam com o mundo civilizado.

Desgraçadamente, nenhuma reforma radical foi empreendida que acelerasse nosso processo civilizatório. Os donos do poder agiram como o cirurgião que anestesia o paciente mas esquece de operá-lo. Ninaram o povo com doces sonhos de grandeza, mas não se deram ao trabalho de eliminar os tumores que minam a sociedade. Entre mercurocromo e curativos, descuraram-se de servir ao povo. Usaram a arraia-miúda como massa de manobra e, insolentes, dela se serviram. Os protestos são a prova patente da ineficiência e do fracasso da atual maneira de governar.

Castelo medieval

Castelo medieval

Mas temos sorte. Diferentemente de Alemanha, Itália e Cuba, temos uma segunda chance. Nossa «revolução» não tem cabeças nem porta-bandeiras. Não prenuncia episódios violentos nem sangrentos. As demandas do povo brasileiro, a anos-luz da luta de classes, não são ideológicas, nem sectárias, nem elitistas, nem sindicais.

Medidas pontuais podem gerar alguma curta trégua, mas não resolverão o problema. O brasileiro, farto de que lhe zombem das fuças, quer ser tratado com dignidade. Plebiscitos e referendos não condizem com a situação atual. O povo já disse o que quer. Do governo, não se espera que faça mais perguntas, mas que dê as respostas que esperamos todos. E logo.

O governo que se dizia «popular», no fundo, não o era. Popular é o movimento que a todos surpreendeu, essa energia espontânea e sem lideranças. Estamos vivendo o começo do fim do Brasil medieval.

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