Arruaceiros de lá e de cá

José Horta Manzano

Aconteceu em maio de 2003. A Cúpula Anual do G8 estava para realizar-se na cidade francesa de Evian, estação de águas à beira do Lago Leman, localidade bastante turística. A reunião de líderes dos países mais importantes incluía a Rússia conduzida por um Putin que ainda não tinha mostrado seu lado B. Só depois da anexação da Crimeia é que a Rússia seria expulsa e o bloco passaria a chamar-se G7.

Durante os três dias da Cúpula, a cidadezinha de Evian estaria totalmente isolada do mundo, com entradas e saídas rigorosamente controladas por militares armados vindos da França inteira. Só habitantes e visitantes credenciados teriam o direito de entrar. Helicópteros e drones sobrevoariam a localidade. Afinal, eram figurões os que se reuniriam: Jacques Chirac, Vladimir Putin, Silvio Berlusconi, George W. Bush, Tony Blair & alia.

Grupos de jovens, que se autodefiniam como “anti G8”, preparavam manifestações pacíficas. A sabedoria popular, que não costuma falhar, afirma que “é conversando que a gente se entende”. É por isso que até hoje não consegui captar o objetivo daqueles manifestantes que viam com maus olhos o diálogo entre líderes. Será que preferiam que eles se estapeassem ou botassem tanques nas ruas?

Na impossibilidade de penetrar em Evian, onde se realizava a Cúpula, os jovens idealistas escolheram manifestar-se em Genebra (Suíça), cidade bem maior, situada a uns 50 km de distância, à beira do mesmo lago. Os manifestantes marcaram passeatas para os três dias de duração da cimeira. Eram marchas simbólicas com cartazes, megafone e palavras de ordem. Acreditavam que, quando aparecessem nas manchetes e no jornal da tevê, sua visão “anti G8” tocaria corações mundo afora.

Mas nenhuma felicidade é perfeita nem eterna. Grupos de arruaceiros, ao tomar conhecimento das passeatas, sentiram que era chegado o momento de armar um bom quebra-quebra em Genebra. Desordeiros vieram até do estrangeiro – havia alemães, franceses, austríacos, italianos – todos armados de tacos de beisebol e coquetéis Molotov. Um primor.

Vários comerciantes genebrinos, sabedores de que estava para chegar uma horda de agitadores violentos, protegeram a vitrina com tapumes de madeira. Mas nem todos tomaram essa providência. Genebra é uma cidade grandinha, impossível de ser trancada. O fato é que os baderneiros se instalaram na cidade.

Já na véspera da abertura da Cúpula, os profissionais do quebra-quebra entraram em ação. Aproveitaram do escuro da noite para agir. Encapuzados e mascarados, quebraram vitrines, incendiaram lojas, destruíram mobiliário urbano. Foi uma noite de caos. A polícia não pôde fazer muito. Os arruaceiros sempre escolhem agir em campo descoberto, de onde possam escapar rapidamente; nunca se arriscam a jogar bomba em beco sem saída.

E assim continuaram pelas noites seguintes. Hotéis foram atacados e restaurantes McDonald’s, depredados. Os agressores são desocupados sem ideologia: vêm de longe e destroem pelo simples prazer de destruir. Assim que a reunião do G8 terminou, desapareceram. E nunca mais se ouviu falar deles.

Outro dia, em Brasília, quando nosso presidente eleito foi diplomado, arruaceiros tupiniquins decidiram agir. Aproveitando que um punhado de apóstolos do bolsonarismo ainda acampa nas ruas choramingando por um milagre, vestiram-se de amarelo e promoveram uma noite de horror.

Me fizeram lembrar de Genebra 2003 – com eficácia menor, porém. Agiram em campo aberto: posto de gasolina, viaduto, esplanada diante de instituições. São lugares de onde se pode escapar rápido, caso a situação aperte.

A população vê, nesses agressores, bolsonaristas enfurecidos. Já os bolsonaristas acreditam que os autores do quebra-quebra sejam petistas infiltrados.

É difícil dizer com certeza, mas não é impossível que tenham sido agitadores compulsivos, que não precisam necessariamente ser remunerados. Destroem pelo prazer de destruir – o que não os impede de ter preferências políticas. Quais são? Só Deus sabe.

Dinheiro grosso

José Horta Manzano


Todas as polícias do Brasil tentam descobrir quem está financiando os acampamentos de bolsonaristas inconformados.


Imagine só: levantar de manhã num feriado, sair de casa, fazer corrente humana em roda de um quartel, beijar o muro, ajoelhar, rezar, implorar os céus – arre! Tudo isso dá fome. Até no universo paralelo, barriga ronca.

Sem problema! A dois passos dali, estão as barraquinhas de comes e bebes. Tudo é grátis, com a condição de o freguês estar vestido a rigor, isto é, de verde-amarelo. Quem não tiver camiseta da seleção, basta se enrolar na nossa bandeira.

A única cor banida é o vermelho: nem um detalhe da indumentária deverá ostentar essa cor maldita. Para evitar mal-entendidos, mulheres ruivas são aconselhadas a prender o cabelo e cobrir a cabeça com um boné. Se o boné for do tipo “Trump for president”, melhor ainda. Pra prevenir processos por discriminação, pessoas de tez morena serão toleradas.

Dia sim, outro também, pipocam notícias da descoberta de um site, quiçá na dark web, que estaria sendo usado para difundir informações sobre os pontos de ajuntamento de protestatários. Descobre-se um site aqui, um canal youtube ali, um grupo de zap-zap acolá, mas nunca se chega ao(s) verdadeiro(s) mandante(s). Só se encontram bagrinhos.

Repare nos cartazes expostos na ilustração. “Café do Povo Grátis” e “Lanche Grátis” indicam boca-livre, tudo de graça. Repare nas barraquinhas. Não são surradas nem puídas como as barracas de feira-livre. São uniformizadas e novinhas.

Para sustentar uma quermesse desse porte, é preciso ter: atendentes em cada barraca; cozinheiros e copeiros que preparem os lanches; compradores que cuidem do abastecimento e da compra dos petrechos necessários; faxineiros que se encarreguem de limpar fogões e utensílios; carregadores que tragam a comida até cada barraquinha.

Como se sabe, todo trabalhos merece salário. Todo esse pessoal não passa os dias trabalhando pela glória de sabe-se lá quem. Têm de ser remunerados. É aí que se encontra o gargalo. Para o distinto leitor e para mim, que não somos especializados em espionagem, seria difícil descobrir quem está por trás desse apoio. Para a polícia, são outros quinhentos.

Os corpos de polícia são formados (e estão aparelhados) para seguir pistas. Partindo dos funcionários que trabalham nas barraquinhas, não há de ser difícil chegar aos fornecedores, e dai aos verdadeiros financiadores. Que são os autores intelectuais do delito de apoio às manifestações golpistas.

Essas manifestações parecem organizadas demais para serem fato espontâneo. Há dinheiro grosso por detrás. Descobrir o dono, não parece difícil.

Lembra do “brienfing”?

José Horta Manzano

Parece que faz um século, mas aconteceu quatro meses atrás. Foi quando um desesperado capitão convocou o corpo diplomático acreditado em Brasília para revelar-lhe que nosso elogiado sistema eleitoral era disfuncional e fraudulento.

Todos hão de ter duvidado da sanidade mental do presidente. Disfuncional mesmo é um sujeito que venceu todas as nove eleições de que participou dizer que o sistema é aberto a fraudes. Coisa de desequilibrado.

Presidentes ignorantes, corruptos, populistas, mentirosos, incapazes, já tivemos. Mas a história não assinala nenhum que tenha convocado o corpo diplomático acreditado em Brasília para falar mal do Brasil. Fico imaginando os termos que cada embaixador utilizou no relatório enviado a seu respectivo governo. É melhor nem ficar sabendo. De vergonha, basta o que o capitão disse em público.

Na ocasião da palestra oferecida por Bolsonaro aos embaixadores, o telão erguido ao lado do orador dizia que a palestra era um “brienfing”. A palavra utilizada me pareceu ofensiva e presunçosa. No original, designa uma reunião em que o discursante dá instruções aos que assistem. Para coroar, foi mal grafada. Por ignorância ou desleixo, enfiaram um “n” onde não devia estar. O correto é “briefing”.

Francamente, ignorância e desleixo parecem estar incrustadas no universo bolsonarista. A foto acima foi tirada num desses acampamentos organizados diante de quartéis. De novo, maltrataram uma palavra da língua inglesa. “Freedom” (=liberdade) aparece mal grafada.

Quem bolou o texto julgou que palavra terminada em “m” parece brasileira, não inglesa. Deve ser por isso que tascou um “n” no fim. Fica com ar mais estrangeiro. É como alguns “Willian” que há por aí.

Antigamente se dizia que “quem não tem competência, não se estabelece”. Parece que o ditado já não vale.

#naovaitergolpe – 2

José Horta Manzano

Se alguém espera que parlamentares bolsonaristas recém-eleitos se abalem pra “salvar” o capitão ou pra apoiar um golpe de Estado, pode tirar o cavalinho da chuva. Isso não periga acontecer. Por quê?

A razão é simples. Eles todos, que eram desconhecidos até anteontem, subiram agarrados no elevador bolsonarista. Surfaram a onda e assim foram eleitos. Agora, que estão lá, não querem nem ouvir falar de golpe. Nem por brincadeira.

A primeira consequência de todo golpe que se preza é o fechamento do Congresso. Parlamentares são todos postos de molho por tempo indefinido. Em seguida, vêm as cassações de mandato. “Quem garante que o meu não será cassado?” – é o que se pergunta o deputado ajuizado.

Melhor deixar como está. Deputados estão com cargo, salário, jetons, apartamento funcional, mordomias e principalmente imunidade parlamentar garantidos por quatro anos. No caso dos senadores, são oito anos. Quem vai fomentar golpe e arriscar perder tudo isso? Ninguém é besta.

Parlamentares bolsonaristas estão agindo rápido para reconhecer a derrota de Seu Mestre. Entre os primeiros, estão: Sergio Moro, Carla Zambelli, Zé Trovão, Ricardo Salles, Tereza Cristina, Arthur Lira, Nikolas Ferreira, Damares Alves. Esta última, apesar de residir no DF, pediu que um apartamento funcional seja posto a sua disposição.

Quem é que trocaria essa moleza por um temerário golpe só pra “salvar” um desequilibrado?

The day after

José Horta Manzano

Diante dos resultados oficiais do voto de ontem, ninguém ficou indiferente. Todos se surpreenderam. Grosso modo, metade do eleitorado estourou o champanhe e a outra metade baixou as orelhas e pôs as barbas de molho.

Os institutos de pesquisa levaram uma pancada na moleira – todos eles. Não conseguiram avaliar os sentimentos latentes na população dos grandes colégios eleitorais: São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Agora tentam se escorar na explicação de um suposto “voto envergonhado”, fato que não bate com a realidade.

Veja só. Tenho conhecidos que, ao percorrerem o interior do estado de São Paulo seis meses atrás, já tinham me confiado que, naquela região, “todos são bolsonaristas”. Quase não acreditei, pois não é o que as sondagens indicavam. Se um simples cidadão consegue captar esse sentimento dominante, me parece erro grave que institutos especializados não detectem o fenômeno.

Andei fazendo umas continhas. Tomei o desempenho de Lula e Bolsonaro nesta eleição e comparei com eleições passadas. Cheguei a um resultado interessante. Vejam.

Em 2002, Lula conseguiu pela primeira vez passar para o segundo turno. Naquele primeiro turno, cravou 46,4% dos votos.

Na eleição seguinte (2006), depois de passar 4 anos no poder, nosso demiurgo se recandidatou e chegou de novo à final. No primeiro turno daquele ano, fez 48,6% dos votos, um incremento de 2,2 pontos percentuais. Excelente desempenho.

Seguiu-se um hiato de doze anos, em que se sucederam mensalão, petrolão, processos, julgamento, recurso e prisão. Passada a tempestade, Lula voltou à carga e recandidatou-se. Neste primeiro turno de 2022, acaba de obter 48,4%. Ou seja, apesar dos pesares, praticamente igualou sua marca de 12 anos atrás. Haja resiliência!

Em 2018, o candidato Bolsonaro passou para a etapa final. Naquele primeiro turno, atingiu a marca de 46,0% dos votos, excelente para um iniciante. Seguiram-se 4 anos caóticos, com pandemia tratada a bofetadas, destruição da Amazônia, disseminação de armas, insultos e baixarias no varejo e a granel.

Logo após a publicação dos resultados deste primeiro turno de 2022, o capitão se gaba de ter tido mais votos do que em 2018. O que ele omite é que o eleitorado cresceu 10%, proporção muito maior que os votos que ele recebeu a mais.

O TSE confirma que Bolsonaro acaba de cravar 43,2%, uma marca inferior de quase 3 pontos ao resultado de 2018. Uma análise honesta revela que, enquanto Lula soube conservar seu capital eleitoral, o capitão perdeu cerca de 3.300.000 votos (três milhões e trezentos mil). Portanto, teve, sim, menos votos do que em 2018.

Ser abandonado por milhões de eleitores nunca é bom sinal. O básico, para um governante que pretende se reeleger, é reforçar seu patrimônio eleitoral ao longo do primeiro mandato. Se o capitão não conseguiu, apesar de toda a ginástica que tem feito, é porque não leva jeito para a coisa.

Consideração final
Não acredito que metade dos brasileiros seja bolsonarista e que a outra metade seja lulopetista. Não é assim que se devem analisar os resultados. A meu ver, mais do que a adesão às ideias ou ao “programa” de cada um deles, os resultados estão a indicar um voto contra.

É simples: há os antipetistas e há os antibolsonaristas. Uns juram não querer um ladrão na Presidência. Outros afirmam não suportar um cafajeste no Planalto.

Partindo do princípio que, uns mais e outros menos, todos roubam, a escolha não me parece complicada.

Brincando de candidato

José Horta Manzano

Na hora de votar, paulistas e paulistanos são gente pouco preconceituosa. Não costumam ser mesquinhos. A capital já elegeu prefeitos cariocas (Faria Lima, Celso Pitta), uma prefeita vinda da Paraíba (Luíza Erundina), um mato-grossense (Jânio Quadros). Este último, aliás, antes de chegar à Presidência da República, foi governador dos paulistas durante quatro anos, eleito pelo voto direto. Lembremos que Fernando Henrique, o carioca que viria mais tarde a presidir o Brasil, também foi senador por São Paulo durante oito anos.

Paulistas não gostam é de ver gente que só conhece o estado de ouvir falar se apresentando como “profundo conhecedor” da terra dos bandeirantes. Vez por outra, aparece algum político que, não se sabe por que razão, se recusa a subir um degrau após o outro e prefere ser lançado de paraquedas pra pousar logo no topo da escala.

Não faz muito tempo, o paranaense Sergio Moro arrumou um endereço fantasma e, numa burla às regras, tentou inscrever-se como candidato ao Senado pelo estado de São Paulo. Foi apanhado e caiu do cavalo. Conhecia pouco ou quase nada do estado.

Temos agora o caso do doutor Tarcísio de Freitas, candidato do bolsonarismo ao governo paulista. Nascido do Rio e tendo passado boa parte de sua vida em Brasília, ele tem tanta intimidade com o estado de SP quanto você, distinto leitor, tem com a Mongólia. Pra quem nunca ouviu falar desse senhor, foi diretor de autarquia nomeado no governo Dilma, em seguida ministro nomeado por Bolsonaro. Costumava aparecer na garupa do presidente em alguns passeios de moto à la Mussolini.

A jornalista Bela Megale relata, em artigo d’O Globo, que senhor Freitas caminhava outro dia pelas ruas de Osasco (grande SP), quando um popular lhe perguntou se conhecia o estado. “Conheço mais que paulista” – foi a resposta, petulante e grosseira, ao melhor estilo bolsonarista.

O artigo nos informa também que, antes de bater o martelo, senhor Freitas relutava em aceitar a candidatura à governança de São Paulo, como lhe exigia o capitão. Em vez de candidatar-se a governador por um estado que não conhece, teria preferido representar o estado de Goiás no Congresso, o que lhe permitiria levar vida tranquila e continuar residindo em Brasília. No final, a pressão presidencial foi tamanha que, bom devoto, cedeu.

Agora chegamos ao ponto. Como eu dizia na entrada, não é questão de mesquinharia nem de rejeição ao forasteiro. O que os paulistas teriam preferido era um candidato com raízes no estado, pouco importando seu lugar de nascimento. Afinal, os 46 milhões de habitantes de São Paulo equivalem à inteira população da Espanha ou da Argentina. Se o estado fosse uma nação independente, seu PIB a situaria entre as 20 maiores economias do planeta.

Diga-me agora se é normal que a governança de uma massa de gente e de bens de tal magnitude seja entregue nas mãos de um indivíduo que, além de mal conhecer o estado, carece totalmente de experiência política? E que, ainda por cima, se candidatou de má vontade, só porque Seu Mestre mandou.

Governar o estado mais importante da União não é função para indivíduos desmotivados, que lá estão só porque o chefe insistiu.

Essa clique que se aglutina em torno da Presidência está tratando cargos políticos como bibelôs, que a gente escolhe na prateleira pensando em combinar com a cor da cortina da sala, manda embrulhar e leva embora. Os brasileiros merecem maior consideração.

Brasil armado

José Horta Manzano

Nos bons tempos de antigamente, arma de fogo era artigo raro. Entre os civis, os que mais se interessavam eram os caçadores – por motivos óbvios. Aliás, armas se vendiam em loja de artigos para caça e pesca.

Mas toda sociedade evolui. Assim ocorreu com a sociedade brasileira, que nem sempre evoluiu no bom sentido. Em certos pontos, em vez de progredir temos regredido. No quesito armas, por exemplo.

Hoje qualquer pivete anda armado. E atira. Não se passa um dia sem notícia de algum homicídio causado por um assaltante imbecil, num ato que não traz proveito ao autor.

Pense agora no crime de Foz do Iguaçu, em que o bolsonarista matou o petista. Reparou que matador e vítima estavam ambos armados? Um trazia a arma dentro do carro de família – com a família dentro! O outro levava consigo um revólver em plena festa de aniversário – com a família ao lado!

É verdade que se tratava de profissionais da polícia, mas isso não os obriga a andar armados quando não estão em serviço. Aliás, suponho que devesse até ser proibido.

O fato é que, se nenhum dos dois estivesse carregando o trabuco, o entrevero teria se limitado a uma troca de insultos, como é moda atualmente, e mais nada. No entanto, com a bênção e o incentivo do clã presidencial, armas se disseminam e nosso faroeste cria raízes profundas.

Outros dramas estão a caminho.

O Sete de Setembro vem aí

José Horta Manzano

Um passeio por sites bolsonaristas – que há de montão, acredite! – ensina que os devotos estão animados. Prevêem que o próximo 7 de setembro será o 6 de janeiro tupiniquim.

Vamos pôr em termos claros. Os adeptos da seita presidencial entendem que, aproveitando a modorra que o sol do cerrado impõe, o povo armado invadirá a Câmara, o Senado e o STF. Tudo ao mesmo tempo, no Dia da Pátria, num decalque exato do que ocorreu em Washington em 6 de janeiro, quando uma turba ensandecida tentou tomar à força o Capitólio.

O capitão também deve acreditar na patacoada; assim mesmo, prefere pôr um pé atrás. Chegou a declarar, esses dias, que “não quer desfile nem festejos no 7 de setembro”. Com tal atitude, imagina não poder vir a ser acusado de incitar a turba – para o caso de dar tudo errado, naturalmente. Pra reforçar, declarou ontem que, no 7 de setembro, pretente estar na Avenida Paulista. Ninguém pode ter certeza, porque as afirmações do presidente são, digamos assim, flutuantes.

Toda a tecnologia atual, incluindo a I.A. (inteligência artificial) ainda é incapaz de prever, tim-tim por tim-tim, o desenrolar de fatos futuros. Portanto, estamos ainda no estágio de “quem viver verá”. Seja como for, é conveniente tomar pelo menos duas providências.

A primeira é reforçar a guarda desses três centros do poder. Não precisa lotar a praça de brucutus fumarentos nem cercar a cidade com cordão policial. Mas uma vigilância discreta não faz mal a ninguém.

A segunda providência é deixar repórteres e jornalistas de prontidão, armados com câmeras de alta definição posicionadas em pontos estratégicos, tanto no exterior quanto, principalmente, no interior dos recintos. Isso permitirá reconhecer os invasores e identificar seus líderes, o que pode ser útil para providências futuras.

Multidões enfurecidas não costumam ganhar guerras nem derrubar regimes. Pra conseguir reviravolta total, precisam do apoio de quem detém a força. Portanto, com multidão ou sem ela, se não houver empenho do Exército, nada muda. Inversamente, se o Exército estivesse interessado e coeso, não precisavam de multidão pra botar tudo de cabeça pra baixo. Já teriam feito.

Imunidade de rebanho

Imunidade coletiva

José Horta Manzano

Depois que os integrantes de hordas não-bolsonaristas resolveram chamar os integrantes de hordas bolsonaristas de gado, os termos que se referem à pecuária devem ser utilizados com muito cuidado, especialmente quando aplicados a humanos.

Dizer que, com a aceleração da vacinação, a imunidade de rebanho será logo alcançada, pode melindrar espíritos mais sensíveis. Talvez os integrantes das hordas bolsonaristas apreciem o elogio, talvez reclamem da implicância. Quanto aos integrantes das hordas não-bolsonaristas, certamente detestarão a expressão, justamente por não admitirem ser confundidos com gado. Gado, como sabemos, são sempre os outros.

Para não ofender nem uns nem outros, a língua – generosa – oferece diversas opções. Eis algumas:

    • Imunidade de grupo
    • Imunidade gregária
    • Imunidade de comunidade
    • Imunidade coletiva
    • Imunidade de população
    • Imunidade de massa

Está vendo? Pra evitar mal-entendidos, fuja da duvidosa imunidade de rebanho. Quando se fala em eliminar febre aftosa, a expressão que convém é exatamente imunidade de rebanho. Para gente, mais vale evitar polêmica.

Imunidade
A palavra deriva do adjetivo latino immunis (=imune), formado pela partícula in (negação) + munem (de munus = obrigação, dever). Na origem, tinha o sentido que hoje damos a isento. Quando determinados cidadãos estavam desobrigados de pagar uma taxa, por exemplo, dizia-se que estavam imunes.

Até hoje, as bagagens do diplomata passam a alfândega sem inspeção, em virtude da imunidade diplomática. Por seu lado, eleitos do povo são protegidos pela imunidade parlamentar.

O sentido que a palavra imunidade adquiriu em medicina é bem mais recente. Só apareceu no século 19, com a popularização da vacina antivariólica. O primeiro registro é da edição de 1865 do Dicionário Médico Littré-Robin (=immunité). De lá, passou às demais línguas.

Direita e esquerda – uma salada?

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 30 novembro 2019.

Na política brasileira tradicional, direita e esquerda têm sido noções difíceis de captar. A questão é simples: nunca foi habitual prestar atenção ao quadrante ocupado por políticos. Ser do norte ou do sul, mineiro ou baiano, rico ou remediado sempre contou mais do que ser de esquerda, de centro ou de direita. Basta voltar algumas décadas na história do país pra se dar conta da pouca importância dada ao bordo de cada figurão. Teria Juscelino Kubitschek sido de esquerda? De centro? De direita? E Jânio Quadros? E Getúlio Vargas, então, teria capitaneado uma ditadura esquerdista ou direitista? Tudo o que se puder dizer será baseado na visão que temos hoje. O recuo permite visão panorâmica. No calor das eleições de então, ninguém parou pra analisar esse aspecto.

Nos anos 1960 e 1970, num Brasil militar e rigoroso, o lugar ocupado pelo regime (esquerda ou direita) não era a preocupação maior. Importante mesmo (e todos sabiam disso) era não cutucar a onça com vara curta. Por certo levados pelo entusiasmo e pela incúria da juventude, alguns ousaram. Pela audácia, pagaram preço elevado; às vezes irreparável.

Nascida despretensiosa, a polaridade direita x esquerda descrevia a disposição dos membros da Assembleia da França revolucionária. À direita, sentavam-se os monarquistas, saudosos dos privilégios do ‘Ancien Régime’. À esquerda, ficavam os revolucionários, vidrados no guinchar da guilhotina e ansiosos por revolução radical. Dois séculos mais tarde, o quadro evoluiu. Direitistas já não lutam pelo rei nem temem a guilhotina. Esquerdistas já não anseiam por mudança radical da sociedade; ardem por ardis como espetáculos de pirotecnia, em que se começa por clímax tonitruante para, logo que se dissipam os brilhos, voltar tudo ao que era antes.

Nosso tabuleiro político sempre foi personalista, não partidarista. Houve carlistas, brizolistas, adhemaristas, mas nada de esquerda ou direita na visão popular. É difícil situar o momento que essa distinção entrou para a língua do povo. Em grandes linhas, coincide com a chegada do novo milênio. Dez anos antes, Collor de Mello inda prometia «caçar marajás» de todos os matizes, enquanto Lula se via um Robin Hood redivivo.

Faz uns quinze anos, com a subida do PT, ‘direita’ virou palavrão. Não se encontrou mais nenhum político brasileiro disposto a declarar-se ‘de direita’, peito aberto e olhar destemido. A meteórica subida de doutor Bolsonaro pôs à mesa uma versão tupiniquim do problema. A disposição gradual do arco político entre direita e esquerda se distorceu. Na nomenclatura oficial, a mesa virou. São hoje ‘esquerdistas’ todos os que ousarem discordar de algum ditame presidencial. No entanto, muito parlamentar não identificado com pensamento socialista ou de esquerda até que daria respaldo ao presidente, não fosse ele tão tosco e imprevisível. Para esse tipo de parlamentar, sobrou o ‘Centrão’, um caldeirão onde fumega uma sopa heterogênea de camarão e cabeça de bagre.

Grupos e associações que, não fosse a atual política tão distorcida, se declarariam direitistas, sem complexo, completando nosso arco multipartidarista, começam a renunciar à denominação tornada ofensiva por obra de nosso bizarro presidente. Não ousando o termo tradicional, declaram-se ‘liberais’.Traduza-se por direitistas não bolsonaristas.

Enquanto, lá no andar de cima, mentes sem luz se dilaceram em brigas familiares e intrigas palacianas, aqui no térreo, a coisa continua cada dia mais feia. Jornalistas econômicos preveem iminente apagão de mão de obra especializada no país. Apesar de sermos mais de 200 milhões, faltam jovens formados nas áreas estratégicas, as que deveriam estar delineando os contornos do Brasil futuro. Estudos indicam que, nos próximos dez anos, milhões de vagas deixarão de ser criadas devido à falta crônica de gente capacitada. Como consequência, haverá número exorbitante de gente sem especialização – e sem emprego –, perda de bilhões de dólares no faturamento de empresas de tecnologia e, o pior, a exclusão do Brasil do clube dos países que contam.

É problema real, cruel, evidente e premente que o país terá de enfrentar. Cuidar disso agora é bem mais importante do que fabricar réguas tortas pra medir a esquerdice ou a direitice de cada um. De toda maneira, a distorção está instalada de modo duradouro na mente do brasileiro: esquerda rima com corrupção; direita, com ignorância.

Não dá samba

José Horta Manzano

«Mulher que não dá samba, eu não quero mais». Assim vai o refrão do samba sacudido que Paulo Vanzolini criou e Carmen Costa gravou em 1974 em duo com Paulo Marquez. Nessa música, o compositor pinta os traços de uma mulher-objeto. Fosse hoje, ele seria renegado como machista malvado, plantado a milhas do politicamente correto. Na época, no entanto, a Polícia dos Costumes ainda não havia criado essas amarras. Artista podia permitir-se maior liberdade de movimento.

Hoje não se deve mais falar em mulher que dá samba, que não pega bem. Mas ainda não é proibido ver gente famosa dar substantivo e adjetivo. Não é façanha pra qualquer um. Duas condições precisam estar reunidas. Em primeiro lugar, o personagem deve ser importante e amplamente conhecido. Em segundo, seu nome tem de permitir a criação de derivados.

Vários campos da atividade humana são propícios à criação de adjetivos e substantivos derivados de nome próprio. No campo religioso, São Bento (Benedito) deu a paciência beneditina. São Francisco desembocou na humildade franciscana. Nas artes e nas ciências, há muitos exemplos: freudiano, balzaquiana, dantesco, machadiano.

A política é campo fértil para esse tipo de derivação. No passado, tivemos adhemarismo/adhemarista, janismo/janista, juscelinismo/juscelinista, getulismo/getulista e numerosos outros. É que, por capricho da história, o nome desses figurões aceitava um sufixo. Já outros nomes não aceitam derivação. FHC, nesse campo foi estéril. Como falar em FHCismo? Impossível. No mesmo caso estão Collor, Sarney, Renan, Geisel, França e tantos outros. Não se prestam a formar substantivo nem adjetivo. Collorismo? Não dá. Sarneyista? Que feio!

A cereja em cima da glória de todo homem político é a nomeação de corrente política com base em seu nome. Nesse ponto, Lula teve sorte. (Não só nesse, aliás.) Lulismo e lulista são termos amplamente aceitos e utilizados. Convenhamos: emprestar o próprio nome a uma tendência política é pra inflar o ego de qualquer um.

Quando se apresentaram treze pretendentes à Presidência da República, examinei o nome de cada um. Acabei me dando conta de que quase nenhum permitia a criação de derivados. Haddadismo? Alckminismo? Diasismo? Boulosismo? Nem em pesadelo! Era uma coleção de nomes estéreis. Só se salvava um: Bolsonaro. E o homem acabou ganhando! Que agrade ou não, bolsonarista já está na praça, aceito por número crescente de veículos. Aliás, o número de bolsonaristas da undécima hora cresce a cada dia.

Muito poucos já ousaram bolsonarismo. O substantivo virá com o tempo. Só nos resta esperar que ele nunca assuma a conotação pejorativa que hoje carregam lulismo e, sobretudo, dilmismo.