O Sete de Setembro vem aí

José Horta Manzano

Um passeio por sites bolsonaristas – que há de montão, acredite! – ensina que os devotos estão animados. Prevêem que o próximo 7 de setembro será o 6 de janeiro tupiniquim.

Vamos pôr em termos claros. Os adeptos da seita presidencial entendem que, aproveitando a modorra que o sol do cerrado impõe, o povo armado invadirá a Câmara, o Senado e o STF. Tudo ao mesmo tempo, no Dia da Pátria, num decalque exato do que ocorreu em Washington em 6 de janeiro, quando uma turba ensandecida tentou tomar à força o Capitólio.

O capitão também deve acreditar na patacoada; assim mesmo, prefere pôr um pé atrás. Chegou a declarar, esses dias, que “não quer desfile nem festejos no 7 de setembro”. Com tal atitude, imagina não poder vir a ser acusado de incitar a turba – para o caso de dar tudo errado, naturalmente. Pra reforçar, declarou ontem que, no 7 de setembro, pretente estar na Avenida Paulista. Ninguém pode ter certeza, porque as afirmações do presidente são, digamos assim, flutuantes.

Toda a tecnologia atual, incluindo a I.A. (inteligência artificial) ainda é incapaz de prever, tim-tim por tim-tim, o desenrolar de fatos futuros. Portanto, estamos ainda no estágio de “quem viver verá”. Seja como for, é conveniente tomar pelo menos duas providências.

A primeira é reforçar a guarda desses três centros do poder. Não precisa lotar a praça de brucutus fumarentos nem cercar a cidade com cordão policial. Mas uma vigilância discreta não faz mal a ninguém.

A segunda providência é deixar repórteres e jornalistas de prontidão, armados com câmeras de alta definição posicionadas em pontos estratégicos, tanto no exterior quanto, principalmente, no interior dos recintos. Isso permitirá reconhecer os invasores e identificar seus líderes, o que pode ser útil para providências futuras.

Multidões enfurecidas não costumam ganhar guerras nem derrubar regimes. Pra conseguir reviravolta total, precisam do apoio de quem detém a força. Portanto, com multidão ou sem ela, se não houver empenho do Exército, nada muda. Inversamente, se o Exército estivesse interessado e coeso, não precisavam de multidão pra botar tudo de cabeça pra baixo. Já teriam feito.

Reflexões sobre a greve

José Horta Manzano

Toda decisão governamental, correta ou equivocada, acaba por acarretar efeito a longo prazo. Estamos sentindo hoje a repercussão de escolhas feitas semana passada. Mas estão aí também as consequências de decisões antigas. Alguns desastres atuais são resultado de bombas-relógio armadas meio século atrás.

Os anos em que a República foi presidida por Juscelino Kubitschek foram de grandes transformações. Com euforia, os brasileiros vislumbravam um Brasil novo, de progresso e bem-estar. Brasília foi construída em prazo curtíssimo ‒ um assombro. O futuro parecia estar chegando e se apresentava brilhante.

A indústria automobilística se instalou em território nacional. Nas cidades e nas toscas estradas, começaram a rodar dekavês que estalavam feito pipoca, fusquinhas esquisitos com motor atrás, simcas elegantes e cobiçados. E os caminhões fenemê, então! Um dos símbolos fortes da pujança da terra descoberta por Cabral!

Com orgulho, o Brasil se jogou de corpo e alma no transporte rodoviário, deixando pra trás os caminhos de ferro. Que coisa mais antiquada, gente! Trem de ferro, trenzinho do caipira, maria-fumaça ‒ a etiqueta de meio de transporte ultrapassado colou na ferrovia. Ninguém reclamou quando, em poucos anos, a rede ferroviária foi desmantelada. O mato cresceu entre os trilhos e as estações viraram ruína.

Essa visão maniqueísta, que opõe rodovia a ferrovia, foi muito nociva. Passados cinquenta anos, o Brasil sofre as consequências de uma decisão desastrada, tomada sob forte pressão do lobby das montadoras. É verdade que ninguém podia prever as crises petroleiras nem os reclamos da ecologia, que estavam por vir. São elementos que entraram em nossa vida sem pedir licença. Que fazer?

No fundo, o trem não era tão antiquado como pareceu aos governantes dos anos 1960. Países mais atinados continuaram a investir no aperfeiçoamento das estradas de ferro. Vieram trens de superior desempenho, com boa velocidade, climatização, vedação sonora. As linhas foram totalmente eletrificadas. Apareceu o trem-bala, que, em percursos de até 500-700km, faz concorrência ao avião.

Chamada Estadão, 28 maio 2018

Com o perdão da expressão, o Brasil perdeu o bonde. Dormiu no ponto. Mas nunca é tarde demais pra consertar. Quem sabe um governo mais alerta dê os incentivos necessários pra retomar a implantação de ferrovias. Embora não venham imediatamente, os resultados serão pra lá de benéficos. Nossos netos não verão um país paralisado por greve de caminhoneiros.

A briga de vizinhos e o relógio

José Horta Manzano

Você sabia?

Eu me lembro que, quando era criança, havia um relógio em casa. Um só. Soberano, reinava pendurado na parede do corredor. Empoleirado lá em cima, dominava o ambiente. Dono e senhor do tempo, ditava o ritmo da família.

Hoje não é mais assim. A gente vive rodeado de relógios. Tem o do celular, o do computador, o do micro-ondas, o de pulso, o de cabeceira, o do rádio, o do banheiro, o do carro, o de cima da geladeira, aquele que anda esquecido no fundo da gaveta em pré-aposentadoria. Ah, e tem ainda o do corredor, bastante deprimido com tanta concorrência.

Em princípio ‒ digo bem: em princípio ‒, todos deveriam marcar a mesma hora, questão de coerência. Na prática, todavia, a teoria se perde. Ao marcar um minuto a mais ou a menos que o vizinho, parece que cada um dos reloginhos faz questão de afirmar a própria singularidade. Um resto de rebeldia adolescente, sem dúvida.

Lá pelo meio de janeiro, notei que o relógio do forno elétrico andava meio preguiçoso. Fugindo ao costume de empatar com o do rádio, deu de atrasar. Começou com um minuto. Uma semana depois já atrasava dois minutos que, dias mais tarde, já eram três. Imaginei que o mecanismo estivesse sofrendo de reumatismo em razão da velhice. Achei até curioso que relógio também sofresse esses achaques.

Mas a coisa foi piorando. Na segunda semana de fevereiro, quando a defasagem já atingia seis minutos, resolvi dar uma colher de chá ao ancião: acertei o relógio. Não deu uma semana, e o rebelde já corria, penosamente, dois minutos atrás da hora certa. Cheguei a pensar em trocar de forno, mas uma reflexão mais profunda me acalmou. Não vale a pena usar canhão pra caçar pardal.

Eis senão quando fiquei sabendo da razão desse desarranjo. Nulo em física, não tenho condições de explicar tim-tim por tim-tim. Vou-lhes vender o peixe pelo preço que paguei. O problema vem de uma briga de vizinhos que ocorre a dois mil quilômetros daqui, lá pelas bandas da Península Balcânica.

Para entender, precisa saber duas coisas. A primeira é que a rede elétrica europeia é toda interligada, providência bastante prática. Quando um país não tem como responder a um aumento da demanda interna, compra energia dos vizinhos. Esse toma lá dá cá se faz de maneira semiautomática. A segunda informação é que o Kosovo, pequena província que se separou unilateralmente da antiga Iugoslávia, não é reconhecido pela Sérvia como país independente. Os dois vivem mostrando a língua e tentando passar rasteira mutuamente.

Em meados de janeiro deste ano, o Kosovo decidiu privar a Sérvia do excedente de energia. Só para atazanar o vizinho, as autoridades kosovares preferiram desperdiçar eletricidade em vez de ceder ao vizinho, como manda o figurino. Esse pequeno incidente gerou reflexo no sistema de distribuição da Europa inteira. A frequência da rede, normalmente de 50 herz, baixou a 49,996 herz. Essa minúscula variação não altera em nada a potência da eletricidade. Lâmpadas continuam acendendo e motores funcionam sem problema.

Acontece que relógios elétricos ‒ isso eu não sabia ‒ são regulados pela frequência. Se ela foi maior que 50 herz, os bichinhos adiantam. Se for menor, atrasam. Daí o descompasso de reloginhos de forno e de despertadores ligados na tomada. Os governos europeus estão atualmente empenhados em reconciliar os vizinhos bicudos. Não há perigo de estourar uma guerra, mas permanece o risco de muito cidadão continuar chegando atrasado ao trabalho.

Dilma e o fantasma Marina

Eliane Cantanhêde (*)

A expectativa de segundo turno entre duas mulheres, uma ex-gerentona neopetista e uma evangélica ex-petista, ambas bravas e autoritárias, promete boas emoções. Vai sair faísca.

Estatísticas 2Duas mulheres, duas histórias diferentes. Dilma Rousseff vem da classe média de Minas e entrou pela porta da frente em bons colégios católicos. Marina Silva emergiu da miséria no Acre e chegou pela porta dos fundos: esfregava chão e lavava banheiro das freiras para ter direito às aulas.

Dilma vem da resistência armada à ditadura, era do PDT e virou presidente pelo PT. Marina nasceu com a bandeira do meio ambiente, cresceu no PT, fez fama nacional no PV, tentou sem sucesso criar a Rede e acabou candidata a derrotar Dilma pelo PSB. Ou seja: Marina, muito mais petista de raiz do que a neófita Dilma, tornou-se a maior ameaça à continuidade do PT no Planalto.

Dilma e Marina conviveram no PT e no ministério do primeiro governo Lula. Foi aí que a encrenca começou. As duas encarnaram uma guerra entre “desenvolvimentismo” e “sustentabilidade” e disputaram não só espaço e poder interno, mas as graças do ídolo Lula. Dilma venceu todas, e Marina deixou o governo, o lulismo e o PT. Ganhou vida própria. E assombra os petistas.

Estatísticas 3Contrariando pesquisas e evidências de que tudo mudou com a queda do Cessna Citation, a campanha de Dilma continuou, estranhamente, desperdiçando munição contra o tucano Aécio Neves. Demorou a cair a ficha. Talvez porque Dilma e Lula tenham fixação em tucanos. Talvez porque não tenham discurso e bala para atingir Marina, de figura frágil e projeto abstrato.

Dilma acordou ontem, 28 de agosto, tateando, improvisando para acertar a intangível Marina. Com um detalhe: passou a mirar Marina, mas sem tirar o olho de Aécio. Além do medo de perder para Marina, o pavor de Lula, Dilma e PT é… terem de entregar o Planalto às mãos de uma aliança da ex-petista Marina com o PSDB.

(*) Eliane Cantenhêde, jornalista, é colunista da Folha de São Paulo