Monark e Caloi

José Horta Manzano


Na minha adolescência, duas marcas de bicicleta disputavam o mercado brasileiro: a Monark e a Caloi.


A Monark, mais prestigiosa, era de origem sueca. Nos primeiros anos, era importada. Mais tarde, os veículos passaram a ser fabricados no Brasil. No ano de 1956, a matriz sueca contava com 2500 funcionários, enquanto a filial brasileira já dava emprego a 1000 pessoas, o que mostra a importância da marca no Brasil. Alguns anos mais tarde, a Monark brasileira gritou seu “Independência ou Morte” e passou a seguir caminho próprio. Hoje, as duas versões coexistem: tanto a Monark sueca quanto a brasileira continuam fabricando bicicletas.

Caloi era a outra marca de bicicleta. Seus primeiros anos foram semelhantes aos da concorrente. O imigrante italiano Luigi Caloi começou importando bicicletas italianas. Um negócio cômodo, que não dava dor de cabeça nem exigia grande investimento. Mas chegou a Segunda Guerra, e a fonte secou. Dedicada integralmente à indústria bélica, a Itália parou de exportar bicicletas. Para continuar vendendo, Signor Caloi foi obrigado a montar, às carreiras, uma fábrica nacional. Assim nasceu a Caloi genuinamente tupiniquim.

Agora, vamos à hora da saudade. Durante toda a infância e a adolescência, minha preferida – hoje se diria meu “sonho de consumo” – foi uma Monark. Papai Noel andava meio apertado naquele tempo. A bicicleta só chegou aos 16 anos, quando o sonho já tinha evaporado. Décadas mais tarde, por um desses acasos que a vida nos reserva, cheguei a conhecer a viúva do fundador da fábrica, uma senhora magrinha e já bem velhinha. Todo o mundo a chamava de Dona Caloi. Fim da hora da saudade.

Dia desses, um retardado com nome de bicicleta apoiou, numa laive na internet, a criação de um partido nazista. Acho que não preciso dar aqui detalhes, que o Brasil inteiro ficou sabendo da história. Se faltasse uma prova, está aí a demonstração que os ditos “influenciadores” (que pretensão!) do povão não passam de ignorantes. Os seguidores agem como bando de cegos guiado por caolho.

Com a petulância que só a ignorância lhe permite, o rapaz sustentou sua tese, mostrando desconhecer a História. Na sua cabecinha vazia, nazismo é uma doutrina como qualquer outra. Não é. O nazismo tem um defeito de nascença, que o torna incompatível com o mundo civilizado. Preto no branco, seu programa afirma o objetivo de promover a superioridade da “raça” ariana (em cujos cânones, aliás – cabelos loiros e olhos azuis – o tal influenciador parece não se encaixar). Paralelamente, essa malfadada doutrina põe como objetivo exterminar fisicamente judeus, ciganos, homossexuais e todos aqueles que se opuserem a ela.

Essas diretivas já estavam, aliás, explicitadas no livro Mein Kampf (Meu Combate), que Adolf Hitler escreveu em 1925. Orientais, pretos e índios não são mencionados simplesmente porque, quando a doutrina foi elaborada, não estavam presentes em número significativo em solo europeu. Nazismo é ideologia que, já na cartilha do partido, prega o genocídio – postura proibida por nossa Constituição.

Portanto, que um infeliz “influenciador” não concorde com os termos de nossa Constituição, é problema interno dele. Pode gostar ou deixar de gostar, assim como gosta de costela de porco e detesta sorvete. Pode até comentar numa rodinha de amigos na intimidade de seu chatô. Só não tem o direito de propagar suas ideias em praça pública, comportamento agravado, aliás, pelo fato de ser “influenciador”.

Em matéria de conselhos tortos, quanto maior for a audiência, maior será a culpa de quem os dá. Em nosso país, toda pregação contra os preceitos da Constituição é crime. As queixas-crime que tramitam contra o capitão o demonstram.

Bolsonaro não teve outra opção se não repudiar a fala do rapaz com nome de bicicleta. Só que, mesmo sendo menos “influenciador” que o rapaz ignorante, mostrou ser tão (ou mais) ignorante que ele. Aproveitando o embalo, repudiou também o comunismo, sua obsessão, alegando ser “doutrina que prega o antissemitismo”(sic).

Como é que é? O comunismo prega o antissemitismo? ¡Vaya ignorancia!, como diriam os espanhóis. Quanta ignorância! O capitão precisa urgentemente ler duas linhas sobre o assunto. Vale até a Wikipédia, que, pra ele, já está de bom tamanho. É pra não soltar tanta asneira em público. Acaba pegando mal.

E se alguns daqueles dez ou doze porcento de eleitores que (ainda) o apoiam forem menos ignorantes que ele e souberem que a doutrina comunista, teorizada pelo judeu Karl Marx, não prega o antissemitismo? Vão corar de vergonha? Ou a devoção ao mito do “mito” vai sobrepujar?

Telegrã

José Horta Manzano


Sinopse
Este artigo é um pouco mais longo que o habitual. Para o caso de o distinto leitor estar sem tempo, digo logo do que se trata. Falo da rede social Telegram e de sua (quase) ausência de controle. Contabilizo o potencial de delinquência contido em certos grupos que lá se aninham: nazistas, pedófilos, traficantes de droga & alia. Dou minha opinião sobre o perigo que isso representa – ou não.


Faz alguns dias, li n’O Globo um artigo inquietante, que ensinava como funciona a rede social Telegram. Ao ler aquilo, qualquer vivente dotado de bom senso fica de cabelo em pé. Quem, como este blogueiro, não tem nenhuma intimidade com as redes ditas “sociais” (que alguns consideram “associais”) se sente realmente desconcertado. Quem diria que eu ainda havia de viver pra ver isso.

O distinto leitor talvez ache estranho que eu não tenha disposição pra me inscrever num desses clubes. É que sempre fui avesso a tudo o que se assemelhasse a agrupamento, rede, associação, círculo, assembleia, sociedade, federação, partido, seita, corporação, religião – enfim a tudo o que juntasse gente compelida a pensar como os correligionários e a agir como eles. Prefiro continuar observando de longe.

Sociais ou não, essas redes ainda não conseguiram despertar meu interesse. Um dia, quem sabe. Por enquanto, o momento não chegou. Para mim, feicebúqui, instagrã, tique-toque ou telegrã são filhotes da mesma ninhada. E se parecem todos.

Foi o que sempre achei. Só que não. A leitura do mencionado artigo me ensinou que o Telegram é um caso à parte, um estranho nessa ninhada de iguais, um clube destinado àqueles que estão mais pra bandido que pra gente fina. Que me perdoe o leitor que se inscreveu nesse clube! Não tenho intenção de ofender ninguém. Mas, salvo erro ou omissão, o tal de Telegram é orientado para um público marginal – não necessariamente no sentido de meliante, mas daqueles que vivem à margem da sociedade.

A rede Telegram foi fundada por dois dois irmãos russos em 2013, faz menos de 10 anos. Como as coisas evoluem rápido neste século! Não funciona em Moscou, em endereço com rua e número conhecidos. Atualmente está abrigada “na nuvem”. Nos últimos anos, mudou frequentemente de jurisdição, o que não costuma ser bom sinal. Neste momento, tem endereço físico em Dubai. Não posso garantir, mas acredito que, naquela cidade artificial do desértico Oriente Médio, o máximo que se vai encontrar é uma caixa de cartas.

A particularidade do Telegram é a (quase) total ausência de controle do que dizem ou escrevem os usuários. O espaço está aberto a todas as liberdades. Só que tem um problema: apesar da liberdade de postagem praticamente total, há linhas de conduta que o bom senso não admite que sejam transpostas. Cabe a cada usuário fixar os próprios limites. O resultado é que, na quase ausência de moderação, os maus modos de alguns podem causar dano à maioria.

Além de abrigar gente fina e bem-intencionada, Telegram acolhe também gente ligada a submundos que nossa civilização condena. Há grupos de pedofilia, de incesto, de venda de drogas online, de tráfico de receitas médicas para remédios tarja preta; há círculos de entusiastas do nazismo e do fascismo (será que sabem o que é isso?); há panelinhas que exigem armas para todos e que pregam resistência à vacina contra a covid. Nesses grupos, encontra-se tudo o que não for recomendável. Todos postam e propagandeiam abertamente, sem restrições.

Quando se vê todo esse submundo se agitando, com a porta aberta para quem quiser participar, corre um frio na espinha. Só que…

Só que, deixando o frio da espinha pra lá, resolvi analisar um pouco mais profundamente. Em fulgurante ascensão, o Telegram já está instalado em 53% dos smartphones do país. Não conheço o número exato de smartphones instalados no Brasil. Um artigo da revista Época garante que, em 2019, havia 230 milhões em uso. Em termos práticos, tirando um ou outro indivíduo fora dos padrões, pode-se considerar que toda a população carrega no bolso (ou na bolsa) um desses aparelhos inteligentes.

Agora vamos ver quantos são os participantes desse “deep web” fomentado pelo Telegram, essa rede semiclandestina, de odor desagradável.

No quesito de sexualidade esquisita, que incluiu estupro de adolescentes, incesto, pedopornografia e outras extravagâncias que nossa civilização condena, há um total de 38.000 inscritos.

No tópico doutrinas fora de esquadro, que inclui antissemitismo, supremacia espiritual, nazismo, fascismo, veneração a Adolf Hitler e outros discursos de ódio de mesmo jaez, há um total de 26.000 inscritos.

O capítulo do porte (e uso) de armas, que compreende imagens de tortura e execuções mas também grupos que se interessam pelo comércio de armas de todo tipo com as respectivas munições, há um total de 45.000 inscritos.

No grupo dos bobões antivacina há pouca gente. Digo bobões porque todos eles já foram vacinados zilhões de vezes contra doenças variadas: tuberculose, varíola, hepatite, doenças infantis & outros bichos. Se tivessem condições de dar um pulinho no Quênia, para um foto-safári, espichariam o braço sem hesitar pra receber a vacina contra a febre amarela. No entanto, talvez por inspiração de um certo capitão boçal, dizem não à vacina anticovid. São poucos, evidentemente. Só 38.000, que ninguém é besta.

O grupo mais numeroso – como seria de adivinhar – é o dos adeptos do comércio clandestino. A imensa maioria corre atrás de filmes ainda não disponíveis em canais oficiais; procuram fazer como esses que instalam um “gato” pra furtar imagens da residência vizinha. Nesse universo, ainda há os traficantes de entorpecentes (e seus compradores), os que tentam obter dados pessoais de outras pessoas, os que se interessam por remédios tarja preta e, pasme!, os que compram e vendem cédulas falsas. Para mim, este é o grupo dos picaretas. Numerosos, seus adeptos chegam a 150 mil indivíduos – um total equivalente ao de todos os outros grupos reunidos.

Bom, agora vamos aos finalmentes. Somando os inscritos nas categorias que o Telegram permite (e que outras redes dificilmente tolerariam), não chegamos a 300 mil pessoas. Atenção: dado que um mesmo assinante pode aparecer em mais de uma categoria, o total periga ser menor.

Vamos agora calcular quanto representam esses 300 mil aprendizes infratores no universo dos 230 milhões de smartphones. Representam por volta de 0,1% (zero vírgula um porcento) dos brasileiros.

Um infrator é sempre um infrator, assim como um bandido é um bandido e um assassino é um assassino. Mas vamos “botar a bola no chão”, como diz o outro. Esses 0,1% de conterrâneos não estavam à espera da chegada de Telegram para se tornarem, da noite para o dia, pedófilos, falsários, traficantes ou adoradores de Hitler. Como faziam antes? Não sei, mas deviam ter seus canais. Usavam códigos. Botavam anúncio cifrado nos Classificados do Estadão, como se fazia antigamente. Se viravam.

A conclusão à que quero chegar é que Telegram não inventou a delinquência, assim como as redes sociais não inventaram o ódio, nem Bolsonaro inventou a corrupção. Todas essas pragas pré-existiam. O que mudou foi só o canal de expressão. Se Telegram desaparecer amanhã, no dia seguinte nova rede vai substituir. E assim caminha a humanidade.

Observação
Até que não é má ideia deixar que esses indivíduos que atuam à margem da lei se exprimam com liberdade. As autoridades que cuidam de reprimir certos excessos poderão, na pior das hipóteses, saber quantos são. E, na melhor das hipóteses, colher os delinquentes com a boca na botija.

Fonte: Artigo d’O Globo.

Baú de memórias ‒ 7

Soldado alemão
by Alfred-Georges Hoën (1869-1954), artista francês

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Dizem os psicanalistas que a especialidade da histérica é colocar-se repetidas vezes e voluntariamente dentro da boca do leão. Por temerem a exposição a situações que poderiam lhes causar perda do autocontrole, os histéricos inconscientemente – e paradoxalmente – manobram suas experiências de vida para cair de cabeça, sem paraquedas, justamente nas situações que mais temem.

Ao longo dos meus muitos anos de terapia, minha psicoterapeuta por diversas vezes me questionou: “Qual é sua cena temida?”. Eu nunca sabia responder com clareza. Falava vagamente do meu medo da nudez pública, dos “brancos de memória” em uma prova, do desconforto de falar em público e, especialmente, do pavor de que outras pessoas descobrissem um dia que eu não passava de uma fraude – ou seja, uma pessoa sem uma base sólida de conhecimento para se apresentar como autoridade ou especialista de qualquer área. Mas quase nunca meus temores encontravam alívio revivendo simbolicamente cenas como essas.

O primeiro livro “adulto” que li, lá por volta dos 12 anos, foi O Diário de Anne Frank. Mal consigo descrever em palavras o impacto que ele me causou. A Segunda Guerra estava a apenas uma década de distância, o nazismo havia deixado marcas profundas de culpa no subconsciente coletivo, minha melhor amiga de infância vinha de uma família de judeus poloneses que haviam sido forçados a emigrar para escapar da sanha destruidora das forças da SS e continuavam a viver escondidos, assombrados com a possibilidade de serem denunciados e repatriados.

Além da empatia que desenvolvi para com o sofrimento dessa família e minha posterior identificação com muitos dos traços da cultura judaica, pairava no ar em nossa própria casa a suspeita de que o sobrenome Suplicy fosse de origem judaica (o que mais tarde foi confirmado através de uma pesquisa do lado materno de nossa árvore genealógica). Tudo isso contribuiu, é claro, para que eu sentisse desde muito cedo uma profunda aversão por movimentos totalitários, de supremacia racial.

Já adulta e trabalhando para uma empresa de pesquisa de mercado e opinião pública, fui convidada para ser a representante brasileira em um seminário internacional sobre técnicas projetivas [minha especialização] em pesquisa qualitativa, que aconteceria em Paris. Entusiasmada, decidi juntar a participação no workshop com minhas férias, para aproveitar ao máximo a estada no continente europeu. Durante o seminário, todas as noites os participantes saíam em grupos para confraternizar, jantar e se divertir. Nessas ocasiões, travei contato mais próximo com um colega austríaco que me intrigava por ser uma pessoa muito comedida e reservada, embora demonstrasse ser dono de uma mente brilhante, de uma curiosidade inesgotável e estivesse sempre pronto a debater com empolgação seus trabalhos na área.

Por outro lado, ele parecia nunca se sentir à vontade para se referir à sua vida particular. Trancava-se em copas sempre que o assunto derivava para hábitos e interesses pessoais, formas preferidas de lazer e entretenimento ou detalhes sobre a vida familiar. Algo me dizia que não era questão de timidez nem a circunspecção esperada de um psicólogo clínico. Eu preferia apostar que se tratava de um traço comportamental característico da formalidade saxônica ou derivado de sua faixa etária, mais alta do que a nossa. Seja como for, aos poucos fomos desenvolvendo uma relação mais calorosa e, tão logo soube que eu visitaria outros países na sequência, ele insistiu em me convidar para sua casa quando eu chegasse a Viena.

Meu primeiro ponto de parada na Áustria foi a encantadora Salzburg. Mesmerizada com a beleza das paisagens de montanha e com a singeleza do casario urbano, a imponência dos castelos e igrejas e, em especial, com a história de vida de Mozart, eu me sentia vivendo um conto de fadas ou fazendo parte do elenco do filme A Noviça Rebelde. Deixei a cidade a contragosto e, ainda embalada pelas delícias da cultura musical e gastronômica austríaca, cheguei a Viena num dia de forte nevasca. O taxi que me levou até o hotel mal conseguia circular em linha reta e derrapou infinitas vezes, quase batendo em outros carros estacionados ao tentar se desviar das grossas camadas de neve suja que se acumulava nas ruas. O frio era terrível e o aquecimento do meu quarto estava com problemas.

Desapontada e irritada com tanto desconforto, resolvi ligar para meu colega, antecipando uma noite de animadas conversas, muita cerveja e comidas apetitosas. Ele se prontificou de imediato a me pegar no hotel e me levar até sua casa. Quando lá chegamos, sua esposa me recebeu nitidamente constrangida, já que não falava inglês e eu não falava alemão. Tentávamos nos entender com sorrisos e gestos, mas tudo o que posso dizer é que o clima geral de retraimento combinava em cheio com aquele apartamento escuro e apertado. Sem graça, eu explorava com o canto dos olhos o local para tentar descobrir mais pistas sobre as razões da sisudez do dono.

Ao examinar uma mesinha lateral repleta de fotos de família, vi horrorizada o retrato esmaecido de um senhor vestido com o uniforme de oficial nazista. Embora não fosse uma imagem de glorificação da suástica nem trouxesse o braço estendido em saudação ao Führer, congelei de imediato. Um quase-pânico tomou conta de mim ao perceber que eu havia me colocado inadvertidamente dentro do covil de inimigos ideológicos. Devo ter ficado muito pálida porque meu anfitrião logo se deu conta do meu desconforto. Com uma voz cansada e triste, ele disse simplesmente: “É meu avô…”. Sem saber como prosseguir com a conversa, optei por não fazer mais perguntas e me calei. Mesmo assim, ele prosseguiu numa espécie de desabafo, me passando alguns detalhes de sua vida na infância e adolescência. Contou como havia sido alvo de bullying na escola por ser neto de uma figura tão odiada, a dificuldade de relacionamento com as meninas da mesma idade, o retraimento da família diante de vizinhos e como esse isolamento compulsório havia sido decisivo para ele escolher a psicologia como profissão.

Quando me acalmei, entendi que não estava diante de um apoiador entusiasmado do regime nazista, mas que, ao contrário, ele havia dedicado sua vida a tentar compreender as motivações psíquicas que haviam levado seu avô a aderir à ideologia supremacista. De qualquer forma, meu constrangimento persistia. Quando a conversa se esvaiu, saímos para jantar em uma famosa cervejaria na periferia da cidade. Meu anfitrião nitidamente se esforçava em trazer alguma leveza e descontração para nossas conversas, mas logo o clima mudou de novo. Quase engasguei com a comida quando mais uma vez ele sem querer fez referência ao nazismo, me contando que aquele local era frequentado habitualmente pela alta cúpula da SS.

Tudo acabou se juntando na minha cabeça para determinar um dos piores fins de noite da minha vida: o frio congelante, a dificuldade de locomoção, a dificuldade de comunicação, a falta de ar naquele apartamento sombrio, as histórias igualmente sufocantes da família, a falsa descontração à mesa e a quebra de expectativa com a cidade de Viena, praticamente uma antípoda da alegria ingênua de Salzburg. No dia seguinte logo cedo, arrumei minhas malas e fui embora com a sensação de página virada na minha angústia existencial. Nunca mais soube daquele homem de olhar perdido, sobrecarregado com tantas memórias tristes.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Advertimento

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 27 fevereiro 2021.

Certos indivíduos têm o dom de expor, com lucidez, os males de sua época a ponto de incomodar os poderosos. Foi o caso do barão de Montesquieu (1689-1755), pensador francês cuja obra O Espírito das Leis, tratado sociológico precursor da própria sociologia, incomodou tanto que, apenas publicado, foi despachado para o Index – o catálogo dos livros proibidos.

Numa época em que regimes absolutistas eram a regra ao redor do planeta, Montesquieu ousou expor sua visão dos princípios básicos do despotismo. Segundo ele, o regime republicano precisa da virtude, enquanto a monarquia requer a honra. Já o governo despótico exige o medo, dispensando a virtude, por desnecessária, e a honra, por ser perigosa.

Nos anos 1930, dois séculos depois dessa análise premonitória, metade das nações europeias estariam dominadas por regimes autoritários. Duas delas padeciam sob despotismo pesado: a Itália e a Alemanha. O fascismo italiano e o nazismo alemão, embora distintos entre si, compartiam pontos comuns a todo governo despótico. A beligerância permanente; a busca da desigualdade entre os cidadãos; a crença na inutilidade da paz; a procura de um Estado forte apoiado em ampla base popular conquistada por bem ou por mal; o repúdio ao sufrágio universal, atitude vendida como prevenção contra a fraude eleitoral; a exigência de obediência absoluta; a convicção de que compete ao Estado controlar e dominar a vida da população – eis alguns dos pontos comuns a ambas as doutrinas.

Dois anos de bolsonarismo já fazem despontar entre nós o espectro do mesmo mal que afligiu a Itália e a Alemanha nos tempos sombrios. A beligerância permanente vai-se firmando como marca do governo atual, desde o primeiro dia, caracterizada por conduta inabalavelmente hostil: parceiros estrangeiros são tratados como inimigos e adversários internos são curto-circuitados. A fixação de Bolsonaro com fraude eleitoral já veio à tona em diversas ocasiões, numa indicação de que eleições incomodam o presidente, que optaria por bani-las. Corte de quotas, redução de programas de assistência e, principalmente, o quase-regozijo com o apuro e o sofrimento de um povo imerso no drama da atual pandemia mostram que a população é vista, não como coletividade a proteger, mas como quantidade estatística em que a individualidade não conta.

Charles Chaplin em O Ditador, filme de 1940

A anuência presidencial à bizarrice de certas categorias de cidadãos receberem vacina antes dos demais, ainda quando o patrocinador seja empresa privada, é sinal inequívoco de crença nas virtudes da desigualdade entre cidadãos. Vale o adágio: aos amigos do rei, tudo; o resto é o resto. Para coroar, há um detalhe assaz inquietante. Em mais de uma ocasião, Bolsonaro deixou claro que, dependesse dele, o regime político brasileiro seria outro. É impossível ser mais explícito.

Falta pouco para sabermos quais minorias serão alvo da fúria de nossos trogloditas tupiniquins. Pretos e pardos? Judeus? Pobres? Mulheres? Estrangeiros? Velhos? Não héteros? Num país miscigenado, em que o fichamento repousa na autodeclaração, é difícil invocar razões étnicas. Judeus? Não estamos na Europa; o brasileiro comum nem faz ideia do significado desse termo. Os «inimigos da nação» ainda estão por ser designados mas, no passo em que vão as coisas, logo o serão. Baixinhos, gordos, enfermos, jesuítas, sindicalistas, maçons, ‘comunistas’, umbandistas, feministas, escritores, artistas, espíritas, pacifistas – nenhum grupo está a salvo. Alvos têm de ser encontrados, que isso faz parte do jogo. Afinal, as hostes milicianas têm de ser alimentadas. E feras alimentam-se de sangue.

Se um artigo deste teor tivesse sido publicado na Itália pré-fascista ou na Alemanha pré-nazista, teria sido visto como teoria delirante e, por inútil, teria sido ignorado. Continuariam todos agindo como os valsistas do Titanic, que se recusaram a ver o drama que se armava e preferiram rodopiar até não haver mais jeito. No Brasil deste começo de século, o processo está avançando, apoiado na cupidez dos que imaginam levar vantagem, na complacência dos ingênuos que se estimam favoritos do rei, no fanatismo crédulo dos que não se dão conta de que serão os primeiros descartados, na indiferença dos demais. Ainda dá tempo, mas o ponto de não-retorno está ali na esquina.

De esquerda ou de direita?

José Horta Manzano

O Oriente Médio é prova de fogo pra qualquer aventureiro. É uma corda estendida à altura do tornozelo, pronta a jogar ao chão qualquer político forasteiro que ouse arriscar-se a tomar posição ou simplesmente emitir opinião sobre as desavenças locais. Não há como escapar: se se agrada a um lado, desagrada-se ao outro. O melhor mesmo é ser cortês com todos e evitar tomar partido. Em público, pelo menos.

Nesse particular, dois dos mais recentes presidentes de nossa República foram particularmente infelizes. Com jeitão presunçoso de quem diz «deixa, que o papai aqui resolve», Lula da Silva causou um estrago na imagem de relativa neutralidade que o Brasil mantinha até então em assuntos médio-orientais. Ao tentar resolver, à valentona, o conflito milenar, trocou os pés pelas mãos e foi expulso do ringue. Tendo forçado a porta da frente, acabou atirado pela janela dos fundos. E não resolveu nadinha.

Vai, agora, doutor Bolsonaro… e repete a dose. Sua intervenção foi menos presunçosa que a do antecessor, é verdade, mas deixou patente sua constrangedora ingenuidade e sua absoluta falta de traquejo em assuntos internacionais. Tendo em linha de mira o naco neopentecostal de seu eleitorado, houve por bem tomar abertamente partido por um dos contendores no conflito da região. Naturalmente, despertou a ira do outro litigante, que, por acaso, é um dos principais clientes do agronegócio brasileiro. Uma temeridade.

Uma desgraça não costuma vir sozinha. Doutor Araújo, aquele que usa barba de djihadista e exerce as funções de ministro das Relações Exteriores, declarou a repórteres que o nazismo era um movimento de esquerda. Dado que o moço já tem pronunciado babozeiras, os jornalistas correram pra doutor Bolsonaro pra perguntar-lhe o que achava da declaração. Decepcionou-se quem esperava ver o chefe dando um puxão de orelhas no pupilo desgarrado.

O presidente mostrou que seu raciocínio lógico continua estacionado ao nível da escola primária. Lembrou a todos que o partido nazista se chamava Partido Nacional Socialista, pois não? «Portanto, se era socialista, era de esquerda.» Elementar, meu caro Watson! Ai, ai, ai, que vergonha, minha gente! Se o Lula tinha escancarado ao mundo a ousadia dos ingênuos, doutor Bolsonaro acrescentou nova nuance: a firmeza de convicção que só aos ignorantes é permitida.

Não preciso dizer que, se a mídia internacional tinha deixado passar a declaração do ministro barbudo, deitou e rolou em cima da cândida confirmação do presidente. Deu em todos os jornais. Se estivesse faltando comprovação, ela aqui está: a ignorância não é de esquerda nem de direita ‒ é universal.

Neonazismo & neofascismo

José Horta Manzano

Pergunta:
Como avalia o crescimento de Jair Bolsonaro, um candidato da extrema direita, no Brasil?

Resposta:
A crise estourou em 2008 e o que vemos agora são seus efeitos. O Brexit tem que ver com esta situação, como Trump e o fenômeno de Bolsonaro. Só que lá é neonazismo e aqui é neofascismo.

A pergunta foi formulada pelo entrevistador do jornal espanhol El País. E a resposta, com aspecto e gosto de salada mista, foi dada por doutor Fernando Haddad, em longa entrevista concedida ao jornal. Saiu na edição deste domingo, 14 de outubro.

Não acredito que doutor Haddad, professor universitário e dono de boa formação humanística, ignore o real significado dos termos neonazismo e neofascismo. Fosse um Lula qualquer a invocar em vão esses conceitos tenebrosos, a gente poria na conta da ignorância. Mas doutor Haddad, não. Se pronuncia inverdades, é por refinada má-fé. Mostra seu lado finório.

É obrigatório constatar que o candidato assimilou perfeitamente o irritante costume petista de atirar poeira nos olhos do interlocutor a fim de baralhar a mensagem. A resposta que ele deu ao jornalista é acabado exemplo dessa tática. Como numa salada russa, o doutor misturou conceitos díspares.

Chamar Donald Trump de neonazista é ir longe demais. O homem é atabalhoado, elefante em loja de porcelana, autoritário, voluntarista, ignorantão, mas, de nazista, não tem grande coisa. Não se sabe de nenhuma manobra sua que empurrasse seu país na direção de uma Alemanha dos anos 1930.

Fascio littorio ‒ símbolo do fascismo

Dizer que o Brexit é fruto de ressurgência do nazismo é outro rematado exagero. O voto dos britânicos é fruto de um balaio de motivos ‒ saudades dos tempos gloriosos do Império Britânico, receio de perder o emprego para um polonês mal remunerado, sentimento difuso de que Bruxelas está legislando contra os interesses nacionais. O conjunto de razões não poderá, nem de longe, ser etiquetado de nazismo.

Quanto ao Brasil, sabemos todos qual é a razão pela qual doutor Bolsonaro está a um passo de ser eleito por aclamação. É antipetismo puro, a não confundir com neofascismo. De fato, a maior parte dos votos que serão dados ao capitão, no espremer do suco, não lhe pertencem. Poucos serão os eleitores que compactuam com hipotético viés fascista do candidato. Vota-se simplesmente contra o Partido dos Trabalhadores.

Não contente em atazanar a vida dos que aqui vivem, o PT exporta perversidade. Contribui, assim, para degradar a imagem do Brasil lá fora e ainda alimenta o desolador cenário de desinformação que domina a mídia internacional. É revoltante.

A única arma

José Horta Manzano

A sobriedade ‒ qualidade esplêndida ‒ é um dos atributos que mais dignificam um homem político. É marca certeira daquele que tem confiança nos próprios gestos e palavras. É traço distintivo dos que não precisam vociferar nem ameaçar. Ah, como tem feito falta ultimamente…

No Brasil, o que se vê é deprimente. Ex-presidentes berrando ameaças sem conseguir alinhavar pensamentos nem dizer coisa com coisa. Deputados, senadores, magistrados e integrantes de altas esferas dando pronunciamentos agressivos, ofensivos, intimidantes. Quanto menos têm a dizer, mais gritam. É sintomático.

Não só no Brasil é assim. Outras partes do mundo sofrem do mesmo mal. Os Estados Unidos, por exemplo, já estão há um ano sendo presididos por um senhor cuja qualidade principal não é exatamente o comedimento. Ainda estes últimos dias, mostrando que não se dá conta da fragilidade do equilíbrio que rege o balé das nações, tornou pública sua decisão de transferir a embaixada americana em Israel de Tel-Aviv a Jerusalém.

Muçulmano
by Patrick Chappatte (1966-), desenhista suíço

Em si, a mudança de endereço não altera uma palha na borbulhante situação da região. Cada contendor continuará a seguir o caminho de sempre. O ódio mútuo que nutrem permanecerá, nem maior nem menor. No fundo, quem mais tem a perder com o estrepitoso anúncio do presidente parlapatão são os EUA.

Ao pôr-se deliberadamente à margem do resto do mundo, contribuem para o isolamento do próprio país. Espicaçam, de resto, a animosidade de que já são objeto de parte de muita gente. Ao demonstrar parcialidade, demitem-se do papel de mediadores privilegiados e favorecem o aumento da importância política de outros atores. Um furo n’água.

Pode-se apreciar ou não o antigo presidente Barack Obama. Ninguém pode negar, no entanto, a sobriedade e o comedimento do homem, virtudes que espalham tranquilidade e confiança. Ao deixar a presidência, Mister Obama se propôs a não intervir nem comentar os atos do novo presidente. Mas Mister Trump é parada dura. Nem quem tem sangue de barata consegue aguentar calado.

Faz alguns dias, Obama deu palestra num encontro em Chicago. Sem citar nem uma vez o nome do sucessor, disparou flechas em sua direção. Lembrou que a democracia não deve ser considerada direito adquirido automático e imutável. Para despertar a consciência do auditório, usou a imagem de um hipotético salão de baile na Viena do final dos anos 1920. A magia da música levava a acreditar que o rodopio dos casais era sem fim, uma felicidade perpétua. Ninguém podia prever que, dali a poucos anos, a democracia desapareceria e a hecatombe da guerra ceifaria 60 milhões de vidas.

Tweet ‒ Nuclear
by Patrick Chappatte (1966-), desenhista suíço

A advertência do ex-presidente americano vale para o Brasil. Que ninguém tome o atual período democrático por garantido e eterno. Basta muito pouco para fazer o país resvalar ladeira abaixo. No andar de cima, há muita gente fazendo o que pode para enterrar a Lava a Jato a fim de escapar da cadeia. No andar de baixo, ainda há muito ingênuo achando que é muito engraçado votar no Tiririca, no Eneas ou no Cacareco. É a receita do cruz-credo.

Acordai, cidadãos! Temos uma única arma: o voto. Se soubermos manejá-la com engenho, temos uma chance de nos salvar. Uma só.

Impeachment e quotas

José Horta Manzano

Artigo para o Correio Braziliense

No momento em que escrevo, o julgamento da destituição da presidente ainda não terminou. Seria desajuizado, portanto, asseverar qual será o resultado. Manda a prudência ser paciente e esperar o veredicto oficial. Só então conheceremos o sabor do molho que regará as mazelas nacionais pelos próximos anos.

Com impeachment ou sem ele, problemas gigantescos ‒ acumulados, não tratados e amplificados nestes tresvairados anos ‒ terão de ser enfrentados. Não há como escapar. Não é possível empurrar o futuro cada ver mais pra diante. Um dia, ele acaba chegando, e as bombas que não tiverem sido desarmadas perigam rebentar em nossas mãos. Os pavios estão acesos.

Os senadores têm, neste momento, grande poder e imensa responsabilidade. A decisão que o colegiado tomar não eliminará, por magia, as adversidades que nos afligem, mas certamente definirá o modo como serão abordadas. A sabedoria popular diz que não se deve trocar o certo pelo duvidoso. No entanto, quando o certo ‒ falo dos fatos e gestos políticos destes últimos anos ‒ é tão calamitoso, mais vale apostar no duvidoso. Há sempre uma chance de a coisa pública deixar de ser tratada tão indecorosa e tão catastroficamente.

Cena da Idade Média by Pieter Bruegel (≈1525-1569), artista flamengo

Cena da Idade Média
by Pieter Bruegel (≈1525-1569), artista flamengo

Dado que ainda não atravessamos o túnel do impeachment, quero usar este espaço para tecer considerações sobre a política de quotas. Aprendemos na escola que o feudalismo era o sistema social vigente na Europa medieval. Os manuais ensinam também que essa arquitetura social começou a se extinguir meio milênio atrás e que a Revolução Francesa assestou-lhe o golpe final.

Assim mesmo, no Velho Continente, sobrevivem marcas de estratificação social. Nações do norte vivem de maneira mais igualitária, com diferenças sociais pouco acentuadas. À medida que se caminha para o sul da Europa, desigualdades sociais tornam-se mais e mais visíveis. Portugal e os países da orla mediterrânea estão a anos-luz do igualitarismo escandinavo. A sociedade brasileira descende, em linha direta, desse sistema desigual. Herdou uma estrutura hierárquica que, embora não diga seu nome, guarda traços evidentes de feudalismo latente.

Privilégio é o modus operandi. A palavra não desmerece a etimologia: privilégio é lei privada. O que é vedado à massa dos cidadãos comuns pode ser tolerado quando praticado por personagens do andar de cima. Nosso país foi fundado ‒ e funciona até hoje ‒ com base em regras díspares e desequilibradas. De saída, o sistema começou torto, com a partilha da nova terra em capitanias distribuídas entre os amigos do rei. Faz quinhentos anos que a essência é a mesma.

Garante-se tratamento especial a presidiários conforme o grau de estudos de cada um. Doutores, ainda que condenados por crime pesado, terão direito a cela e a tratamento carcerário diferente do que se dispensa ao populacho. Deputados, senadores e outros eleitos do povo, ainda que acusados de crimes repugnantes, escapam à justiça comum. Serão julgados em foro especial, não misturados à plebe. Pois essa hierarquia entre castas de cidadãos, que nos parece perfeitamente natural, é inconcebível em países mais adiantados.

Faz já algum tempo que, numa tentativa canhestra de diminuir desigualdades, surgiram sistemas ditos de quotas. É solução perniciosa, em que se pretende curar um mal provocando outro. Tenta-se combater estragos causados por privilégios ancestrais criando… novos privilégios. Pior que isso, quotas são às vezes baseadas na raça do cidadão, conceito pra lá de vago entre nós.

Operários, obra de 1933 by Tarsila do Amaral (1886-1973), artista paulista

Operários, obra de 1933
by Tarsila do Amaral (1886-1973), artista paulista

A princípio, considerou-se que a autodeclaração racial bastasse para separar cotistas dos demais. Com o passar dos anos, a imprecisão inerente à própria definição de raça abriu brecha para falsas declarações. Ainda outro dia, um cidadão houve por bem apresentar numerosos laudos assinados por dermatologistas para demonstrar que, pelo critério de coloração de pele, podia ser enquadrado em determinada quota racial. O Itamaraty já criou um mui oficial Comitê Gestor de Gênero e Raça. Estamos pisando terreno minado, que evoca períodos sombrios da História. Comitês encarregados de controlar a raça de cidadãos existiam na Alemanha nazista, de nefasta memória.

Mais vale garantir a todos os cidadãos um padrão elevado de Instrução Pública. Nosso sistema de quotas nada mais é que confissão de fracasso da Educação Nacional. Para banir nossos renitentes resquícios de feudalismo, ainda temos longo caminho a percorrer.

Tripartidarismo

José Horta Manzano

Este domingo, vota-se na França. O povo está sendo convocado para eleger os dirigentes das 13 grandes regiões (um tanto artificiais) em que o país está dividido. Estes últimos tempos, por razões de economia, Paris decidiu fusionar antigas regiões. Das dezenas que, séculos atrás, compunham o país, resta apenas uma dúzia de conjuntos heterogêneos, verdadeira colcha de retalhos.

Regiões da França

Regiões da França

Região é escalão intermediário entre município e governo central. Dado que a organização política da França é unitária e não federativa, o grau de independência da região é bastante limitado. Nenhuma delas conta com Constituição, nem assembleia, nem Justiça independente. Entram na competência regional o transporte, a assistência às empresas, o zoneamento territorial, a gestão ecológica do lixo, o aprendizado dos jovens, a formação profissional.

Tradicionalmente, o mundo político francês se divide entre direita e esquerda. As últimas décadas têm levado os dois campos a convergir a ponto de as diferenças se tornarem quase imperceptíveis. Assim mesmo, ainda é importante, na cabeça de cada um, que cada político se encaixe numa etiqueta: ou é de esquerda ou é de direita.

Assemblee nationale 1

Até os anos 1970-1980, ainda eram numerosos os cidadãos que haviam vivido os horrores da guerra. Estava viva a consciência de que regimes populistas haviam arrastado o continente à catástrofe. Até aqueles anos, idéias de extrema-direita não tinham a menor chance de prosperar.

Mas o tempo passou, os antigos se foram, novas gerações que não conheceram a guerra são os adultos de hoje. Para estes, a paz é estado natural, automático, quase obrigatório. A guerra desapareceu do rol das preocupações.

As desgraças que a extrema-esquerda causou na União Soviética e na Europa Oriental só terminaram em 1989, com a queda do Muro de Berlim. O fato é recente e todos, assustados, se lembram. Como resultado, os partidos de extrema-esquerda (comunistas) sumiram do mapa.

Já a debacle que a extrema-direita (nazistas e fascistas) acarretou é antiga, acabou faz 70 anos, todos tendem a esquecer. Como filme de terror, a história esquecida tende a se repetir. De uns anos pra cá, mais e mais cidadãos aderem ao populismo nacionalista. Em todos os países do continente.

Esquerda tradicional, direita tradicional, extrema-direita populista

Esquerda tradicional   –   Direita tradicional   –   Extrema-direita populista

Pela primeira vez na história, a França periga conhecer nova partilha política. A crer nas sondagens, o tradicional bipartidarismo já era. Viva o tripartidarismo! Direita tradicional, esquerda tradicional e uma extrema-direita populista ressuscitada dominarão a paisagem política do país nos próximos anos.

Cidadãos equilibrados torcem para que o desvario dos conterrâneos não chegue ao desatino de entregar o poder central a extremistas populistas. Como bem sabem norte-coreanos, cubanos e venezuelanos, todo extremismo é daninho.

Frase do dia — 197

«A frequência com que as palavras “nazismo” e “nazista” são usadas para insultar tende a ser tanto maior quanto menor o conhecimento dos que as empregam.»

Editorial do Estadão intitulado «O nazismo na boca de Lula», 23 out° 2014.

Linha quebrada

José Horta Manzano

O alvorecer do século XX conheceu espetacular movimento estético. Todo feito de curvas lânguidas e voluptuosas, o Art Nouveau tomou conta do ambiente artístico. Pintura, arquitetura, grafismo sucumbiram ao charme da nova tendência.

Art Nouveau arquitetura, pintura e decoração

Art Nouveau: arquitetura, pintura e decoração

A quase ausência de ângulos concedia liberdade ilimitada à criação e trazia um não sei quê de fim de época, como se se estivessem queimando os últimos cartuchos antes do fim da festa. De fato, a festa acabou. A carnificina da Grande Guerra (1914-1918) deu conta de aniquilar todas as ilusões.

Nos anos 20 e 30, surgiu nova tendência artística. Era o Art Déco, a arte decorativa. As curvas sensuais foram banidas. Ângulos ríspidos e círculos bem organizados tomaram conta. O novo movimento ― ordenado, rigoroso, controlado, vigiado, canalizado ― combinava com os novos tempos.

Art Déco domínio de ângulos e círculos

Art Déco: domínio de ângulos e círculos

O Art Déco cresceu ao mesmo tempo que regimes fascistas e nazistas, de forte tendência autoritária. A hecatombe da Segunda Guerra (1939-1945) se encarregou de enterrar tanto os regimes quanto, de quebra, o movimento artístico.

Interligne 18h

Já faz décadas, desde que a circulação de veículos automóveis se acentuou, que brotou a ideia de dar diretivas ao motorista por meio de inscrições no solo. A simbologia, feita de linhas e de inscrições, é conhecida por todos. Alterações do fluxo têm sido tradicionalmente indicadas por linhas curvas, tanto para alargamento, quanto para afunilamento. A linha curva tem efeito colateral não desprezível: incita à fluidez e à harmonia.

Sinalização curva tradicional

Sinalização tradicional com linhas curvas;

O que vou dizer agora pode parecer brincadeira, mas asseguro-lhes que é verdade. As autoridades que coordenam o tráfego da cidade de São Paulo acabam de substituir a curva por um zigue-zague. Parece um primeiro de abril atrasado.

Duas reflexões me ocorrem. A primeira diz respeito ao comportamento dos motoristas no tráfego do Brasil em geral e de São Paulo em particular. Linha angulosa combina com a rispidez e a selvageria que caracterizam os usuários. Comportamentos bicudos são atiçados pelas linhas angulosas. Está criado um círculo vicioso em que a agressividade se autoalimenta.

Sinalização «diferenciada» Crédito: Rivaldo Gomes, Folhapress Clique na foto para ler a reportagem

Sinalização «diferenciada»
Crédito: Rivaldo Gomes, Folhapress
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A segunda reflexão é sobre o momento que nosso País atravessa. Tentações autoritárias, vindas todas do andar de cima, mostram suas garras e ameaçam os cidadãos que somos. Regulação de internet, controle de mídia, censura à imprensa são farinha do mesmo saco. Tendem todas a incrementar a dominação dos que estão por cima.

Vamos torcer para que as linhas quebradas do solo paulistano não sejam prenúncio de quebras maiores. De liberdade, por exemplo.