2018: um novo ciclo

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 30 dezembro 2017.

Fim de ano, não tem como escapar: é hora de balanço. Por imposição legal, cada empresa faz o seu. Por princípio e por hábito, cada indivíduo, ainda que não se dê conta, passa em revista os acontecimentos do ano findo e tenta projetar-se no futuro. Formulamos votos de que o pior tenha passado e de que os próximos 12 meses sejam radiantes. Se o ano tiver sido de privações, torcemos para que o próximo seja de abundância. Se o que passou tiver sido de excessos, fazemos votos ardentes para que o seguinte nos brinde com a bênção da sobriedade. Em resumo, que seja pra mais ou pra menos, temos o anseio e a esperança de que as coisas mudarão.

Os babilônios, desde que procuraram codificar o que viria a ser, bem mais tarde, a astronomia e a astrologia, constataram que a vida no planeta evolui balizada por ciclos. Por óbvio, os primeiros vaivéns observados foram a alternância do dia e da noite. O estudo do ritmo das estações viabilizou a agricultura. A relação entre as fases da Lua e o movimento das marés foi descoberta interessante. Períodos de penúria sempre alternaram com tempos de bonança. Guerra e paz, expansão e retração, glaciação e aquecimento, euforia e desânimo vêm se revezando na história da humanidade. Assim é ‒ e tudo indica que assim há de continuar.

E nosso país, nesse barulho todo, como é que fica? Dizem às vezes que perdemos o bonde da história. Não acredite. A frase é pomposa mas vazia. Que bonde? Que história? Cada povo apanha o veículo certo, na hora adequada. Se não for hora, pouco importa que passe toda a frota. O país só embarcará se (e quando) estiver preparado. Fruta amadurecida à força fica sem gosto e acaba apodrecendo por dentro. Só poremos o pé no estribo quando for chegada a hora. O Brasil não é a Suécia nem o Zimbábue. Nossos ciclos não são necessariamente os deles.

Nossa política nacional, por exemplo, vive um fim de ciclo. Só não enxerga quem não quer. Recapitulando, em poucas linhas, os últimos cem anos, temos a República velha, tempo de expansão. A grande liberdade levava a excessos. Levantes e revoluções se sucediam num ritmo caótico que acabava estorvando o progresso ordenado. Foi quando sobreveio a Revolução de 1930, instalando um regime autoritário, comedido, regrado, formatado, do tipo «ai de quem sair da linha!».

Em 1945, coincidindo com o fim da guerra mundial, o ditador foi despachado de volta à sua estância, e o regime se dilatou. Seguiu-se um ciclo de euforia desenvolvimentista em que, de novo, excessos passaram a fazer parte do dia a dia. O que tinha de acontecer aconteceu: o regime foi derrubado em 1964. De novo, a contração, o autoritarismo, o controle rigoroso, a contenção. De bom grado ou não, tivemos todos de andar na linha. Se desvios houve no andar de cima ‒ e deve ter havido, que ninguém é de ferro ‒, pouco se soube. A imagem que sobrou é de austeridade e repressão.

Pela lógica, a era seguinte havia de pender para o polo oposto. Assim foi. Construído sobre a Constituição de 1988, o novo período brindou os brasileiros com mimos com os quais eles não estavam mais habituados. De lá pra cá, multipartidarismo, eleições a granel, liberdade de expressão, euforia econômica, situação mundial favorável têm marcado o cenário. Nosso ciclo diastólico poderia até ter durado mais alguns anos. Mas a carne é fraca. Qui multum habet plus cupit ‒ quem tem muito sempre quer mais. A história sintetizará este período numa só palavra: corrupção. Corrupção de proporções bíblicas.

A rapina aos dinheiros públicos foi descarada, desenfreada, ilimitada, alucinada. O lado bom da evolução dos últimos anos ficou ensombrecido pela insolência dos que se serviram do dinheiro do contribuinte como se deles fosse. Esticada e esfiapada, a corda está a ponto de arrebentar. Partindo das premissas que vemos, as primícias do que vai ser já apontam no horizonte. Novo período de contração é inevitável.

Ainda é cedo pra discernir detalhes com acuidade, mas podemos apostar todas as fichas numa tendência oposta aos excessos atuais. O Brasil que sairá das urnas em 2018 ‒ posto que cheguemos até outubro sem turbulência maior ‒ será diferente do atual. É virtualmente impossível que um barra-suja seja alçado à presidência. Aliás, seria conveniente que, além de barra-limpa, o próximo inquilino do Planalto fosse também competente. Mas talvez isso já seja querer demais. Feliz ano-novo!

O meu primeiro de abril

José Horta Manzano

Folhinha 1964-1Podem dizer o que quiserem do Grito do Ipiranga, da Guerra do Paraguai ou da Revolução de 1930. Desses acontecimentos antigos, só tive notícia pelos livros de História. A visão que tenho deles terá sido obrigatoriamente filtrada pelas lentes de outrem.

Os eventos de 1964 são outros quinhentos. Fazendo eco ao bordão do velho Repórter Esso, fui «testemunha ocular da História». Quem viveu os fatos não depende de relatos.

O golpe de 1889, que despachou a família imperial para o exílio e instaurou um regime republicano, inaugurou uma era de instabilidade política. Entre golpes, revoluções e tentativas, fica difícil nomear todos. O nome que se dava a golpes de Estado bem-sucedidos era revolução. Do verbo revolver, virar de ponta-cabeça.Folhinha 1964-2

De memória familiar, todos já tínhamos ouvido falar nas revoluções de 1924, de 1930, de 1932. A intentona de 1935 estava na memória de nossos pais, assim como os putsches de 1937, 1945, 1955. O último movimento insurrecional, a Revolta de Jacareacanga, tinha acontecido fazia apenas 8 anos. Revolução e golpe de Estado não costumavam assustar ninguém.

Naquele fim de março, embora não fosse ainda adulto, eu já era bem crescidinho. Frequentava o último ano do ensino médio e já me preparava para prestar vestibular no fim do ano.

Dia 1° de abril caiu numa quarta-feira. Era um dia fresquinho, de pouco sol, um antegosto do inverno. Lá pelo meio-dia, voltando da escola de ônibus, alguém veio espalhar a notícia:

Interligne vertical 14― Você soube da revolução?

― Revolução? Não. Como é que foi?

― Parece que o exército derrubou o presidente da República.

― Ah, é? Mas aqui está tudo tão calmo. Será que vai ter confusão?

― Acho que não.

Pronto, encerrado o assunto. Confusão, não houve. Cada um voltou pra casa e a vida continuou, como tinha sempre continuado após cada golpe e cada revolução. Logo de cara, a mudança de regime não teve particular incidência na vida da imensa maioria do povo do Brasil. Não me lembro de multidões que tenham saído às ruas na sequência da destituição do presidente ― nem para aplaudir, nem para amaldiçoar. As preocupações eram outras. O golpe de 1964 foi apenas mais um.

Assim foi o 1° de abril que eu vi.