Qualquer semelhança…

José Horta Manzano

“As promessas mirabolantes tiveram êxito e deram nisso que aí está: na chefia do governo, um demagogo incompetente e atrabiliário, que só vive de aparências, pois, na realidade, nada de útil e de bom fez para o povo.

Ao contrário, tem se notabilizado pela maldade, pela prepotência e pela intolerância com que governa um povo pacífico e bom. Só é notado pelos atos de perseguição e de vaidosa exibição de um cabotismo doentio.

Sem os amigos, que traiu com a maior sem-cerimônia deste mundo, só lhe restam a inveja e a ambição que alimentam seu personalismo soberbo e delirante.”

Se você leu a citação acima, sabe quem é o alvo do discurso. Não precisa nem dizer o nome. Certo?

Errado, distinto leitor, errado. Não se trata do doutor que nos preside. Neste caso, qualquer semelhança será mera coincidência.

O texto foi escrito há 63 anos, numa época em que Bolsonaro ainda usava fralda. O autor, Martinho di Ciero, era deputado estadual paulista na legislatura 1955-1959. O artigo foi publicado no jornal O Dia (do Rio de Janeiro) e repicado na Folha da Manhã (de São Paulo).

O objeto da fúria do parlamentar era Jânio Quadros, então governador do estado. E pensar que, apesar de toda a incompetência já flagrante, o homem se tornaria presidente da República menos de quatro anos mais tarde. Iludir o bom povo sempre foi fácil.

Como se vê, doutor Bolsonaro não é o primeiro dirigente a carregar um «personalismo soberbo e delirante». Nem será o último, infelizmente.

Publicado também no site Chumbo Gordo.

Pijânio

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 25 julho 2020.

Há pontos de contacto entre o governo de doutor Bolsonaro e a passagem meteórica do folclórico Jânio Quadros pela Presidência. Ainda que não se enquadrasse no figurino de pessoa de fino trato, Jânio não descia à profunda vulgaridade do presidente atual. Esse não é, por certo, ponto de afinidade entre os dois. O populismo de Quadros se resumia a subir ao palanque de comícios, cabelo desgrenhado, mordiscando um sanduíche de mortadela, a reclamar da carestia. Diferentemente de Bolsonaro, Jânio era o que hoje se costuma chamar de ‘workaholic’, termo inestético que define um viciado em trabalho. Era o primeiro a chegar ao Planalto e o último a sair. Portanto, o apego ao batente tampouco era ponto comum entre os dois.

Jânio teve a sabedoria de escolher os titulares de seu enxuto ministério (13 pastas) entre profissionais de alto nível. Ainda não era moda trapacear com currículo, o que facilitava a seleção. Cattete Pinheiro, ministro da Saúde, era médico sanitarista e senhor de longa experiência; Brígido Tinoco, da Educação, era membro da Academia Fluminense de Letras e autor de uma dezena de livros; Afonso Arinos de Mello Franco, das Relações Exteriores, era imortal pela Academia Brasileira de Letras e autor de mais de 30 obras. Não, a escolha de ministros tampouco foi o ponto comum entre Jânio e Bolsonaro.

O verdadeiro ponto de encontro entre os dois presidentes é este: o pendor para cuidar do particular em detrimento do global. Incipiente em Jânio, essa tendência de cuidar do detalhe e perder de vista o principal foi potencializada por Bolsonaro. Tivesse ficado mais que sete curtos meses no cargo, talvez o presidente-relâmpago de 1961 tivesse elevado a tendência ao pedestal de política de Estado. Não deu tempo.

As estrepolias de Bolsonaro, por serem recentes, estão na camada de cima da memória de todos. Se bem que, de tão numerosas, algumas pérolas acabam rolando para o esquecimento. Logo no início do mandato, o doutor propôs-se a transformar um santuário ecológico da costa fluminense num polo turístico; mostrou-se disposto a vedar o financiamento de filmes que não lhe agradassem; atracou-se pessoalmente com jornalistas e órgãos da imprensa. Enfim, cuidou de muita miudeza, mandando o principal para fora do tabuleiro.

Última Hora (RJ), 27 março 1961

Voluntarioso mas sem visão de conjunto, Jânio preferia seguir a própria intuição, caminho arriscado. Um belo dia, resolveu ditar moda. Não ficou claro de onde tirou a ideia. (Com JQ, nem tudo era claro.) Baixou um decreto criando uma espécie de farda, uma vestimenta uniformizada para uso dos funcionários federais, do presidente da República ao mais humilde. Dependendo do olhar de cada um, o ‘slack’ – esse era o nome da indumentária – deixava impressão diferente: podia lembrar o traje civil obrigatório na China, o uniforme do indiano Nehru, a roupa do egípcio Nasser, a ‘guayabera’ centro-americana.

A ordem presidencial determinava o uso, mas não previa financiamento. Cada um que se virasse. Os mais abastados torceram o nariz para o modelo, que lhes parecia vulgar. Os mais pobres se perguntaram de onde haviam de tirar dinheiro para comprar o uniforme. Um ou outro funcionário graduado – querendo agradar ao chefe – adotou logo a novidade. Jornalistas eram mais severos. Advertiam: «Esqueça-se o presidente de uniformes e de outras pequenas coisas e volte suas vistas para os grandes problemas do Brasil!» ou ainda «Acorde e medite, presidente, para que sua prometida ‘revolução’ não se reduza ao uso do ‘slack’!».

A permanência de Jânio na Presidência foi curta demais para apurar se a moda do ‘pijânio’ pegou. É de duvidar que pegasse. Ninguém gosta de novidades impostas de cima pra baixo. Essa rejeição se repete hoje quando Bolsonaro, que doutor não é, transpõe os limites de suas funções e se põe a fazer propaganda de remédio. Essa, nem um excêntrico Jânio ousou. Portar o uniforme janista era apenas questão de bom ou mau gosto. Já o tratamento preconizado por Bolsonaro é desaconselhado por autoridades médicas mundiais por representar risco para a saúde. Para JQ, é tarde; mas para Bolsonaro vale o conselho: cuide, presidente, que sua passagem pelo Planalto deixe rastro mais nobre que o do charlatanismo.

Antes que seja tarde

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 28 julho 2018.

A história é antiguinha, mas vale a pena recordar. É possível até que os mais jovens nunca tenham ouvido. Corria o ano de 1987. Jânio Quadros, então prefeito de São Paulo, concedia entrevista coletiva. A certa altura, uma jovem repórter dirige-se, atabalhoada, ao prefeito e faz-lhe uma pergunta. Mas comete o imperdoável: trata o septuagenário por você. Com tarimba de raposa política, Jânio lança, fulminante: «Intimidade gera aborrecimentos e filhos. Com a senhora, não quero ter aborrecimentos e muito menos filhos. Portanto, exijo que me respeite.» Eram tempos em que toda palavra tinha peso e valor. Em política, não se arremessava verbo pela janela.

Menos susceptíveis que o velho Jânio, governantes, parlamentares e magistrados falam hoje pelos cotovelos. Sem se preocupar com o peso das próprias palavras, proferem barbaridades. Dão entrevistas ad nauseam. Quem fala muito, sabe-se, dá bom-dia a cavalo. No cenário político brasileiro, é o que se vê dia sim, outro também. Em setembro de 2010, no auge da campanha eleitoral, Lula da Silva e Dilma Rousseff martelavam o nós x eles. Estavam inquietos com as sondagens. A roubalheira comia solta na Petrobrás, embora o escândalo ainda não tivesse estourado. O mensalão, por seu lado, já estava na praça e lançava uma sombra sobre a continuidade do projeto de poder. Era preciso a todo custo garantir a perenidade do esquema lulopetista.

Em Campinas, na tarde de 18 de setembro, Lula da Silva subiu ao palanque da pupila, então candidata. Deitaram ambos falatório violento. Com palavras agressivas, criticaram a imprensa, a oposição, os jornalistas. Vociferaram, ameaçaram, ridicularizaram os opositores, desclassificaram os que não pensavam como eles. Pouco ‒ quase nada ‒ foi dito sobre propostas de governo. O propósito maior era demolir tudo e todos que estivessem do outro lado da imaginária linha do nós x eles. Lá pelas tantas, Lula da Silva ousou: «Nós não precisamos de formadores de opinião. Nós somos a opinião pública!». Um atrevimento! Era a confirmação explícita do totalitarismo embutido na ideologia lulopetista, ancorada na verdade revelada e única. Deu no que deu. A República quase foi pro espaço. Felizmente, socorridos pela absoluta incapacidade da presidente, conseguimos estancar a obstinada rapina e a bolivarização do Estado brasileiro.

Oito anos se passaram desde a irada agitação de Campinas. Comícios como os do tempo de Jânio Quadros, com palanque, faixa, banda de música e alto-falante, estão rareando. Plugado e antenado, o mundo de hoje não se anima a permanecer horas de pé na praça a ouvir falatório seja de quem for. É muito mais cômodo ficar no sofá da sala. A informação chega do mesmo jeito e ainda pode ser sopesada, comentada e compartilhada. Como os demais candidatos às presidenciais deste ano, Jair Bolsonaro aderiu à modernidade: manifesta-se por tuítes. Na busca por alianças, tem encontrado certa resistência. São poucas as legendas dispostas a apoiá-lo, o que periga reduzir-lhe o tempo de exposição na tevê. Agastado com a reticência partidária, doutor Bolsonaro atreveu-se outro dia num tuíte: «Nosso partido é o povo!» Frisson garantido.

Ao repreender a jornalista atrevida, Jânio Quadros mostrou-se autoritário. Mas o pito se restringia a preservar sua esfera privada contra irrupções, nada mais. Já a amostra de autoritarismo revelada tanto pela arenga de Lula da Silva quanto pelo tuíte de Bolsonaro dá arrepio. Os dois pronunciamentos são irmãos gêmeos. O vão que separa o «nós somos a opinião pública» do «nosso partido é o povo» é tão apertado que não deixa passar nem uma folha de papel de seda. Ambas as falas testemunham pura e perigosa prepotência, que transborda da esfera privada para derramar-se sobre o entorno. Desvario será confiar as chaves da República a personagem imbuído de visão absolutista.

Nesse particular, esquerda e direita se confundem. Guinada autoritária, venha ela de que bordo político vier, está fadada a terminar em desastre. O Brasil e o mundo já assistiram a esse filme. Não convém dizer que Lula da Silva e Jair Bolsonaro sejam farinha do mesmo saco. No entanto, ainda que sejam farinhas diferentes, desaguam no mesmo pão. Populismo autoritário nunca dá certo. E costuma acabar mal.

Quem tira o país da crise?

José Horta Manzano

«Hoje, 84% dos brasileiros não sabem dizer o nome de ninguém que conseguiria tirar o país da crise. E sabe quem lidera entre os 16% restantes? O papa Francisco.»

As palavras são de doutor Renato Meirelles, do instituto de pesquisas Data Popular, em entrevista concedida ao Estadão. A afirmação abre as portas a reflexão mais profunda.

Com que então, os brasileiros acreditam, no duro, que a salvação do país estaria nas mãos de um solitário indivíduo? Estamos no século 21, minha gente! Todo brasileiro tem no bolso um minicomputador. Noventa e sete porcento da população adulta sabe, bem ou mal, ler e escrever. Redes sociais se encarregam de difundir uma informação que, se nem sempre é de boa qualidade, sempre informação é. E, apesar de tudo isso, os brasileiros não se deram conta de que o futuro está em suas mãos? Continuam à espera do Messias? Quem diria…

É concebível que, em meados do século passado, quando o grande inimigo do país era a saúva, os brasileiros acalentassem o sonho do salvacionismo, a solução mágica trazida por um super-homem. Aliás, não foi por outro motivo que um certo Jânio Quadros foi eleito ao cargo máximo.

É afligente constatar que ainda persiste a esperança de que um homem providencial venha resolver todos os problemas. Vê-se que de pouco serviu o desastre causado pela passagem de um Jânio, de um Collor, de um Lula ‒ todos considerados tiro e queda.

No discurso de posse pronunciado em 20 de janeiro de 1961, o presidente americano John F. Kennedy incluiu uma frase que ressoa até hoje. Dizem que a sentença foi plagiada. Pouco importa. O fato é que todos os brasileiros deveriam repeti-la diariamente até que se impregnassem do significado. Era assim: «Ask not what your country can do for you. Ask what you can do for your country» ‒ Não pergunte o que é que o país pode fazer por você. Pergunte o que é que você pode fazer pelo país.

E pensar que é tão simples. Na verdade, o presidente da República, sozinho, não vai muito longe. Precisa imperativamente do apoio do Congresso. É aí que entra o papel de cada eleitor. Com a informação que circula livre hoje em dia, não é difícil saber quem é e a que vem cada candidato. Basta votar em candidato honesto, não enrolado com a justiça, que demonstre competência e que apresente um programa aceitável. Um congresso sólido é a melhor garantia de que o presidente andará na linha.

No dia em que todos os eleitores entenderem isso, não vamos mais precisar do papa Francisco para dar cabo dos problemas nacionais. A lavoura estará salva.

Pé torto

José Horta Manzano

Tem gente que é pé quente. De outros, a gente diz pé frio. Já PÉ TORTO é mais raro mas existe. Gente assim nem sempre tem final feliz.

Todos se lembram do instantâneo que colheu doutor Jânio Quadros, então presidente da República, em posição pra lá de incômoda, com os pés em posição bizarra, como se cada um quisesse seguir em direção oposta ao outro. Deu no que deu: pouco tempo depois, o homem pendurou os sapatos, desistiu da presidência e exilou-se em Londres.

Mais recentemente, assistimos a cena de teor semelhante. Foi quando doutora Dilma foi surpreendida ao examinar a posição dos pés desencontrados da chanceler alemã, dando a impressão da professora que confere se a aluna aprendeu a lição. A chanceler (ainda) não caiu, mas a professora já cumpriu seu destino. Foi apeada do salto alto. Caiu atirando mas caiu. Já no chão, continua disparando. Mas o destino é cruel. Os estampidos que ela provoca se atenuaram a ponto de hoje se confundirem com estalo de bombinha de São João.

Estes dias, foi a vez de doutor Temer. Um fotógrafo arguto colheu o figurão em posição assaz incômoda, que faz lembrar seus ilustres predecessores na linhagem dos pés tortos. A orientação dos pés exibida pelo presidente não é de bom augúrio.

Quando a mulata era a tal

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 25 fev° 2017

Cada sociedade tem os próprios tabus. Gestos ou palavras que, aqui e agora, passam batidos podem ser repreensíveis ou inaceitáveis em outros lugares. Com o passar do tempo, permissões e proibições evoluem. Tempos houve em que desquitada que ousasse juntar-se com outro homem não entrava em casa de respeito. Não que lhe fechassem as portas, mas se sentia malvista, se autocensurava. Até o qualificativo de «amigada» era depreciativo. O recato daquela época nos parece hoje excessivo, quase hipócrita. Recato… Taí palavra que anda em falta nas prateleiras do país.

Lembro-me de uma polêmica que espocou em 1961. Numa época em que o primeiro Aurélio ainda não havia sido editado, a estudantada se socorria do Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, da equipe do filólogo Silveira Bueno. Em maio, alevantou-se uma grita exigindo que o dicionário fosse expurgado de termos considerados ofensivos. O governo levou o assunto a sério e incumbiu o ministro da Educação de ouvir os descontentes. Segundo eles, várias palavras tinham de ser sumariamente banidas. Entre elas: favela, negro, panamá, jesuíta e judas. Depois de debruçar-se sobre o caso, a comissão moderadora chegou à (óbvia) conclusão de que o dicionário não faz a língua, limitando-se a registrar-lhe os vocábulos. O assunto se desmilinguiu e acabou morrendo na praia. Poucos meses depois, a renúncia de Jânio enterraria de vez a questão.

Samba 3Hoje esse relato faz sorrir. Todos sabem que a língua é feita pelos que a utilizam. Proscritas ou não, palavras continuarão a existir e a ser utilizadas. Há montes de termos novos, de uso corrente, que ainda não aparecem em dicionário nenhum. O contrário também é verdadeiro: vocabulários estão repletos de palavras que, fora de circulação há tempos, não são mais compreendidas. Afinal, sem o judas, como ficaria a malhação do Sábado de Aleluia? Cada bobagem…

O carnaval está aí. Semanas atrás, alguns blocos, especialmente do Rio de Janeiro, anunciaram a decisão de banir certas músicas. São marchinhas que, embora tradicionais e conhecidas por todos os foliões, sofrem de um pecado original impossível de ser remido: mencionam a palavra «mulata». Suponho que alguém de poucas letras, daqueles que ouvem cantar o galo sem saber onde está o poleiro, tenha sido informado de que, etimologicamente, mulato deriva de mula.

Em rigor, faz meio milênio que isso é verdade, desde a criação do termo. Agora pergunto: o distinto e culto leitor já se tinha dado conta desse parentesco etimológico? Não? Nem eu. Erradicar do repertório músicas pela simples razão de conterem uma palavra que se decidiu banir é atitude excessiva. Acaba surtindo efeito contrário: ao invés de encoberto, o «pecado» se torna ainda mais visível. Sai da Praça Onze mas ganha a praça pública.

samba-4Num rápido sobrevoo das letras de um século de cancioneiro popular, encontrei uma centena de músicas que falam do mulato ou da mulata. Todas elas ‒ sem exceção ‒ exaltam o personagem. Ataúlfo Alves brindou à «mulata assanhada, que passa com graça, fazendo pirraça». Ary Barroso e Luís Peixoto babaram diante da mulata que «quando samba, é luxo só». Vicente Paiva gabou «os olhos verdes da mulata». Verdadeiro hino nacional bis, a própria Aquarela do Brasil, que figura entre as músicas mais executadas no mundo apesar de já ter atravessado oito décadas, sintetiza o Brasil num «mulato inzoneiro».

Tudo o que é excessivo é pernicioso. Levar o conceito do politicamente correto a tais extremos acaba com a alegria do carnaval. Estamos a dois passos de criar o Ministério dos Bons Costumes, encarregado de elaborar o índex das palavras proscritas. Francamente…

Talvez você não saiba que enfezado é atributo de quem está constipado. Dizer que «o chefe está enfezado hoje» equivale a insinuar que ele está cheio de fezes. Poucos já se deram conta de que cueca, culatra e recuar são etimologicamente derivados do nome que se dá à extremidade do tubo intestinal. Poucos têm noção de que a vagem (legume) e a bainha (da calça) são descendentes diretas da palavra latina que indica a genitália feminina. No fundo, é melhor não espalhar a informação. Alguém periga exigir banimento desses termos, nunca se sabe. No mundo, há duas coisas infinitas: o universo e a estupidez humana. Se bem que, quanto ao universo, tenho minhas dúvidas.

Pacta sunt servanda

José Horta Manzano

A notícia mais recente sobre a atual dança ministerial destoa das demais. Acostumados que estamos a ver formar-se fila de pretendentes a qualquer alto cargo no governo, ficamos surpresos quando um posto é rejeitado por um figurão. E olhe que não estamos falando de um ministério menor, daqueles pra inglês ver. Doutor Carlos Velloso declina do cargo de ministro da Justiça, um dos postos mais elevados e mais cobiçados.

O jurista mineiro já foi ministro do STF. Indicado por Collor de Mello, ficou lá durante 16 anos, até ser atingido pelo limite de idade. Só deixou o cargo porque a legislação vigente à época impunha afastamento compulsório dos ministros que houvessem completado 70 anos. A suposição era de que todo indivíduo perde o discernimento a partir dessa idade, deixando portanto de ser apto a integrar o colegiado dos juízes maiores do país. Dura lex sed lex.

Ministério da Justiça, Brasília

Ministério da Justiça, Brasília

Raciocinando no absoluto, sem levar em conta detalhes, o doutor tem razão em não aceitar o convite. O bom senso ensina que aqueles que chegaram ao topo não devem se agarrar feito sanguessuga, como é comum em nosso país. Tampouco devem, depois de descer do pódio, tentar subir de novo. Em matéria de política e de altos cargos, só há uma chance. Quem acredita na volta se estrepa.

A história está repleta de exemplos. Um Napoleão derrotado decidiu reconquistar o lugar perdido. Deu-se mal: a segunda fase só durou 100 dias e levou o general francês ao degredo perpétuo num ilhéu perdido no meio do Atlântico. Getúlio Vargas, Jânio Quadros, Nicolas Sarkozy são exemplo de gente que, passada a hora de glória, tentou voltar. A segunda tentativa deu chabu em todos esses casos.

Doutor Velloso foi sucessivamente ministro do Superior Tribunal de Justiça e, sem descontinuação, ministro do Supremo Tribunal Federal. Adicionados, os dois mandatos duraram perto de 30 anos. Passar todo esse tempo no andar de cima não é dado a qualquer um. Hoje com 81 anos, o magistrado tem o direito de sossegar. De fato, a sabedoria falou mais alto. Delicadamente, rejeitou a oferta de Michel Temer. A meu ver, fez bem. Sua biografia permanecerá intacta.

recusa-2No entanto, o comunicado que o doutor deu à imprensa à guisa de justificativa me deixou com a pulga atrás da orelha. Adivinha-se que o tarimbado jurista evitou entrar em colisão explícita com quem quer que seja. Foi sutil. Falou em «motivos éticos». Citou a máxima latina «pacta sunt servanda» ‒ trato é pra ser cumprido, frisando estar aí um pilar da segurança jurídica.

Hmmm… por que terá dito isso? Longe de mim emprestar ao comunicado do venerando ex-futuro-ministro intenções que ele não teve. No entanto, mentes venenosas poderiam enxergar indignação mal disfarçada. De fato, pode-se cogitar que os alegados «motivos éticos» tenham a ver com «flexibilização» na maneira de conduzir operações anticorrupção. Afinal, a promotoria ‒ inclusive a de Curitiba ‒ responde ao ministério da Justiça. Pelo menos em tese.

Línguas ainda mais ferinas poderiam desconfiar da citação latina. Trato é pra ser cumprido. Por que, diabos, doutor Velloso teria dito isso? Haveria no ar o risco de que ele devesse ser apenas ministro temporário ou, pior ainda, que estivesse sendo alçado ao posto com determinada missão?

Não saberemos nunca.

Os 100 anos de Jânio

Sebastião Nery (*)

Chegamos cedo, dez da manhã. José Aparecido de Oliveira, o poeta Gerardo Mello Mourão e eu. Era um belo domingo de sol em São Paulo, na rua Santo Amaro n° 5. Jânio Quadros veio abrir o portão, feliz, sorridente. Cortava a grama com um carrinho anavalhado.

Era 1970, a ditadura militar corria feroz. Todo mês, quando em São Paulo, Aparecido arrebanhava alguns amigos para almoçarmos com Jânio Quadros. Foram chegando o padre Godinho, Roberto Cardoso Alves, Luís Carlos Santos, Oscar Pedroso Horta. Tomávamos uísque ou vinho. Aparecido pediu um vinho branco. Jânio escandia as sílabas:

‒ Zé, o Nery, que foi quase bispo, sabe que vinho é tinto. Vinho branco é uma bebida dos homens. A bebida de Deus é o vinho tinto. Se vinho branco fosse vinho, a missa seria com vinho branco. Já viram missa com vinho branco? Os grandes porres da Bíblia, de Noé, de Davi foram todos com vinho tinto, sim. Quando Jesus transformou água em vinho nas Bodas de Caná, o vinho saiu tinto. E era tinto o vinho da Última Ceia.

vinho-4Fomos para o almoço ‒ a mesa farta e colorida. Já estávamos no cafezinho, antes do conhaque e do charuto, quando dona Eloá chega perto de Jânio e diz-lhe alguma coisa ao ouvido. Jânio encrespa as mãos, revolve os olhos, passa os dedos retorcidos pelos cabelos e geme fundo:

– Não pode ser! Meu Deus, não pode ser!

As lágrimas desabam pelo rosto, ele se levanta:

– Muriçoca! Muriçoca morreu!

Perplexos, levantamo-nos todos. No fim do jardim, deitada na grama, morta, uma cachorrinha branca, meio amarelada. Jânio senta-se no chão, pega-a nos braços, aperta contra o peito, beija-a em soluços, chorando convulsivamente. Dona Eloá tenta levantá-lo:

– Jânio, temos outros cães no jardim. Ela se foi, os outros ficaram.

– Cães, Eloá! Cães! Cães há muitos, eu o sei. Mas a Muriçoca era única. E não porque a rainha Elizabeth ma deu. Quando me cassaram, quando o algoz fardado caiu sobre mim, todos me abandonaram, Eloá, até tu. Só a Muriçoca me acompanhou na solidão e na dor.

Dona Eloá olhou para nós, desolada:

– Não diga isso, Jânio. Sabe que não é verdade. Aqui estão os amigos.

– Amigos, Eloá, amigos… Mas a Muriçoca era um pedaço de mim.

janio-6Ele ali no chão, soluçando, a cachorrinha no colo, e nós abestalhados. Revirava os olhos e arquejava. E nos braços, o pescoço caído, como uma boneca de Chaplin, Muriçoca.

– Sepultá-la-ei eu mesmo, com minhas mãos e minhas lágrimas, no vértice do jardim. Ficará eterna na saudade, sob uma lápide de bronze.

E saiu andando a passos largos, os olhos tortos, cabelos desgrenhados, para o centro do jardim, beijando e apertando a cachorrinha contra o peito. E nós atrás. Uma tensa procissão medieval, como em um filme de Buñuel na Catalunha. No meio do gramado, Jânio parou, olhou para os quatro cantos, deu um passo, bateu o pé no chão:

– Será aqui, no vértice. Ela sempre comigo, até o último dia.

Jânio olhava para o céu, procurando a alma de Muriçoca na tarde fria que caía. Voltei lá outros dias. No vértice do jardim, uma lápide de bronze cobria o tumulo de Muriçoca. Jânio enganou São Paulo e o Brasil. Não enganou Muriçoca.

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(*) Sebastião Nery, jornalista, é editor do site SebastiãoNery.com.

Murió el comandante

José Horta Manzano

Os que conheceram um mundo sem Fidel Castro já se aposentaram. Nove entre dez cubanos não conheceram a ilha sem o líder máximo. Os poucos que chegaram a passar a infância antes da revolução já não se lembram mais de como era. Afinal, são quase sessenta anos ‒ é muita coisa.

A ilha de Cuba antes da tomada do poder pelos revolucionários castristas ‒ que se diga sem firulas ‒ era, com o perdão da palavra, um bordel. Os cassinos, a luxúria, a tropicalidade e a permissividade faziam de Havana um destino recreativo barato e accessível. A ultracorrupta ditadura de Fulgencio Batista atiçava as brasas e exaltava a libido. A proximidade geográfica dos EUA cuidava de fornecer os turistas. Alguns vinham em família, mas a maioria dos visitantes eram homens em busca de aventura fugaz regada a rum e embalada por rumbas e mambos.

Fidel Castro e Juscelino Kubitschek

Fidel Castro e Juscelino Kubitschek, 1959

Todo exagero acaba mal. O desequilíbrio alimentado pela ditadura decadente de Batista foi perfeito estopim para a aventura libertária de um grupo de jovens. Valeram-se da «guerrilha», termo criado pela língua espanhola justamente para designar a «guerrinha», esse estado permanente de tensão bem diferente da guerra tradicional, feita de aviões e de tanques. Na guerrilha, todas as pequenas ações acontecem de surpresa. Vive-se em alerta constante sem saber de onde virá o ataque.

Responsável por um regime apodrecido, sanguinário e sem sustentação popular, Fulgencio Batista caiu. Assim que o bando de Fidel Castro se aproximou de Havana, o ditador fugiu para o exterior, peregrinou por um tempo e acabou encontrando exílio na Espanha, onde ficou até o fim de seus dias.

No começo, até que não foi mal. Em busca de apoio internacional, Fidel percorreu mundo. Até no Brasil esteve em 1959, quando se encontrou com o presidente Juscelino Kubitschek. Dois anos mais tarde, chegou a receber visita de nosso folclórico presidente Jânio Quadros.

Fidel Castro e Jânio Quadros

Fidel Castro e Jânio Quadros, 1961

Quanto à ideologia, o bando revolucionário cubano hesitava. Embora, mais tarde, tenham jurado ter sido comunistas desde a infância, a coisa é mais complicada. Despachado o velho ditador, chegou a hora de procurar sustento e reconhecimento internacional. Os Estados Unidos, dados os laços históricos e a proximidade geográfica, foram procurados em primeiro lugar.

O governo americano cometeu então um erro estratégico. Não deu grande importância aos jovens barbudos. Naqueles tempos de Guerra Fria foi atitude fatal. Não restou aos revolucionários senão buscar o apoio da União Soviética, que aceitou agradecida. Daí pra frente, deu no que deu. Cuba tornou-se bastião do comunismo fincado a 150km das costas americanas. Cara feia, embargo e ostracismo não resolveram o problema: o mal estava feito. O regime antigo foi substituído por nova ditadura, tão sanguinária quanto a anterior.

Dizem que o bem é mais poderoso que o mal. Pode ser. Mas tem uma coisa. Ainda que você tenha andado na linha a vida inteira ‒ respeitoso, bondoso, correto, direito ‒, basta dar um mau passo, unzinho só, e será grande o risco de pôr tudo a perder. Leva-se muito tempo para construir uma reputação, mas, para destruí-la, basta muito pouco.

Fidel Castro e o Lula

Fidel Castro e o Lula

Fidel Castro terá tido seus méritos, principalmente no início da gestão. Aliviou a miséria dos concidadãos, melhorou o acesso à alfabetização e à saúde. Por seu lado, as liberdades individuais sofreram um baque. Julgamentos sumários e execuções secretas, cidadãos vigiados e fichados, desconfiança disseminada, prisão de dissidentes, proibição de viagens internacionais, pobreza generalizada, escassez de alimentos, partido único, ausência de debate, bloqueio de acesso à informação ‒ os cubanos conheceram tudo o que um Estado policial, onipresente e onipotente pode oferecer.

Não há mal que sempre dure nem bem que nunca se acabe. Hoje foi-se o comandante. Antes dele, tantíssimas outras personagens controversas já conheceram glória e decadência. Hitler, Mussolini, Stalin, Berlusconi e até nosso genial guia, o Lula, seguiram a mesma trilha. Subiram, foram incensados, e, inexoravelmente, acabaram caindo. Uns desabaram fragorosamente, outros foram resvalando aos poucos, mas ninguém escapou.

Assim é a vida. A História, cruel, costuma esquecer os momentos de glória. O que acaba ficando para sempre é a decadência, que é mais «sexy» e vende mais. Tremei, ó grandes do mundo!

A falta que ele faz

Sebastião Nery (*)

O telefone tocou na casa de praia de Madame Schneider, uma francesa amiga de Juscelino Kubitschek, a 20 quilômetros de Saint Tropez, no sul da França, onde ele, dona Sara, as filhas Márcia e Maristela e o ex-secretário amigo dileto Olavo Drummond passavam uns dias descansando, depois de deixar a presidência da República em 31 de janeiro de 1961.

Era o empresário, poeta e redator de alguns dos históricos discursos de Juscelino, Augusto Frederico Schmidt, falando do Rio:

– Juscelino, estou recebendo um clipping das revistas dos EUA. A revista “Time” está dizendo que você é “a sétima fortuna do mundo”.

presidente-11-juscelino-kubitschekConversaram, Schmidt desligou e Juscelino ficou deprimido, amargurado. Olavo o chamou para darem uma volta:

– Presidente, hoje de manhã, quando fui comprar os jornais, quem estava na banca era a Brigitte Bardot. Podemos encontrá-la de novo.

Juscelino riu. Saíram. A primeira pessoa que viram foi a Brigitte Bardot, no auge do sucesso, com aquela carinha de paraíso terrestre depois da maçã, cercada de fãs, tirando fotografias. Juscelino se afastou:

– Olavo, se eu sair com essa mulher em um fundo de fotografia, a imprensa brasileira vai dizer que estou namorando com ela.

Mas não esqueceu a história da “sétima fortuna do mundo”.

Quatro anos depois, a embaixada da Inglaterra no Brasil mandaria a Londres um documento para o “Foreign Office”, sob o cód.371/179250:

«O ex-presidente Kubitschek retornou ao Brasil. Não há dúvida de que ele é popular, com seu charme e suas ideias expansivas e grandiosas. Mas ele era um verdadeiro símbolo da corrupção, saiu da pobreza para a posição de sétimo homem mais rico do mundo, segundo a revista “Time”.»

Essa história de “sétimo homem mais rico do mundo” era então exaustivamente repetida pelo ex-deputado da UDN baiana Aliomar Baleeiro e outros udenistas, civis e militares, depois do “Golpe de 64”.

presidente-12-janio-quadrosEra uma velha indignidade. Na véspera de passar o governo a Jânio Quadros em 31 de janeiro de 1961, Juscelino reuniu um grupo de ministros, auxiliares e amigos no Palácio da Alvorada. Chega José Maria Alkmin:

– Juscelino, estou seguramente informado de que o Jânio vai fazer um discurso agressivo contra você, na sua frente, na solenidade de transmissão do cargo, no Palácio do Planalto.

– Vou passar o cargo ao presidente que o povo elegeu. Só o Dutra passou. Quero dar uma demonstração ao mundo de nossa democracia.

– E se ele fizer um discurso agressivo?

– Dou-lhe uma bofetada na cara e o derrubo no meio do salão. Vai ser o maior escândalo da história da República.

Não houve discurso nem bofetada.

(*) Sebastião Nery, jornalista, é editor do site SebastiãoNery.com.

O dilmês em seu apogeu

Ruy Castro (*)

Presidente 9 Getulio VargasGetulio Vargas começava seus discursos com um longo, lento e sofrido “Trabalhadooooores do Brasil…” – ele pronunciava zil, não zíu – e não precisava dizer mais nada. Jânio Quadros falava português do século 17 com sotaque de PRK-30(*). Renunciou à presidência da República e se explicou: “Fi-lo porque qui-lo.”

E Lula habituou-se a mentir, desmentir-se, dizer e desdizer-se com tal ênfase que ainda o levam a sério. Mas, à sua maneira, todos davam o recado. Já Dilma Rousseff, diante do menor improviso, acerta caneladas em palavras, períodos e significados.

No fim de semana, Dilma declarou que esperava “integral confiança” de seu vice Michel Temer. O que significava? Que Temer tinha “integral confiança” nela. Na verdade, Dilma, com seu estilo patafísico de falar e governar, queria dizer que ela, sim, é que tinha “integral confiança” nele. Michel Temer entendeu e, para não perder tempo, respondeu que, ao contrário, Dilma “nunca confiou” nele. Pronto, deu-se a crise.

Presidente 10 Janio QuadrosAposto que, nos anos 60, quando deveria estar lendo “A Moreninha”, “A Mão e a Luva” ou “O Guarani”, clássicos românticos da literatura e então modelos de como falar e escrever, a menina Dilma estava mergulhada nos manuais de Althusser, Plekhanov e Lukàcs, ásperos vade-mécuns do marxismo, traduzidos do espanhol.

Isso pode ter forjado o seu jeitão de caminhar, abrindo caminho com os ombros, e principalmente sua crespidão mental.

Muita gente pensa bem, mas se exprime mal. Dilma congrega o pior dos dois mundos. O histórico disso está no recente “Dilmês – O Idioma da Mulher Sapiens”, de Celso Arnaldo Araujo, um apanhado crítico e altamente documentado das batatadas de Dilma, de seus tempos de superministra de Lula até agora.

Hoje, este é um livro sério e preocupante. No futuro, será um clássico do humor brasileiro.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista.

(*) PRK-30 era programa humorístico transmitido pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro nos idos de 1940-1950. Lauro Borges e Castro Barbosa comandavam.
(Nota deste blogueiro)

Pedaladas

José Horta Manzano

Este blogueiro é do tempo em que o termo pedalada lembrava passeio de bicicleta. Pra girar as rodas, a gente dava pedaladas na Monark ou na Caloi. Hoje em dia, pedalada não se dá, se faz. E o significado mudou.

Lula boné 1Nestes tempos estranhos, o sentido da palavra tem evoluído. Não evoca mais as rodas da magrelinha. A imagem que vem é de barbeiragens financeiras cometidas conscientemente por dona Dilma. Parece que é crime. Se for, mais dia menos dia a presidente terá de responder por ele. Quem viver, verá.

Dirigindo-se a plateia amestrada, um Lula que, apesar de viver vida abastada, continua se esforçando para parecer igual aos excluídos, enfiou mais uma vez no cocuruto o boné do MST. Expedientes malandros como esse eram conhecidos já nos tempos do velho Jânio Quadros, mas ainda tem gente que se deixa embalar.

Em 2003, ao fazer o gesto pela primeira vez, nosso guia desencadeou um bafafá. Cidadãos mais conscientes consideraram a atitude imprópria para presidente de país sério. De lá pra cá, o figurão perpetrou impropriedades bem maiores que aquela. Tantas fez que hoje os brasileiros, blasés, não prestam mais atenção.

Estes últimos meses, com o desenrolar veloz e imprevisível dos acontecimentos, o Lula anda mais desnorteado que cego em tiroteio. Perdeu os anéis, quis salvar os dedos. Perdeu os dedos, está tentando salvar as mãos. Seu horizonte anda um bocado nevoento para quem já sonhou abocanhar um Nobel da Paz para, em seguida, terminar presidente do Banco Mundial.

Bicicleta 8Na cerimônia de ontem, sem muito que dizer, o demiurgo aventurou-se por terreno minado. Falou das «pedaladas» que dona Dilma «fez». Contou não ter lido o processo, fato que não surpreendeu ninguém. Assim mesmo, garantiu que a afilhada cometeu esses «malfeitos» para poder continuar pagando programas de distribuição de dinheiro que ele mesmo havia instituído.

Ora, analisemos. Nos tempos em que o Lula era presidente, não foi preciso «pedalar» pra distribuir aos mais necessitados. A partir do momento em que o cumprimento de programas passou a exigir que leis fiscais fossem infringidas, das duas uma: que se mudassem as leis ou que se extinguissem os programas. Nenhum dos dois foi feito.

Blabla 2Qual é o resumo da opereta? Duas considerações se impõem. A primeira é a confissão – involuntária mas evidente – de que a pupila realmente «fez» pedaladas, ou seja, infringiu a lei.

A segunda consideração remete a meu post de ontem – A lei? Ora, a lei… A fala do Lula reforça a ideia de que leis e regras valem para os outros, não para si mesmo. O demiurgo pode falar mais que outros, se agitar mais que outros, ousar mais que outros, ser mais vaidoso que outros, ser menos culto que outros, ser mais ingênuo que outros mas, no fundo… é um político do mesmo padrão que todos os outros. A lei? Ora, a lei…

Proposta de reforma na jurisprudência

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Depois de muito pensar, cheguei à conclusão de que é necessário repensar com urgência a figura legal do suicídio.

Justiça desequilibradaEsclareço melhor minhas motivações. Há muitos anos, um amigo advogado contou-me que o suicídio é, em princípio, um atentado contra o Estado, na própria medida em que este é legalmente responsável pela manutenção da vida e do bem-estar de seus cidadãos. Em tese, portanto, segundo a lei, qualquer pessoa que atente contra a própria vida poderia ser processada e punida pelo Estado. Contudo, considerando que o único atingido pelas consequências dessa forma de atentado é a própria pessoa, os juízes responsáveis pelo julgamento do caso ver-se-iam na obrigação de oferecer o perdão legal à vítima/ao réu.

Refletindo sobre essa conjuntura, pareceu-me inapropriado alocar todos os casos em uma só categoria genérica de suicídio. Conhecemos todos exemplos de pessoas que morreram – ou tentaram morrer – por simples descuido, vítimas de infelizes circunstâncias momentâneas, enganos, por puro acaso ou simplesmente por não terem percebido a tempo que haviam extrapolado. Sabemos também que há uma parcela de pessoas que buscam ativamente provocar a própria morte, estimuladas por fatores como desesperança, desencanto com a vida, perda de alguém querido, perda de status profissional ou social, doença grave, etc.

TribunalProponho, assim, que o enquadramento legal do suicídio seja subdividido em duas categorias: a do suicídio culposo e a do suicídio doloso. Talvez juristas mais zelosos da precisão queiram contemplar ainda a categoria de suicídio por dolo eventual.

Na categoria suicídio culposo seriam, então, enquadrados todos os casos de aderência da pessoa a maus hábitos que, a longo prazo, podem implicar lesões importantes à capacidade de seu organismo de manter uma vida longa e saudável. Os exemplos mais comuns que me ocorrem são os de pessoas que abusaram por muito tempo do consumo de alimentos gordurosos, açúcares, bebidas alcoólicas, cigarros ou drogas – não porque tencionavam causar danos a si mesmos, mas simplesmente por estarem em busca de prazer ou alívio de alguma tensão.

Acredito que maus hábitos anímicos também precisariam ser considerados nessa categoria, como os de deixar-se levar por uma vida profissional estressante, a eleição do dinheiro como principal fonte de motivação, a alienação quanto às próprias necessidades e limites, e o abandono consentido de outras formas proativas de experiências prazerosas com a família, com os amigos e com possíveis amores. Uma vida sexual desfocada da capacidade de entrega, desconexão com o plano emocional, além da inconsequente busca do prazer pelo prazer seriam ainda outras possibilidades no plano individual.

Depression 1No plano corporativo, outros maus hábitos poderiam ser elencados para justificar o enquadramento na categoria do suicídio culposo: lançamento de produtos de qualidade duvidosa e a preços extorsivos, sustentados por campanhas mercadológicas luxuosas, ainda que intencionalmente enganosas; incompetência e desatenção dos serviços de atendimento ao consumidor; desrespeito às políticas trabalhistas e aos justos anseios dos funcionários de crescerem e compartilharem dos lucros obtidos.

Já no plano político, a discriminação entre as diferentes categorias de suicídio parece ser bastante mais complexa e delicada, na medida em que o cidadão que aspira a chegar ao poder (ou a manter-se nele) tende a adotar estratagemas que, muitas vezes, sua própria consciência ética recusa. Embalados pela crença de que, uma vez alcançado o objetivo sonhado, ser-lhes-á possível redimir-se de desvios comportamentais, muitos aderem de bom grado a maus hábitos, como elencar promessas que sabidamente não serão cumpridas, cambalacho de votos, adesão à ideologia do partido que lhes abriu as portas mesmo que esta contrarie o próprio rol de crenças políticas, etc. Parece-me assim que, na maioria dos casos, o enquadramento legal mais provável seria o de suicídio político por dolo eventual.

Eduardo SuplicyO único exemplo que me ocorre de suicídio político culposo é o do ex-senador Eduardo Suplicy. Acreditando que o passado de defesa dos direitos humanos e a postura ética irretocável ao longo de mandatos anteriores bastariam para guindá-lo novamente ao posto de senador da República, ele optou por manter um silêncio obsequioso diante dos malfeitos de seus colegas de partido. Deu no que deu.

Por outro lado, os exemplos de suicídio político doloso abundam por estas plagas. Não é preciso dar muitos tratos à bola para identificar em poucos segundos o nome das principais vítimas: Jânio Quadros, Leonel Brizola, Roberto Jefferson, Paulo Maluf, José Serra, Marta Suplicy, etc.

Politica 2Talvez suas listas não coincidam com as minhas, mas tenho certeza de que, com um pouco de tempo, fé em sua intuição e sensibilidade, você será capaz de rapidamente encontrar outros exemplos.

Então, que outros nomes do quadro político atual você apontaria em cada uma das categorias?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Titubeação

José Horta Manzano

Janio 2O passo original foi dado mais de 50 anos atrás pelo então presidente da República, o pranteado Jânio da Silva Quadros. Ficou na história como símbolo de vacilação e de irresolução. A aventura do presidente, por sinal, não durou muito: logo renunciou ao mandato. Na sequência, foi despachado rapidinho pra Londres e, durante décadas, não se ouviu falar do homem. Ah, tempos beatos em que anjos caídos se calavam!

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

Numa inspirada charge, o desenhista Roque Sponholz comparou o espírito confuso e desnorteado de Jânio à insegurança de dona Dilma. Cada um a seu tempo, foram ambos obrigados a enfrentar terrível situação de cego em tiroteio. A história dirá se a solução do problema da atual mandatária terá de passar, obrigatoriamente, pela renúncia.

Dilma MerkelEstes dias, Frau Merkel veio de visita a dona Dilma. Vendo as duas assim, sorridentes e coloridas, a gente até poderia imaginar que disputassem um concurso de elegância à la garçonne. A um olhar mais atento, a conclusão se impõe: nossa mandatária ensina à chanceler alemã a maneira correta de demonstrar vacilação.

A la garçonneQuanto a renunciar, Frau Merkel não corre esse risco. Muito pelo contrário: é ela quem acaba de constringir o primeiro-ministro da Grécia à renúncia.

A pose esboçada diante de dona Dilma tem o mesmo valor que os três passos de dança dados pelo Príncipe de Gales, tempos atrás, numa quadra de escola de samba. É só pra contentar fotógrafo.

Devo ir por aqui ou por ali?

José Horta Manzano

Governantes em perdição – é curioso – costumam repetir as mesmas frases, preconizar as mesmas medidas, sacar as mesmas desculpas. E, às vezes, reproduzir os mesmos trejeitos.

Às vésperas da desastrada renúncia ao cargo de presidente do Brasil, em 1961, Jânio Quadros foi surpreendido por um fotógrafo. Rendeu um instantâneo que ficou na história.

Janio 2Interligne 28a

François Hollande, presidente da França, foi apanhado dia destes em posição que lembra muito a de nosso tresloucado mandatário de meio século atrás.

François Hollande 6

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Quem será o próximo? Roque Sponholz, desenhista paranaense, já tem seu palpite.

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

by Roque Sponholz, desenhista paranaense

Forças ocultas

by Antônio Gabriel Nássara (1910-1996) caricaturista carioca

by Antônio Gabriel Nássara (1910-1996)
caricaturista carioca

Antigo ministro e embaixador, José Aparecido de Oliveira aceitou debater com estudantes, nos anos 80, sobre os acontecimentos de 1961, quando o presidente Jânio Quadros renunciou ao cargo depois de tê-lo exercido por sete meses. Aparecido tinha sido secretário de Jânio.

Um rapaz muito agressivo e com a arrogância própria da idade criticou o gesto do antigo presidente – atribuído a “forças ocultas” – e declarou:

– Eu nunca teria feito isso!

Aparecido não perdeu a chance:

– Meu filho, você pode até estar certo, mas esse problema você nunca vai ter de enfrentar.

Interligne 18c

Reprodução do original publicado pelo jornalista Cláudio Humberto in Diário do Poder,

Nota deste blogueiro
Apesar do que acreditam muitos, a carta renúncia de Jânio Quadros não mencionava “forças ocultas”, mas “forças terríveis”.

Quem com ferro fere…

José Horta Manzano

Todos teremos de ir embora um dia – essa é a lei. Já que a partida é inelutável, gostaríamos todos de deixar imagem positiva, pranteada, admirada, respeitada. Nem todos conseguem.

Janio 1Entre políticos e outros medalhões, uma vez cumprida a ambição de chegar lá, resta o consolo de cuidar da própria biografia. «Um dia não estarei mais aqui, mas, pelo menos, deixarei boa lembrança» – costuma ser o mote.

O falecido Jânio Quadros, por exemplo, batalhou para deixar imagem de estadista, de salvador da pátria. O que ficou foi a lembrança de um amalucado sem rumo.

Mandatários poderosos e longevos como Hitler, Stalin, Franco & companhia tiveram todos, um dia, a ilusão de que seriam lembrados como fundadores de nova pátria, de nova estirpe, de nova orientação. São hoje repudiados como arautos da desgraça que, por causa deles, se abateu sobre seu povo.

Aerolula 1O grupo político conhecido como PT pode espernear quanto quiser, que não vai adiantar. Sua imagem guardará a indelével marca da corrupção, da sujeira, do oportunismo e da malandragem. Daqui a alguns anos, quando os atuais figurões estiverem fora de cena, o partido (ou o que restar dele) certamente mudará de nome. Será maneira simbólica de apagar o passado. Há antecedentes no País.

O naufrágio de um agrupamento não significa necessariamente o afogamento coletivo de todos os seus membros. Assim como o senador Suplicy, até seu derradeiro dia de mandato, não terá sido atingido por nenhum respingo de escândalo, outros podem (ou poderiam) livrar a cara – para falar vulgarmente.

A perspectiva de ser lembrada como personalidade execrável não parece comover dona Dilma. Apesar de ter prometido mudança de atitude em seu discurso de reeleita, as últimas notícias não indicam redirecionamento no bom sentido. Aqui está um trecho do artigo publicado pelo jornalista Cláudio Humberto em seu Diário do Poder deste 14 dez° 2014:

Dilma AerolulaInterligne vertical 11a«Militares ganham pouco, ralam muito, são maltratados, sobretudo quem serve no Grupo de Transportes Especiais (GTE), responsável pelos aviões utilizados pela Presidência da República. Mas conseguem se divertir. Mostrando que esculacho não garante respeito, militares da FAB ridicularizam grosserias rotineiras de que são alvo chamando o jatão Airbus, que transporta Dilma Rousseff, de “Vassourão”.

Dilma está longe de ser uma Miss Simpatia a bordo dos aviões da FAB. A vingança veio a jato: passaram a se referir a ela como “Bruxa”

Taí. Ainda não é tarde demais. Dona Dilma ainda tem quatro anos pela frente para enfeitar a biografia. Se se obstinar nessa arrogância de menina mimada, periga ser um dia lembrada como aquela que já foi tarde.