As três vacas

José Horta Manzano

Você sabia?

O tratado mais antigo da Europa foi firmado em 1375. Continua em vigor há quase 650 anos. Na época em que foi assinado, os países ainda não existiam da forma como os conhecemos; os Estados não tinham meios de exercer soberania sobre todo o território. Muitas das atribuições de um governo central ficavam por conta de pequenas autoridades locais.

Os Montes Pireneus marcam a fronteira entre França e Espanha. Por ali, em altitudes acima dos mil metros, a água escasseia e as nascentes são raras. Desde que domesticou bovinos e caprinos, o homem tem absoluta necessidade de água para matar a sede dos animais que são levados a pastar. Dois mil anos atrás, já se tem notícia de rusgas e conflitos motivados pelo acesso à água.

Em certo trecho da cadeia de montanhas, de um lado fica o Béarn (região francesa) e do outro a Navarra (região espanhola). Entre os dois, aqueles montes pontudos. Lindos, mas semiáridos. No verão, pastores dos dois lados levam o rebanho a pastar a erva abundante lá no alto. Na região, só há uma nascente – pomo de discórdia que, desde sempre, azucrinou a existência de todos.

Junto ao marco fronteiriço: três prefeitos franceses (de faixa) e três espanhóis (de sombrero preto).

No começo dos anos 1370, numa briga feia pela água, um pastor espanhol matou um pastor francês. Seguiram-se anos de violência generalizada, vinganças, emboscadas, assassinatos. O horror chegou a vitimar 300 pessoas de cada lado da fronteira, uma hecatombe regional. Numa batalha importante, os franceses perderam o chefe e acabaram entregando os pontos e debandando. Os bispos da região decidiram que era hora de pôr um fim à barbárie.

Costuraram o tratado popularmente conhecido como Tributo das Três Vacas. Ficou combinado que, todos os anos à mesma época, os pastores franceses entregariam aos espanhóis três vacas de 2 anos de idade, em perfeita saúde. Passaram os séculos, houve revoluções, alianças se fizeram e se desfizeram, houve guerras mundiais, ditaduras viraram pó, e… o Tributo das Três Vacas continua de pé. Aliás, foi oficialmente reconhecido e confirmado em meados do século 19 pelo Estado Francês e pela Coroa Espanhola.

Religiosamente, no dia 13 de julho de cada ano, três prefeitos de vilarejos franceses e três do lado espanhol se reúnem junto ao marco fronteiriço n° 262 para a cerimônia de entrega das três vacas. Foi-se o tempo em que os pastores da região se matavam por uma nascente; mas a tradição ficou, como uma página da história local que os habitantes insistem em não virar. O Tributo das Três Vacas está inscrito no Inventário do Patromônio Cultural Imaterial da França.

Vem guerra por aí?

José Horta Manzano

Alianças militares e acordos de socorro mútuo em caso de ataque externo são velhos como o mundo. A formação do Brasil serve de exemplo: alianças militares entre portugueses e habitantes primitivos da Terra de Santa Cruz garantiram aos lusos a posse integral do território. De fato, ingleses, holandeses, espanhóis e franceses bem que tentaram, em diversas ocasiões, fundar estabelecimentos permanentes nas novas terras. Portugueses ‒ aliados a guerreiros indígenas ‒ deram cabo do que consideravam ‘invasão’ das terras que lhes haviam sido concedidas por bula papal. A colaboração militar foi determinante para botar os estrangeiros a correr.

Não fossem alianças militares em vigor em 1939, a Segunda Guerra poderia ter tido um desenrolar e um desfecho bem diferentes. Quando a Polônia foi invadida pelas tropas nazistas, França e Reino Unido viram-se obrigados a declarar guerra à Alemanha, em virtude dos acordos que haviam assinado com o Estado polonês. Foi o estopim da hecatombe.

Venezuela: fronteiras internacionalmente reconhecidas

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Desde os primeiros séculos da colonização da América do Sul, houve disputa de fronteira entre Espanha e Reino Unido na região equatorial. Desde o século XVII, diversos acordos e tratados foram assinados e, em seguida, renegados. Em consequência da independência das colônias, iniciada no início do século 18, surgiu uma dúzia de países. Desinteressadas, as potências coloniais se retiraram, lavaram as mãos e deixaram os litígios para as novas nações.

Faz um século que o Brasil, com ativa participação do Barão do Rio Branco, resolveu todos os seus diferendos fronteiriços. Não é o caso de outros países sul-americanos. O contencioso equatorial hispano-britânico continua pendente. A Venezuela e a Guiana, vizinhos de parede, herdaram a pendenga.

Assim como a Argentina reclama a posse das ilhas Falkland (Malvinas), a Venezuela reivindica soberania sobre um pedaço de chão que representa mais da metade do território da vizinha Guiana. Trata-se da região do Essequibo, com superfície equivalente à do Ceará, rica em ouro, diamantes, manganês, bauxita, ferro e outros minerais.

Venezuela: em hachurado, a região contestada

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A «Guayana Esequiba», como é chamada por Caracas, é escassamente povoada e praticamente inexplorada. Voltada essencialmente para a extração do petróleo, a Venezuela nunca levou a disputa territorial a ferro e a fogo. No entanto, os tempos estão mudando. Estrangulado pela gestão desastrosa e pela baixa do preço do petróleo, o governo está contra a parede, acuado por uma população cujo padrão de vida baixa a cada dia.

Na hora do aperto, nada como um inimigo externo para unir a população e desviar a atenção do problema maior. Costuma ser tiro e queda. Pela enésima vez, o governo venezuelano pôs na ordem do dia a questão do Essequibo. Para mostrar os músculos, anda aumentando o contingente de homens armados junto à fronteira. Faz também voos «de reconhecimento» com modernos caças russos, comprados no tempo de señor Chávez.

A tensão tem aumentado e começa a incomodar Brasília. Em 2009, Brasil e Guiana firmaram um acordo sobre cooperação em matéria de defesa. Embora não caracterize aliança militar nem tenha a força de um tratado, tem dado dor de cabeça à alta cúpula militar brasileira.

Venezuela: alguns mapas incorporam, sem cerimônia, o Essequibo

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Señor Maduro não é flor que se cheire. Caso decida seguir os passos dos ditadores argentinos ‒ que tentaram retomar manu militari as ilhas Falkland em 1982 ‒ encasquete de atacar a Guiana, como deve reagir o Brasil? Nada fazer equivaleria a ignorar compromisso assumido, atitude vergonhosa e desonrosa. Para defender a Guiana, restaria a via militar.

Nossa prioridade é a reconstrução de nosso país, destruído por anos de rapina e incompetência gerencial. Não sobra lugar para uma guerra sem sentido. Antes que o pior aconteça, cabe ao Itamaraty agir rápido. Mais vale intervir como mediador do que como combatente.