Nem tudo está perdido

“Quem é que quer saber do passado, agora que o Brasil está voltado para o futuro?”
by Patrick Chappatte (1966), desenhista suíço

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 27 agosto 2022

Afeganistão
Em 2001, na precipitação que resultou dos atentados perpetrados pelos terroristas da Al-Qaeda, o governo dos EUA tomou a decisão de cortar o mal pela raiz. Mandou tropas à região onde se presumia estivesse localizado o esconderijo dos cabeças da organização e deu início à Guerra do Afeganistão.

Relativamente modesta no começo, a força militar engrossou com o passar dos anos. No auge da intervenção, a coalizão encabeçada pelos EUA chegou a contar com um efetivo de 150 mil militares, oriundos de 48 países diferentes.

O objetivo perseguido era, na expressão do presidente Bush Jr., promover uma “guerra ao terrorismo”. Analistas militares botaram olho crítico na expressão e fizeram observar que, numa guerra, há que escolher o inimigo. Terrorismo não é o inimigo, mas apenas o método utilizado por ele. Ninguém faz guerra contra o esquema de combate do adversário. Assim mesmo, a descrição oficial permaneceu bastante vaga na hora de apontar o verdadeiro inimigo.

Em 2021, após duas décadas de ocupação e combates, as forças deixaram o território afegão. Apesar da permanência de vinte anos, foram incapazes de organizar a sucessão e de prever o que ocorreria. Aconteceu um desastre. No dia seguinte ao da partida do último soldado, os Talibãs voltaram, e o país deu um tremendo passo atrás. Foram tempos de morte, sofrimento, medo e privações que não serviram para nada. Em 20 anos ocupando o país, os invasores não aprenderam.

Ucrânia
Em fevereiro deste ano, um ultraconfiante Putin lançou sua versão 2.0 do Exército Vermelho contra a vizinha Ucrânia – país de superfície 28 vezes menor que a da Rússia. Ressalte-se que, desde os tempos da extinta União Soviética, os serviços de espionagem russos estão no topo da excelência. Na Ucrânia, para preparar a invasão, hão de ter tido grande liberdade de ação. Religião, costumes, clima, alfabeto, línguas são comparáveis, quando não idênticos. Um agente russo pode se perder em meio à massa humana de Kiev, por exemplo, sem que ninguém note a presença de um estrangeiro, visto que parte da população ucraniana tem o russo como língua materna.

Apesar dessa evidente vantagem, as boas informações não chegaram ao ditador em Moscou. Não está claro se por ineficiência dos agentes, traição, sabotagem ou algum outro motivo. É até possível que os russos, imaginando que seriam recebidos de braços abertos, tenham contratado espiões ucranianos, que se revelaram ser agentes duplos. A Rússia não levou em conta o patriotismo dos ucranianos.

Nessa guerra, que já dura seis meses, a Rússia vem sofrendo imensos reveses. Seu exército registra extensas perdas humanas e materiais; sua economia levou um baque que a fará recuar vários degraus; a fuga de cérebros jovens e promissores vai fazer falta no futuro; com a adesão da Finlândia e da Suécia, a Otan se aproximou mais ainda de suas fronteiras. Ao final, vê-se que os vinte anos de permanência de Putin no topo do poder não lhe ensinaram grande coisa. Apostou mal, arriscou demais e perdeu tudo.

Brasil
Quem assiste à constante multiplicação de desvios de conduta do presidente da República e a sua bizarra preferência por caminhos desviantes tem o direito de ficar intrigado. E assustado. São quase quatro anos sem um dia de trégua. Insultou dirigentes estrangeiros, ofendeu mulheres e negros, descambou para a homofobia, liberou armamento para todos, respaldou garimpo e desmate ilegais, exerceu o charlatanismo, louvou a cloroquina, vingou-se de servidores probos, menosprezou índios, desprezou a ciência, vilipendiou a cultura, fechou os olhos às milícias, minou a confiança de meio Brasil no sistema eleitoral.

Ao ver um currículo – que digo! – ao ver um prontuário dessa magnitude, a população brasileira tem razão em viver na angústia de um golpe de Estado ao aproximar das eleições. No entanto, recentes declarações do capitão de que aceitará o resultado do voto seja ele qual for tranquilizam. Vão no bom sentido. É um bálsamo saber que, diferentemente de estrategistas americanos e russos, ele parece estar se dando conta a tempo de que sua aventura não teria final feliz. Speremus, fratres!

O conselho

José Horta Manzano

O aprendizado
O caso se passou no tempo em que eu era funcionário de uma firma. Meu chefe um dia me encomendou um trabalho qualquer. Não me lembro exatamente o que fosse, mas era coisa pouca, um relatório ou algo assim. Eu não estava lá muito disposto a fazer o que ele pedia, então reclamei, disse que tinha muito pra fazer, que o serviço andava acumulado, que aquela semana não ia dar, enfim, enchi de dificuldade.

A essas alturas, benevolente mas sério, ele me fez um sermão: «Olhe aqui, se você não tem vontade de cumprir essa tarefa, está se comportando exatamente como não devia. Com essa insistência em pôr dificuldade, você acaba chamando a atenção para o fato. O resultado é que, amanhã, eu vou me lembrar desta nossa conversa de hoje, e vou cobrar o serviço. E depois de amanhã também. E assim por diante, até que esteja feito. De outra vez que você não quiser fazer algum trabalho, seja esperto: não diga nada, não chame a atenção para o caso. Diga simplesmente que sim, e pronto. Em seguida, se você não executar a tarefa, não tem importância, que eu vou acabar esquecendo.»

O sábio conselho me foi muito útil. Serve tanto para relacionamento entre chefe e subordinado quanto para situações do dia a dia.

Covid na Europa
Tenho acompanhado a evolução da pandemia nos países da Europa. Na maioria deles, o governo tem agido com bom senso. Espertos e bem assessorados, os dirigentes perceberam que o covid era uma excelente ocasião para promover a união nacional. Não deixaram escapar porque, na vida de uma nação, raros são os momentos em que essa união é possível. Acontece quando há ameaça de guerra. Para enfrentar o inimigo externo, o dirigente perspicaz convoca o povo – que passa por cima de diferenças internas e se une no combate ao perigo.

Pois assim foi feito: uma retórica inteligente apresentou a pandemia como poderoso inimigo externo a ser vencido. Os dirigentes que agiram assim cresceram politicamente. Neste momento em que o Reino Unido começa a campanha de vacinação, os habitantes dos demais países europeus, embora ansiosos para estender o braço e receber a picada que salva, não estão em pânico. São gratos a um governo que soube enfrentar a pandemia com transparência e honestidade, e sabem que a vacina virá quando tiver de vir. Têm confiança no governo.

“É tudo histeria e complô!!!”
Charge publicada no jornal alemão Stuttgarter Zeitung

Covid no Brasil
Já em nosso maltratado Brasil, tivemos a desgraça de ter covid e Bolsonaro ao mesmo tempo. É dose cavalar. Desde o início da pandemia, o dirigente-mor não escondeu seus sentimentos: negou a doença, desdenhou dos cuidados básicos de prevenção, tratou o povo de maricas, disse que não era coveiro, incitou os brasileiros à desobediência civil. Para coroar, fez propaganda contra a vacina, pôs medo na cabeça das pessoas, instilou a dúvida.

O resultado é que se vai firmando a impressão de termos na Presidência um homem que não gosta do próprio povo. As pessoas se sentem desamparadas. A estúpida guerrinha da vacina, patrocinada por ele e por seu ministro da Saúde, só faz reforçar o sentimento difuso de abandono. Só o clamor popular é que tem feito o presidente retroceder. Ele vai de recuo em recuo, gerando uma situação constrangedora para ele e angustiante para nós outros. Todos nos demos conta de que, caso esperemos sentados, essa vacina só virá no dia de São Nunca.

De estardalhaço em estardalhaço, nosso dirigente-mor deixou o povo convencido de que não se pode contar com ele. Essa situação criou pânico geral. Governadores, prefeitos, autoridades sanitárias e até o STF se metem no assunto da vacina. Se Bolsonaro tivesse sabido congregar a população num esforço coletivo de combate ao vírus, estaria hoje com aprovação nas alturas. E o povo estaria esperando confiante, certo de que a vacina virá quando tiver de vir. Mas – ai de nós! – ele não quis ou não soube fazer isso.

Vê-se que nosso doutor nunca teve um chefe como o que eu tive, nem recebeu conselho que valha. Ou talvez tenha recebido, mas não entendeu. Dá no mesmo.

A insegurança do ministro

José Horta Manzano

Nos tempos de antigamente, piadas eram mais ingênuas. Lembro-me de uma que contava que, num país imaginário, a polícia secreta era uniformizada. E que se trajavam de vermelho. E que, à entrada do prédio onde ficava a sede, um cartaz informava: «A senha está debaixo do capacho».

Acredito que historietas assim, hoje em dia, deixem o ouvinte indiferente. Certos fatos recentes e reais, no entanto, estão longe de deixar ouvintes indiferentes. São de arrepiar o cabelo. Noticiou-se dois dias atrás, por exemplo, que o STF abriu licitação pra contratar agentes para a segurança pessoal e permanente do ministro Edson Fachin. Pode parecer banal, mas não é.

Segurança pessoal de ministro do Supremo não é coisa com que se brinque, ainda mais que o doutor tem recebido ameaças. Agente encarregado de dar proteção a uma personalidade deve responder a critérios rigorosos e, sobretudo, tem de ser pessoa de confiança. «Abrir licitação» não me parece o caminho adequado. Afinal, não estamos comprando biscoito. Abre-se licitação quando se quer comprar um produto pelo menor preço, com boas condições de pagamento e prazo de entrega conveniente. Mas pra contratar pessoa de confiança, a licitação não faz sentido.

O agente de segurança ocupa posto altamente sensível. Ele está a par da rotina do ministro, dos programas de viagem, dos horários, do roteiro diário, das atividades, das minúcias do dia a dia. Conhece a vida do acompanhado melhor até do que a esposa do dito cujo. Como é possível confiar tarefa tão crucial a alguém proveniente de concorrência pública, contratado pelo melhor preço?

A escolha de agente de segurança tem de ser feita com a maior discrição possível. Já não devia nem ter sido anunciada nos jornais. Ninguém precisa ‒ nem deve ‒ ficar sabendo. A licitação pública escancara as portas para um elemento nocivo se infiltrar no entourage do ministro. Pode atrair gente mal-intencionada. Pode chamar espiões.

Francamente, não convém seguir por esse trilho. Desse jeito, vamos acabar uniformizando agentes secretos. De vermelho.

Papel-moeda

José Horta Manzano

A força de uma moeda é função da confiança que se deposita nela. Grandes economias ‒ como os EUA, o Reino Unido, a zona da União Europeia onde circula o euro, o Japão ‒ tendem a inspirar confiança. Esse efeito foi sentido no Brasil nos anos de inflação braba que antecederam o Plano Real. Naquela época, ninguém botava fé na moeda nacional. Quem tinha condições de fazê-lo, comprava moeda estrangeira, com especial preferência para o dólar americano.

Nesse universo, existe uma notável exceção. Em pé de igualdade com as divisas mais importantes do globo, está o franco suíço. É uma especificidade pouco comum, um ponto fora da curva. Com oito milhões de habitantes, a Suíça está longe de se comparar às grandes economias do planeta. Qual seria a razão de a moeda helvética ser tão apreciada?

Um milhão de francos suíços (3,3 milhões de reais)

A importância atribuída ao franco suíço provém justamente da confiança que ele inspira. A Suíça transmite imagem de país estável, pacífico, ordeiro, sério, livre de guerras, revoluções e sobressaltos. Isso conta.

Do jeito que vão as coisas, o papel-moeda tende a desaparecer, substituído por dinheiro virtual. Por enquanto, ainda não é assim. Notas ainda valem. E como!

A cada vinte ou trinta anos, as autoridades monetárias suíças renovam as notas em circulação. A estampa, o tamanho, a textura mudam. Os desenhos se atualizam e, principalmente, novos dispositivos de segurança antifraude são introduzidos. Quando é lançada nova série de cédulas, as antigas permanecem válidas durante vinte anos. Depois disso, só servem como recordação.

Atualmente está sendo lançada nova série de notas. Ao mesmo tempo, o parlamento está debatendo a questão do prazo de validade. Está em pauta uma proposta para espichá-lo indefinidamente. Se vingar, cédulas suíças nunca perderão a validade, como já acontece com o dólar e o euro. Muitos se opõem a essa ideia temendo que a moeda nacional sirva de refúgio para dinheiro sujo.

3,3 milhões de reais em cada mão

Corruptos do mundo inteiro, estai atentos! Se as autoridades suíças se decidirem pela validade eterna do papel-moeda nacional, vossa vida estará facilitada! De fato, a nota de mil francos suíços é a mais valiosa do planeta. Senão, vejamos: a nota americana de maior valor é a de 100 dólares; quanto ao euro, a mais valiosa é a de 500 euros; já a nota de mil francos suíços vale 860 euros (ou 1000 dólares ou 3300 reais).

Portanto, se aqueles 51 milhões de reais encafuados em uma dezena de malas num apartamento de Salvador tivessem sido convertidos em francos suíços, caberiam num saco de esporte ‒ discreto e facilmente transportável. Fica para a próxima.

Autoilusão

José Horta Manzano

Uma chamada do Estadão de 27 de jan° me chamou a atenção. Falo de uma sintomática declaração do presidente do CIO ‒ Comité International Olympique. Ao desembarcar no Rio, Herr Bach foi logo deixando claro: «Temos inteira confiança no Brasil». Hmmm…

JO 2016Alguém imagina a autoridade máxima do esporte mundial soltando frase assim logo antes do início dos Jogos Olímpicos de Londres? Algo do tipo «Temos inteira confiança no Reino Unido»?

Quando um dirigente insiste em afirmar o que deveria ser evidente é mau sinal. Soa menos como convicção e mais como o que os ingleses chamam «wishful thinking», uma interpretação dos fatos que não traduz a realidade como ela é, mas como gostaríamos que fosse.

Chamada Estadao, 27 jul° 2016

Chamada Estadao, 27 jul° 2016

Na hora me vieram à mente duas imagens. A primeira é a de um certo ex-presidente que ousa duvidar haver «nessepaiz» viv’alma mais honesta que ele. Ao dar-se conta de que ninguém mais lhe dá crédito, o enjeitado líder sentiu necessidade de soltar a frase lapidar.

A segunda imagem é a de certa presidente afastada que, embora tenha ocupado funções de mando nos últimos 13 anos, insiste em considerar-se alheia a todo o descalabro que se instalou no país. «Sou mulher honesta, não cometi crime e nunca me vali de caixa 2.»

Autoilusão.

Os “malfeitos” da Volkswagen

José Horta Manzano

Carro 5A coisa anda preta pros lados da Volkswagen. Para os que acham que desgraça pouca é bobagem, taí a confirmação dos fatos. A maior montadora de automóveis do planeta – pelo critério de número de carros produzidos – está numa sinuca de bico.

Já contei ontem o lado mais folclórico da tempestade que despenca sobre a companhia. O Wolfsburg Futebol Clube, cuja história se confunde com a da Volkswagen, tomou uma lavada do Bayern Munique por cinco a um. Com cinco gols marcados em apenas nove minutos pelo surpreendente Lewandowski. O deles, não o nosso.

Carro 6Fosse só isso, não daria uma crônica. O problema é bem maior e pra lá de grave. A mídia brasileira, preocupada com problemas internos, tem dado pouco espaço à catástrofe que se abate sobre a montadora alemã. Na Europa, já faz vários dias que jornais, rádio e tevê trazem, em manchete, a evolução da tragédia.

Apanhada com a boca na botija por autoridades de vigilância dos EUA, a VW foi obrigada a reconhecer ter instalado em 11 milhões(!) de carros movidos a diesel um dispositivo eletrônico secreto para fraudar controles antipoluição.

A coisa funcionava de modo sorrateiro. No momento em que o carro era submetido aos controles periódicos obrigatórios, a engenhoca emitia dados falsos que faziam crer que a emissão de poluentes estava dentro das normas americanas. Na verdade, os gases estavam muitíssimo acima da tolerância.

Carro 7O escândalo está assumindo proporções globais. O presidente do grupo, mesmo alegando ignorar a falcatrua, foi forçado a demitir-se – o que me parece consequência lógica. Se o homem sabia, é mau dirigente e tem de sair. Se não sabia, é mau dirigente e tem de sair. (Toda semelhança com situação ocorrida no Planalto terá sido coincidência fortuita e involuntária.)

O valor da ação da VW perdeu 35% em três dias. A companhia periga ser contemplada pelo fisco americano com multa bilionária: fala-se em 18 bilhões de dólares, quantia equivalente ao lucro total do grupo em 2014.

Como efeito colateral, a imagem de seriedade de toda a indústria alemã levou um arranhão. Outro efeito secundário é a confiança do consumidor na honestidade de todas as demais montadoras, alemãs ou não. Estão todos com um pé atrás. A pergunta que se faz estes dias é: «Na hora de compra seu novo carro, você compraria um Volkswagen?»

Carro 8Está aí um típico caso em que os «malfeitos» de um abalam outros que nada têm a ver com o peixe. Vale repetir que toda semelhança com acontecimentos brasileiros terá sido coincidência fortuita e involuntária.

Tem mais desgraça se despejando sobre a companhia alemã. Amanhã continuo.

O futuro é amanhã

José Horta Manzano

Estatísticas 3A Fundação Getúlio Vargas costuma sondar a opinião da população para medir seu grau de confiança nas instituições. Encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a última pesquisa acaba de sair do forno. Seus resultados serão discutidos, pelo detalhe, estes próximos dias. Enquanto isso, o Estadão deste 10 nov° publicou as grandes linhas.

A confiança dos entrevistados em 11 instituições foi testada. Apenas duas delas contam com a aprovação da maioria: as Forças Armadas e a Igreja Católica.

Os demais componentes da ossatura da sociedade não conseguiram convencer nem metade do povo. O Ministério Público, a imprensa escrita e as grandes empresas até que se saem bem, com mais de 40% de aprovação.

De corporações tais como polícia, Justiça e emissoras de tevê, dois em cada três brasileiros desconfiam. É muita gente. A desconfiança com relação ao governo federal, então, é mais grave: atinge 69% dos cidadãos!

Pesquisa 3Na rabeira, estão duas instituições. Em penúltimo lugar, o Congresso, no qual 83% dos brasileiros não depositam confiança. Fechando a fila, vêm os partidos políticos, nos quais 94%(!) dos entrevistados não botam nenhuma fé.

Esses resultados são pra lá de inquietantes. Os brasileiros que têm hoje 35 anos não conheceram a ditadura militar. Dela só têm notícias pelo que contam os mais velhos ou pelos livros de história. O passado costuma exercer fascínio especial – «ah, aqueles é que eram bons tempos».

Esses jovens, a caminho da maturidade, são os que dirigirão o País nos próximos vinte anos. Descrentes do governo, da Justiça, do Congresso e da polícia, que reviravolta imprimirão ao Brasil?

Estatísticas 1As correntes e partidos que hoje dominam a cena política nacional deveriam debruçar-se numa análise aprofundada do futuro que se prepara. Nada é eterno. O que sobe acaba descendo, mais dia, menos dia. Para evitar catástrofes anunciadas, mais vale consertar desde já o que ainda pode ser remendado.

Para fugir a um tombo brutal, os inquilinos do andar de cima devem, em seu próprio interesse, dar mais atenção às demandas daqueles que os puseram lá. Ainda há tempo, mas não muito.

Dilma cuspiu nos médicos

O dia em que a presidenta Dilma em 10 minutos cuspiu no rosto de 370.000 médicos brasileiros

Autora: Juliana Mynssen da Fonseca Cardoso
Cirurgiã-geral no Hospital Estadual Azevedo Lima, no Rio de Janeiro
CRM-RJ 822370
Publicado em 24 junho 2013

Há alguns meses eu fiz um plantão em que chorei. Não contei a ninguém (não é nada fácil compartilhar isso numa mídia social). Eu, cirurgiã-geral, “do trauma”, médica “chatinha”, preceptora “bruxa”, que carrego no carro o manual da equipe militar cirúrgica americana que atendia no Afeganistão, chorei.

Na frente da sala da sutura tinha um paciente idoso internado. Numa cadeira. Com o soro pendurado na parede num prego similiar aos que usamos para pendurar samambaias. Ao seu lado, seu filho. Bem vestido. Com fala pausada, calmo e educado. Como eu. Como você. Como nós. Perguntava pela possibilidade de internação do seu pai numa maca, que estava há mais de um dia na cadeira. Ia desmaiar. Esperou, esperou, e toda vez que abria a portinha da sutura ele estava lá. Esperando. Como eu. Como você. Como nós. Teve um momento que ele desmoronou. Se ajoelhou no chão, começou a chorar, olhou para mim e disse “não é para mim, é para o meu pai, uma maca”. Como eu faria. Como você. Como nós.

Pensei “meudeusdocéu, com todos que passam aqui, justo eu! Nãããão! Porque se chorar eu choro, se falar do pai eu choro, se me der um desafio vou brigar com 5 até tirá-lo daqui”.

E saí, chorei, voltei, briguei e o coloquei numa maca retirada da ala feminina.Interligne 28

Já levei meu pai para fazer exame no meu HU. O endoscopista, quando soube que era meu pai, disse: “Por que não me disse? Levava no privado, Juliana!” Não precisamos, acredito nas pessoas que trabalham comigo. Que me ensinaram e ainda ensinam. Confio. Meu irmão precisou e o levei lá. Todos os nossos médicos são de hospitais públicos que conhecemos, e, se não os usamos mais, é porque as instituições públicas carecem. Carecem e padecem de leitos, aparelhos, materiais e medicamentos.

Uma vez fiz um risco cirúrgico e colhi meu sangue no meu hospital universitário. No consultório de um professor, ele me pergunta: “E você confia?”

“Se confio para os meus pacientes, tenho de confiar para mim.”

Eu pratico a medicina. Ela pisa em mim alguns dias, me machuca, tira o sono, dá rugas, lágrimas, mas eu ainda acredito na medicina. Me faz bem. Com ela aprendo, cresço. E ela me torna humana. Se tenho dívidas, pago-as assim. Faço porque acredito.

Nestes últimos dias de protestos nas ruas e na mídia, brigamos por um país melhor. Menos corrupto. Transparente. Menos populista. Com mais qualidade. Com mais macas. Com hospitais melhores, mais equipamentos. E que não faltem medicamentos. Um SUS melhor.

Estetoscópio

Estetoscópio

Briguei pelo filho do paciente ajoelhado. Por todos os meus pacientes. Por mim. Por você. Por nós. O SUS é nosso.

Não tenho palavras para descrever o que penso da “presidenta” Dilma. (Uma figura que se proclama “presidenta” já não merece minha atenção.)

Mas hoje, por mim, por você, pelo meu paciente na cadeira, eu a ouvi.

Eu a ouvi dizer que escutou “o povo democrático brasileiro”. Que escutou que queremos educação, saúde e segurança de qualidades. “Qualidade…” ela disse.

E disse que importará médicos para melhorar a saúde do Brasil.

Para melhorar a qualidade?

Senhora “presidenta”, eu sou uma médica de qualidade. Meus pais são médicos de qualidade. Meus professores são médicos de qualidade. Meus amigos de faculdade. Meus colegas de plantão. O médico brasileiro é de qualidade.

Os seus hospitais é que não são. O seu SUS é que não tem qualidade. O seu governo é que não tem qualidade.

O dia em que a senhora “presidenta” abrir uma ficha numa UPA, for internada num hospital estadual, pegar um remédio na fila do SUS e disser que isso é de qualidade, aí conversaremos.

Não cuspa na minha cara, não pise no meu diploma. Não me culpe pela sua incompetência.

Somos quase 400mil, não nos ofenda. Estou amanhã de plantão, abra uma ficha, posso atendê-la. Não demora, não.

Médicos não faltam, mas não posso garantir que tenha onde sentar. Afinal, a cadeira é prioridade dos internados.

Hoje, eu chorei de novo.

República Federativa

José Horta Manzano

Você sabia?

Federal ― está aí um termo de uso corrente no Brasil. Pacto federal, Polícia Federal, Tribunal Federal, Câmara Federal. Alguns filhotes também estão na língua do dia a dia: federação do comércio, federação de esportes, federação estudantil. Mas de onde, diabos, vem essa palavra?

Já no sânscrito, etimólogos identificam a raiz bandh, com significação de ligar. O radical chegou ao grego antigo sob a forma feithê e, daí, passou ao latim como fides. Nessa altura já havia assumido o sentido de fé, confiança.

Com o passar dos séculos, a família foi crescendo e se multiplicando, como mandam as Escrituras. Mas o significado pouco evoluiu. Continua expressando a fé, a confiança entre pessoas ou conjuntos de pessoas. Uma federação é um grupo em que uns confiam nos outros e todos miram a um objetivo comum.

Confiar, desafiar, perfídia, confidência, fiança, fiador, fiel, fidelidade são da mesma família. Quem vende fiado, vende na confiança.

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A Confederação Helvética ― nome pomposo da Suíça ― divide-se em cantões, correto? Não, caros leitores, não é bem assim. A Confederação Suíça não se divide em cantões, mas é formada por eles. Como assim, que diferença faz?

Diferentemente da idéia que temos no Brasil, segundo a qual o País se divide em unidades mais ou menos estáveis, a Confederação Suíça foi formada pela agregação paulatina de novos estados. As unidades já existiam antes de se juntarem ao grupo.

Tudo começou mais de 700 anos atrás, quando três pequenos territórios se uniram no intuito de defender-se mutuamente de predadores externos. Uma espécie de «unidos, venceremos», ideia avançada para a época. Aconteceu na Idade Média, exatamente em 1291, reza a História.

Suisse

Suíça – Confederação Helvética

A partir de então, vendo que a união podia realmente fazer a força, outros pequenos territórios foram, pouco a pouco, solicitando sua adesão à federação. Que tenha sido em razão de perseguição religiosa ou por algum outro interesse comercial ou estratégico, outras pequenas províncias foram aderindo ao agrupamento inicial.

Não aconteceu da noite para o dia. Mais de 500 anos separam o pacto entre os três cantões e os últimos a se juntarem ao grupo. Um detalhe interessante: em listagens e estatísticas suíças oficiais, os cantões não aparecem em ordem alfabética. São sistematicamente relacionados na ordem de entrada na Confederação.

Como em toda família que se preze, desavenças também ocorreram por aqui. Em alguns casos, razões de ordem religiosa ou linguística fizeram que cantões se desentendessem e acabassem se subdividindo. Mas nem por isso abandonaram a federação.

Jamais aconteceu de a autoridade central decretar a subdivisão de cantões. A iniciativa sempre partiu do nível local para ser, em última instância, referendada pelos outros membros da confederação.

A última refrega é relativamente recente. O Cantão de Berna, dono de grande território ― para os padrões suíços, naturalmente ― conta com população majoritariamente de língua alemã e com uma minoria de francofalantes. Os de fala francesa, que, ainda por cima, são católicos, diferentemente da maioria protestante, reivindicaram durante séculos sua autonomia.

A coisa foi sendo cozinhada em água morna até que ferveu no século XX. A região chegou até a conhecer espantosos atentados terroristas! Bem, não há que imaginar homens-bomba explodindo em plena multidão, nada disso. Um ou outro artefato arrebentou alguma estátua, na calada da noite, sem que ninguém fosse atingido.

Nos anos 70, Berna finalmente concordou em organizar um plebiscito nos distritos de fala francesa para permitir que a população se pronunciasse. Em 1974, a maioria dos distritos se pronunciou pela separação. Outros preferiram continuar a fazer parte do Cantão de Berna.

Por sorte, os distritos que votaram pela autonomia formavam um território contínuo. Como havia sido combinado, ganharam o direito a formar um novo cantão. Faltava ainda ver se os cidadãos da Confederação aceitavam o novo membro. O povo se pronunciou favoravelmente. Ufa! Em 1978 nasceu, assim, o último cantão suíço. Chama-se Jura.

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No Brasil, fala-se frequentemente em subdividir estados. Aliás, a teoria já foi posta em prática algumas vezes no século passado. Taí uma visão enviesada da ideia de federação. Criar novos estados sem que haja uma real demanda da população contraria o figurino.

Faz ano e meio, escapamos por pouco de ver o Pará fragmentado em unidades menores. Numa república federativa que se preze, tentativas assim não fazem sentido. O anseio pela independência deve vir de baixo para cima. Não é o que acontece no Brasil.

A fé e a confiança têm de nortear decisões graves como essa. Uma federeção não é criação artificial decidida por um poder central. Pelo contrário, é um agrupamento voluntário de unidades autônomas ou semiautônomas. Tudo isso não foi feito para satisfazer a interesses particulares deste ou daquele clã.

Há uma alternativa: é rasgar a Constituição atual, votar uma nova, eliminar a palavra federativa do nome da República e anular a autonomia dos Estados. Teremos então, como a França e tantos outros países, uma república unitária, na qual o poder emana unicamente da autoridade central. Aí, sim, estaremos entendidos.

Não é proibido, evidentemente. Mas não acredito que seja o anseio maior dos brasileiros.