O gato e o biscoito

José Horta Manzano

Não somos os únicos a achar que gato, só porque nasceu no forno, é biscoito. Outros também incorrem nesse erro primário.

A lei argentina de nacionalidade diz o seguinte:

“Son argentinos todos los individuos nacidos en el territorio de la República, sea cual fuere la nacionalidad de sus padres, con excepción de los hijos de ministros extranjeros y miembros de la legación residentes en la República.”

Portanto, a nacionalidade do pais hermano é garantida a todos os nascidos no território salvo a filhos de funcionários estrangeiros que estiverem no país a serviço. Nesse ponto, a lei argentina e a brasileira são idênticas.

A propósito da morte do jornalista Ricardo Boéchat, o jornal Clarín, de Buenos Aires, estampou a manchete abaixo.

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Na tentativa de se apoderar do ilustre falecido, escorregaram no biscoito do gato do forno. O jornalista realmente nasceu em Buenos Aires. No entanto, seu pai, diplomata, estava a serviço do governo brasileiro. Sua situação é claramente definida, tanto na lei de nacionalidade de lá quanto na de cá: não nasceu argentino, mas brasileiro. Se tivesse desejado adquirir a nacionalidade do país hermano, teria tido de enfrentar processo ordinário de naturalização, como qualquer estrangeiro.

Boéchat nasceu e morreu brasileiro. Portava um sobrenome suíço, da região das montanhas do Jura. Não estou a par dos segredos da família dele mas, se tiver sido realmente descendente de suíços, teria tido direito a reclamar o passaporte helvético. Não sei se chegou a fazê-lo.

O culpado de hoje ser fim de ano

Martín Antonio Caparrós (*)

Chamava-se, parece, Luigi Lillio e nasceu, se nasceu, em 1510 num pequeno porto calabrês que na época era Psycròn e agora se chama Cirò, situado exatamente na sola da bota. Mas não há registro de seu nascimento: naqueles tempos ninguém anotava essas coisas.

Supõe-se que pelos 20 anos foi-se embora para Nápoles estudar medicina; supõe-se que tenha conseguido. Supõe-se que daí se abalou para Roma, mas ninguém sabe o que foi fazer lá. E dali, sempre supostamente, foi a Perugia, onde parece que ensinou medicina. Talvez tenha tido algum filho, talvez uma mulher, um homem, um cão fiel. Quem sabe. Quiçá se entristecia com a chuva, quiçá comia carne de porco na Quaresma, quiçá detestava os exageros de Dante Alighieri. Quiçá imaginava que o futuro lhe pertencesse. Supõe-se que em 1574 já estava morto, mas nem sobre isso se tem certeza.

Sua vida se dissolveu no ar como tantas, como a enorme maioria. Algum dia inda hei de calcular quantos, dos 100 bilhões de homens e mulheres que já viveram, deixaram alguma lembrança. De nosso personagem, apesar de tudo, alguma coisa sobrou.

Pra começar, há duas menções. Há a carta que o conterrâneo Giano Teseo Casopero lhe mandou dia 28 de janeiro de 1532 pra contar-lhe que em Nápoles não havia perdido tempo e se tinha concentrado nos estudos: «Tenta descobrir sempre algo novo, de maneira que, com a bênção de Mercúrio, possas ser teu próprio patrão e vender tua arte a bom preço». E havia a carta que um certo cardeal Cervini escreveu dia 25 de setembro de 1552 a um colega em Perugia pedindo que conseguisse um aumento para «messer Aluigi Gigli».

Fora isso, não sabemos nada: se era alto e loiro ou atarracado e dispéptico, se vivia apressado, se gostava de vinho. No entanto, hoje vamos beber como cossacos por culpa dele.

Porque o tempo, naqueles dias, era caótico. O mundo ocidental e cristão se esforçava por usar um calendário que já carregava 1500 anos de problemas. Tinha sido imposto por Júlio César no ano 45 aC, uma façanha e tanto. O problema é que seu desajuste com relação ao ciclo solar fazia que o equinócio de primavera já estivesse caindo em 10 de março e continuasse regredindo em direção a janeiro. O tempo dos homens não combinava com o tempo do céu.

A Igreja de Roma sentia o baque: os dias se lhe escapavam das mãos sem que conseguisse fixar corretamente a data das festas religiosas. O Vaticano precisava, entre outras coisas, voltar à tradição de celebrar a Páscoa no primeiro domingo depois da Lua cheia que se seguia ao equinócio. Era imperioso reformar o calendário, mas não era fácil. Não sabemos o que levou senhor Lillio a pensar que ele mesmo podia fazer isso. Sempre há, felizmente, pessoas que acreditam que podem o inacreditável.

Lillio escreveu um tratado em que explicava o plano: bastava eliminar alguns anos bissextos e suprimir 10 dias numa canetada. Os bissextos, naturalmente, não atrapalhavam ninguém, mas os 10 dias despertaram resistência feroz. Os romanos pobres suspeitavam uma manobra dos senhorios para roubar-lhes uma semana e meia de aluguel.

Ao final, apesar de tudo, a mudança se fez: o dia 5 de outubro de 1582 passou a ser 15 de outubro. Lillio já estava morto quando um certo Ugo Boncompagni ‒ de quem sabemos muita coisa ‒ impôs o calendário e lhe deu o próprio nome.

Boncompagni deu à obra o nome que já havia inventado para si ‒ Gregório XIII ‒ porque era papa, e os papas fazem essas coisas. O calendário gregoriano é o culpado de hoje ser 31 de dezembro e de que esta noite nos pareça que tudo termina e tudo começa. Luigi Lillio, se é que existe, se é que existiu, deve estar morrendo de rir.

(*) Martín Antonio Caparrós (1957-) é escritor e jornalista argentino.

Tradução deste blogueiro.

 

No meio do caminho

«Uno de los grandes nudos en que se metió Brasil es precisamente esa nueva clase social que fue llevada a las puertas del paraíso de la clase media, pero no logró entrar. Quedó en el umbral, luego de haber conocido parte de sus bondades, pero sin librarse del universo de maldades que atormentaban su vida anterior.»

by Juan Arturo García Zelegón, desenhista nicaraguense

by Juan Arturo García Zeledón, desenhista nicaraguense

«Uma das enrascadas em que o Brasil se meteu é exatamente o fato de essa nova classe social ter sido levada às portas do paraíso sem conseguir entrar. Ficou no meio do caminho, vislumbrando parte das novas benesses, mas incapaz de se livrar do universo de maldades que atormentavam sua vida anterior.»

Interligne 18b

Fragmento luminoso do artigo analítico Qué le pasa a Brasil, publicado em 12 abr 2015 pelo diário argentino Página 12. A frase é certeira. A charge é do cartunista nicaraguense Juan Arturo García Zeledón – JAGZ.

Deus é mesmo brasileiro?

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Deus triangulo 2Bom, eu não costumo achar que conheço a vontade de Deus ou seus planos para nosso futuro. Não posso nem mesmo argumentar que mantenho diálogos frequentes com a divindade, durante os quais Ele me explica os detalhes de algum acontecimento que não compreendo de imediato.

Esforço-me apenas para identificar os sinais de Sua intervenção em nosso cotidiano. E, se tenho feito a lição de casa com denodo e precisão, parece que Ele não se sente lá muito à vontade em ser nosso compatriota. Se não, vejamos:

Interligne vertical 11c1. Ele indicou recentemente como seu lídimo representante aqui na terra um argentino e, pior, não foi a única vez que preferiu apostar num cidadão de outro país. Ao contrário, em todos os pleitos anteriores, foi sempre um estrangeiro o escolhido;

2. Levou de nosso convívio nos últimos meses os mais doces e apaixonantes personagens de nossa cena artística, literária e educacional. Gente talentosa como Millôr Fernandes, José Wilker, Ariano Suassuna, João Ubaldo Ribeiro, Rubem Alves. Acaba de atacar desta vez no plano político, levando-nos de um só golpe e sem aviso prévio um promissor integrante da nova geração de políticos brasileiros, Eduardo Campos. Não me entendam mal, não conheci Campos pessoalmente e entrei em contato com muito poucas de suas ideias. Nem o fato de ele ser neto de uma figura respeitável como Miguel Arraes me servia de garantia de que os rumos de nosso país seriam de fato mudados. Apenas ele me parecia ter um fogo que há muito tempo não se via por estas bandas e um brilho especial nos olhos. No conjunto, Deus nos levou todo um punhado de pessoas intelectualmente articuladas, bem humoradas, de bem com a vida e capazes de nos colocar na boca o gosto bom da esperança;

3. Essa última perda reeditou em meu peito a dor angustiante da perda de outro nome emblemático na história política nacional: Tancredo Neves. Depois de vinte e um longos anos de chumbo e sombras, desapareceu aquele que talvez tenha sido nosso último estadista. Já os ratos de porão de nossa elite política continuam vicejando e engordando, sempre tramando novos esquemas pelas nossas costas e levando seus parentes e pets para passear em jatos da FAB: Maluf, o clã Sarney, Renan, Collor, Arruda, Cabral, Lula, José Dirceu, Genoíno… a lista de nomes politicamente asquerosos não termina nunca;

4. Mesmo mantendo-o vivo, afastou de nós e do nosso território um personagem do calibre do ministro Joaquim Barbosa, o único magistrado em toda a história republicana que, ao menos a meus olhos, conseguiu se mostrar destemido, dando nome aos bois sem titubear e usando um linguajar simples de ser compreendido, fossem eles seus pares, governantes ou outras figuras públicas.

NuvensAnalisando esse padrão de intervenção divina na história de nossa pátria – ou seja, o de permitir que a tensão vá se acumulando, os ânimos se exacerbando e chegando próximo a um ponto de ruptura, sem que jamais haja uma real chance de descarga e alívio final da tensão – cheguei à conclusão de que só há duas hipóteses para explicar esses últimos acontecimentos: ou Deus quer que nos ferremos todos porque não temos como povo o potencial para gerirmos de maneira satisfatória nossas próprias vidas, ou Ele nos está dando, mais uma vez, um empurrão para que assumamos finalmente as rédeas de nosso destino. Na dúvida, por ignorância ideológica e por ser uma pessoa de boa vontade, opto pela segunda.

Imagino mesmo que se eu O cobrasse, ele diria algo como:

Interligne vertical 11“Mas, minha filha, não coloque toda a responsabilidade exclusivamente nas minhas costas. Eu lhes concedi o dom do livre arbítrio exatamente para que vocês pudessem relativizar o impacto de muitos de meus planos. Se não o fizeram, foi por vontade humana e não divina. Eu lhes dei um país rico em recursos, uma terra generosa e um povo amável e acolhedor. Por que vocês não colocam em prática os valores nos quais acreditam e ficam esperando que lhes caia dos céus a solução de todos seus problemas? O que você quer de mim? Que eu lhe indique o próximo salvador da pátria? Isso não é problema meu, ora bolas!”

P.S.:
Acabo de descobrir uma nova interpretação para a vontade de Deus em levar Eduardo Campos de nosso convívio. O que Ele queria, suponho eu, era assistir de camarote a disputa de quem pode se declarar seu verdadeiro – e único – herdeiro político! Como muitos de nós humanos, ouso acrescentar.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Frase do dia — 110

«Eleito papa, Francisco pediu aos argentinos que dessem dinheiro aos pobres em vez de ir a Roma saudá-lo. Há pouco, decidiu tirar um passaporte comum argentino. Doutora Dilma foi a Roma festejar o barrete de Dom Orani Tempesta. Na comitiva, um lote de passaportes especiais.»

Elio Gaspari, em sua coluna da Folha de São Paulo, 23 fev° 2014.