Raidinho de pia

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 26 março 2022

Talvez você já tenha assistido a algum filme ambientado nos anos 1940, numa França ocupada pelas tropas nazistas. Era um tempo sem internet, sem redes sociais, sem telefone celular. Até telefone fixo era raro. A circulação da informação era controlada. Nenhuma notícia corria antes de passar pela censura dos ocupantes.

O único meio de receber informação verdadeira e não deformada pela propaganda nazista era escutar emissoras estrangeiras pelo rádio. Jornais e estações de rádio francesas, submetidas ao controle alemão, não traziam informação confiável. Eis por que o invasor proibia terminantemente escutar estações estrangeiras, principalmente a BBC de Londres, que transmitia em ondas curtas – e em francês.

No escurinho do porão, escondido atrás de trastes velhos, lá estava ele, a única porta de saída daquele mundo sombrio: o rádio de ondas curtas. Em volume baixo, luzes apagadas, a família se reunia pra escutar a BBC transmitindo o noticiário especialmente destinado à população francesa.

As quatro primeiras notas da 5ª sinfonia de Beethoven serviam de vinheta do “jornal falado”, que era como se dizia à época. Com fundo de ruídos típicos de ondas curtas, lá vinha a voz do “speaker”: Ici Londres! – Aqui Londres!

Em roda, fazia-se silêncio respeitoso. Era hora das notícias verdadeiras. Todo cuidado era pouco para não deixar nenhum vizinho perceber o que estava acontecendo. Uma denúncia, mesmo anônima, podia levar todos para a cadeia ou direto para um campo de concentração, que o crime era grave.

O povo russo, nestes dias de lavagem cerebral, doutrinamento, censura da mídia e crescente restrição de acesso à internet, está na situação dos franceses de 1940. As grandes estações internacionais de tevê que transmitiam em russo (da Inglaterra, da Alemanha, da França, por exemplo) foram banidas do panorama audiovisual. Com a mídia nacional contaminada pela mão pesada do Kremlin, o que é que sobrou?

Pois pasmem! A BBC reativou suas transmissões de rádio em ondas curtas, em língua russa, especialmente dirigidas ao desinformado povo de Putin. Não sei se ainda serão muitos a possuírem um velho radiozinho de pilha (ou “raidinho de pia”, como se diz na fala popular da minha terra).

Não sei se o distinto leitor ainda guardou – no porão, na garagem ou no fundo do gavetão de bugiganga – um rádio velho. Que seja de pilha ou não, o importante é que pegue ondas curtas. Convém verificar. Sabe por quê?

O “causo” é o seguinte. Nesta altura do campeonato, tudo indica que o próximo presidente do Brasil será um dos dois candidatos que polarizam as pesquisas: Bolsonaro (de novo!) ou Lula (de novo!). Noves fora a cristalização do atraso que os dois representam, resta o fato de ambos terem como meta o controle da informação.

Bolsonaro se orgulha de ter cancelado a assinatura de todos os jornais de seus palácios e ministérios. Faz três anos que tenta estrangular a imprensa, pisoteando todos com exceção daqueles que lhe joguem flores. Reeleito, há de se sentir forte e periga tentar seguir o exemplo de Putin e de Maduro: calar a mídia e controlar a internet para eternizar-se no poder.

Lula nunca escondeu sua intenção de aplicar censura à informação, objetivo ao qual ele dá o poético nome de “controle social da mídia”. Nesta época de pré-campanha, voltou ao assunto em mais de uma ocasião. Não desistiu nem dá mostras de que desistirá. Eleito, há de se sentir forte e periga tentar seguir o exemplo de Putin e de Maduro: calar a mídia e controlar a internet para eternizar-se no poder.

Portanto, se eu fosse o distinto, pensaria em deixar o raidinho desde já desempoeirado, consertado e pronto para o que der e vier. Talvez seja melhor não comentar com ninguém. Em tempo de censura, as paredes têm ouvidos.

Meu conselho está parecendo desvario sem sentido, verdade? Pois tenha em mente que, poucas semanas atrás, o mundo inteiro achava que a invasão de um país europeu soberano por tropas de uma potência nuclear era pesadelo de épocas passadas, sem chance de voltar a ocorrer. Estavam todos enganados.

Com açúcar, com afeto e com fixações

José Horta Manzano

Antes de começar, faço questão de deixar claro que vejo no artista Francisco Buarque de Hollanda um dos grandes da música brasileira. Com o devido respeito ao gênero de cada um e à época em que exerceram sua arte, considero que Chico ocupa lugar de honra no mesmo patamar em que estão Francisco Mignone, Heitor Villa-Lobos, Oswaldo Gagliano (Vadico), Ary Barroso, Baden Powell, Tom Jobim e mais três ou quatro. Não é coisa pouca.

Mas ninguém é perfeito. Artistas, principalmente, devem ser julgados por suas qualidades, não por seus defeitos. Se alguns dos que citei bebiam demais, eram mulherengos ou chegaram a tomar ideias musicais “emprestadas” de terceiros, que importância tem isso em sua arte? Os eflúvios do álcool, as estrepolias de alcova ou até a inspiração colhida em obra alheia passam. O que fica, ao final, é a arte de cada um. Os personagens que citei, cada um em seu estilo, ainda estarão na crista da onda daqui a séculos.

Num documentário lançado recentemente, Chico Buarque fez um pronunciamento pra lá de polêmico, quase uma provocação. Ao referir-se ao extraordinário “Com açúcar, com afeto”, uma das maravilhas da MPB, samba composto por ele há 55 anos, disse:

“Na verdade, a primeira música que fiz na primeira pessoa foi pra Nara [Leão]. Ela me pediu uma música ‘daquelas’, ela me encomendou essa música. Ela falou ‘Eu quero agora uma música de mulher sofredora’. E deu exemplos de canções do Assis Valente, Ary Barroso, aqueles sambas da antiga, onde os maridos saíam para a gandaia e as mulheres ficavam em casa sofrendo, tipo “Amélia”, aquela coisa. Ela encomendou, e eu fiz (…) É justo, as feministas têm razão, vou sempre dar razão às feministas, mas elas precisam compreender que naquela época não existia, não passava pela cabeça da gente que isso era uma opressão, que a mulher não precisa ser tratada assim. Elas têm razão. Eu não vou cantar ‘Com açúcar e com afeto’ mais e, se a Nara estivesse aqui, ela não cantaria, certamente.”

Pra quem teve preguiça de ler na íntegra a citação, fica aqui o essencial da fala do artista: “É justo, as feministas têm razão, vou sempre dar razão às feministas”.

Essa declaração comporta um trecho assaz constrangedor, em que Chico, um tanto ingenuamente, empresta intenções a Nara Leão, falecida há mais de três décadas. Diz que, se viva fosse, ela certamente não cantaria “Com açúcar, com afeto”. Acho sempre arriscado pôr palavras na boca dos mortos ou intenções na cabeça deles. No limite, ele poderia ter dito que achava, que imaginava, que acreditava. Mas ele disse que “certamente” ela não cantaria. Uma temeridade. Ninguém pode fazer afirmação desse quilate, passados mais de trinta anos do desaparecimento da pessoa.

Por minha parte, acho que Nara não abandonaria um dos tesouros do cancioneiro nacional que, examinado com lupa, não reforça preconceito nenhum, limitando-se a descrever com sobriedade o dia a dia de um casal que viveu faz meio século, uma vida como milhões de outras. Com alguma insatisfação mas também com ternura. E sem violência. Mas no fundo, ninguém – nem Chico, nem eu – pode ter certeza sobre a decisão que Nara tomaria.

Mas o que mais me impactou foi outra frase. Foi a que pus em negrito. Chico diz, com todas as letras, que “as feministas têm razão” e que vai “sempre dar razão a elas”. Ele não se restringe a este caso. Ele diz sempre. Tirando ditadores e líderes autoproclamados e autoincensados, que costumam ter um parafuso a menos e, por isso, se acham infalíveis, ninguém na face da Terra tem sempre razão. Ninguém.

Devo confessar que fiquei um tanto chocado com a fala do imenso artista. A forma como ele lança essa afirmação é tão natural, que a gente se dá conta de que ele acredita no que está dizendo. Acha realmente que as feministas têm sempre razão.

Apesar do abalo, para mim, Chico continua exatamente no mesmo pedestal em que sempre o alcei. Continua a fazer companhia a Ary, a Mignone, ao Tom e aos demais. Sua frase sobre as feministas até que serviu pra jogar alguma luz sobre seu posicionamento político destas últimas décadas.

Incomodado e perseguido durante a ditadura dos militares, é compreensível que tenha guardado ressentimento. Se apoiou o Lula e o petismo, é porque via nesse movimento a antítese ao regime que lhe havia atazanado a existência. Ele não foi o único a escolher a mesma via pelos mesmos exatos motivos.

Quando foram desvelados o mensalão e, sobretudo, o petrolão, grande maioria dos que haviam visto no lulopetismo, um dia, o polo oposto e o antídoto à ditadura desembarcaram da carruagem, que idealismo tem limite. Chico continuou no comboio.

O imenso poeta e compositor, aliás, não se limitou a apoiar o personagem do ex-metalúrgico. Foi fervente defensor de sua sucessora, a inominável doutora, aquela que, em matéria de prejuízos causados ao povo brasileiro, só perde para o atual ocupante do Planalto.

Evidentemente, posso estar enganado, já que ninguém tem sempre razão. Mas me ficou a forte impressão de que Chico Buarque é daquele tipo de pessoa que, quando abraça uma pessoa ou uma causa, agarra-se a ela com unhas e dentes. Sua dedicação é total; sua fidelidade, canina; seu apego, acrítico. Ele parece incapaz de reconhecer que as vias do coração não devem ser incondicionais. Mais que isso, parece incapaz de admitir que pessoas podem até, às vezes, não ter razão.

O que nos espera

José Horta Manzano

Estampadas lado a lado, as duas notícias de ontem seriam até cômicas se não representassem um forte risco de escorregão para nosso país.

Por um lado, temos o atual presidente incentivando o povo a se armar, na boba ilusão de que o armamento da população aumentará necessariamente o número de devotos de sua minguada seita.

Por outro, temos o antigo presidente garantindo que, desta vez, vai: instalará a censura. Também este navega na doce ilusão de que ainda vivemos na era pré-internet, em que toda informação passava pelo rádio, pela tevê e pelos jornais.

O objetivo de cada um deles está fadado ao fracasso. No entanto, na mente maligna desses dois estropícios, vale qualquer meio de se manter eternamente no poder, seja pela imposição, seja pela obrigação. Atrás das armas de um e da censura do outro, virão ideias piores, pode ter certeza.

Só há um jeito de escapar desse destino perigoso – sem pegar em armas e sem censurar ninguém, naturalmente. É enxotar a ambos pelo voto.

Qualquer candidato que não seja um deles será, em princípio, menos daninho. Pra tirar os dois do caminho, o distinto leitor tem ampla escolha: Marina, Ciro, Huck, Leite, Doria, Moro, Mandetta, Dino, Pacheco e quem mais aparecer. Qualquer um. Vale até o Cabo Daciolo.

Tweet censurado

José Horta Manzano

Assim que foi anunciada a doença de Donald Trump, a empresa Twitter previu que alguns aproveitariam a ocasião para exprimir desejo de ver o presidente num caixão. Antes que acontecesse, foram logo avisando que bloqueariam a conta de quem tuitasse sua esperança de ver Trump morto pela covid.

Poucas horas mais tarde, ao se darem conta de que teriam de bloquear a conta de pelo menos metade dos usuários, explicaram que não era bem assim. Os tuítes macabros seriam apagados, mas a suspensão da conta só se faria “em alguns casos”.

Nos tempos de antigamente, isso não acontecia. Quando a comunicação ia por carta, telex ou fax, a gente escrevia o que bem entendia. Tirando algum caso (raro) de criminosa invasão de privacidade, ninguém lia as mensagens. A gente podia dizer o que quisesse sem receio de censura.

Ah, esse progresso! Como se vê, progredir é irmão gêmeo de regredir. Quando um aparece, o outro nunca está muito longe.

Tweet ‒ Nuclear
by Patrick Chappatte (1966-), desenhista suíço

Etimologia
Em latim, o verbo gradi significa andar, caminhar. Em português, temos alguns descendentes em linha direta: grau, degrau, graduar, gradual. Com adição de prefixos, formaram-se numerosos filhotes:

Progredir
Andar para a frente

Regredir
Andar para trás

Transgredir
Caminhar para além de um determinado ponto. Transpor determinada meta.

Agredir
Na origem, tinha o inocente significado de andar em direção a um ponto ou a alguém. Com o tempo, passou a significar atacar, investir.

Há outros cognatos: degradar, retrogradar, egresso, progresso, regresso, ingresso.

Interessante será notar que o Congresso, sempre pronto a dar um passinho à frente e outro pra trás, é membro legítimo da família.

Proficiência

José Horta Manzano

Vez por outra, topamos com alguma imprecisão de tradução na mídia brasileira. O texto original é mal transcrito, e a gente acaba não entendendo. É compreensível que isso aconteça, tão parco é nosso conhecimento de línguas estrangeiras. É pena, porque essa pobreza cultural acaba por estreitar o horizonte de todos, mas assim são as coisas. A gente imagina que, em outras terras, seja bem diferente. Em geral é – mas nem sempre.

É verdade que, na Holanda e na Dinamarca, são todos praticamente bilíngues. São pequenos países de língua praticamente desconhecida além-fronteira, onde o aprendizado de inglês é incentivado desde a escola elementar. O exemplo dos mais velhos, que praticam essa língua com habilidade, dá ânimo aos pequenos. E o círculo virtuoso se perpetua.

Mas nem todo estrangeiro é holandês ou dinamarquês. Alguns povos, mais recalcitrantes, são conhecidos pela aversão que sentem pelo aprendizado de línguas estrangeiras. Entre eles, destacam-se os franceses. Saudosos, talvez, do tempo em que a língua de Molière pairava acima das demais em prestígio e difusão internacional, resistem a estudar idiomas. Nesse terreno, são duros de molejo.

Acabo de topar com um magnífico exemplo da imperícia francesa com línguas estrangeiras. Le Petit Journal é um portal voltado para expatriados franceses. Gratuito, é financiado pelos anunciantes. Acolhe colaboração de franceses residentes no mundo inteiro. Na sequência da entrevista concedida por Lula da Silva estes dias, publicaram artigo assinado que leva título inquietante: «L’interview de Lula censurée par les médias brésiliens? – A entrevista de Lula censurada pela mídia brasileira?».

Le Petit Journal

No corpo do artigo, a dúvida do título se torna certeza. Afirmam, com todas as letras, que sim, a entrevista de nosso guia foi boicotada pelos outros veículos brasileiros. Incrédulo, tive de ler até o fim pra entender a trapalhada. A confusão baseia-se num tuíte da jornalista da Folha que entrevistou o Lula. Mônica Bergamo tuitou: «A entrevista de Lula (…) foi um ROMBO na censura no Brasil (…)». E a articulista francesa traduziu: «A entrevista de Lula (…) foi alvo da censura brasileira (…)». A autora do texto afirma ainda que a mídia brasileira não tratou do assunto e que a entrevista só foi mencionada em sites alternativos. Pra você ver aonde pode levar a pobreza de conhecimento de línguas.

Em conclusão, a moça leu o tuíte, não entendeu mas achou que devia ser o que não era pra ser mas que achava que era, resolveu seguir adiante assim mesmo, publicou o que não devia, seus leitores ficaram meio sem entender, e… viva São João!

Nesta era de fake news propositais, precisa acrescentar nova categoria: as fake news por imperícia. Assim caminha a humanidade.

Se quiser conferir, clique aqui.

Escapamos de boa

José Horta Manzano

Não sei se algum de meus leitores terá tido paciência para ler as 10 páginas do documento alinhavado pelo Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, reunido dia 17 de maio em Brasília.

O papel traz algumas particularidades. Dando mostra de que não acredita no retorno ao poder da presidente afastada, o diretório já marca, para o mês de novembro, encontro extraordinário para discussão do tema «Os desafios partidários para o próximo período», que pode ser tomado como previsão de derrota.

PT resolução 1Como seria de esperar, o Partido do Trabalhadores mostra estar de péssimo humor. Mesmo sem saber direito a quem atribuir a culpa, prova ser mau perdedor. Afinal, quem é que gosta de perder?

O documento retoma a desgastada e empoeirada retórica de antigos tempos. O texto vem coalhado de expressões tais como «velhas oligarquias», «reacionários», «forças conservadoras».

Interligne 18b

Uma leitura mais atenta revela o estado de espírito:

Nós & eles
A palavra «esquerda» é mencionada 7 vezes contra apenas 3 menções para a «direita».

Traição
«Golpe» ou «golpista» é o termo mais saliente. Aparece nada menos que 17 vezes em 10 páginas, perto de 2 vezes por página. É o cavalo de batalha do partido na atualidade. Resumo da ópera: quem não for da nossa opinião é golpista ou traidor. O raciocínio da companheirada é binário. Se não for sim, só pode ser não. No meio, não há nada.

Reação
A reação mais evocada pelo documento é o apelo à «luta» (7 aparições) e ao que resta de «popular» (14 vezes) nestes tempos de smartphone para todos.

Dilma e Lula 4Ídolos
Deveras interessante é o fato de «Dilma» e «presidenta» aparecerem 19 vezes, enquanto «Lula» e «ex-presidente» são mencionados apenas 7 vezes. Nosso guia mostra estar sendo relegado a segundo plano até dentro do próprio partido. Em número de menções, empata até com «Temer» e «ilegítimo».

Corrupção
A palavra «corrupção» aparece uma única vez. É no pedaço em que os dirigentes do partido se queixam de a Operação Lava a Jato se ter focalizado “seletivamente” sobre eles. O assunto que predomina há dois anos não merece mais do que essa menção “en passant”.

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Aparelhamento fracassado
O mais inquietante, no entanto, vem no parágrafo que reproduzo logo abaixo. Em poucas linhas, o partido mostra-se arrependido de não ter alcançado total aparelhamento das Forças Armadas, do Itamaraty e da mídia.

Lenin 1«Fomos igualmente descuidados com a necessidade de reformar o Estado, o que implicaria impedir a sabotagem conservadora nas estruturas de mando da Polícia Federal e do Ministério Público Federal; modificar os currículos das academias militares; promover oficiais com compromisso democrático e nacionalista; fortalecer a ala mais avançada do Itamaraty e redimensionar sensivelmente a distribuição de verbas publicitárias para os monopólios da informação.»

Como se vê, o aparelhamento podia ter sido ainda mais abrangente. Cruz-credo! Escapamos de boa.

No entiendo

José Horta Manzano

Você sabia?

Plantamos e ceifamos o trigo, mas nunca provamos do pão branco.
Cultivamos a videira, mas não bebemos o vinho.
Criamos os animais, mas não comemos a carne (…) (*)

Imigração 6Assim, em poucas e comoventes palavras, um imigrante italiano respondeu a um ministro de seu país, que ralhava contra conterrâneos que abandonavam a terra natal em busca de dias melhores no estrangeiro.

No século decorrido entre 1850 e 1950, a Itália viu partir 30 milhões de cidadãos em busca de dias melhores. A maior parte deles veio dar com os costados em terras americanas – Brasil, Argentina e EUA em especial. A Itália é, com folga, o país europeu que maior contingente de emigrantes despachou.

Ninguém jamais saberá o número exato dos que que lá saíram. Mais difícil ainda será afirmar, com precisão, o destino de cada um. Que dizer, então, da contagem dos descendentes, os «oriundi»? Na falta de dados exatos, restam as estimativas.

Os Missionários de São Carlos – os escalabrinianos – são uma congregação religiosa italiana que se dedica, entre outras missões, a assistir os italianos dispersos pelo planeta. São os mais bem aparelhados para fornecer estimativa sobre o número de originários da península.

Segundo a congregação, o Brasil abriga a mais numerosa comunidade de «oriundi», calculada em mais de 27 milhões de pessoas. Em seguida, vêm a Argentina (20 milhões) e os EUA (17 milhões). Os demais países seguem bem atrás – o quarto colocado, a França, não abriga mais que 4 milhões de descendentes.

by Amarildo Lima, desenhista capixaba

by Amarildo Lima, desenhista capixaba

Estatística não é o ponto forte do Brasil. Assim mesmo, costuma-se dizer que, nos anos 1920, metade dos habitantes da cidade de São Paulo era estrangeira. Desse contingente, metade eram italianos. Se não for verdade, não estamos longe.

Uma curiosidade: a população de nossa hermana República Argentina é constituída de 47% de «oriundi», um de cada dois habitantes do território. Sem sombra de dúvida, é o mais italiano dos países. Além da Itália, naturalmente.

Imigração 7Ainda hoje, sobrevivem por volta de duzentos periódicos editados em língua italiana fora da Itália. Nestes tempos de internet, praticamente todos abandonaram a edição em papel para dedicar-se unicamente à versão digital. A maioria espaçou a tiragem: de diária, passou a semanal; de semanal, passou a mensal. E assim por diante.

Na Venezuela, que conta com um milhão de descendentes, algumas publicações resistem. Entre elas, La Voce (= A Voz), diário fundado em 1950, hoje disponível unicamente online. Resiste em todos os sentidos.

Corajoso, o quotidiano dá notícia da incrível erosão da popularidade de dona Dilma. Talvez, por ser dirigido a público específico, seja menos visado pela truculência dos mandatários. Ou, mais provável, os censores – ignorantes por natureza – não estão em condições de entender nenhuma língua estrangeira. Melhor assim.

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(*) Citação afixada no Museu da Imigração, em São Paulo. O museu nasceu em 1887 como Hospedaria de Imigrantes. Para ali eram encaminhados os recém-chegados, que desembarcavam em Santos sem lenço e sem dinheiro, mas cheios de esperança e prontos pra arregaçar as mangas.

Calúnia rancorosa

José Horta Manzano

«A calúnia rancorosa [de Hélio Bicudo] e sua exploração pela imprensa servem para nos alertar sobre a necessidade de limites morais na disputa política.»

A frase é trecho de carta enviada pelo Lula ao filho de Hélio Bicudo. Na missiva, o antigo presidente se queixa das declarações do antigo aliado e as define como caluniosas.

Nas entrelinhas, nosso guia, que assina a carta, reitera um dos objetivos maiores de seu partido: a imposição de limites para a livre expressão. Em outras palavras, deixa patente seu apego à censura prévia.

Todos sabemos que a lei prevê mecanismos para punir caluniadores, injuriadores e difamadores. De propósito, o antigo mandatário passa por cima disso, como se a lei não existisse.

Ah, seria tão bom se vozes discordantes pudessem ser caladas no nascedouro, não é Lula?

Interligne 18cMaiores informações estão aqui.

Indignação e catarse

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Atos violentos, como os ataques terroristas perpetrados na França há alguns dias, costumam gerar forte indignação em todo o mundo. Em mim também. No entanto, o que mais tem chamado minha atenção nos últimos meses é a repetição por toda parte de comportamentos que têm por objetivo primário o de impor de forma violenta as próprias percepções, crenças e visões de mundo a todo o restante da humanidade.

Cagoule 1Exemplos desse tipo de conduta incluem desde casos corriqueiros, como carros circulando com o aparelho de som ligado na potência máxima, passando por comentários raivosos nas redes sociais diante de literalmente qualquer tipo de opinião expressa, até os assim chamados “hate crimes” – crimes de ódio. É como se os outros tivessem se transformado em simples obstáculos que impedem que cada um acesse e desfrute tudo aquilo que lhe dá prazer. Assassinatos em série com requintes inimagináveis de perversidade, esquartejamentos, estupros, casos de pedofilia e violência doméstica multiplicam-se exponencialmente, atingindo agora não apenas os desafetos habituais mas também as pessoas mais próximas do círculo familiar, do ambiente de trabalho ou com as quais o infrator possui laços afetivos. Não há escrúpulo, culpa ou remorso. Nenhuma emoção penosa o suficiente para demover o mal-intencionado do desejo de causar dor, sofrimento e morte.

Frente a esse cenário catastrófico, uma pergunta insiste em percorrer meu cérebro: o que leva um ser humano a romper com as as regras civilizatórias mais básicas? Desconfio instintivamente do diagnóstico pontual de transtornos mentais. A coisa está mais para epidemia do tipo ebola do que para asilo de loucos. O vírus do rancor, do ódio e da vingança dissemina-se em velocidade francamente espantosa em todos os cantos do mundo.

A agressividade não é estranha nem rara no mundo animal. Lutas de vida ou morte são bastante frequentes entre animais que disputam território, comida, água ou parceiros sexuais mas, até onde eu saiba, não há notícia de embates sangrentos que não envolvam essas causas.

Há alguns meses, assisti a um debate capitaneado por um filósofo francês cujo argumento central era o de que a indignação não é um sentimento verdadeiramente moral. E explicava: nós só nos indignamos com o comportamento dos outros, nunca com nossa própria conduta. Caso alguém aponte um ato antiético que tenhamos eventualmente cometido, temos sempre uma justificativa na ponta da língua: eu estava desequilibrado naquele momento, não tive a intenção, foi um segundo de distração, não pesei as consequências, etc. etc. etc.

Cruzada 1Essa argumentação voltou à minha cabeça com força nos últimos dias. Temos, como sociedade, um novo bode expiatório já pronto para o abate: o fanatismo islâmico contraria os princípios mais caros do cristianismo, do judaísmo, do budismo e de muitas outras religiões “ocidentais”. O que fazer então? Treinar novos exércitos de combatentes e declarar nova guerra santa? Exterminar todos aqueles que agridem frontalmente nossa fé? Em nome de quê? É bem possível que os comandantes desses novos batalhões argumentem que estão apenas defendendo os valores da vida, da solidariedade, da compaixão, da harmonia e da conciliação.

Mas… espere um pouco: é somente a mim que esse convite à conflagração parece insano? Ou será que ainda há pessoas que se dão conta de que os dois lados do conflito estão contaminados pela mesma doença? Aquela enfermidade que nos obriga a colocar, como ponto de honra de nossa vida, a minha ideologia, as minhas crenças políticas e religiosas, o meu estilo de vida têm de prevalecer, custe o que custar.

by Diogo Salles, desenhista paulista

by Diogo Salles, desenhista paulista

A pergunta permanece: por quê? Um de meus professores de psicanálise me encantou com a teoria de que todas as pendengas sociais partem de uma sensação pessoal de insatisfação. Não de desequilíbrio de poder, repetia ele, mas de um desequilíbrio de satisfação. Um formulado bastante sensato, a meu ver. Se estou satisfeita com minha vida afetiva, profissional e financeira, que razão teria para ficar me perguntando se outras pessoas estão mais ou menos satisfeitas do que eu?

Em nossa sociedade psicologicamente imatura e egocêntrica, parece ser mais fácil confundir poder e força, conhecimento e sabedoria. Infelizmente, ainda estamos às voltas com as crises de birra típicas da infância e engatinhando na difícil arte de lidar com frustrações e limites.

O mais angustiante, entretanto, é que a indignação diante de acontecimentos tão nefastos dura apenas um segundo. Os protestos de massa podem aliviar significativamente a tensão do momento, mas a catarse não constrói. Quase imediatamente voltamos à rotina de engolir outros sapos pessoais, a tensão começa a se acumular novamente e a insatisfação nos empurra para a busca de novos bodes expiatórios.

A pergunta agora é: até quando vamos nos conformar em tratar dos sintomas e voltar as costas para a busca dos motivos de nossa insanidade coletiva?

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

A rabugice e a kalachnikov

José Horta Manzano

Interligne vertical 12«Je défendrai mes opinions jusqu’à ma mort, mais je donnerai ma vie pour que vous puissiez défendre les vôtres.»
«Hei de defender minhas opiniões até morrer, mas darei a vida para que você também possa defender as suas.»

François-Marie Arouet, conhecido como Voltaire (1694-1778), escritor e filósofo francês.

Nem sempre é fácil aturar o contraditório. Ter de suportar opinião contrária à nossa não é exercício agradável. Que fazer? Não tem jeito: a convivência entre desiguais é a base da sociedade civilizada. Não é agradável viver num grupo de pensamento único, onde a expressão individual é proibida.

Psiu 1O fato de não tolerar ideias distintas é mau sinal. No mínimo, mostra insegurança, medo, preocupação. É indicador seguro de fraqueza. O desconforto em coabitar com opiniões divergentes pode ser expresso de diversos modos. Vai da ranzinzice até o assassinato.

O sujeito de ideias liberais que não suporta o falatório inflamado do primo comunista prefere desaparecer quando o parente chega de visita. Já o fraco de espírito – pouco instruído, doutrinado e fanatizado – parte direto para o assassinato: foi o que vimos dia 7 jan° 2015 em Paris, quando doze viventes foram ceifados por rajadas de metralhadora.

Metralhadora 1Há os que fogem do primo falante. Há também os que sacam da kalachnikov. Há ainda outros métodos de calar opiniões que estorvam. Os que nos governam atualmente, vendo que a massa pensante do Brasil é barreira para a conquista de seus objetivos hegemônicos, procuram um meio de silenciar vozes discordantes.

Pisoteiam nossa história. A liberdade, em todas as suas facetas, tem sido o alvo maior da luta do povo brasileiro. O símbolo do apreço que temos por esse bem precioso aparece, logo de saída, na data mais importante do País. Nem a insituição da República, nem o dia de Natal, nem o dia de Tiradentes, nem o Dia das Mães é comemorado com a mesma ênfase que o 7 de setembro. E por quê? Porque marca a conquista da liberdade, nossa maior riqueza.

Censura 1Nossa presidente, que se autoproclama «democrata» e que costuma dizer que combateu a ditadura para que o Brasil recobrasse a liberdade, chefia um governo que insiste em instaurar a censura dos meios de comunicação.

O plano vem com nome adocicado, mas não consegue ocultar seu verdadeiro objetivo, que é calar vozes discordantes. Para evitar esse retorno ao obscurantismo, pressão tem de ser exercida sobre nossos distraídos parlamentares. Em última instância, a aprovação desse monstrengo legislativo depende deles.

Abram o olho, compatriotas! Guardadas as devidas proporções, rabugice, kalachnicov e «regulação da mídia» são farinha do mesmo saco. Todas elas exprimem intolerância para com opiniões divergentes.

Qui nome qué?

José Horta Manzano

Urna 7Uma das afiliadas ao Partido Comunista do Brasil, atualmente cumprindo mandato de deputada federal, está cotada para dirigir o Ministério da Cultura. Nada menos que isso.

A moça já foi prefeita de Olinda. Sua maior qualidade – salientada pelo Estadão – é ser próxima de ambas as cabeças da hidra bicéfala que encarna nosso Executivo. Trocando em miúdos: é vista com bons olhos por dona Dilma e por nosso guia.

Das dezenas de siglas que compõem a aquarela de nosso sistema partidário, o(s) partido(s) comunista(s) são, em teoria, os que contam com alicerce ideológico mais profundo. Em teoria, continuam aferrados à doutrina que, posta em prática por Lênin, terminou no desastre que vimos.

Manif 10Na ideologia comunista, «cultura» é termo dúbio, perigoso, ambíguo – um quase tabuísmo. Cultura é bom na medida que se encaixa nas diretrizes do partidão. Nada de arte degenerada, nada de peças, espetáculos, livros, novelas ou filmes que possam trazer embutida alguma crítica ao regime. Nem a mais leve desviação será tolerada. A censura é fortemente recomendada.

Que nosso Ministério do Esporte tenha estado, estes últimos anos, nas mãos de um nostálgico do paraíso soviético é compreensível. A exaltação da excelência física foi (e continua sendo) característica de regimes autoritários. Em competições olímpicas, a antiga União Soviética era páreo duro. É verdade que, no Brasil, a gestão do ministro comunista foi pífia. A culpa há de ter sido dos loiros de olhos azuis. Que fazer?

Já entregar as rédeas da cultura nacional a um membro de carteirinha do partidão parece-me temeridade. Se a ministra se encasquetar em impor o pensamento único, pode dar um angu danado. A não ser…

… a não ser que as siglas já não signifiquem mais nada. Pensando bem, acho que é isso mesmo.

Partido 1Faz tempo que o Partido dos Trabalhadores abandonou os trabalhadores para dar prioridade aos milionários. O Partido Progressista, bem mais conservador do que seu nome indica, congrega alguns dos milionários mais contestados do país: o Maluf à frente de todos. E por aí vai.

Desconfio que o partido comunista não fuja à regra. De comunista, só tem o nome. Essa insignificância da denominação de fachada de nossos partidos me lembra historinha antiga.

Interligne vertical 7Ao pedir ao cliente que escolhesse a cor da mercadoria, o caipira perguntou:
«Di qui cô qué?»

E o freguês:
«Di caqué cô.»

Vale transpor ao sistema político brasileiro. Na hora de escolher o nome do partido, fica assim:

Interligne vertical 7«Qui nome vai?»
«Caqué um, uai!»

Proponho que o nome de agremiações políticas seja abolido. Que se passe a conhecê-las unicamente pelo número. É mais que suficiente. Sou do 37. Só voto no 59. Prefiro o 83. Que tal?

Obscurantismo

José Horta Manzano

Você sabia?

Hoje, às 16 horas, Curitiba terá direito a uma partida entre o Irã e a Nigéria. Não só a capital paranaense, mas o planeta inteiro. Em tempo real. Em directo, como dizem nossos amigos lusos.

Eu disse em tempo real? Well… não é bem assim. Há mundo real e há mundo de faz de conta. Algumas regiões do globo vivem apartadas, debaixo de uma redoma, subjugadas e domadas por uma clique que morre de medo de ser apeada do poder.

Adão e EvaUm desses lugares abafados é justamente a República Islâmica do Irã, a antiga e gloriosa Pérsia. A revolução de 1979, que despachou o xá para o exílio e baniu seu regime brutal, ressuscitou certos costumes medievais. Entre eles, a proteção da moral pública, tal como é idealizada pelos guias espirituais da nação.

Segundo a concepção deles, expor ao público um corpo feminino é ato gravemente ofensivo, a evitar a todo custo. No extremo oposto da austera visão iraniana, o brasileiro está longe de sentir-se horrorizado ao contemplar imagem de beldades pouco vestidas. Muito pelo contrário.

Em estádios brasileiros ― especialmente em dias de calor ― moça bonita não costuma esconder suas curvas. Já nas telinhas iranianas, mostrar mulheres seminuas é simplesmente inconcebível. Como conciliar as cenas captadas pelas câmeras brasileiras e a pudicícia persa?

É simples, ora pois. Basta renunciar à transmissão em tempo real. A televisão iraniana fará a retransmissão com defasagem de alguns segundos, tempo necessário para tapar nudezas tropicais. Toda vez que as câmeras se fixarem em imagens insuportáveis para a castidade persa, os cidadãos daquele país terão direito a um substitutivo. Pode ser uma tela preta ou algum verso de Camões. Talvez até uma receita de quindim.

A sorte dos técnicos malabaristas iranianos é que se espera um tempo fresquinho para Curitiba hoje. Se escândalo houver, será menos repreensível.

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A notícia nos chega pela versão online do grupo italiano AKI de comunicação.

Linha quebrada

José Horta Manzano

O alvorecer do século XX conheceu espetacular movimento estético. Todo feito de curvas lânguidas e voluptuosas, o Art Nouveau tomou conta do ambiente artístico. Pintura, arquitetura, grafismo sucumbiram ao charme da nova tendência.

Art Nouveau arquitetura, pintura e decoração

Art Nouveau: arquitetura, pintura e decoração

A quase ausência de ângulos concedia liberdade ilimitada à criação e trazia um não sei quê de fim de época, como se se estivessem queimando os últimos cartuchos antes do fim da festa. De fato, a festa acabou. A carnificina da Grande Guerra (1914-1918) deu conta de aniquilar todas as ilusões.

Nos anos 20 e 30, surgiu nova tendência artística. Era o Art Déco, a arte decorativa. As curvas sensuais foram banidas. Ângulos ríspidos e círculos bem organizados tomaram conta. O novo movimento ― ordenado, rigoroso, controlado, vigiado, canalizado ― combinava com os novos tempos.

Art Déco domínio de ângulos e círculos

Art Déco: domínio de ângulos e círculos

O Art Déco cresceu ao mesmo tempo que regimes fascistas e nazistas, de forte tendência autoritária. A hecatombe da Segunda Guerra (1939-1945) se encarregou de enterrar tanto os regimes quanto, de quebra, o movimento artístico.

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Já faz décadas, desde que a circulação de veículos automóveis se acentuou, que brotou a ideia de dar diretivas ao motorista por meio de inscrições no solo. A simbologia, feita de linhas e de inscrições, é conhecida por todos. Alterações do fluxo têm sido tradicionalmente indicadas por linhas curvas, tanto para alargamento, quanto para afunilamento. A linha curva tem efeito colateral não desprezível: incita à fluidez e à harmonia.

Sinalização curva tradicional

Sinalização tradicional com linhas curvas;

O que vou dizer agora pode parecer brincadeira, mas asseguro-lhes que é verdade. As autoridades que coordenam o tráfego da cidade de São Paulo acabam de substituir a curva por um zigue-zague. Parece um primeiro de abril atrasado.

Duas reflexões me ocorrem. A primeira diz respeito ao comportamento dos motoristas no tráfego do Brasil em geral e de São Paulo em particular. Linha angulosa combina com a rispidez e a selvageria que caracterizam os usuários. Comportamentos bicudos são atiçados pelas linhas angulosas. Está criado um círculo vicioso em que a agressividade se autoalimenta.

Sinalização «diferenciada» Crédito: Rivaldo Gomes, Folhapress Clique na foto para ler a reportagem

Sinalização «diferenciada»
Crédito: Rivaldo Gomes, Folhapress
Clique na foto para ler a reportagem

A segunda reflexão é sobre o momento que nosso País atravessa. Tentações autoritárias, vindas todas do andar de cima, mostram suas garras e ameaçam os cidadãos que somos. Regulação de internet, controle de mídia, censura à imprensa são farinha do mesmo saco. Tendem todas a incrementar a dominação dos que estão por cima.

Vamos torcer para que as linhas quebradas do solo paulistano não sejam prenúncio de quebras maiores. De liberdade, por exemplo.

O caso Nardoni

José Horta Manzano

A liberdade de um termina onde começa a do outro, costuma-se dizer.

Para medir superfícies ― especialmente quando delimitam propriedades ― o gênio humano criou dispositivos e aparelhos de impressionante precisão. As fronteiras que dividem países evoluídos, por exemplo, são repertoriadas, catalogadas e cadastradas centímetro por centímetro. Não há erro possível. Até aqui, mando eu; a partir deste exato ponto, o dono é você.Geômetra 2

Quantidades, pesos, volumes, forças, fluxos, empuxos e outros fenômenos físicos podem ser medidos com igual justeza. Mede-se até a intensidade de tremores de terra que rebentam placas tectônicas quilômetros abaixo da superfície do globo, em lugares onde nunca ninguém pôs os pés. Nem jamais os porá.

Um evento, uma força, um objeto se prestam a ser mensurados. O resultado de medições feitas por diferentes pessoas, salvo erro ou omissão, há de ser o mesmo. São dados objetivos.

Quando tratamos de medir liberdades, a coisa muda de figura. Saímos do objetivo para adentrar o subjetivo. São outros quinhentos.

Como medir sentimentos? Como ter certeza de que o seu amor por mim é maior do que o meu por você? Como afirmar que minha dor é maior que a sua? É aí que a porca torce o rabo.

Para sábado 2 de março, estava marcada a estreia de uma peça de teatro. Peças estreiam a todo momento sem causar rebuliço. No entanto, essa obra trata de assunto mais que especial. Está baseada no caso daquela garotinha atirada pela janela de um prédio paulistano em 2008.

A mãe da garota requereu ― e conseguiu ― que a exibição da peça fosse embargada. A decisão da Justiça foi proferida na undécima hora. Este caso mostra os limites vacilantes, precários, oscilantes entre a liberdade de um e a do outro.

Por um lado, a liberdade de expressão é constitucionalmente garantida nas democracias em geral e no Brasil em particular. Desde que não calunie o próximo nem atinja sua honra, a cada um é autorizado exprimir sua opinião. Visto sob esse ângulo, os responsáveis pela peça teatral estão apenas exercendo um direito que lhes é garantido.

Por outro lado, a mãe da garota ainda guarda marcas profundas do que aconteceu 5 anos atrás. É compreensível. É-lhe insuportável a ideia de que a triste história de que foi vítima seja de novo dada em espetáculo a milhares de assistentes. Parece-lhe um escândalo. Visto sob esse ângulo, a intenção da requerente foi evitar uma nova intromissão no que considera seu drama pessoal.

Tanto quanto a liberdade de expressão, o direito à privacidade é garantido a todos os cidadãos. A quem dar razão, então? Desatar esse nó górdio é bem mais complicado do que parece. É um caso típico em que dois direitos se imbricam, se superpõem. Qual dos dois sobressai?

O tempo é remédio para tudo. Na minha opinião, é cedo demais para voltar a expor em praça pública um evento que comoveu a nação. Há que deixar passar mais alguns anos. Se o Diário de Anne Frank pôde ser publicado já em 1947, apenas dois anos após o fim da Segunda Guerra, foi porque tanto a autora quanto os personagens principais não faziam mais parte deste mundo. O livro era já um relato histórico.

Todos os personagens envolvidos no caso da menina defenestrada ― mãe, pai, madrasta, advogados, avós, irmãos, juízes, jurados ― ainda vivem. Os condenados ainda cumprem pena de prisão. As emoções estão longe de se apaziguar.Geômetra 1

Todos têm razão, tanto os responsáveis pela peça, quanto a mãe da criança. Mas é cedo. Uma geração tem de passar. Baixada a poeira, o dia virá em que o caso vai poder ser contado em prosa, verso e imagem.

Se eu tivesse de julgar, daria razão aos que determinaram o embargo da peça. No meu entender, a dor da mãe sobrepuja o interesse monetário dos organizadores do espetáculo. Sobrepuja também a curiosidade de espectadores em busca de detalhes escabrosos. Hoje em dia, alguns cliques no computador permitem reler jornais da época, rever reportagens televisivas e reviver aqueles momentos de estupor e de comoção.

Um dia, a exibição da peça poderá ser autorizada, sim, senhor. Mas não agora.

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Nota etimológica:
Na Itália do Norte, sobrenomes derivados de prenomes germânicos são comuns.

Assim, o germânico Leonhard transformou-se no italiano Leonardo e gerou uma coleção de sobrenomes: Leonardi, Leonardelli, Leonardini, Lunardi, Lunardelli e muitos outros.

Bernhard evoluiu para Bernardo, que deu origem a outra família de sobrenomes: Bernardi, Bernardini, Bernardoni, Bernardelli, Bernardinelli e outros mais.

A probabilidade é grande de que Nardoni seja membro de uma das  famílias mencionadas. Será um Leonardoni ou um Bernardoni apocopado, sem as primeiras letras.