O nome dos bois

José Horta Manzano

Uma conjectura atormenta filósofos desde a Grécia antiga.


A coisa e seu símbolo são convergentes ou inapelavelmente antinômicos?


Em palavrório accessível, a questão é: mudando o símbolo muda-se a coisa?

Os franceses, com sua longa experiência em matéria de conflitos, afrontamentos, revoluções e guerras, ensinam a «appeler un chat un chat» – se for um gato, há que dizer que é um gato. Esse dito popular exorta o bom povo a não ter medo de dizer as coisas como elas são. Dar nome aos bois, diríamos nós outros. Diríamos? Dizíamos, distinto leitor, dizíamos.

Até alguns anos atrás, os contorcionismos verbais se restringiam a suavizar tabus geralmente de ordem sexual. Todas as palavras que pudessem, de perto ou de longe, remeter ao sexo eram evitadas. Até fenômenos fisiológicamente naturais como a trivial menstruação tinham seus nomes eludidos. Dizia-se que a moça estava «naqueles dias».

Costumes mudam com o passar do tempo. Não há que ser empacado nem caprichoso, que o mundo é assim mesmo. A sociedade evolui e, com ela, as modas, as palavras, as expressões. De uns tempos para cá, essa guinada tem-se acelerado em nosso País. É fenômeno importado, mas pegou forte, alastrou-se como fogo em palha seca.

Uma lista de nomes e expressões a banir foi criada. E esse rol tende a se avolumar a cada dia. Não se fala mais assim, não se diz mais isso, nem pensar em pronunciar aquilo. Fica a desagradável impressão de que mentores mal-intencionados se puseram de acordo para acirrar ânimos, aprofundar fossos entre extratos sociais, separar o povo em campos distintos e antagônicos.

Palavras estranhas – e nem sempre bem escolhidas – nos vêm sendo impostas. Mulato, por exemplo, palavra a execrar hoje em dia, deve ser substituída por afrodescendente. Ora, há que ter em mente que todos os mulatos são também eurodescendentes, se não, não seriam mulatos. Por que, raios, o afro- teria precedência sobre o euro-? Devemos enxergar aí uma nova discriminação?

O Brasil já foi um país muito mais livre. O que digo pode soar estapafúrdio para os mais jovens, mas é o que ressinto. Éramos pobres, sim, mas podíamos sair à rua a qualquer hora sem medo de enfrentar violência, não precisávamos viver enjaulados como bichos no zoológico, a porta de casa dispensava tranca. E era natural dar nome aos bois.

Hoje os brasileiros são mais ricos que meio século atrás (ou menos pobres, se preferirem), mas vivem na apreensão permanente do assalto, da violência, da bala perdida, do sequestro relâmpago. São obrigados a cercar-se de jaulas, câmeras de segurança, porteiros, vigias. E, para coroar tudo, como morango em cima de bolo de aniversário, já não se pode falar como antes. Temos de filtrar nossas palavras, pesar nossas expressões, policiar nosso discurso.

Será que, desde que fomos assaltados pelo “politicamente correto”, teremos sido capazes de resolver a conjectura secular dos filósofos? Será que, mudando o nome da coisa, mudamos também a essência dela? Será que o mulato transfigurado em euro-afrodescendente será mais respeitado, mais valorizado, mais favorecido, mais feliz?

Se assim for, chegou a hora de enfiar o grande Ataulfo Alves no mesmo balaio ao qual já foram condenados Monteiro Lobato e o Saci-Pererê. Seu samba Mulata Assanhada, de 1956, tem de ser banido do cancioneiro nacional por motivo de vocabulário inapropriado.

E é bom que preparem um balaio de bom tamanho. Muita gente fina vai ter de se acomodar lá dentro. Gente do quilate de Ary Barroso, Chico Buarque, Noel Rosa, isso só para começar. Pelas regras de hoje, estão todos em pecado mortal.

Publicado originalmente em 13 dez° 2012.

Os brasileiros e as brasileiras

José Horta Manzano

Certos tiques de linguagem são irritantes. Essa tendência que acomete jornalistas e outros escribas a confundir sexo de gente com gênero de palavra complica desnecessariamente o trabalho de escrita. Este blogueiro, por ser antigo, conserva os hábitos dos tempos de antigamente.

De fato, não é do meu feitio usar a moderna “linguagem inclusiva” do tipo “Brasileiros e brasileiras!”, saudação introduzida pelo pranteado (embora ainda vivo) presidente Sarney.

Se não me dobro a essa modernidade, não é tanto por convicção, mas por não achar que ela seja útil nem necessária. Portanto, quando digo “o brasileiro”, estou me referindo a todos os brasileiros e brasileiras, independentemente de sexo. Se menciono “o político brasileiro”, estou incluindo os personagens políticos de todos os sexos. Me parece uma evidência.

Se menciono, genericamente, “o jornalista”, “o mensageiro”, “o diretor”, estou me referindo, naturalmente, a jornalistas homens e a jornalistas mulheres, a mensageiros e mensageiras, a diretores e diretoras. Seria ridículo dobrar-se a modismos como “os jornalistas e as jornalistas”, “o diretor ou a diretora”, “o (a) mensageiro (a)”. Sobrecarrega a frase sem precisão.

Em dez anos de blogue, jamais recebi nenhuma reclamação ligada a essa recusa a me dobrar diante dessa imposição. É sinal de que meus leitores são gente inteligente. E minhas leitoras também, evidentemente.

O que acabo de dizer não precisava nem ser explicado. Mas, explicando, fica melhor ainda.

Casamento para todos – 2

José Horta Manzano

Contei ontem a saga suíça do Casamento para Todos, uma maratona que levou décadas pra ver a linha de chegada. Em reação, uma antiga e fiel leitora fez um comentário e uma pergunta. Eis o que ela escreveu:


Coincidentemente, tenho pensado muito no como a proposta de conservadorismo de costumes de Bolsonaro pôde ser absorvida por boa parte da população, sendo que a liberalidade no comportamento público e na esfera sexual sempre nos caracterizou. Claro que a orientação religiosa pesou muito na aderência ao conceito de defesa da família para criticar os movimentos LGBT, mas acho que isso não explica tudo. Intuo que o ressentimento dos estratos populacionais mais carentes contra a elite endinheirada que se permite todo tipo de prazer desempenhe um papel importante para o nascimento desse fenômeno. O que você acha?


Pensei que o assunto há de interessar a muita gente. Nos tempos de antigamente, homossexual(*) era artigo raro. Pelo menos, era o que nos parecia, pois quase não se via nenhum. A lógica ensina que não surgiram todos com a virada do milênio, como se estivessem escondidos atrás do último mês da folhinha de 1999. Ao terminar o ano, despencaram todos.

Se temos a impressão de que hoje são muito mais numerosos, a responsável é a internet. É ela que tem trazido ao grande público conceitos que antes só eram discutidos em círculos pra lá de restritos. E o resultado tem sido surpreendente – uma boa surpresa, quero dizer. Como um novelo do qual se vai puxando o fio, uma realidade consistente e desconhecida vai surgindo. Desconhecida ou abafada, tanto faz.

De repente, cada um se dá conta de que tem um amigo homossexual, uma vizinha, um irmão, uma colega, um parente, um professor, e por aí vai. O bicho vai se tornando menos feio do que parecia. Quando se observa bem, são gente normal como o resto da humanidade. A imensa maioria não dá escândalo em público. Não conheço nenhum que tenha o costume de devorar criancinhas. Votam no Lula ou no Bolsonaro. Ou se abstêm. Ou gostariam de ver surgir um candidato de terceira via. Uns são ricos; outros, pobres. Uns são letrados; outros, de pouco estudo. Uns são cirurgiães; outros, operários. Há de tudo. No fundo, são gente normal, com as qualidades e os defeitos do resto da população.

Hoje em dia, dizer o que acabo de dizer não leva à cadeia nem ao fogo da Inquisição. Nem causa escândalo. Mas, que os mais novos acreditem: faz ainda pouco tempo, não era assim. Falar em homossexualidade era tabu. Há gente estacionada nos anos 1970, como nosso capitão, que não consegue captar essa mudança na sociedade. Ninguém me fará acreditar que, entre os adeptos de seitas evangélicas, não há nenhum homossexual. Estatisticamente, não é possível.

Os afagos que o presidente dirige aos evangélicos são mal dirigidos. A meu ver, não pode haver oposição entre orientação sexual (que ninguém escolhe) e adesão a uma religião (que cada um é livre de escolher). Não pode haver incompatibilidade entre uma coisa e outra.

Quanto à pergunta da leitora, respondo que não, não me parece que as propostas de um suposto “conservadorismo” bolsonariano tenham sido absorvidas por parte da população. O capitão é homofóbico. (Se é recalque ou desejo reprimido, deixo a conclusão para quem entende da alma humana.) Orientação sexual escapa às normas de toda convenção, justamente por não ser uma.

Ser conservador é ser contrário às modernidades convencionadas pela sociedade: divórcio (o presidente já se casou pelo menos três vezes), adesão a uma religião (nosso capitão já se fez batizar em diferentes “denominações”, além da Igreja). Enfim, ser conservador é levantar-se contra toda mudança em estatutos entre os quais se pode escolher. Orientação sexual não se escolhe, portanto não entra nos moldes apertados de um hipotético “conservadorismo” presidencial.

Será difícil provar, mas acredito que nenhum devoto aderiu ao desbaratino bolsonariano, a menos que o próprio devoto já não fosse desbaratinado antes. Se são agora mais visíveis, a razão é a câmara de eco da internet.

Tampouco acredito que classes menos favorecidas olhem para os abastados como quem aponta um dedo reprovador a “essa gente que escapou de Sodoma ou Gomorra”. Orientação sexual independe de classe social – perpassa toda a sociedade. Com exceção de algum desatinado, como o presidente, ninguém costuma atirar pedras no próprio telhado.

Para fechar, gostaria de dizer duas palavras sobre os desfiles do tipo Gay Pride, nome que foi estranhamente traduzido para “Orgulho Gay”. Orgulho de quê? Na minha opinião, essas manifestações, justamente por reforçar a caricatura que se quer eliminar (ou pelo menos suavizar), são contraproducentes. Levam ao resultado contrário do que se queria obter. Os menos informados acabam acreditando que todo homossexual anda seminu pela rua, com maquiagem pesada no rosto e plumas na cabeça. Rebolando e desmunhecando como vedete de teatro de revista (será que ainda existe teatro de revista?).

Gente com a mente estreita de Bolsonaro só vê isso. Por mim, usaria tempo e esforço pra vulgarizar essa realidade de maneira mais eficiente. Essas ações que sublinham diferenças (como política de cotas, linguagem politicamente correta, desfiles de “orgulho gay”) dão resultado oposto ao que se buscava, pois acabam enfatizando diferenças que se gostaria de aplainar. Por mim, eliminaria todos esses paetês e implementaria uma política de esclarecimento da população. Dá mais futuro.

(*) Meus leitores habituais sabem que não me enrosco nesse falar “politicamente correto”. Escapar da vulgaridade e da escrita rasteira é uma coisa; referir-se a “brasileiros e brasileiras” ou a “os e as homossexuais” é outra, bem diferente, que frisa o ridículo.

Meus leitores, que são todos gente fina, sabem que palavras não têm sexo: têm gênero gramatical. Gente e bicho têm sexo; palavras, não. É sempre bom evitar associar regras gramaticais à sexualidade humana. Não dá certo.

Neste texto – como em todos os outros – a expressão “os homossexuais” inclui eles e elas. Evidentemente.

Desinformação

Folha de São Paulo

 

José Horta Manzano

Vivemos a época do “politicamente correto”. No fundo, que bicho é esse? É a arte de encontrar palavras suaves pra descrever uma realidade que a gente tenta eclipsar. É o jeito de girar em torno do objetivo pra dizer, no final, a mesma coisa. Em palavras cruas, o “politicamente correto” não deixa de ser um tipo de fingimento, de hipocrisia, de impostura.

Não é de hoje que se usam expressões politicamente corretas. Só que, antigamente, não eram a seita dominante. A gente usava sem se dar conta. Ao dizer “João é um rapaz de cor”, “Maria está conservada”, “Joana está um pouco forte de corpo”, estávamos trilhando caminhos politicamente corretos antes da moda.

Hoje é religião oficial, que nos obriga a cumprir direitinho os ritos, que é pra não ser condenado à execração pública. No entanto, adotar a religião do “politicamente correto” não implica fazer reforma integral do vocabulário a fim de eliminar palavras de sentido negativo. Não há que exagerar.

Segundo a chamada de jornal que reproduzo acima, “Bolsonaro desinforma ao dizer que as vacinas anticovid são experimentais”. Não concordo com a expressão. Não há por que recorrer a formulações suaves para traduzir o que disse o capitão. Praticar negacionismo explícito, quando uma tenebrosa pandemia está em curso, é ato grave. A meu ver, quem ajuda a abafar a realidade torna-se cúmplice do negacionismo presidencial.

A língua oferece uma dúzia de verbos que se aplicam melhor para descrever a atitude do presidente: enganar, ludibriar, engodar, falsear, enrolar e tantos outros.

Consertando a manchete, temos:

“Bolsonaro engana ao dizer que as vacinas anticovid são experimentais.”
“Bolsonaro engazupa ao dizer que as vacinas anticovid são experimentais.”
“Bolsonaro tapeia ao dizer que as vacinas anticovid são experimentais.”
“Bolsonaro engrupe ao dizer que as vacinas anticovid são experimentais.”

Etc.

Desinformar & desinformação
O verbo desinformar entrou só recentemente na linguagem de todos os dias. Nos anos 1960, não existia. O que se via às vezes era a palavra desinformação – que tinha, naquela época, o sentido de desconhecimento.

Ex: “Nota-se que, no meio estudantil, há grande desinformação quanto à recente reforma curricular”.

Foi só a partir dos anos 1970 que desinformar começou a fazer raras aparições na imprensa, já com o sentido que lhe atribuimos hoje. Um dos primeiros a usar esse verbo foi justamente o então sindicalista Luiz Inácio da Silva, o Lula, numa entrevista de julho de 1986 em que criticava a imprensa e acusava um determinado jornal de desinformar (=enganar) o público.

Como se vê, críticas à imprensa não são exclusividade de simpatizantes desta ou daquela corrente política. O expediente é velho como o mundo: quando não se aprecia a notícia, a culpa é sempre do mensageiro.

Madame ou mademoiselle?

José Horta Manzano

Você sabia?

Por mais que se considerem progressistas, os franceses são bastante conservadores. Na hora de dirigirem a palavra uns aos outros, a coisa fica evidente. Há dois níveis de tratamento: tu e vous, ambos da segunda pessoa.

O tu, mais íntimo, é utilizado em família, entre camaradas de escola, entre adolescentes. É usado também no âmbito de associações sindicais. Fora disso, denota uma intimidade que pode soar forçada. Quando se diz tu a alguém com quem não se tem intimidade, o tratamento soa artificial, obrigatório. Quanto ao vous, mais formal, usa-se nos demais casos – a maioria.

O uso da terceira pessoa, em voga até um século atrás, é hoje considerado preciosismo démodé. Simbolizava um excessivo respeito que já passou de moda. Frases como «Madame est servie» (A senhora está servida = o jantar está na mesa), dita por serviçais, só é ouvida hoje em dia em filmes históricos. De toda maneira, poucos são os que ainda se podem dar ao luxo de pagar empregados domésticos.

As regras de uso de tu e de vous são muito rígidas. Há casos, comuns por aqui, que deixariam qualquer brasileiro boquiaberto. Suponhamos que um seu colega de escritório ocupe a mesa ao lado da sua. Se a empresa não for uma startup, você e seu colega perigam passar 20 anos sentando-se todos os dias um ao lado do outro e chamando-se reciprocamente de vous seguido do nome de família. Bonjour, Monsieur Dupont! Bonjour, Monsieur Dubois! Esquisito para nós, não? Imagine só: Bom dia, senhor Silva! Bom dia, senhor Souza! Parece filme mal dublado.

Se o ambiente de trabalho for menos rígido, talvez você se sinta autorizado a chamar seu colega pelo nome. Nesse caso, teremos: Bonjour, Jean! Bonjour Paul! Mas não se engane: Jean e Paul continuarão a se dizer vous até o fim dos tempos. Jamais ousarão transpor o muro invisível que retém cada um e o impede de entrar na intimidade do outro.

O que acabo de descrever é o caso genérico, representativo do estado de espírito mais disseminado. Evidentemente, há situações particulares em que o relacionamento pode funcionar de outra maneira.

Fora da intimidade, um homem será sempre chamado Monsieur. Pouco importa se é casado ou não, será sempre Monsieur. Já o mesmo não ocorre com uma mulher, não me pergunte por quê. Chegada à idade adulta, ela se apresentará como Madame, se já for casada, ou como Mademoiselle, se não o for. E assim será chamada. Atenção: esse termo de tratamento será sempre seguido pelo sobrenome, nunca pelo nome. Se não, fica parecendo nome de vidente ou daquelas que os antigos chamavam «mulheres de vida fácil».

Mas o tempo passa e os costumes mudam. Faz anos que movimentos feministas denunciam a flagrante diferença de tratamento entre homens e mulheres. Por que todos têm de ficar sabendo se uma mulher é casada ou não? Por que os homens escapam a toda inquirição sobre seu estado civil?

Depois de muita luta, senhoras e senhoritas conseguiram uma lei para acabar com essa diferença. Foi votada em 2013. No entanto, uma lei não consegue mudar mentalidades da noite para o dia. Não se pode proibir que formas consagradas por séculos de uso popular desapareçam por encanto. O que o novo regulamento determina é que, nos documentos oficiais, seja abolida a diferença entre casadas e solteiras. Todas as mulheres serão chamadas Madame.

Isso vale para o Imposto de Renda, a conta de eletricidade, o IPTU, documentos de identidade, passaporte, carteira de motorista, enfim, tudo o que for documento oficial. Na vida prática, no entanto, os velhos costumes resistem e não vão mudar tão já. Para fazer evoluir as mentalidades, ainda vai levar um tempinho. Modos de pensar não se mudam por decreto.

Publicado originalmente em 2 jan° 2013.

Parabéns a você!

José Horta Manzano

Pergunta:
O que têm em comum o italiano Gioachino Rossini (1792-1868), o americano Herman Hollerith (1860-1929) e a francesa Michèle Morgan (1920-2016)?

Resposta:
Nasceram todos num 29 de fevereiro.

Sempre dirijo um pensamento comovido àqueles que nasceram nesta data esquisita. Imagine só, distinto leitor, como deve ser frustrante ter de esperar quatro anos pra receber parabéns! Se é chato pra adultos, pra crianças deve ser perturbador – ponha-se na pele do infeliz: vê todos os coleguinhas fazerem aniversário cada ano e ele… nada. Quatro anos, para os pequeninos, é uma eternidade!

Nestes tempos, de ditadura do politicamente correto e de hiper-judiciarização, é curioso que o legislador ainda não tenha se condoído da aflição dos que nascem neste dia fugaz. O sofrimento dos nativos desta data devia ser levado em conta quando se instituem quotas e privilégios. Como cidadãos discriminados pelos caprichos do calendário, merecem ressarcimento.

Michèle Morgan (1920-2016)
‘Les plus beaux yeux du cinéma français’
Os olhos mais lindos do cinema francês

A discriminação contra os nativos deste dia não é modismo. Ainda hão de se passar muitos séculos sem que alguém venha em socorro aos que passam a vida sob o flagelo da marginalização.

É verdade que o problema é mais amplo, tem a ver com o pas de deux entre o Sol e a Terra, um par de dançarinos que não conseguem acertar o passo. Em números arredondados, a Terra completa uma volta em torno do Sol em 365 dias e 6 horas. Fossem exatos 365 dias, nosso calendário seria simples: todos os anos teriam a mesma duração, sem necessidade de acrescentar esse dia intrometido de quatro em quatro anos. Infelizmente, assim são as coisas. Não dá pra mudar, nem com lei federal.

É verdade que podiam ter escolhido outro ponto do calendário pra intercalar esse ‘extra’ que só aparece a cada quatro anos. Podiam ter posto no final do ano, por exemplo, pra alongar as férias. Mas… que bobagem! Onde quer que pusessem o dia extra, crianças continuariam a nascer, e o problema continuaria!

Já que escolheram o fim de fevereiro, que assim seja. Deixo aqui minha solidariedade e meus parabéns a todos os que estiverem fazendo anos hoje!

Arroba

Dad Squarisi (*)

José Sarney lançou a moda. “Brasileiras e brasileiros”, saudava ele. As mulheres acharam a novidade simpática. O SBT aproveitou a onda. Pôs no ar a novela com o mesmo bordão. A partir daí, distinguir o gênero deixou de ser gesto de simpatia. Virou obrigação. “Meus amigos e minhas amigas”, dizia FHC. “Senhoras deputadas e senhores deputados”, cumprimentam Suas Excelências.

De obrigação, passou a obsessão. “Convidamos os presentes e as presentes para o coquetel”, dizem os mestres de cerimônia. “Os estudantes e as estudantes devem usar uniforme”, avisa a escola. “Senhor Paulo Silva e senhora Maria Silva”, substituiu nos convites a consagrada fórmula “Senhor e senhora Paulo Silva”.

Inovações correm soltas. “Car@s amig@s” escrevem enlouquecidos que decretaram o fim do gênero na língua. “Pessoas e pessoos”, escreveu o Millôr. “Povo e pova”, conclamou o Verissimo. “Humanidade e mulheridade”, ironizou um gaiato. “Seres humano e mulherano”, completou outro. “Mulher sapiens”, lançou Dilma.

Vamos combinar? Nesta alegre Pindorama, distinguir o feminino e o masculino não é questão de correção gramatical. Brasileiros, por exemplo, engloba homens e mulheres. Meus filhos, filhas e filhos. Os funcionários, funcionárias e funcionários. Gramaticalmente recebe nota 10. Mas, segundo as feministas, torna a mulher invisível. Com o feminino explícito, marca-se a igualdade dos dois gêneros. É questão de poder. Quem pode… aparece. Mas o exagero cansa. Ou não?

(*) Dad Squarisi, formada pela UnB, é escritora. Tem especialização em Linguística e mestrado em Teoria da Literatura. Edita o Blog da Dad.

Discriminação

José Horta Manzano

O correspondente da tevê relata:
«Logo que foi aberta a sessão na Câmara, foi a vez do pronunciamento da deputada. Ela subiu ao púlpito trajando um elegante conjunto Chanel beige engalanado por discreto colar de pérolas miudinhas. Proferiu um discurso curto mas incisivo sobre o assunto em tela.»

O jornal dá a notícia:
«Homossexual foi assaltado ontem, em pleno dia, na avenida principal. Apesar de ter entregado todos os pertences, os bandidos o agrediram.»

A Wikipédia informa:
«O artista, nascido numa família judia originária da Ucrânia, revelou dotes especiais desde a infância. Já no fim da adolescência, matriculou-se na Escola de Belas Artes.»

O que é que há de comum nessas três citações, aparentemente desconexas? Qual é o traço persistente, que atravessa os três banais fragmentos do quotidiano? Pois é a discriminação, distinto leitor, a discriminação. Senão, observemos com atenção.

No primeiro fragmento, o correspondente em Brasília dá tanta importância à fala da deputada quanto a sua indumentária. Faria o mesmo se fosse um deputado? Daria a cor da gravata? Descreveria a elegância do talhe do terno? Certamente, não. Pois está aí a demonstração de que, por mais que se force a promoção da igualdade entre os sexos, sempre sobra um fundo de discriminação. Por mais que seja realçado o lado profissional da mulher, ela continua sendo vista da maneira tradicional.

No segundo fragmento, é imaginável que a manchete fosse: «Heterossexual foi assaltado»? Não, não passaria pela cabeça de ninguém. E por que é que a vítima é descrita com base na orientação sexual? Pois é pura discriminação.

E no último trecho, fosse o artista nascido numa família cristã, acaso isso seria mencionado? É de duvidar.

Como vemos, apesar do esforço institucional para educar as gentes, a discriminação é como água: se nos escapa entre os dedos, não dá pra conter. Sem nos darmos conta, nós todos discriminamos, o tempo todo. Que fazer? É reflexo natural, comum a todo humano.

No fundo, não é tão mal assim. Não convém que a Polícia dos Costumes tente proibir terminantemente todas as manifestações da discriminação nossa de todos os dias. Se todos se parecessem, fizessem as mesmas coisas e se comportassem exatamente do mesmo modo, o mundo seria muito, mas muito, chato.

Mulher de soldado

José Horta Manzano

A onda do politicamente correto não é exclusividade brasileira, longe disso. Ela tem-se alastrado pelo mundo todo. Quando a conversa resvala para assuntos de sexo, de posição social ou de cor da pele, todo cuidado é pouco. Uma palavra mal pronunciada pode azedar o ambiente. Pode até pôr fim a uma velha amizade.

A feminização do nome das profissões é preocupação geral. É natural: ofícios que antes eram exclusivamente masculinos são hoje exercidos por homens e por mulheres. Se não havia palavra para indicar que o profissional era mulher, hoje ela tem de ser inventada.

Certas línguas, como o inglês, são menos afetadas por essa questão. De natureza «unissex», essa língua não perde tempo com essas miudezas gramaticais. Adjetivos, por exemplo, não vão nem para o plural ‒ que dirá para o feminino. Nomes de profissão geralmente não são flexionados. A exceção fica para os que terminam em man, como salesman. Nesse caso, a forma feminina vem naturalmente: saleswoman. E o problema está resolvido.

O alemão tem um modo muito jeitoso de feminizar nome de profissão. Como todas terminam por consoante, basta acrescentar o sufixo in. Cabe sempre. Jurist (jurista) faz Juristin. Verkäufer (vendedor) faz Verkäuferin. Ingenieur (engenheiro) faz Ingenieurin. E assim por diante. É muito prático e não ofende ninguém.

Em francês, o assunto dá dor de cabeça. Há alguns sufixos que dão ideia de feminino, mas precisa tomar cuidado ao manipulá-los, que cada caso é um caso. Todo médico é tratado por Docteur. A médica pode aceitar Doctoresse (doutora) ou preferir Madame le Docteur (Senhora Doutor). Melhor perguntar antes. É muito complicado. Tem de andar na ponta do pé. Isso vale para todas as profissões.

Nossa língua é mais camarada. Quando o nome da profissão termina em consoante, é suficiente acrescentar um a ao final pra obter o feminino: vendedor/vendedora, bacharel/bacharela, doutor/doutora, juiz/juíza. Quando termina em a ou e, não varia: o/a atleta, o/a estudante, o/a agente, o/a presidente, o/a obstetra.

Nos nomes de profissão que terminam em o, basta trocar o por a: engenheiro/engenheira, médico/médica, padeiro/padeira. Nesse particular, tenho notado certa reticência em feminizar a palavra soldado. Volta e meia, lê-se na manchete que «a soldado acudiu à ocorrência». Fica pra lá de esquisito. Fosse em francês, a hesitação seria compreensível, mas em português… francamente.

Se temos advogado/advogada, deputado/deputada, delegado/delegada, jurado/jurada, por que não soldado/soldada? Coragem, gente, coragem!

Como é que é? ‒ 6

José Horta Manzano

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Convém ser prudente ao dar notícia ligada a crime. Todo cuidado é pouco. Quem usar mal as palavras periga ser processado por acusar inocente. Daí o uso sistemático de perífrases compostas com “suposto”, “hipotético”, “presumido”.

No caso relatado pelo Estadão e reproduzido acima, contudo, a expressão “suposta prática” é francamente exagerada. Se o indivíduo já passou pelo tribunal, foi julgado e condenado a 11 anos de cadeia, onde está a suposição? Seus crimes já foram reconhecidos. É certeza jurídica! O “suposta” sobra.

Prefixo a usar com moderação

José Horta Manzano

O prefixo neo nos chega, por via latina, do grego νέος (néos). É raiz amplamente difusa nas línguas da família indo-europeia, do sânscrito ao português, passando pelo russo новый (novii), pelo alemão neu e pelo inglês new.

Em nossa língua, é tradicionalmente anteposto a um substantivo ou a um adjetivo para conferir-lhe conotação de novo ou novidade. Serve também para indicar renascimento, revivescência, atualização de fato antigo.

Temos, por exemplo: neozelandês (da Nova Zelândia), neonato (que acaba de nascer), neochegado (recém-chegado), neoconverso (recém-convertido), neofóbico (que teme o que é novo).

Neos

No entanto, é bom tomar cuidado com o uso desse prefixo. O conselho vale especialmente para quem tenciona respeitar a linguagem dita politicamente correta, tão em voga.

É que, com muita frequência, o prefixo neo introduz nuance pejorativa, daquelas que a gente pronuncia com um muxoxo. Vão aqui alguns exemplos.

A ortodoxia econômica é descrita, por seus opositores, como neoliberalismo econômico.

Os que não apreciam particularmente os evangélicos preferem chamá-los neopentecostais.

Neonazista, neostalinista, neofascista, neomaoísta é como se costuma designar todo adepto de grupelhos extremistas, daqueles que se enraízam em façanhas que trouxeram pandemônio e conduziram a humanidade à beira do abismo. O prefixo reforça o desdém de quem o pronuncia.

Neocolonial, neopoesia, neorrepública, neonacionalismo, neocapitalismo, neopopulismo – formas dicionarizadas – carregam, todas elas, um perfume de menosprezo. Convém ter isso em mente na hora de inserir o prefixo neo. Pode dar recado de desdém.

Politicamente chato

José Horta Manzano

Artigo dedicado a fanáticos por linguagem politicamente correta e aos que anseiam pela obrigatoriedade da linguagem dita «inclusiva».

Volta e meia se alevanta uma grita contra esta ou aquela palavra, esta ou aquela expressão acusada de sexista, preconceituosa ou até ofensiva. Termos que, até ontem, se usavam na fala de todos os dias passam a cambetear e acabam por resvalar para o abismo dos proscritos. Via de regra, um exame atento revela que a acusação não se sustenta.

Já ouvi muita gente preconizando asneiras. Aqui estão algumas:

    • o banimento da palavra ‘mulato’ por ser derivada de mula;

    • a proscrição do termo ‘judiação’ por ser agressivo para com judeus;

    • a estigmatização do verbo ‘denegrir’ por sugerir que o que é negro é ruim, conceito que ofenderia pessoas de raça negra;

    • a substituição da secular expressão ‘correr risco de vida’ pela bizarra ‘correr risco de morte’.

Sou de opinião que, se é pra fazer, melhor será ir até o fim, fazer completo e benfeito. Coser um pequeno remendo aqui e outro acolá, como fez o infeliz Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), é perder tempo e esforço. Impor linguagem ao mesmo tempo «inclusiva» e politicamente correta será objetivo difícil de alcançar. Além de sair caro, periga desfigurar a língua.

Entre mil outros, vou tomar hoje o exemplo de palavras pertencentes à extensa família descendente dos latinos pater (pai) e mater (mãe). A esmagadora maioria dos cognatos seguiu a «linha paterna», se assim me posso exprimir. E designam hoje realidades que nenhuma «linguagem inclusiva» conseguirá alterar. Vamos a alguns exemplos:

Patrimônio
Impossível substituir por ‘matrimônio’, palavra que dá nome a outro fato.

Apadrinhar
Dá pra conceber algo como: «A governadora ‘amadrinhou’ a nova creche»?

Patrocinar
Imagine só: «O patrão concordou e a empresa ‘matrocinou’ o evento».

Patrício
Pense num: «Passeando no estrangeiro, dei de cara com meu ‘patrício’ João e minha ‘matrícia’ Maria». Bizarro, não?

Patrono
«José Bonifácio é o ‘patrono’ da independência e a princesa Isabel, a ‘matrona’ da abolição da escravatura.» Pode?

Padrão
Considere um: «O ‘peso padrão’ é um quilo e a ‘velocidade madrã’ é 100km/h». Sem comentários.

Patriota
Dá pra sonhar com um: «Anita Garibaldi foi uma das grandes ‘matriotas’ que nossa história registrou»?

Padroeiro
Que tal um: «São José é o ‘padroeiro’ da cidade; Santa Bárbara, a ‘matroeira’»?

Padronizar
«Convém adotar estilo ‘padronizado’ e escrita ‘matronizada’.» Chique, não?

E assim por diante.

Em menor quantidade, os descendentes da mater latina também estão na praça. E são insubstituíveis. Veja.

Matrimônio
Impossível substituir por patrimônio ‒ a vaga já está ocupada. Portanto, homens vão continuar contraindo matrimônio.

Matrícula
Mulheres se matriculam. Homens também. Onde é que já se viu um homem se ‘patricular’?

Matriz
Aceita-se «A companhia ‘matriz’». Já «O estabelecimento ‘patriz’» fica um bocado estranho.

Resumo da ópera
Com tanto problema espinhoso à espera de solução, mentes privilegiadas melhor fariam se deixassem a língua em paz para se dedicarem a empreitadas mais úteis e prementes.

 

A tolerância é uma prática

Myrthes Suplicy Vieira (*)

Já faz tempo que venho filosofando a respeito de como a moralidade do século 21 deslocou-se integralmente para o discurso, deixando praticamente intocada a aceitação social de práticas perversas, típicas de nossos ancestrais das cavernas.

Pense comigo. A gente é capaz de aprender rapidinho a substituir negro por afrodescendente, veado e sapatão por gay, mongoloide por Down, piranha ou galinha por mulher liberada e empoderada, mas demora uma eternidade para incorporar o conceito de que todos, sem exceção, são portadores da mesma essência de dignidade humana. É como se acreditássemos que, retirando o peso discriminatório que algumas palavras adquiriram historicamente, toda a mágoa desaparecesse e se abrissem, por milagre, as portas para a plena incorporação das diferenças.

Ledo engano. Quando a emoção cresce, a razão evanesce e a hipocrisia desaparece. Um instante de desatenção e o filtro de censura volta a se fragilizar. E lá vamos nós gritando de novo da arquibancada: «Macaco, volta para a senzala de onde você nunca deveria ter saído!»; «Bicha louca, desce do salto e aprende a ser homem!»; «Sai daqui, seu debiloide babão!»; «Aí, gostosa, vem aqui que o papai vai te mostrar como é que se faz!».

O velho Shakespeare já havia nos alertado séculos atrás que as palavras podem ser cheias de som e fúria, mas, em última análise, não querem dizer nada. Caetano nos ensinou, através da canção, que cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. Nelson Rodrigues usou toda a sua mordacidade para nos mostrar que, olhando de perto, ninguém é normal. Em vão.

Não nos parece contraditório sair às ruas gritando palavras de protesto contra a corrupção na política e continuar fazendo pequenos agrados a quem pode nos tirar de uma situação aflitiva. Assinar petições contra o desmatamento na Amazônia ou aquecimento global e continuar a jogar lixo nas ruas e nos córregos. Postar nas redes sociais mensagens religiosas de amor ao próximo, respeito às diferenças e compaixão diante do sofrimento humano e, no minuto seguinte, propor com o máximo de virulência possível a perseguição, tortura e morte da pessoa que espancou um cão. Condenar com veemência o terrorismo, elegendo como bode expiatório de ocasião o fundamentalismo islâmico, e matar a pauladas e pontapés o torcedor do time adversário. Repetir de peito estufado o velho discurso ufanista de que somos o país da conciliação e, na sequência, reclamar que o Brasil não vai para a frente por causa de seu povinho que abaixa a cabeça para tudo.

Por que, se estamos fartos de saber de tudo isso, as mil cabeças da Hidra da intolerância continuam assumindo o controle? Como fazer para que nosso discurso e nossa prática passem a coincidir? É isso que venho tentando investigar.

Dia desses, tropecei num interessantíssimo artigo científico a respeito do modo como nossos cérebros processam palavras e significados. Segundo estudos realizados com pacientes que sofreram lesões em um dos hemisférios cerebrais, o sentido literal (de dicionário) de cada palavra é apreendido primordialmente pelo lobo esquerdo, o cérebro da razão e da lógica linear. No entanto, quando a palavra vem acoplada a outra que envolve julgamento de valor, o cérebro esquerdo fica confuso e passa a depender integralmente do direito para absorver as alterações de significado da mensagem. Só para relembrar, o cérebro direito é aquele da síntese, da apreensão global da realidade e do manejo das emoções.

Parece então que, talvez por influência da hiperutilização do modelo binário da tecnologia da computação, desaprendemos a manter razão e emoção unidas ao interagirmos com a realidade e com as pessoas à nossa volta. Em vez disso, alternamos o discurso politicamente correto e a indignação com o comportamento de terceiros que verbalizam outras percepções.

A armadilha é perigosa e eu mesma não me canso de cair nela. O sentimento de superioridade moral que embala nossa reação de crítica a práticas sociais que não endossamos é tão poderoso que nos impele a desconsiderar quaisquer condicionantes e passar por cima do outro com trator e tudo, esmagando-o sem clemência e destruindo cada um de seus argumentos.

A saída? Ainda não sei. Só posso oferecer como sugestão para reflexão um pensamento de Aristóteles com que me deparei outro dia: «Educar a mente sem educar o coração não pode ser chamado de educação».

Outra pista que persigo há um bom tempo me foi ofertada em caráter pessoal por aquele que chamo de “meu anjo”. Certa vez, durante uma discussão ácida com meu pai, perdi a paciência e saí batendo a porta, esbravejando que meu ouvido não era penico para ele depositar sua insensatez. Ainda no corredor, já me sentindo um tanto acabrunhada e envergonhada, tive a nítida sensação de ouvir o conselho: «É preciso negociar também com as feridas».

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

Se fôssemos espertos

Ruy Castro (*)

Comecei a suspeitar de algo errado com a educação no Brasil quando uma de minhas filhas, matriculada num colégio “experimental” do Rio em fins dos anos 70, chegou aos oito anos sem ser alfabetizada. Em troca, subia e descia de árvores com uma destreza de Jane do Tarzan. Seu colégio dava grande importância a essa disciplina e, não por acaso, o pátio parecia uma miniatura da Mata Atlântica.

Desde então, nosso sistema de ensino vem procurando novas fórmulas com as quais preparar os garotos. Uma delas propôs – e conseguiu – extinguir do currículo o Latim, talvez por ele não figurar entre as línguas oficiais da Disney World. Outra postulou o desaparecimento da Geografia, sob a alegação de que era inútil saber, digamos, os afluentes do rio Amazonas – para que decorar a resposta a uma pergunta que jamais lhes seria feita?

Mas isso foi então. Nos últimos 15 anos, voltamos aos conteúdos, só que para tentar inverter o polo da história – diminuindo a presença do opressor europeu e enfatizando a dos nossos indígenas e africanos. Com isso, menos Estácio de Sá e D. Pedro I, por exemplo, e mais Zumbi dos Palmares e o cacique Arariboia. Muito justo – mas o que faremos com o Aleijadinho, Chiquinha Gonzaga, Machado de Assis, Lima Barreto, Di Cavalcanti, Mario de Andrade, Elizeth Cardoso, Ademir da Guia, Taís Araújo e a torcida do Flamengo, todos com algum branco descascado na composição?

Enquanto no Brasil discutimos ideologia, Portugal há anos começou a privilegiar o ensino de Português e Matemática em suas escolas. Sem ler ou escrever direito, ninguém chegará à História e à Filosofia. E sem uma forte base Matemática, ninguém dará para a saída no mundo cibernético. Os portugueses começam a colher os frutos dessa política.

Se fôssemos espertos, já os estaríamos copiando.

(*) Ruy Castro (1948-) é escritor, biógrafo, jornalista e colunista. Seus artigos são publicados em numerosos veículos.

Quando a mulata era a tal

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 25 fev° 2017

Cada sociedade tem os próprios tabus. Gestos ou palavras que, aqui e agora, passam batidos podem ser repreensíveis ou inaceitáveis em outros lugares. Com o passar do tempo, permissões e proibições evoluem. Tempos houve em que desquitada que ousasse juntar-se com outro homem não entrava em casa de respeito. Não que lhe fechassem as portas, mas se sentia malvista, se autocensurava. Até o qualificativo de «amigada» era depreciativo. O recato daquela época nos parece hoje excessivo, quase hipócrita. Recato… Taí palavra que anda em falta nas prateleiras do país.

Lembro-me de uma polêmica que espocou em 1961. Numa época em que o primeiro Aurélio ainda não havia sido editado, a estudantada se socorria do Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, da equipe do filólogo Silveira Bueno. Em maio, alevantou-se uma grita exigindo que o dicionário fosse expurgado de termos considerados ofensivos. O governo levou o assunto a sério e incumbiu o ministro da Educação de ouvir os descontentes. Segundo eles, várias palavras tinham de ser sumariamente banidas. Entre elas: favela, negro, panamá, jesuíta e judas. Depois de debruçar-se sobre o caso, a comissão moderadora chegou à (óbvia) conclusão de que o dicionário não faz a língua, limitando-se a registrar-lhe os vocábulos. O assunto se desmilinguiu e acabou morrendo na praia. Poucos meses depois, a renúncia de Jânio enterraria de vez a questão.

Samba 3Hoje esse relato faz sorrir. Todos sabem que a língua é feita pelos que a utilizam. Proscritas ou não, palavras continuarão a existir e a ser utilizadas. Há montes de termos novos, de uso corrente, que ainda não aparecem em dicionário nenhum. O contrário também é verdadeiro: vocabulários estão repletos de palavras que, fora de circulação há tempos, não são mais compreendidas. Afinal, sem o judas, como ficaria a malhação do Sábado de Aleluia? Cada bobagem…

O carnaval está aí. Semanas atrás, alguns blocos, especialmente do Rio de Janeiro, anunciaram a decisão de banir certas músicas. São marchinhas que, embora tradicionais e conhecidas por todos os foliões, sofrem de um pecado original impossível de ser remido: mencionam a palavra «mulata». Suponho que alguém de poucas letras, daqueles que ouvem cantar o galo sem saber onde está o poleiro, tenha sido informado de que, etimologicamente, mulato deriva de mula.

Em rigor, faz meio milênio que isso é verdade, desde a criação do termo. Agora pergunto: o distinto e culto leitor já se tinha dado conta desse parentesco etimológico? Não? Nem eu. Erradicar do repertório músicas pela simples razão de conterem uma palavra que se decidiu banir é atitude excessiva. Acaba surtindo efeito contrário: ao invés de encoberto, o «pecado» se torna ainda mais visível. Sai da Praça Onze mas ganha a praça pública.

samba-4Num rápido sobrevoo das letras de um século de cancioneiro popular, encontrei uma centena de músicas que falam do mulato ou da mulata. Todas elas ‒ sem exceção ‒ exaltam o personagem. Ataúlfo Alves brindou à «mulata assanhada, que passa com graça, fazendo pirraça». Ary Barroso e Luís Peixoto babaram diante da mulata que «quando samba, é luxo só». Vicente Paiva gabou «os olhos verdes da mulata». Verdadeiro hino nacional bis, a própria Aquarela do Brasil, que figura entre as músicas mais executadas no mundo apesar de já ter atravessado oito décadas, sintetiza o Brasil num «mulato inzoneiro».

Tudo o que é excessivo é pernicioso. Levar o conceito do politicamente correto a tais extremos acaba com a alegria do carnaval. Estamos a dois passos de criar o Ministério dos Bons Costumes, encarregado de elaborar o índex das palavras proscritas. Francamente…

Talvez você não saiba que enfezado é atributo de quem está constipado. Dizer que «o chefe está enfezado hoje» equivale a insinuar que ele está cheio de fezes. Poucos já se deram conta de que cueca, culatra e recuar são etimologicamente derivados do nome que se dá à extremidade do tubo intestinal. Poucos têm noção de que a vagem (legume) e a bainha (da calça) são descendentes diretas da palavra latina que indica a genitália feminina. No fundo, é melhor não espalhar a informação. Alguém periga exigir banimento desses termos, nunca se sabe. No mundo, há duas coisas infinitas: o universo e a estupidez humana. Se bem que, quanto ao universo, tenho minhas dúvidas.

Cotas futuras

José Horta Manzano

O Quotidiano do Povo, portal chinês de informação, relata que cinco chineses foram socorridos no Rio de Janeiro, no âmbito de uma campanha contra o trabalho clandestino. Os cinco trabalhavam em condições de escravidão, sem direito a salário, hipoteticamente para reembolsar o valor da viagem ao Brasil.

Grilhões 1Segundo autoridades trabalhistas brasileiras, a operação foi lançada em vista das Olimpíadas. Até agora, cerca de vinte chineses já foram alforriados. O portal afirma que, na região de Cantão (sul da China), numerosas agências especializadas recrutam trabalhadores para enviá-los ao Brasil.

Não fica claro como é possível que ‘numerosas agências’ chinesas continuem exercendo, sem ser incomodadas, esse ancestral tráfico de viventes. Nada foi publicado tampouco sobre os cúmplices que necessariamente operam em nosso território.

Chinês 2É permitido imaginar que, daqui a alguns anos, a doutrina do politicamente correto nos obrigue a instituir cotas para ressarcir os descendentes desses escravos.

Politicamente incorreto

José Horta Manzano

Olho 1A gente imaginava que Big Brother – o Grande Irmão Controlador – fosse chegar de repente, na sequência de uma revolução. Os tempos atuais mostram que não é bem assim. Mudanças não caem do céu da noite pro dia. As novas modas vêm sorrateiras, de mansinho, e vão-se insinuando sem que ninguém se dê conta. Quando se abre o olho, o mundo já mudou. Sem avisar.

Houve tempo em que a gente podia falar como quisesse, usar as palavras e expressões que bem entendesse, com uma única exceção: palavrão. Nome feio não podia ser pronunciado na presença de gente de respeito. Fora isso, cada um podia falar como lhe agradasse.

Hoje já não é mais assim, como bem sabem meus distintos leitores. Certas palavras e certas expressões entraram para o índex, tornaram-se tabuísmo. A lista engrossa cada dia mais. E ai de quem tropeçar! Não se arrisca a levar um pito – periga ser processado ou, pior ainda, pode acabar preso.

Remexendo na memória, encontrei meia dúzia de músicas que, embora tenham feito grande sucesso em seu tempo, não poderiam mais ser lançadas hoje. Seus autores teriam sérios problemas.

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Anjos do Inferno

Anjos do Inferno

Boneca de pano (1950)
de Assis Valente (1907-1958)
Gravada por: Quatro ases e um coringa
Gravada por: Demônios da garoa

Trecho politicamente incorreto:
Um dia alguém a chamou de boneca
E ela, sendo mulher, acreditou

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Lamartine Babo

Lamartine Babo

O teu cabelo não nega (1931)
de Lamartine Babo (1904-1963) e Irmãos Raul e João Valença
Gravada por: Castro Barbosa

Trecho politicamente incorreto:
O teu cabelo não nega, mulata,
Porque és mulata na cor
Mas como a cor não pega, mulata,
Mulata, eu quero teu amor

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David Nasser

David Nasser

Nega do cabelo duro (1941)
de David Nasser & Rubens Soares
Gravada por: Anjos do Inferno

Trecho politicamente incorreto:
Nega do cabelo duro
Qual é o pente que te penteia
(…)
‘Mise-en-plis’ a ferro e fogo
Não desmancha nem na areia

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Dircinha Batista

Dircinha Batista

Mulher que é mulher (1953)
de Klécius Caldas & Armando Cavalcanti
Gravada por: Dircinha Batista

Trecho politicamente incorreto:
A mulher que é mulher
Não deixa o lar à toa
A mulher que é mulher
Se o homem errar, perdoa.

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Jorge Goulart

Jorge Goulart

Cabeleira do Zezé (1964)
de João Roberto Kelly & Roberto Faissal
Gravada por: Jorge Goulart (1926-2012)

Trecho politicamente incorreto:
Olha a cabeleira do Zezé
Será que ele é? Será que ele é?
(…)
Parece que é transviado
Mas isso eu não sei se ele é
Corta o cabelo dele!
Corta o cabelo dele!

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Linda Batista

Linda Batista

Nega maluca (1950)
de Evaldo Rui & Fernando Lobo
Gravada por: Linda Batista (1919-1988)

Trecho politicamente incorreto:
Tava jogando sinuca
Uma nega maluca me apareceu
Vinha com um filho no colo
E dizia pro povo
que o filho era meu
(…)
Até parece castigo
Ou então é influência da cor

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Depois de certa idade…

Sylo Costa (*)

Meu saudoso pai, exemplo de sensibilidade, dizia sempre que “a felicidade está diretamente ligada à ignorância”. Não à ignorância da brutalidade, mas àquela ignorância do não saber. Papai era um cearense “retado”. Médico, formado na Bahia, terminou o curso com uma bolsa de estudos que lhe foi dada pelo Ministro da Educação Francisco Campos, que atendeu um pedido da turma de 1932, composta, de acordo com o convite de formatura em meu poder, por 73 formandos: 38 brancos, 17 negros, 14 baianos e quatro mulheres.

Panda albino

Coala albino

Bons tempos aqueles, em que não havia a perversidade da discriminação e podia-se brincar assim. Seu anel de grau foi presente dos colegas. Será que a sociedade em que vivemos comportaria esse modus vivendi? Hoje, quem chamar um negro de “negão” está discriminando o sujeito e pode ser processado na forma da lei, ou seja, aquilo que podia ser um tratamento carinhoso é crime hediondo. Pode-se xingar de fdp, ladrão, cavalo, égua etc. Mas bicha ou macaco é discriminação, e lá vai o perigoso criminoso para a cadeia.

Eu tinha dois amigos em Salinas que atendiam pelo nome de Negão. Um morreu, o outro está vivo e reside em São Francisco, lugar na barranca do Velho Chico, abençoado por Deus e bonito por natureza. Há muito não o vejo e não sei como chamá-lo quando o encontrar. Não que ele não entenda, mas outro “aragaço”(1) que, porventura, esteja por perto certamente vai reparar. O país está assim: um saco.

O Congresso Nacional, composto por homens, mulheres e muita gente boa, religiosos ou não, bichas e dissimulados, mensaleiros e ladrões comuns, está que é uma sensibilidade só… Agora, estão discutindo sobre maioridade. Uns querem que ladrõezinhos de 17 anos sejam tratados como “de menor”, outros mais pés no chão, não. Tanto faz bala 22 ou 38 para fazer defunto. Mas não.

Os desocupados de ongs, direitos humanos e outros modismos enchem o saco de qualquer um. Ô paiseco de… deixa prá lá. Se eu não estivesse com “idade avançada”, me mudaria para qualquer outro lugar onde não houvesse petistas de todas as espécies e padrecos comunistas disfarçados de intelectuais pregando aos incautos…

Cavalo albino

Cavalo albino

Agora, para completar o rol de sensibilidades de que estamos possuídos, alguns legisladores, pessoas que se dizem normais, querem tornar “crime hediondo” qualquer manifestação que expresse simpatia ou desejo pela volta dos militares, ou seja, mais ou menos o que acontece na Alemanha, onde não se pode, por outras razões, discutir sobre o Holocausto. Nossa liberdade de expressão está condicionada ao modismo desses brasileirinhos sensíveis que têm medo de polícia e de lobisomem…

Um dos sentimentos que mais me maltrata é a decepção, e eu vivo hoje, como brasileiro, decepcionado com a vida, não a minha vida, mas a vida vivida no Brasil, o que me faz lembrar um salinense ranzinza que, cerrando os dentes, dizia: “Ô Sylo, qué sabê? Se lugá fô lugá, isso aqui num é um lugá”. Também acho…

(*) Sylo Costa é homem político mineiro. Assina coluna semanal no jornal O Tempo.

(1) No norte de Minas Gerais, dá-se o nome de aragaço aos albinos.

O Garcia

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 6 set° 2014

Sapato 1Antes de começar, lanço uma advertência daquelas que aparecem em começo de filme: «Toda e qualquer referência que possa evocar alguma pessoa viva ou falecida terá sido mera coincidência.» Isso posto, vou-lhes contar como se anunciava, tempos atrás, uma liquidação de mercadoria ― prática hoje extinta e suplantada por «sale», que é expediente mais moderno.

Faz meio século, ferramentas de marketing eram primitivas. Venda especial se anunciava no grito. Seu Garcia, comerciante de calçados que cheguei a conhecer, fazia frequentes liquidações. Provavelmente já tinha intuído certas manhas de mercado hoje evidentes. Quando decidia vender artigos a preço de banana, punha-se à porta da loja, batia palmas e apregoava: «Entre, minha gente! Deu a louca no Garcia!».

Clap clapFaz alguns dias, tomei conhecimento de um anteprojeto de lei que me fez lembrar o velho calçadista. A notícia, espantosa, apareceu no mui oficial site do Ministério da Justiça. O longo texto de 52 páginas, concebido por comissão de sábios nomeada pelo próprio ministério, será submetido em breve ao Congresso Nacional.

Em 114 artigos, o «Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil» desconstrói, logo no prólogo, o conceito de «estrangeiro», considerado pejorativo em nossa cultura. A ousada afirmação carece de sentido num país onde tudo o que vem de fora é visto como superior.

Em vez de estrangeiro, elege-se a palavra «migrante» como sucedâneo. São migrantes os que vão, os que vêm, os que se deslocam e até os que se supõe queiram deslocar-se. O clube das expressões politicamente incorretas ganha mais um membro: estrangeiro entra para o índex.

O ambicioso esboço de lei é abrangente. Faz varredura completa da área de imigração, emigração, aquisição e perda da nacionalidade, reagrupamento familiar, acolhida humanitária, outorga de asilo, concessão de visto. Sem sombra de dúvida, o calhamaço merece que o Congresso o examine com desvelo.

Sapataria 1De saída, um ponto salta à vista e causa espanto. O Artigo 1° define como apátrida todo aquele que não for considerado por nenhum Estado como seu nacional. Até aí, nada demais, que é definição universalmente aceita. O inacreditável vem agora. No Artigo 25, o anteprojeto concede nada menos que… a nacionalidade brasileira a todo apátrida que a solicitar. Assim, bondade pura, sem condições e sem contrapartida. Não há registro de que ideia tão arrojada tenha jamais ocorrido a algum legislador.

Segundo o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, por sinal citado no introito do texto, é impossível avaliar o número de apátridas no globo. Cálculos vagos dão algo em torno de 12 milhões de pessoas, mais do que a população do Rio Grande do Sul. Pode ser bem mais que isso.

Suponha agora o distinto leitor que nossos congressistas, num descuido, chancelem essa lei. A notícia há de correr mundo mais rápido que rastilho. Assim que o Brasil propuser, de mão beijada, a cidadania a todo apátrida que a solicitar, filas de dobrar quarteirão se formarão à porta de nossas representações diplomáticas. Garantido.

Sapataria 2E todos farão jus ao mimo ― é de lei. Embolsado o precioso passaporte, cada um dos novos brasileiros terá direito, naturalmente, a ser repatriado à custa da princesa. Chegados ao Brasil, os antigos estrangeiros ― com o perdão da palavra imprópria ― já serão brasileiros de direito pleno. Terão, assim, direito a fixar residência onde bem entenderem, a pleitear todas as bolsas, a votar e a ser eleitos. Não precisa muito esforço de imaginação para prever que sólidos bolsões de «migrantes» se formarão em determinadas regiões, grupos dentro dos quais língua e costumes originários se manterão. O anteprojeto favorece o surgimento de uma constelação de pequenas nações dentro do território nacional.

Longe de mim fazer, de princípio, oposição à imigração. Afinal, os antepassados da maioria de nós chegaram um dia de algum canto do planeta. Mas todo movimento de população tem de ser enquadrado. Grandes contingentes de forasteiros aportados de supetão tendem a se aglutinar. Não se aculturam da noite para o dia. Não passam a falar nossa língua nem a comer arroz com feijão no dia seguinte.

O interesse superior da nação brasileira não combina com um regime de portas escancaradas e boca-livre a quem chegar. O passaporte brasileiro é um bem precioso demais para ser oferecido por atacado. Não é mercadoria e não se encaixa em lógicas do tipo «Entre, minha gente! Deu a louca no Garcia!».