Não nos representa

José Horta Manzano

Não gosto nem desgosto de Regina Duarte. Pra mim, como dizia minha avó, a moça não fede nem cheira. Lembro vagamente de alguma cena de tevê em que ela aparecia, trinta anos atrás. Mais nada.

Fiquei surpreso quando soube que ela tinha aceitado o cargo de Secretária da Cultura. Me pareceu decisão arriscada visto o contexto. Por um lado, concordava em ser sucessora daquele destrambelhado aprendiz de nazista; por outro, ia trabalhar sob as ordens de doutor Bolsonaro, que é outro perturbado. Imaginei que daí não saísse nada de bom. Parece que não está saindo mesmo.

É de hoje a notícia de um coletivo de mais de 500 artistas que acaba de lançar manifesto contra a secretária da Cultura. Em 150 palavras veementes, o grupo repudia o comportamento da moça quando de recente entrevista a uma emissora de televisão. Parece que ela andou pondo as manguinhas de fora. O manifesto termina com a frase choque: «Ela não nos representa».

Faço coro com os artistas que se declaram contrários a todas as mazelas do governo atual. No entanto, o protesto deles sofre de um mal de nascença: a secretária da Cultura, assim como todos os seus colegas ministros e secretários, não estão lá para representar ninguém.

Em nosso sistema político, os representantes do povo são os parlamentares, que são eleitos exatamente para essa função. Ministros e secretários são auxiliares pessoais e diretos do presidente da República, que tem o direito de os escolher e de os demitir ad nutum(*).

Portanto, não faz sentido apontar o dedo para a secretária e dizer que ela «não nos representa». A moça não está lá pra representar ninguém. A função dela é pôr em prática a política de seu chefe, o presidente. É a este senhor que toda reclamação tem de ser dirigida.

(*) Ad nutum é expressão latina. A tradução literal é ‘com aceno de cabeça’. Vem daí nosso verbo anuir (=consentir, autorizar). Usa-se essa locução adverbial para indicar uma decisão instantânea, fruto de poder absoluto e discricionário.

No caso presente, ad nutum informa que o mandato de ministros e secretários é revogável a qualquer momento, bastando para isso um simbólico “aceno de cabeça” do presidente.

Ranço colonizador

José Horta Manzano

Sob o título de «Ranço colonizador», o Estadão de hoje dá notícia, em editorial, de um manifesto lançado alguns dias atrás por 28 senadores franceses em defesa da presidente afastada, Dilma Rousseff. Em tom indignado, o quotidiano brasileiro se insurge contra a posição dos parlamentares estrangeiros, que abraçam a fantasia de pretenso golpe parlamentar urdido para derrubar a mandatária.

Editorial Estadão, 17 jul° 2016

Editorial Estadão, 17 jul° 2016

O título do panfleto francês já diz tudo: «Dilma Rousseff vítima de baixa manobra parlamentar». Acreditando que os signatários do libelo estejam mal-informados e desconheçam os fundamentos jurídicos que sustentam o processo de destituição da presidente, o Estadão dá verdadeira aula de Direito Constitucional brasileiro.

Nosso jornal gasta muita saliva com pouca comida. Basta arranhar com a unha para descobrir que, por debaixo do revestimento dourado , o metal é de qualidade duvidosa. Procurei saber um pouco mais sobre os comos e os porquês. O tal ‘manifesto’ passou absolutamente despercebido na França, só tendo sido publicado pelo parisiense Le Monde. Nem folhas de esquerda como Libération ou L’Humanité (órgão do Partido Comunista) deram eco ao abaixo-assinado. Nenhum outro quotidiano francês deu a menor importância.

Chamada de Le Monde, 13 jul° 2016

Chamada de Le Monde, 13 jul° 2016

Como achei estranho esse descaso, quis verificar quem eram os signatários. Afinal, o Senado francês, composto de 348 membros, é braço do Poder Legislativo. Fazendo as contas, notei que os 28 autores do texto representam apenas 8% do total de senadores. Desses 28, vinte são comunistas: formam o CRC ‒ Grupo Comunista Republicano e Cidadão. Os restantes são afiliados a grupos ecologistas. Um só dentre eles é conhecido por ter sido, anos atrás, apresentador de tevê. Os demais são estranhos ao grande público.

Cada jornal toma o caminho que lhe parece mais indicado. Não estou aqui para dar lições ao Estadão. Assim mesmo, cogito ergo sum ‒ não posso me impedir de pensar. Que René Descartes não me leve a mal.

Senado francês

Senado francês

Depois de cogitar um instante, cheguei à conclusão de que um quotidiano do porte do Estadão não deveria perder tempo com elucubrações de adeptos do pensamento único. Com tanta coisa mais importante em pauta, não vale a pena gastar esforço tentando dar aulas de democracia a gente que passou por lavagem cerebral. É muita vela pra defunto pouco.