Vírus brasileiro

 

José Horta Manzano

Os jornais televisivos desta terça-feira abriram todos com a notícia principal: a França fecha seus aeroportos para todo voo proveniente do Brasil. Dos países com os quais temos relações mais próximas, três já tomaram medida idêntica – França, Portugal e Reino Unido.

Não estou familiarizado com viagem em jatinhos executivos, mas imagino que a restrição lhes diga respeito também. Pelo jeito, deve ter por aí muita gente fina aborrecida por não poder mais dar um pulinho a Paris pra degustar um croissant fresquinho saído do forno de uma boulangerie.

Emissoras de rádio e de tevê têm feito programas especiais com entrevistas e mesas redondas em torno das quais se discute a periculosidade da variante brasileira do coronavírus e os meios de evitar sua propagação.

No Brasil, adeptos de teorias complotistas juram de pés juntos que essa variante mais peçonhenta do vírus veio direto da China, desenvolvida por comunistas malvados cuja única intenção é derrubar nosso presidente, para poderem em seguida dominar o mundo. Por seu lado, gente com a cabeça no lugar começa a considerar uma origem interna. A nova cepa teria conseguido desenvolver-se em nosso país justamente por encontrar aqui terreno propício.

Ainda é cedo pra apontar culpados. Vamos esperar que a pesquisa científica tire as devidas conclusões. (A não ser que a CPI o faça…) A tese de que a variante brasileira teria nascido no Brasil mesmo faz sentido. A contínua sabotagem com que o capitão nos brindou desde a chegada da pandemia – com recusa de distanciação social, de máscara e de confinamento – criou terreno fértil para mutações aceleradas do vírus.

Enquanto não se determina com exatidão a origem do novo patógeno, o que se percebe é mais uma picaretada na rápida destruição da imagem do Brasil no exterior. Essa descida de nosso país ao limbo dos ‘emergentes que não conseguem emergir’ é efeito secundário indesejável do ambiente tóxico que se instalou em terras nacionais.

Euclides da Cunha disse que o sertanejo é, antes de tudo, um forte. Tomando como gancho o pensamento do escritor, pode-se dizer que todo brasileiro conservou, lá no fundo do peito, a alma forte do sertanejo. Todavia, a conjunção Bolsonaro + pandemia é dose pra leão. Não sei se vai dar pra aguentar.

Observação
Está chegando a hora em que as redes devotas vão ter de se render à evidência. O “vírus chinês” se naturalizou e procriou. Os filhinhos, todos nascidos em território nacional, são gente de casa. Recusam-se a ser tratados como estrangeiros. Cada um deles é agora um legítimo vírus brasileiro.

Qui se ressemble – 4

José Horta Manzano

Doutor Weintraub, atual titular do Ministério da Educação, tem mostrado que, além de ser o mais mal-educado dos ministros, é também o que mais comete erros de grafia. Pra um homem pago justamente pra vigiar a educação dos brasileiros e pra cuidar dela, pega mal pra caramba.

Não faz quinze dias, atirou-se feito um rottweiler contra Monsieur Macron. Num piado lançado nas redes sociais, tratou o presidente da França de calhorda. Nada menos que isso. Não é espantoso, vindo de um ministro? Ministro da Educação, frise-se!

Passou. Na sexta-feira dia 30, nosso herói voltou suas baterias contra a ortografia. Espezinhou-a. Não satisfeito com ter escrito no tuíter, algum tempo atrás, incitar com s (insitar), reincidiu. Pra mostrar que sua falta de familiaridade com a língua é ampla e abrangente, mandou novas palavras para o cadafalso.

Desta feita, o megaescorregão foi perpetrado num texto de apenas 8 páginas. A primeira vítima foi paralisação, escrita duas vezes com z (paralização). Destemido, o ministro se esbaldou. Mais adiante, no mesmo documento, escreveu suspensão com ç (suspenção).

Este último erro é mais grave que os outros. Dado que suspensão é palavra corriqueira, dessas que se encontram a cada esquina, a grafia deveria estar fixada na cabeça de todos os alfabetizados. Escorregar aqui significa absoluta falta de intimidade com a escrita. Errar assim já é embaraçoso para o cidadão comum; para o ministro da Educação, é imperdoável. É verdadeiro crime de responsabilidade, a ser punido não com “suspenção”, mas com destituição do cargo.

Diferentemente do tuíter, onde Sua Excelência pia e comete deslizes com os próprios dedinhos, o documento de oito páginas há de ter sido datilografado(*) por um assessor. Das duas, uma: ou o ministro assina sem ler, ou é conivente com a fragilidade ortográfica do datilógrafo(*).

A meu ver, nem ele nem o assessor estão em condições de continuar no cargo. Ambos são caso de pessoa errada no lugar errado.

«Qui se ressemble s’assemble – os semelhantes se atraem».

(*) Datilografar é verbo arcaico, hoje desaparecido e substituído por digitar.

O curioso caso do vereador suíço

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 27 julho 2019.

Monsieur Patelli, cidadão suíço, é rapaz decidido. Seu caráter por vezes impulsivo costuma pregar-lhe peças. Arrebatado, perde rápido as estribeiras e se deixa subjugar pelo ardor que a juventude lhe concede. Anda pelos vinte e poucos anos, idade em que se acredita ter o poder e a missão de consertar o mundo – crença que leva a dar valor exagerado a causas menores.

Uma tarde de 2014, participou de manifestação de rua em protesto contra a violência policial. Tachar a polícia suíça de violenta é rematado exagero. Aos muito jovens, porém, há que relevar certos desacertos. Acontece que a marcha de protesto desandou e virou batalha campal. (Francamente, usar de violência numa marcha que se propõe a denunciar a violência é atropelo ao bom senso. Mas assim são as coisas, que não se pode exigir coerência de todo o mundo a todo instante.) Câmeras de segurança gravaram a arruaça e registraram imagens do jovem Patelli justamente quando mandava uma pedrada pra cima da polícia. Com tantos manifestantes, não foi possível identificar cada um de imediato. As investigações continuaram.

Quatro anos mais tarde, a identidade do jovem foi descoberta. A vida tinha corrido e ele já havia progredido. Tinha-se candidatado às eleições municipais da cidadezinha onde vive. Eleito, é agora vereador. Mas ‒ que fazer? ‒ o gesto de quatro anos antes tinha de ser sancionado. Monsieur Patelli foi condenado a passar três meses em prisão domiciliar. Para controlar seus passos, leva uma tornozeleira.

Monsieur Patelli fotografado de tornozeleira na entrada da república onde mora.
Imagem: V.Cardoso, 24 Heures, Lausanne

Menos comum do que no Brasil, o caso do vereador suíço enrolado com a justiça trouxe à pauta a questão da compatibilidade entre as duas condições ‒ a de eleito e a de condenado. Tivesse a infração sido cometida depois da eleição, o mandato seria cassado de ofício, sem recurso possível. Mas o delito tinha ocorrido antes da eleição, de modo que não houve quebra do juramento que todo parlamentar faz de jamais infringir a lei. Monsieur Patelli se encontra agora na bizarra condição de condenado que cumpre pena de cerceamento de liberdade sendo, ao mesmo tempo, vereador em pleno exercício. Se, em outras terras, casos assim não surpreendem, na Suíça deu manchete na imprensa.

A Justiça do país não dá moleza pra quem está em prisão domiciliar. Os controles são rigorosos. Para seguir seus estudos, o jovem tem direito a deixar somente três vezes por semana a república onde vive em comunidade, com destino à faculdade. Para ir ao supermercado, tem de pedir autorização prévia. A licença virá com hora pra sair e hora pra voltar, com tolerância zero para atrasos. Se quiser comparecer a uma das três sessões semanais da Câmara, terá de renunciar a uma ida à faculdade. O que mais o aborrece, no fundo, é a proibição rigorosa de participar de protestos e passeatas, sua paixão.

O caso do jovem suíço que, por um lado paga pena por ter transgredido às regras da sociedade e, por outro, é legítimo representante dessa mesma sociedade, convenhamos, é extravagante. Raras no passado, não há mais como esquivar tais ocorrências nestes tempos de internet planetária, redes sociais abelhudas, pirataria informática e câmeras de segurança onipresentes. Singularmente, a Justiça suíça entende que, tendo o malfeito sido cometido antes da eleição, o condenado conserva o mandato que o povo lhe confiou. Recentemente, a Justiça espanhola mostrou ser da mesma opinião ao conceder a dirigentes catalães, procurados pela polícia mas exilados no exterior, o direito de candidatar-se às eleições para o Parlamento europeu.

No Brasil temos tido casos parelhos. Aqui e ali, vozes se alevantam pra denunciar incompatibilidade entre o estatuto de condenado e o de eleito. Em minha opinião, no caso de o fato delituoso ter ocorrido antes da eleição, a cassação automática do mandato seria pena abusiva. Com o cerceamento do direito de ir e vir, o indivíduo já está ressarcindo a sociedade dos prejuízos causados. Se já está a pagar o débito, não é justo aplicar-lhe pena extra. Por seu lado, é importante, isso sim, reforçar a caça aos eleitos que, embora tenham cometido ‘malfeitos’ – quiçá durante o mandato corrente! – continuam livres, leves, soltos, sem processo, sem julgamento, sem embaraço e sem pudor.

Circo que não diverte

José Horta Manzano

Num país onde:

●  jovens saem da escola sem saber ler, escrever nem contar,

●  cinquenta mil pessoas são assassinadas a cada ano,

●  todos já foram assaltados ou conhecem alguém que já foi,

●  falta esparadrapo em postos de saúde,

by Ivan Cabral, desenhista potiguar

●  metade das casas não contam com saneamento básico,

●  quinze milhões estão desempregados (sem contar os que não aparecem nas estatísticas),

●  drogas ilícitas pululam enquanto enfermos morrem por falta de drogas lícitas,

●  secas e inundações ainda matam gado e gente,

●  gente honesta vive enjaulada em casa enquanto bandidos correm soltos,

●  a disparidade financeira entre ricos e pobres continua escandalosa,

●  multidões vivem em favelas ou ao relento,

perder tempo, esforço e dinheiro discutindo a suspensão da imunidade do presidente é, no mínimo, indecente.

São todos cúmplices nesse midiático crime de lesa-pátria: desde o procurador-geral da República até o mais obscuro deputado. Não ouvi nenhuma voz se levantar para exprimir revolta pelo absurdo da situação. A quase totalidade dos parlamentares valeu-se do minuto de glória em causa própria, como se num palanque estivessem. Apesar das palavras comoventes, não senti nenhuma reprovação contra o circo. Todos subiram ao picadeiro e aceitaram o papel de palhaço.

Crime de responsabilidade é uma coisa; crime comum é outra. Doutora Dilma, acusada de maquiar contas públicas, cometeu crime contra a nação, inclusive contra os que nela votaram. Foi julgada, condenada e destituída. Doutor Temer é acusado de crime comum. Dizem que é ladrão e corrupto, como tantos outros. Pode até ser. Assim mesmo, enquanto estiver na presidência, a lei o preserva. No dia em que passar a faixa ao sucessor ‒ e falta menos de ano e meio ‒ retornará à condição de cidadão comum. Será então chegado, para ele, o momento de responder pelas acusações.

Proponho que se institua um cursinho obrigatório, com duração de algumas semanas, destinado a deputados, senadores, procurador-geral & congêneres. Lá aprenderão o funcionamento básico das instituições. Só assumirão o cargo os que forem aprovados no exame de fim de aprendizado. Que tal?

Uótisápi ‒ 2

José Horta Manzano

O CIO ‒ Comité International Olympique, autoridade que controla e regula as atividades esportivas, anda cheio de dedos. Cabe-lhe tomar decisão pra lá de crucial: autorizar (ou bloquear) a participação dos atletas russos nos JOs Rio 2016, programados para daqui a duas semanas.

Comitê Internacional Olímpico Maquete da nova sede, Lausanne, Suíça

Comitê Internacional Olímpico
Maquete da nova sede, Lausanne, Suíça

A situação é embaraçosa e o veredito, seja qual for, será criticado. Se a Rússia for autorizada a enviar todos os seus esportistas, muitos ressentirão como se isso fosse um prêmio à dopagem, um incentivo à esperteza. Caso a participação da delegação seja vetada, a decisão soará como punição coletiva, situação intolerável em que inocentes pagam pelos «malfeitos» de pecadores. Punição coletiva pode ser cômoda para quem pune, dá menos trabalho, mas não cabe em nossa noção de Direito.

Como já havia acontecido em maio passado, a decisão autocrática de um magistrado brasileiro suspendeu, com efeito imediato, o funcionamento do aplicativo uótisápi (em brasileiro, whatsapp). A intenção é punir a empresa por negar-se a fornecer à Justiça certos dados confidenciais.

Whatsapp 1Está aí, de novo, um caso típico de desagradável (e desnecessária) punição coletiva. Não saberemos nunca se faltou imaginação ao juiz que determinou a interdição ou se a intenção era exatamente ser mimado com um dia de notoriedade e glória.

Há outras formas mais eficientes, embora menos vistosas, de pressionar uma empresa. Que tal uma multa diária? Fica aqui a sugestão para a próxima vez.

Definitivamente, não é justo punir todos os usuários do aplicativo. Não vale a pena acrescentar mais um tijolo ao edifício da insegurança jurídica que reina, majestosa, em nosso país. No estrangeiro, cai mal pra caramba.

Os cães ladram

José Horta Manzano

Quando a insistência é demasiada, a gente desconfia. Entre milhares de erros e de passos em falso cometidos pela dupla Lula/Dilma, com assistência de assessores duvidosos, está a facilitação da entrada da Venezuela no Mercosul. Um erro monumental.

Não é demais lembrar como se deu a entrada do novo sócio. As regras do clube estipulam que novos membros sejam obrigatoriamente aceitos pelos demais ‒ por unanimidade. No caso venezuelano, Brasil, Argentina e Uruguai já havia concordado. Último dos moicanos, o Senado paraguaio resistia. Entrava mês, saía mês, e nada de aprovarem a entrada de Caracas.

Mercosul 4À época, o presidente do país era Monsenhor Lugo. Rabo de saia, o eclesiástico era acusado de haver transgredido em repetidas ocasiões o voto de castidade. Libidinagem não costuma derrubar presidente; má gestão, sim.

Foi justamente por não tê-lo considerado capaz de continuar à frente do país que o congresso paraguaio o destituiu da presidência. O impedimento, embora tenha sido processado a toque de caixa, não feriu as disposições da Constituição paraguaia.

Doña Cristina Kirchner e doutora Dilma Rousseff não entenderam assim. Numa intromissão descabida em assuntos internos do país vizinho, argumentaram que a destituição do monsenhor tinha sido inconstitucional. De castigo, presentearam o Paraguai com um ano de suspensão do Mercosul.

País suspenso não é sinônimo de país excluído. Ainda que temporariamente impedido de participar dos debates rotineiros, o Paraguai manteve seu estatuto de membro fundador e de integrante do Mercosul. Toda decisão que exigisse unanimidade dos membros teria de contar com o voto guarani. Cristina e Dilma passaram por cima dessas miudezas. Valeram-se da suspensão para abrir a porta para a Venezuela. A porta dos fundos, na verdade.

Não ficou claro até hoje por que razão Brasil e Argentina se empenharam tanto para emplacar a Venezuela como sócia. Há quem alegue razões de ideologia. Fico de pé atrás. Nem Cristina nem Dilma nem os respectivos partidos são lá paradigmas em matéria ideológica. A aliança entre Lula e Maluf que o diga. A meu ver, embaixo desse angu tem carne. Conhecendo os protagonistas, é lícito desconfiar que a insistência se prenda a obscuras transações.

Mercosul 3Já emperrado por lutas intestinas, nosso infeliz Mercosul não precisava de um sócio malvisto por dez entre dez democracias do planeta. Não se pode dizer que o bloco tenha ganhado com a entrada do sócio problemático. A mais recente enrascada está acontecendo estes dias.

Em princípio, pelo sistema de rodízio, Caracas deveria assumir, pelos próximos seis meses, a presidência do Mercosul. O desconforto dos demais sócios é palpável. Entregar a presidência ao caudilho Maduro? Ninguém concorda. Reuniram-se em Montevidéu pra discutir sobre o assunto. A Venezuela não foi convidada. Assim mesmo, para aflição dos demais, a ministra de Relações Exteriores apareceu de surpresa.

Como em filme cômico, os enviados de outros países evitaram encontrá-la. Foi o retrato acabado de um bloco inerte, sem ação, sem importância, sem escapatória, sem futuro.

No fundo, no fundo, pouco importa que a presidência pro tempore seja exercida por este ou por aquele sócio. De qualquer modo, as discussões que se travam nessas cúpulas lembram aqueles cães que ladram sem se dar conta de que caravanas passam, avançam e progridem. Que continuem ladrando, tanto faz.