Liberação dos céus

José Horta Manzano

Na comparação com países mais avançados, a poupança interna é insignificante no Brasil. As múltiplas razões vão da escassez de capitais, passam pela baixa renda média da população e chegam a questões culturais do tipo «na hora, a gente dá um jeito». Mudar esse estado de coisas não é simples, é obra para gerações.

Desde sempre, o desenvolvimento do país passou por aporte de capitais estrangeiros. Não fossem investimentos vindos de fora, não teríamos, por exemplo, indústria automobilística. No limite, ainda estaríamos na fase de escambo de miçangas contra produtos da terra, como no tempo dos descobridores.

A tendência à globalização, que se reforça nas últimas décadas, enterra, pouco a pouco, o conceito de que podemos nos virar sozinhos, como imaginávamos meio século atrás. A visão de um mundo feito de economias fechadas desvanece.

Nesta terça-feira, o Planalto edita medida provisória que derruba mais uma dessas barreiras. Trata-se da liberação de aporte de capital forasteiro a empresas de aviação. Até o momento presente, nenhuma companhia aérea brasileira podia ser controlada por estrangeiros. A regulamentação era pra lá de rigorosa: pelo menos 80% do capital tinha de ser genuinamente nacional. Com a nova MP, esse gargalo desaparece.

Faz sentido. Na verdade, o Brasil está até atrasado nesse campo. O importante é que o viajante seja beneficiado, pouco importando de onde tenha vindo o dinheiro. Se fossem mantidas as regras atuais, continuaríamos na esdrúxula situação de ter a mais importante companhia nacional com apenas meia dúzia de destinos fora do país, enquanto dezenas de empresas estrangeiras completam a demanda e transportam o grosso dos passageiros.

Uma companhia aérea ‒ constituída com capital nacional ou estrangeiro, tanto faz ‒ garante milhares de empregos diretos e indiretos. Quadros, dirigentes, funcionários de escritório, pessoal de solo, pilotos e tripulantes, empresas especializadas em «quentinhas», faxineiros, criadores de site internet, fabricantes de uniformes, mecânicos, call centers, especialistas em manutenção, controladores de voo contribuem para o funcionamento. Sem contar os viajantes que ganham novas opções de destino e de horário. Em sem falar na concorrência entre empresas, que é benéfica para os usuários.

As autoridades reguladoras do tráfego aéreo manterão, naturalmente, a prerrogativa de conceder novas rotas. Guardam grande poder de negociação: eu lhe dou esta rota desde que você assuma aquela (que ninguém quer).

Empoeiradas doutrinas nacionalistas de outras eras já não cabem no mundo atual. Como dizem os franceses, «peu importe le flacon pourvu qu’on ait l’ivresse» ‒ pouco importa a garrafa desde que o conteúdo embriague.

Imprevidência social

José Horta Manzano

«O Crédito Pessoal Consignado é uma linha de empréstimo pessoal para você usar como quiser» ‒ é assim que um grande banco brasileiro apresenta o «produto». Chamativo, parece um negócio da China. Mas convém desconfiar, que nem tudo que reluz é ouro.

Velhice 5O Senado da República acaba de aprovar medida provisória que permite ao trabalhador do setor privado dar as economias amealhadas no FGTS como garantia para tomar empréstimo. «Para usar como quiser» ‒ a propaganda é clara. Embora venha travestida de bondade, a medida é trágica, um atentado contra as camadas menos abastadas da população.

Poupança nunca foi nosso ponto forte. Por razões históricas e resistentes, grande parte de nosso povo vive na corda bamba, na base do «amanhã, vamos ver», à espera do milagre virá na hora da necessidade.

Velhice 4Poucos têm algum tipo de amortecedor ou de colchão que lhes garanta trégua ou desafogo na necessidade. Cidadãos jovens, com força e ânimo, têm mais chance de superar situações adversas. O aperto maior vem nos velhos dias, quando toda atividade remunerada cessa. Antigamente, a solidariedade de parentes e descendentes paliava. Pouco a pouco, o esgarçamento do tecido familiar tradicional impôs a generalização do sistema de aposentadoria.

Assim mesmo, a renda de velhice era pouca, nem sempre dava para o gasto. Foi essa lacuna que o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço quis preencher. Instituído em 1966, veio complementar segurança econômica de idosos. Respondendo a tendência planetária, outros países também adotam instituto análogo.

Até na Suíça, um pecúlio obrigatório para assalariados existe desde 1985 destinado a reforçar os proventos dos idosos. Diferentemente do que ocorre no Brasil, essa poupança é realmente reservada para os velhos dias. O único caso em que pequena porção pode ser retirada antecipadamente é para compra de casa própria. Faz sentido. Ter moradia contribui para a segurança econômica.

by Jean-Louis Calmejane, artista francês

by Jean-Louis Calmejane, artista francês

A aberrante MP, editada nos estertores do governo de dona Dilma, vai no sentido errado: esvazia os fundamentos do FGTS. Foi mais uma comprovação de que, para salvar a própria pele, nossos governantes estão dispostos a qualquer abominação. A anuência dos senadores é escândalo ainda maior.

O FGTS tem de continuar fiel a seu princípio: garantir vida mais digna aos que trabalharam a vida inteira. Acenar com créditos eventuais «para você usar como quiser» desvirtuam a poupança.

Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Meu Deus! Devo estar ficando louca! Não há como considerar normal que uma pessoa consiga compreender e lançar olhar compassivo aos dois lados de uma disputa, sem se posicionar automaticamente em cima do muro ou como defensora enrustida e hipócrita de uma das partes.

Vejo como verdadeiras certas afirmações de Dilma e de integrantes de seu partido, de sua base aliada e de seu governo, assim como constato que muitas pessoas engajadas na luta para derrubá-los estão também dizendo a verdade. É verdade que o golpe militar de 64 começou com uma passeata de 100 mil pessoas protestando contra o caos e a corrupção. Também é verdade que ela pagou um preço alto por ter participado da luta pela reconstrução democrática, mas isso não serve – ou não deveria servir – de salvo-conduto para isentá-la de punição por eventuais transgressões. A bem da verdade, dói-me que políticos que já militaram em grupos de esquerda apoiem medidas insanas ao chegar ao poder, como o controle social da mídia ou o sequestro da poupança nacional, como tentou Dilma e o fez Zélia, apenas porque sentem que já pagaram “pedágio” a governos autoritários. Não fui torturada nos porões do regime, mas talvez meus ouvidos o estejam sendo agora, e de forma mais insidiosa, por me saber livre para pensar e chegar a conclusões próprias.

Zélia Cardoso de Mello & Dilma Vana Rousseff

Zélia Cardoso de Mello & Dilma Vana Rousseff

Reprovo certas atitudes espetaculosas de Moro, da mesma forma que me sinto profundamente desconfortável com a desfaçatez e a pretensa superioridade moral de Gilmar Mendes, de Teori e de Rodrigo Janot. A coragem de Joaquim Barbosa para dar nome aos bois me fascinava, ainda que me incomodasse por sua rispidez, da mesma forma que me inquieta sobremaneira a leveza e despreocupação ética do atual presidente do STF.

Acho legítimo que a Globo, que sabidamente apoiou a ditadura militar e distorceu informes jornalísticos para ocultar sua conivência com ela, mude historicamente de posição e utilize agora seu vasto poderio de comunicação para divulgar os sucessivos escândalos políticos, como de resto o fazem todos os demais órgãos de imprensa, com um grau semelhante tanto de imparcialidade quanto de espetacularização.

Marcha da Família com Deus pela Liberdade São Paulo, 19 março 1964

Marcha da Família com Deus pela Liberdade
São Paulo, 19 março 1964

Solidarizo-me com quem se sente enganado, traído por seus governantes, exausto de ser espoliado e sai às ruas clamando por transformação urgente, sem que forçosamente tenha de chamá-los de fascistas ou sugerir que eles aceitam servir gostosa e irracionalmente de massa de manobra para golpes contra a democracia. Acolho em meu peito a raiva e a frustração das pessoas que vêm militando há décadas ao lado do partido governante para implementar certos avanços sociais, sem me sentir obrigada a tachá-las de cegas, canalhas, corruptas ou inimigas do povo brasileiro.

Condeno veemente as manobras de Cunha, tanto para acelerar o processo de impeachment de Dilma quanto para evitar sua própria cassação. Não aceito que Renan se faça de desentendido, repetindo o discurso de Dilma sem se dar sequer ao trabalho de disfarçar o desejo de salvar a própria pele. Considero vergonhoso e humilhante que políticos enlameados até a raiz dos cabelos, como Maluf e Collor, posem de estadistas e ganhem assento na comissão que vai julgar o atual desgoverno. Jamais apoiaria um governo Temer construído à revelia dos anseios da população, em aliança com o PSDB ou outros partidos oportunistas de oposição, simplesmente por achar que ele seria um mal menor.

Não entendo, por mais que me esforce, o que significa ser de esquerda ou de direita no mundo atual, que dirá no Brasil. Não posso acreditar que uma seja detentora da verdadeira consciência social e outra composta só por uma elite nojenta, desprovida de valores éticos, já que suas práticas de governo se têm mostrado indistinguíveis. Não sei o que é ser elite, nem o que é ser povo, quando se empresta apressada e generalizadamente a ambos o caráter de alienação.

Fernando Collor de Mello & Paulo Salim Maluf

Fernando Collor de Mello & Paulo Salim Maluf

Também não compreendo porque artistas do peso de um Chico Buarque, Caetano Veloso ou Gilberto Gil devam ser xingados, perseguidos e difamados simplesmente porque ousam manifestar suas crenças livremente, mesmo que anteriormente tenham se manifestado a favor de ditadores ou da censura a biografias não autorizadas. Posso lamentar, talvez, que sua sensibilidade poética não tenha se espraiado para uma visão de mundo mais de acordo com a minha ou a dos que protestam nas ruas, mas me parece impossível negar sua capacidade de discernimento.

Sou mulher, profissional liberal aposentada, de terceira idade. Nunca me senti representada por Dilma só porque ela também é mulher. Embora tenha acreditado lá atrás no tempo que as mulheres fossem portadoras de maior capacidade de gerir, servir, cuidar e amar, não foi isso que constatei ao analisar a vida e o governo de Indira Gandhi, Margareth Thatcher ou Cristina Kirchner. Não me parece lógico, portanto, me aliar irrefletidamente a qualquer uma que prometa um mundo mais igualitário, generoso e includente só por ter dois cromossomos X.

Da mesma forma, abri as portas de minha carreira profissional, enfrentando um mundo masculino organizado, poderoso e discriminador. Nunca me senti menos inteligente, menos capaz de suportar pressões nem menos sensível às demandas da realidade. Nunca busquei proteção ou defesa em meus chefes e colegas masculinos quando acusada de estar exagerando ou emocionalmente desequilibrada por estar sujeita à flutuação hormonal típica do gênero feminino, assim como não fui chorar no banheiro nessas ocasiões.

Indira Gandhi & Margaret Thatcher

Indira Gandhi & Margaret Thatcher

Respirei fundo quando fui excluída do mercado de trabalho por causa de minha idade, por compreender que a reciclagem da mão de obra é natural e desejável. Reuni as forças que me sobravam para encontrar um trabalho que ainda pudesse ser considerado útil pelas empresas e capaz de acrescentar um pouco mais de dignidade à minha vida de aposentada.

Sou exceção? Talvez. Numa curva estatística de distribuição normal, devo ser. Mas, se o critério for o de condições intelectuais, psicológicas ou morais para assumir que em casa onde falta pão todo mundo grita e ninguém tem razão, devo estar absolutamente dentro da média da população. Tenho dito.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

A arte de criar problemas

José Horta Manzano

Cofrinho 2Ouvi agora no rádio que, no Brasil, há escassez de troco. Confesso que não sabia. Parece que comerciantes dão tratos à bola para não ouvir reclamação de fregueses. Tem padeiro que dá pãozinho a quem trouxer 50 ou 100 reais em moedinhas. Uma cadeia de lojas de sanduíche de carne moída (ambúrgui) oferta lanche tamanho família contra aporte de um punhado de moedas.

Nos anos 50, era crônica a falta de troco. Não só moedas, mas notas de pequeno valor – chamadas então ‘manolitas’ – eram bem precioso que a gente relutava em passar adiante.

Nas décadas seguintes, com o galope inflacionário, moedas desapareceram. Tudo melhorou a partir de 1994. Com a estabilização garantida pelo Plano Real, problema de falta de troco já deveria fazer parte do folclore nacional. Surpreso, descubro que não é bem assim.

Segundo a repórter que ouvi, não precisou delação premiada para designar o culpado: é o cofrinho. Foi afirmação convicta. A moça disse que, pouco afeito ao uso de moedas, o povo tende a tirá-las de circulação para entesourá-las.

Cofrinho 1Pouco afeito ao uso de moedas? Não faz sentido. Brasileiro com menos de 30 anos não conheceu a vida sem moeda. Até os mais velhos já se acostumaram (ou se reacostumaram) a manusear pecinhas de metal.

A Casa da Moeda se defende dizendo que fabricou não sei quantos milhões de moedinhas. Recomenda aos cidadãos utilizá-las em suas trocas diárias permitindo, assim, que circulem.

O distinto leitor certamente concordará comigo se eu disser que, no Brasil, criar problemas insolúveis é esporte nacional. Veja, pois:

Interligne vertical 16Por um lado, autoridades financeiras lamentam que a poupança média do brasileiro seja uma das mais baixas do planeta – o que é prejudicial ao País. Compra-se a crédito. Gasta-se o que não se possui. Contraem-se dívidas. Depositam-se todas as esperanças num amanhã que não se sabe de que será feito.

Por outro lado, as mesmas autoridades incentivam a população a abandonar o esboço do rascunho do começo de uma incipiente cultura de poupança. O cofrinho é excelente meio didático de infundir no pequerrucho o costume de guardar para dias incertos.

E pensar que a solução do problema é tão simples: basta cunhar mais moedas. Não é complicado, não?

Excerto do solilóquio de Hamlet, na peça homônima de William Shakespeare. Facsimile da edição de 1604

Excerto do solilóquio de Hamlet, na peça homônima de William Shakespeare.
Facsimile da edição de 1604

To be or not to be. As diretivas oficiais parecem indicar esquizofrenia. Mas a verdade é mais simples: os que dão essas ordens são simplesmente incapazes. Incapazes de refletir e incapazes de se pôr de acordo.

Nada pode ser e não ser ao mesmo tempo – que se há de fazer? Quatrocentos anos atrás, Shakespeare já punha na boca de Hamlet essa incontornável obviedade.