Pepino torto

José Horta Manzano

É de menino que se torce o pepino. Antigo, mas de validade permanente, o adágio informa que os bons hábitos vêm da infância. Quem aprendeu de criança, sorte dele, quem não aprendeu, babau. Não dá pra lapidar uma pedra depois de engastada no anel.

Nossas altas esferas são compostas de uma coleção de pepinos tortos. Fica a impressão de que nenhum deles teve berço. Ou pior: se tiveram, o próprio berço já veio torto. É permitido supor que tenham nascido e crescido no meio de gente primitiva e de nariz empinado, desses que têm o rei na barriga e imaginam pairar acima dos demais. Tivemos, às vésperas do Natal, três exemplos edificantes, um atrás do outro, feito rajada de arma automática. Todos eles são manifestações de um mesmo mal.

Primeiro, foi doutor Bolsonaro. (Como não podia deixar de ser, diria o outro.) No auge da pior catástrofe sanitária que o Brasil já conheceu, com quase 200 mil mortos espetados na conta, o homem decidiu tirar férias. Foi descansar num forte catarinense, utilizado como resort pelas Forças Armadas. Francamente, pra quem não trabalhou senão para sabotar o esforço nacional de combate à pandemia, falar em «descansar» é indecente. Bolsonaro não é inteligente, isso já se sabe. Se fosse, teria descansado uma semana na Granja do Torto, residência oficial da Presidência, lugar tranquilo e protegido. Ninguém teria ficado nem sabendo. Mas o pepino torto o faz imaginar pertencer a uma classe de eleitos dos deuses. (Faltou combinar com os deuses, mas essa já é uma outra história.)

Em seguida, foi a vez de João Dória, governador de São Paulo – aquele a quem o presidente da República atribui, com desdém, a paternidade da Coronavac. O governador não poderia ter tido pior ideia. Em meio à pandemia que castiga a população, bem na hora da chegada das primeiras ampolas de vacina, que fez ele? Mandou-se pra Miami para alguns dias de férias. Tirando o mau gosto de escolher a Florida, destino obrigatório de todo novo-rico brasileiro, não era hora de tirar férias. Se tivesse escolhido passar uns dias a olhar a paisagem no litoral do estado que governa, ninguém teria reclamado. Mas Miami? Francamente. Aqui também, o problema é o pepino torto que o faz crer que pertence a uma classe à qual tudo é permitido.

Pra coroar, o STF e o STJ não deixaram passar a ocasião de tentar uma carteirada. Ambas as cortes pediram à FioCruz a reserva prioritária de milhares de vacinas para Suas Excelências, colaboradores & respectivas famílias. Assim, deixariam o populacho para trás e passariam à frente de todos nós. Receberam uma negativa, aliás muito merecida. Doutor Fux ainda reclamou alegando que, se tinha feito esse pedido, era pra preservar o bom andamento da instituição que preside. Passou por cima do fato de estarem teletrabalhando. Deixou transparecer sua convicção de que o STF é a única instituição nacional que merece ser imunizada. Tanto o pedido quanto a explicação são obras-primas de contorcionismo verbal, que combinam com o status de legítimo pepino torto.

De Bolsonaro, pode-se esperar tudo, dado que não é inteligente nem perspicaz. Mas de gente como João Dória, essa atitude é mais intrigante. Imbecil, o moço não é. Ignorante, tampouco. Como é que foi tomar decisão assim tão fora de esquadro, tão impopular, tão demolidora da própria imagem de sobriedade? A resposta está no ditado do pepino. Tão convencidos estão – ele e os outros aqui mencionados – de estar acima do populacho, que não se dão conta de que é esse mesmo povão que os pôs onde estão e que lhes paga o salário.

A solução? É elevar o nível de alfabetização, de estudo e de formação do populacho. Povo instruído adquire nível de politização elevado. Povo politizado rejeita homem público prepotente. Talvez seja por isso que, entre nossos dirigentes, tão poucos dão prioridade ao aprimoramento da Instrução Pública. Será pra garantir a sobrevivência da casta dos pepinos tortos.

Saiu corrido

José Horta Manzano

Weintraub, nosso pranteado ministro da Educassão, abandonou o Brasil às carreiras, antes de sua exoneração ser publicada no Diário Oficial. O atropelo tinha dois motivos.

Em primeiro lugar, fugiu por razões sanitárias. O governo norte-americano restringiu, em razão da covid-19, a entrada de pessoas provenientes do Brasil. O ‘esperto’ Weintraub aproveitou que ainda tinha no bolso um passaporte diplomático(*) e escafedeu-se. Conclui-se que, na curiosa contabilidade americana, diplomatas estão imunizados, razão pela qual sua entrada é permitida. É que o governo americano não sabe, mas o risco representado pelo ex-ministro é de outra natureza. O moço é bem mais nocivo do que aparenta.

Em segundo lugar, fugiu por pânico. Ao perder o cargo, o doutor perde o foro por prerrogativa de função (foro dito “privilegiado”). Em termos simples: se bobear, dança; e vai pra cadeia. Com a procissão de acusações que seu comportamento rasteiro acumula, o risco é real. Nos EUA, fica temporariamente longe dos braços da Justiça brasileira. Mas um dia acaba voltando. Que tome cuidado!

(*) Já me exprimi, em outras ocasiões, sobre o uso – e principalmente o abuso – que vêm sendo feitos do tal passaporte diplomático. Em princípio, o documento destina-se a diplomatas e a funcionários que viajam a serviço do país. No entanto, depois que Lula da Silva, no último dia de mandato e antes de apagar a luz, concedeu passaporte diplomático a todos os parentes, avacalhou de vez.

Doutor Weintraub, que não está nos EUA em missão oficial, não tem direito a viajar com o documento. Mas vivemos uma situação em que crimes maiores ofuscam ‘delitozinhos’ como esse. Estivéssemos em país civilizado, ele ainda teria de responder, diante da Justiça, pelo uso indevido de documento oficial não autorizado. Seria gratificado com pesada multa. Em país civilizado, disse eu.

Motor lento

José Horta Manzano

Atiçar a paranoia presidencial é mau negócio. Weintraub, ministro da Educação, parece ser lento no aprendizado. Já andava meio assim assim, balança mas não cai, como bêbado tentando caminhar no meio-fio. Descabeçado, provocou de novo o iracundo chefe. Pisou-lhe bem no calo que dói. E com força! Fez o que não devia: repercutiu a seus seguidores um tuíte alheio que tratava o presidente de traidor. Nem mais nem menos – traidor! Com isso, não só assegurou que concordava com a afirmação, como também ajudou a propagar a difamação.

Apagou depois, em tentativa de jogar a sujeira pra debaixo do tapete. Mas o estrago estava feito. O que as modernas tecnologias têm de efêmero têm também de indelével. Parece paradoxal ser descartável e eterno ao mesmo tempo, mas assim é. Antigamente, para apagar um escrito, bastava jogar a folha de papel no lixo. Hoje mudou. Cada letrinha que se escreve fica gravada para sempre. Tudo estará estocado nalgum banco de dados ultrassecurizado em Utah ou nas redondezas. E lá permanecerá até o dia do Juízo Final.

Weitraub, que não passa de peixinho, está assustado com o peixe graúdo que o nomeou ministro. Tem um medo danado de perder a boquinha. Tratou de dar explicação para mitigar a ofensa feita ao chefe. Disse que está num navio e, sacumé, fica horas sem internet. Pergunto eu: que tem uma coisa a ver com a outra? Caso houvesse internet o tempo todo, Sua Excelência teria se comportado de modo diferente? Essa é muito boa. Atribuir os próprios erros à falta de internet… Só faltava.

Vamos supor que, para economizar, Weintraub tenha dispensado o avião para embarcar num navio cargueiro em direção a Miami, aonde deve chegar daqui a uns 15 dias, se tudo correr bem. Numa embarcação dessas, internet realmente funciona piscando feito vagalume. Mas ninguém acredita que ele esteja num cargueiro filipino. Olhe, minha gente: pra encontrar navio sem internet, hoje em dia, precisa procurar muito. Ou alguém imagina que aqueles imponentes palácios flutuantes que carregam milhares de turistas em cruzeiro pelo Caribe não dispõem de internet?

Mentira tem perna curta. Tenho a impressão de que senhor Weintraub não vai esquentar cadeira no ministério da Educação por mais muito tempo. Quem sabe a Instrução Pública tem agora uma pequena chance de entrar nos trilhos? Não tenho muita esperança, mas tudo é possível. O tempo dirá.

A brasilidade em tempos de folia

Myrthes Suplicy Vieira (*)

O que define a brasilidade aos olhos de um estrangeiro?

Futebol 3Eu diria que, se fossemos investigar há algumas décadas como outros povos conceituam nossa cidadania, três fatores seriam elencados em uníssono: futebol/Pelé, café e samba. O tempo passou, muita coisa mudou sob nosso céu de anil e outras percepções foram sendo agregadas para ajudar a formar um painel ilustrativo de nosso país varonil: exotismo tropical (sol, calor, belas paisagens de praia, campo e florestas), povo amistoso, alegre, tolerante e musical, belas mulheres desinibidas e semidesnudas, etc.

Décadas mais tarde, nuvens de chumbo passaram a cobrir os céus deste paraíso tropical e o quadro geral ganhou contornos tenebrosos para além de nossas fronteiras: o lar da corrupção, o campeão no ranking da insegurança pública, o berço das mais diversas endemias e epidemias, o abrigo de malfeitores internacionais, anão diplomático, o lugar no qual a elite é perversa e o povo é domado. Constrangedor, não é? Mas, tudo bem, deixa estar. Afinal, minha gente, é Carnaval! Vamos para a rua festejar!

by Fabio Teixeira, desenhista carioca

by Fabio Teixeira, desenhista carioca

Para os que não sabem o que isso significa no contexto do imaginário nacional, eu explico: antes de mais nada, Carnaval é o espaço da fantasia, da utopia e da autoafirmação nacional. Durante quatro dias, a pirâmide social se achata, papéis sexuais são invertidos, o machismo é suspenso temporariamente, a hipocrisia social desmancha-se no calor dos corpos em êxtase. O país todo se detém mesmerizado para assistir à deslumbrante parada de luzes e sons. Economia e política perdem totalmente seus significados. Não há “sofrência” amorosa que se sustente, não há negativismo capaz de toldar a alegria geral, não há preocupação com o futuro capaz de desbotar as cores da festa. Tudo o que se quer é que o mundo inteiro caia de joelhos diante de nossa criatividade, nossa genialidade, nossa capacidade de superação. Vira-latas são mais belos, mais resistentes, mais amorosos e mais simpáticos do que outras raças, bradamos a plenos pulmões.

Entender um brasileiro que não goste de Carnaval, que não se sinta tentado a jogar tudo para o alto e cair de boca na folia, é coisa que gringo nenhum consegue fazer. Cá para nós, também não há brasileiro que não pense que seus compatriotas avessos ao samba são ruins da cabeça ou doente dos pés. Pois bem, feliz ou infelizmente, esse é o meu caso.

Café 5Trancafiada em casa, tento fazer de conta que o mundo é normal lá fora. Ligo a televisão, ansiosa para mergulhar de cabeça em outra dimensão que exale um pouco de racionalidade, sensatez e compostura. Ledo engano! A mercadoria que você procura não está disponível no momento, alertam todas as emissoras, inclusive os assim chamados canais educativos. Talvez seja essa a época em que o pensamento único seja mais glorificado e incensado.

Nem mesmo os telejornais escapam do delírio geral. Encurtados para não atrapalhar a cobertura dos desfiles nas principais capitais, eles passam atabalhoadamente de um tema para outro, sem aprofundar nenhum. Terremoto atingiu cidade no interior de Mato Grosso? Ai, que hora mais ingrata para acontecer isso! Dilma se suicidou para evitar a cassação? Nossa, não esperava por isso, mas prometo que na Quarta-feira de Cinzas vou entrar na internet para ver os detalhes do velório e as discussões sobre quem vai ser o sucessor. O Lula assumiu que se lambuzou todo com o melaço que nunca havia comido antes e entrou para um convento franciscano, doando todos os seus bens para a caridade? Poxa, se ele tivesse feito isso antes eu ainda votaria nele! O Papa Francisco assumiu que é gay e decretou que, de agora em diante, só haverá mulheres à testa da igreja? Que bom, eu sempre achei esse cara sensacional, mesmo ele sendo argentino. O dólar foi cotado a 8 reais e a CPMF foi aprovada? Isso não me abala em nada, eu já tinha cancelado mesmo minha viagem para Miami.

Samba 3Nada ganha destaque, nada consegue prender a atenção do telespectador por mais de dois minutos. Uma vez transpostos os temas chatos do cotidiano, a mídia toda abre enormes espaços para o deslumbramento da rainha de bateria, para o escândalo causado por uma socialite que tirou toda a roupa em plena avenida, para a descontração dos blocos de rua. E dá-lhe festa.

Quem não se deu ao trabalho de assistir aos desfiles, não precisa se preocupar. Basta acessar a Internet para ver um resumo dos melhores momentos de cada escola, as fotos mais constrangedoras, as chamadas mais empolgantes do que ainda está por vir. Nas redes sociais, bem ao lado das fotos da participação doméstica na folia, comentários irados de quem dela não fez parte: Já imaginou uma multidão dessas saindo às ruas para protestar? Por que as mulheres aceitam fazer esse papel? Depois se queixam da violência…

Carnaval 1Quer um conselho? Não tente entender nem explicar nada, nem para os moralistas de plantão nem para os estrangeiros atônitos. Somos secularmente o país da improvisação. Depois damos um jeito de colocar a casa em ordem de novo.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Falam de nós – 6

0-Falam de nósJosé Horta Manzano

O jornal Gazeta – Brazilian News, publicado no Estado americano da Florida e dirigido à colônia brasileira estabelecida por lá, informa que a contestação ao governo federal brasileiro se alastra e chega até aquela região.

Apesar de não viverem no Brasil, muitos expatriados estão desagradados com o modo pelo qual o País vem sendo governado. Para fazer eco à reação nacional, um protesto está sendo convocado para o dia 15 em Miami.

Gazeta 1Os organizadores ressaltam que, nas últimas eleições, 91% dos brasileiros inscritos no consulado votaram em Aécio, deixando dona Dilma com nada mais que 9%.

Brasileiros do exterior não são nem melhores nem piores que os outros. A brutal diferença de apreciação política se prende a dois fatores:

Interligne vertical 141) Escapam à martelação da propaganda oficial a que são submetidos os que vivem no Brasil.

2) Têm ocasião de assistir ao vivo o desenrolar da vida de todos os dias numa região onde corrupção e sujeira política são menos encorpadas que no Brasil.

Sangria de gente e de dinheiro

José Horta Manzano

Interligne vertical 12«Pregúntele a los brasileños acaudalados por qué se están mudando al sur de Florida y mencionarán las altas tasas de criminalidad y la moribunda economía de su país.

Sin embargo, hay otra explicación que Alyce M. Robertson, directora de la Autoridad de Desarrollo del Centro de Miami, escuchó con frecuencia en sus recientes viajes de negocios a Brasil: “Dilma”.»

Meus distintos e cultos leitores hão de ter entendido a citação acima, extraída do jornal hondurenho La Prensa, 8 fev° 2015. De fato, o artigo informa que brasileiros endinheirados buscam o sul da Florida para escapar da violência e da «economia moribunda» do Brasil. Outro motivo citado com frequência para a fuga é simplesmente: “Dilma”. Sem comentários.

Imigração 5Ninguém quer ser o último a sair do País, aquele que vai apagar a luz do aeroporto. Embora o êxodo se esteja acentuando estes últimos anos, não é de hoje que brasileiros abastados procuram escapulir do ambiente agressivo do país de origem. Uns poucos optam pela Europa, mas a grande maioria gosta mesmo é dos EUA.

Já repararam que todo latino-americano tem uma quedinha especial pelo grande irmão do Norte? Isso vale até para os que nutrem forte antipatia por aquele país. Ou alguém já viu algum arauto do antiamericanismo transferir-se, de mala e cuia, para Cuba ou para a Venezuela?

Miami 1O jornal hondurenho ressalta que Miami se tornou a maior cidade brasileira fora do Brasil. Estimativas indicam que 300 mil compatriotas vivem nos arredores daquela metrópole. As estatísticas mostram também que 51% dos turistas que visitam a região são brasileiros.

Em 2010, os brasileiros investiram menos de um bilhão de dólares em compra de imóveis no exterior. Três anos depois, a cifra subiu para perto de três bilhões e meio. De dólares.

Os pioneiros, aqueles que se transferiram ao sul da Florida décadas atrás, constituíram o pedestal sobre o qual se assenta a corrente migratória atual. Os primeiros que lá chegaram abriram as primeiras lojas dedicadas a brasileiros, supermercados, bares, restaurantes, açougues, cabeleireiros, agências imobiliárias. Todos os serviços, enfim, aos quais estamos acostumados.

Compra de propriedades no exterior por brasileiros 2007 a 2013, em bilhões de dólares

Compra de propriedades no exterior por brasileiros
2007 a 2013, em bilhões de dólares

Ao encontrar infraestrutura montada, os novos imigrantes se sentem em casa. E vão ficando. E contribuem para reforçar o pedestal onde se virão apoiar novos imigrantes. Está formado o círculo virtuoso.

Imigração 3Ninguém abandona a terra natal de coração leve. Se centenas de milhares de conterrâneos se foram – e justamente os mais endinheirados – é porque a coisa tá realmente preta. É uma pena. É de mau agouro para o Brasil de amanhã.

Os mais abastados são os que mandarão os filhos às melhores escolas. Estatisticamente, essa segunda geração será mais bem formada do que a média de nossa juventude nacional. Sendo jovens criados e escolarizados nos EUA, é pouco provável que retornem à terra dos pais. Prejuízo para quem ficou pra trás.

Enfim, que fazer? Esse é mais um efeito colateral do inacreditável descalabro que transpira por todos os poros da administração pública brasileira.

Miscelânea 08

José Horta Manzano

Passando o chapéu
O senador russo Russlan Gattarof anuncia que está organizando uma vaquinha para ajudar Snowden, acolhido pelo país em qualidade de asilado temporário. A coleta de fundos se fará pela internet.

Solicita-se a almas caridosas que consultem feicebúqui para maiores esclarecimentos sobre como contribuir para esta nobre causa. Informações fornecidas pelo jornal 20 minutes.

Interligne 18b

Delação premiada
Que caso mais enrolado esse das fraudes em licitações em São Paulo! Só a Siemens teria entregue o equivalente a 8 milhões de euros em propinas. Ninguém quer segurar a batata quente. Jogada de colo em colo, a responsabilidade estacionou nas costas de um único indivíduo, um certo consultor chamado Teixeira. Como se fosse possível um personagem secundário ter embolsado todos esses milhões enquanto os outros participantes assistiam impassíveis.

Se a farinha é pouca, meu pirão primeiro

Se a farinha é pouca, meu pirão primeiro

A reportagem do Estadão fala em «fraude contra os cofres do governo de São Paulo». Ora, os «cofres do governo» são a caderneta de poupança da população. O governo ― esse ente genérico, impessoal e inalcançável ― não é dono de dinheiro nenhum. É apenas o gestor do dinheiro de todos nós.

Se roubo houve, a vítima terá sido o povo inteiro que, de uma forma ou de outra, acabou (ou acabará) pagando a conta. Mais cedo ou mais tarde. Direta ou indiretamente. Não tem como escapar.

Interligne 18b

Malabarismo contábil
Em manobra escancaradamente eleitoreira, o governo central quer reduzir o valor da conta da energia elétrica. Mas as bondades ofertadas aos amigos do rei, aliadas à gestão desastrada de nosso dinheiro, acabaram esvaziando nosso cofrinho, de cuja guarda o governo é responsável.

Para não fazer feio, estuda-se tomar empréstimo nalgum banco público a fim de custear a redução do preço da energia. É o que se chama trocar seis por meia dúzia. Tira-se do bolso esquerdo para enfiar no bolso direito. Despe-se um santo para vestir outro.

É grande o desespero de dirigentes que veem evaporar em alta velocidade seu capital eleitoral. Truques como esse são primários. Dão alívio temporário, mas voltam com força redobrada para cobrar a conta.

Interligne 18b

Se a farinha é pouca, meu pirão primeiro

Se a farinha é pouca,meu pirão primeiro

Anjo decaído
José Dirceu se debate. Usando o dinheiro lícita e honestamente amealhado durante os anos de glória, paga os melhores juristas do País e lhes implora que encontrem um meio de livrá-lo da prisão.

Depois do susto que as manifestações populares de junho deram em todas as autoridades da República ― em todas elas, sim! ―, vai ser difícil conseguir um desconto. Quem viver verá.

Interligne 18b

Ninguém é perfeito
Joaquim Barbosa, atual presidente do STF, seguiu um percurso absolutamente fora dos parâmetros. Ao nascer, nenhum sinal apontava para um destino nas altas esferas. Negro, de origem humilde, tinha tudo para viver a vida simples do brasileiro comum que peleja diariamente para garantir o sustento da família.

No entanto, esforçou-se mais do que outros. Fez as opções certas, no momento oportuno, agarrou as oportunidades que se lhe apresentaram. Estudou muito, aplicou-se, deu de si. Chegou lá.

Foi original em tudo: conhece profundamente a área em que atua, é poliglota, tem sabido ser autoritário sem descambar para a tirania, é homem culto e viajado. Mas ninguém é perfeito. Na hora de escolher um lugar para aplicar suas economias, fez como outros milhares de seus compatriotas: decidiu-se por Miami, destino sonhado por 9 entre 10 brasileiros.

Foi original em quase tudo.

Interligne 18b

Memória ameaçada

José Horta Manzano

Dos edifícios antigos que subsistem nas cidades brasileiras, raros são os que têm mais de um século. Poucas casas foram levantadas no século XIX num País escassamente povoado à época. Assim mesmo, dentre as poucas que restam, boa parte anda abandonada ao deus-dará.

Interesses comerciais primam sobre considerações históricas. Um século atrás, as cidades eram bem menores e seu perímetro construído, restrito. As aglomerações cresceram vertiginosamente. As construções mais antigas se encontram hoje, naturalmente, em regiões valorizadas, em pleno centro das metrópoles.

Com a valorização das regiões centrais, o proprietário de construções antigas tende a vendê-las a promotores. Novos edifícios ― altos e modernos ― surgirão dos escombros da História destruída. Para o brasileiro padrão, mais vale um belo prédio moderno de 20 ou 30 andares, dotado de todas as comodidades da vida moderna, do que um velho casarão. Diferentemente do que ocorre na Europa, a velha construção aparece como mancha urbana, excrescência a ser eliminada quanto antes. Afinal, em Miami não há essas velharias.

Crédito: Germano Neto

Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Ouro Preto
Crédito: Germano Neto

É triste, mas assim é. E assim seguimos. O grosso de nossa população não aprendeu a conceder o devido valor aos (poucos) testemunhos históricos que nos restam. E, como ninguém consegue dar o que não tem, os adultos de hoje estão desarmados para transmitir às novas gerações a formação e a informação que eles mesmos não receberam. Assim, nossos jovens não dispõem de fontes onde impregnar-se.

Um exemplo noticiado pela Folha de São Paulo de 16 de abril vem a calhar. A reportagem nos informa que a igreja de Nossa Senhora da Conceição, erguida em Ouro Preto na primeira metade do século XVIII (1724), foi obrigada a fechar suas portas ao público visto o risco de desabamento.

Há mais: o templo abriga o túmulo e o Museu do Aleijadinho, o maior escultor barroco que o Brasil conheceu. Cansado de esperar por providências das autoridades pagas para cuidar de nosso escasso patrimônio arquitetural, o próprio vigário tomou a iniciativa de interditar a igreja.Igreja N. Sra. Conceição 2

Há mais ainda: o edifício está tombado como patrimônio nacional desde 1949. Portanto, está há mais de 60 anos sob os cuidados do Poder Público.

A região das cidades históricas das Minas Gerais abriga o coração de nosso patrimônio arquitetônico. Ouro Preto, antiga capital da província, é sua expressão maior. Qualquer aluno de escola média sabe quem foi Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. O que nem todos sabem é que, do jeito que vão as coisas, nossos netos perigam apenas conhecer sua obra através de belas fotos, nada mais. Serão fotos digitais e, com um pouco de sorte, em alta resolução. Naturalmente.

Vamos esperar que o tempo, a umidade e os cupins se encarreguem da demolição? Não vai precisar esperar muito.

E o porteiro não foi preso!

José Horta Manzano
Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 6 abril 2013

Cada estado traz seu aporte à União. É a regra. Cada um entra com um óbulo condizente com sua população e suas posses. Há estados, no entanto, cuja contribuição tem sido relativamente mais importante que a de outros. Um deles é o Rio Grande do Sul.

Alguns fatos que marcaram a História do Brasil têm origem no estado sulino ou guardam alguma relação com ele. De lá nos veio Getúlio Vargas, fundador da única ditadura de um homem só que o País já conheceu. João Goulart, último presidente a ser apeado por golpe de estado, era gaúcho também. Durante a era militar, aquele que certamente foi o presidente mais esclarecido e mais equilibrado chamou-se Ernesto Geisel. Era gaúcho. O estado pampiano nos deu também Elis Regina, a cantora maior.

Ultimamente, a contribuição do Rio Grande tem incitado o Brasil a dar passos importantes no processo civilizatório. Com decisões ousadas, seus juízes foram os primeiros a equiparar uniões homossexuais a enlaces tradicionais. Suas resoluções podem ter causado algum frisson, mas provocaram as primeiras fissuras no gesso que emprisionava o melindroso assunto.

Faz dois meses, o Brasil e o mundo foram sacudidos por uma notícia pavorosa. O incêndio de uma boate de Santa Maria havia ceifado a vida de 250 jovens e arruinado a razão de existir de milhares de pais, irmãos, namoradas. Foi a tragédia mais mortífera dos últimos decênios. A mídia do mundo inteiro repercutiu a trágica informação.

Brasil

Escaldados com o desenrolar habitual da Justiça brasileira ― que à vezes lembra um jogo de dados viciados ― nenhum de nós esperava que as diligências jurídico-policiais dessem grande resultado. Em casos assim, sabe-se que a tática dos poderosos é: protelar, procrastinar, engavetar, entravar e torcer para que o povo esqueça. Na pior das hipóteses, prende-se o porteiro ou a mulher do café.

Surpreendentemente, não foi o que aconteceu. Era trágico demais, e os brios gaúchos não estavam dispostos a permitir que jeitinho e malemolência contaminassem o processo. Foram em frente.

O comandante regional do Corpo de Bombeiros foi afastado pelo governador em pessoa. Num primeiro momento, 28 pessoas foram responsabilizadas no inquérito. Entre elas, 19 agentes públicos, bombeiros, secretários. Até o prefeito municipal foi arrolado.

Como se costuma dizer, nada do que for feito trará de volta os que partiram no alvorecer de sua jornada terrena. Mas da desgraça surge a luz. O desastre de Santa Maria terá servido para confirmar, se ainda fosse preciso, que nosso País está mudando aceleradamente. E não só na área econômica, que, a computar-se o espaço desproporcional que ocupa na mídia, parece ser a única preocupação nacional.

Não são as leis nem os decretos que forjam a sociedade. Pelo contrário, é a sociedade que, por meio de seus representantes, faz que novas leis sejam votadas e que novos decretos sejam assinados. Leis, regras e regulamentos apenas formalizam o que já tiver sido sopesado e decidido pelo tecido social.

Dentro de 10 ou 20 anos, o Brasil será um país muito diferente do que conhecemos hoje. A troca de ideias e a interação intensa que internet propicia é indomável. Hoje em dia, tudo se sabe, boas e más notícias se alastram feito fogo de palha. Está cada dia mais difícil ocultar certos crimes e «malfeitos» que antes passavam ignorados.

O ultracomentado processo do mensalão ― e principalmente seu desfecho ― teria sido visto como obra de ficção apenas dez anos atrás. Seus atores jamais imaginaram, nem em pesadelo, que um dia pudessem ser julgados e condenados a anos de prisão. Caíram na armadilha que o progresso tecnológico lhes preparou.

O antigo juiz trabalhista conhecido como Lalau foi condenado, já faz alguns anos, a meio século de prisão em regime fechado. No entanto, a benevolência que costumamos conceder aos poderosos não lhe causou mais que um pequeno desconforto: teve de trocar férias permanentes em suntuoso apartamento de Miami por dias tranquilos em sua mansão paulista. A desculpa, acolhida pela Justiça, tinha sido a idade avançada do condenado, como se a culpa desbotasse com os anos. Como prova de que o olhar da sociedade está em processo acelerado de mudança, Lalau foi levado estes dias a uma penitenciária.

Está cada vez mais próximo o dia em que os pequeninos poderão exercer sua função sem recear inculpação automática em caso de problema no andar de cima.

Em Santa Maria, pelo que noticiaram os jornais, o porteiro da boate não foi preso. Nem a mulher do café.