Crime de responsabilidade

José Horta Manzano

Bolsonaro passou por cima do Itamaraty e mandou o chefe de cerimonial do Planalto convidar embaixadores estrangeiros lotados em Brasília para um encontro a realizar-se nesta segunda-feira. O convite não explicita o tema da reunião, mas todos já sabem do que se trata. O capitão já deixou vazar que tem intenção de “convencer” os diplomatas de que o sistema brasileiro de voto eletrônico é falho, disfuncional e aberto à fraude.

Em resumo, o objetivo é enxovalhar nosso avançado processo de voto, sistema que vem dando satisfação há um quarto de século. O presidente prefere não recordar o fato de ele vir sendo eleito e reeleito há décadas por esse mesmo sistema. Ousa acusar de fraudulenta a última eleição presidencial, vencida por ele. Os diplomatas hão de estar perplexos com o contorcionismo presidencial.

Agora vamos aos fatos. Eu, você e o menino da porteira, que não somos personalidades públicas, somos livres de ter e exprimir nossas opiniões. Já com o presidente, o caso é diferente. Ao receber em palácio diplomatas estrangeiros, ele deixa de ser o cidadão Jair Bolsonaro. Naquele momento, ele é o presidente da República do Brasil. Suas palavras têm um peso que as nossas não têm.

Diplomatas costumam ser discretos, é o próprio da função. Difícil será obter deles algum comentário depois do encontro. Mas as paredes têm ouvidos. Nestes tempos de redes sociais hiperativas, não vamos tardar a saber o que foi dito.

Caso se confirme que o presidente chamou representantes de dezenas de países estrangeiros para difamar e desacreditar nosso sistema eleitoral, rebaixando o Brasil ao vergonhoso patamar de republiqueta de bananas, ele terá cometido flagrante crime de responsabilidade – um crime que o expõe a processo de impeachment.

É surpreendente que ninguém, no entourage presidencial, tenha alertado o chefe para esse risco. Talvez seja a demonstração de que essa gente não pensa com a própria cabeça e não consegue enxergar um palmo além do nariz.

Se o crime não for denunciado por nenhum parlamentar da oposição, será porque estão todos dormindo no ponto.

Da inutilidade do vice ‒ 2

José Horta Manzano

Suponhamos que um casal se candidate a tomar um apartamento em aluguel. São aceitos, o marido assina o contrato e se mudam. Depois de alguns meses, surgem problemas devidos a um desvio de comportamento qualquer. Pode ser por falta de pagamento, por barulho excessivo, por litígio com vizinhos, por deixarem o cachorro fazer xixi no elevador, por terem brigas frequentes e escandalosas.

Tanto faz o motivo. No final de algum tempo e depois de algumas advertências, o resultado não pode ser outro: acabam sendo despejados. Rescindido o contrato, a permanência no apartamento não é permitida nem ao marido, nem à mulher, nem a filhos ou dependentes. Todos têm de deixar o imóvel. A esposa não pode alegar que a inadimplência era culpa do marido e que, doravante, ela assumirá o compromisso. Não é assim que funciona.

Por analogia, enxergo a presidência do país nos mesmos moldes. O casal (presidente e vice) se candidata. Vencem juntos a eleição. Assumem posto e funções. Depois de algum tempo, por um motivo qualquer, deixam de fazer jus ao cargo. No nosso caso, suponhamos que tenha sido por maquiagem das contas públicas, manobra que a lei pune com a perda do cargo.

Seguindo o rito constitucional ‒ que corresponde ao regulamento do condomínio ‒, o presidente da República é destituído, assim como o inquilino inadimplente foi despejado. Nesse ponto, surge uma bizarrice. O presidente se vai, mas o vice, embora tenha sido eleito em ‘dobradinha’ com ele, tem o direito de ficar. Está plantada a semente da confusão. Quem planta confusão colhe balbúrdia.

O distinto leitor sabe que, na minha visão, a figura do vice é perfeitamente dispensável. Aquela espécie de urubu à espreita de chegar seu momento é sombria, inútil e prejudicial. Mas, se fizerem questão de continuar copiando o modelo americano que determina que se tenha um vice à mão e pronto a assumir, que sejam especificadas as ocasiões em que lhe cabe tomar o assento do presidente.

Esqueçamos a ridícula passagem de poder feita a cada viagem internacional do titular. Isso é coisa do século 19, que hoje não faz mais sentido. O vice assumirá em caso de morte, renúncia, doença prolongada, incapacidade física ou mental do presidente. Doutora Dilma foi mandada embora por ter cometido crime de responsabilidade. No meu entender, doutor Temer deveria ter deixado o governo junto com a titular.

Como vice-presidente eleito na mesma chapa, ele era corresponsável. É inconcebível que tenha passado ileso pelo processo, como se nunca tivesse passado de figura decorativa, sem função. Afinal, o doutor tinha assumido a presidência frequentemente, a cada vez que a titular viajou ao exterior. E tinha assinado atos administrativos. E tinha segurado as rédeas do país. Se, ao sair a doutora, saíram todos os ministros e assessores, por que, diabos, ficou o vice?

E pensar que é tão simples resolver o problema da vacância do cargo. Quando um presidente se vai, organizam-se novas eleições e escolhe-se novo titular. Pronto. Pra que serve esse incômodo curinga guardado na manga? É carta marcada, que traz cheiro e gosto do presidente anterior. Foram eleitos na mesma chapa, pelos mesmos eleitores. E governaram juntos. Entraram juntos e assim devem sair.

Carta à ONU e aos americanos

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Senhoras e senhores,

Antes de voltarem suas atenções para as considerações que nossa atual presidente deseja lhes apresentar para reflexão no dia de hoje, parece-me fundamental introduzi-los um pouco mais em detalhe à realidade brasileira. Para que lhes seja possível contextualizar com facilidade os fatos preocupantes que nossa mandatária pretende divulgar aqui, permitam-me guiá-los numa viagem conceitual pelo nosso país.

O Brasil não é um país para amadores. Turistas ocasionais podem se entreter e se deliciar com nossas belas paisagens, nosso clima tropical, nossa gastronomia diversificada, nosso multifacetado folclore e, principalmente, com nossa cultura de inclusão, conciliação, alegria e crença no futuro. Quaisquer que sejam seus interesses pessoais e visões de mundo, temos sempre a lhes oferecer um cardápio prolífico, generoso mesmo, de opções.

Já entender como nosso povo lida historicamente com sua realidade mais imediata – isto é, com seus desafios econômicos, sociais e políticos cotidianos ‒ é algo que requer uma robusta capacidade profissional de análise, capaz de contemplar com serenidade seus múltiplos aspectos conflitantes.

Dilma ONUCulturalmente nossos concidadãos se especializaram em extrair comédia de toda forma de tragédia. Como o próprio pai da psicanálise, Sigmund Freud, já sugeria desde os primórdios do século 20, o senso de humor e os chistes podem ser considerados formas efetivas de se lidar com o mal-estar, já que “numa brincadeira, pode-se até dizer a verdade”.

Talvez o nonsense de nossa realidade não seja evidente de imediato para um estrangeiro que nos brinde com a honra de por aqui morar, mas certamente se revelará mais tarde diante dos contornos surrealistas de nossas leis “que pegam” ou não, de nossa forma de fazer justiça “pelo CPF e não pelo RG”, de nossos conceitos arraigados de que “se a farinha é pouca, meu pirão primeiro” e que todo pai dos pobres acaba funcionando também como mãe dos ricos. Nossa tradição de fazer piada com tudo aquilo que, em tese, poderia deflagrar convulsão social em outros países é tão forte que já nos rendeu o epíteto de “país não sério”. Os acontecimentos políticos dos últimos meses ameaçam agora nos transformar no “país da piada pronta”.

Dilma Obama 2O traço mais marcante da cultura social brasileira é, sem dúvida, aquilo a que chamamos de “jeitinho”. Talvez em decorrência de nossa flexibilidade corporal, mental e psíquica, herança de nossos antepassados africanos, aprendemos a driblar toda e qualquer restrição legal, a contornar normas e jurisprudências, a acreditar que o atalho é a rota mais curta para chegar aonde queremos e livrar-nos de toda forma de punição. Ou, quem sabe, seja ele herdeiro direto da crença de que tudo em nosso país “acaba em pizza” – ou, melhor dizendo, da constatação de que, em última instância, a balança da justiça pende sempre para o lado mais empoderado da sociedade.

Por outro lado, nossa forma de lidar com a autoridade talvez seja a característica mais paradoxal de nossa cultura aos olhos de um estrangeiro. Podemos nos submeter a ela sem contestação e perdoar-lhe todos os desvios desde que ela seja hábil em nos fazer crer que tudo o que faz é para o nosso bem. Ao mesmo tempo, quanto mais irascível, arrogante e distanciada do nosso jeito simples de falar, mais ela será desqualificada através de nosso modo zombeteiro de enxergar as coisas sérias da vida. Expor o ridículo das pequenezas mentais de nossos governantes é nosso jeito peculiar de expô-los ao ridículo.

Assim sendo, senhoras e senhores, afianço-lhes que todos os aqui presentes disporão de farto material linguístico e comportamental ao longo do discurso de nossa mandatária-mor para aferir por conta própria e com total isenção de espírito a consistência racional de seus proclames. Devo alertá-los, no entanto, que é provável que a grandiloquência dos argumentos usados por assessores na composição da fala presidencial contraste e seja impactada negativamente pelos atropelos à lógica nas entrevistas que se seguirão ao pronunciamento oficial. Rogo-lhes que desconsiderem eventuais contradições em nome da manutenção dos laços de fraternidade que unem nossos povos.

¿ Por qué no te callas ?

Acredito sinceramente que sua experiência recente com as polêmicas geradas pelo candidato republicano às próximas eleições presidenciais americanas pode lhes servir de base segura para um julgamento sereno das implicações de aderir a este ou àquele lado de nossos atuais confrontos políticos. Se de todo lhes for humanamente impossível isentar-se da força do mantra “impeachment sem crime de responsabilidade é golpe”, peço-lhes que experimentem se colocar emocionalmente na pele de comandados. Se e quando uma onda de indignação começar a se agitar em seus peitos, relembrem a reação do rei de Espanha às colocações agressivas do então líder máximo venezuelano e, em coro, refaçam sua indagação: “Por qué no te callas?”.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Frase do dia — 221

«O impeachment é o contrário de um golpe. Trata-se de um mecanismo constitucionalmente previsto que pode ser utilizado para sair de certas crises. Embora seja um processo traumático, é certamente preferível a tanques nas ruas.»

Hélio Schwartsman em sua coluna da Folha de São Paulo, 6 fev° 2015.

O lado bom

José Horta Manzano

«À quelque chose, malheur est bon», dizem os franceses – mesmo o pior dos desastres tem seu lado bom.

1001 noites 1Tem presidente da República sendo acusado de crime de responsabilidade(1). A expressão, de aparência inofensiva, dá nome a um dos piores crimes que alta autoridade possa cometer. Comprovada a denúncia, o acusado será punido com perda do mandato.

Tem gente graúda sendo presa, aos montes. Para escapar a condenação pesada, tem acusado implorando lhe seja concedido o benefício da delação premiada.

1001 noites 2Tem preso propondo devolver dezenas ou centenas de milhões de dinheiro roubado, numa comprovação evidente de que pilhagem gigantesca houve. Tem gente sem dormir, como disse um senador da República.

Tem dezenas de políticos fazendo novena pro santo das causas perdidas – São Judas Tadeu ou Santo Expedito, ao gosto do devoto. É capaz de ser tarde demais.

A Petrobrás, que tinha levado sessenta longos anos para firmar imagem mundial de solidez e seriedade, voltou rapidamente a ser vista como empresinha de segunda classe.

1001 noites 3Aquela que já foi a maior companhia nacional(2), aquela que tem Brasil até no nome, arrasta, em sua derrocada, a imagem do País. A notícia de que o próprio governo brasileiro se servia nos cofres da estatal reforça a reprovação que pesa sobre nós desde sempre: é prova definitiva de que o Brasil, apesar da grandiloquente conversa fiada oficial, continua empacado no estágio de republiqueta de bananas.

Arca 1Mas nem tudo está perdido. Alguém se lembra do pré-sal? Aquela fa-bu-lo-sa descoberta que prometia garantir o aprovisionamento energético do país por um século? Aquele achado que prometia transformar o Lula em xeique das 1001 noites e todos os brasileiros em milionários?

Pois é. Se realmente existe petróleo debaixo daquela montanha de sal e se sua explotação for um dia possível, não é na semana que vem que o óleo começará a jorrar. E isso é excelente notícia por dois motivos.

Primeiramente, porque o petróleo é material precioso demais para ser desperdiçado como combustível para automóveis. É riqueza finita, não renovável, e vai acabar logo, logo. Sua queima polui nossa atmosfera. Daqui a duzentos anos, quando todas as reservas se tiverem esgotado, os bisnetos de nossos bisnetos vão-nos agradecer por termos conservado o precioso estoque. Há de servir pra finalidade mais útil que virar gasolina.

Prisioneiro 3Segundamente – e é o ponto mais importante – imagine o distinto leitor que, por um descuido da Providência, o processo de contratação de empreiteiros para explorar o pré-sal já estivesse em curso. A gatunagem estaria provocando desfalque duas, três ou quatro vezes mais importante. Os salafrários estariam afanando não bilhões, mas, talvez, trilhões!

Nem sempre é fácil, mas, com boa vontade, sempre se encontra um lado bom.

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(1) Editorial do Estadão de 16 nov° 2014 vê crime de responsabilidade na atitude dos dois últimos presidentes da República.

(2) Artigo da Folha de São Paulo de 15 nov° 2014 informa que, em valor na Bolsa, a Petrobrás caiu para o 3° lugar atrás de Ambev e Itaú.