Myrthes Suplicy Vieira (*)
Se vivo estivesse e se acionado fosse para nos ajudar a interpretar o cenário brasileiro atual, Sigmund Freud estaria intensamente atarefado por estes dias. Além dos múltiplos atendimentos no divã particular, provavelmente estaria às voltas com um sem número de convites para palestras e aulas magnas nas principais universidades do país.
Sa correspondência com Albert Einstein estaria ainda roubando preciosos minutos de seu tempo, assim como consultas a livros de mitologia, sociologia, antropologia e religião para tentar responder às questões agudas propostas pelo pai da Relatividade, pertinentes à psicologia das massas e aos tempos de crise na civilização. Freud seria forçado a sair de sua área de especialidade para fazer eco ao alerta de Einstein de que “é reduzido o número daqueles que veem com os próprios olhos e sentem com o próprio coração, mas da sua força dependerá que os homens tendam ou não a cair no estado amorfo para onde parece caminhar hoje uma multidão cega”. Mesmo assim, o velho Freud talvez vibrasse com sua sábia conclusão de que “não podemos desesperar dos homens, pois nós próprios somos homens”.
Se aos dois se juntasse ainda Jean-Paul Sartre, é provável que as conversas sobre nossa inexorável condenação ao inferno da convivência humana e suas tentativas de explicação de nosso sem-destino existencial varassem as madrugadas e durassem semanas.
Uso abusivo de sofismas, atos falhos, lapsos de linguagem, crises de histeria individual e coletiva, mania de perseguição baseada em tramas rocambolescas que dariam inveja aos mais renomados novelistas de costumes, apego à vitimização, personagens megalômanos, psicopatas e sociopatas, compulsão no uso de palavras de ordem, obsessão por temas políticos e judiciais, voluntarismo no desejo de implementação de mudanças, manipulação afetiva e chantagem emocional para atrair aliados, comportamento de horda, etc. – experimentamos em nossa pele a cada novo dia todo um tratado de psiquiatria, psicanálise e psicologia. Tudo isso sem mencionar três síndromes preocupantes: a de Rei Sol ou síndrome Luís XIV (“L’État c’est moi”) e a síndrome de Luís XV, o Amado (“Aprés moi, le déluge”) que grassam entre os governantes, assim como a Síndrome de Estocolmo que se dissemina entre a parcela desassistida da população.
Ésquilo, dramaturgo da Grécia antiga, já havia nos advertido pioneiramente que, em tempos de guerra, a primeira vítima é sempre a verdade. E foi além, penetrando um pouco mais nos meandros do conturbado psiquismo humano: “Falseando a verdade, a maioria dos homens prefere antes parecer a ser”.
Nietzsche certamente se apressaria em juntar forças com esses pensadores para agregar que “aquele que se sabe profundo esforça-se por ser claro; aquele que gostaria de parecer profundo à multidão esforça-se por ser obscuro… porque a multidão acredita ser profundo tudo aquilo de que não consegue ver o fundo”. Sem dúvida, um poderoso consolo para todos nós que assistimos assoberbados ao presente festival de esgrima verbal, com proliferação de sofismas e atos falhos.
O dicionário pode nos socorrer para entendermos as motivações em curso:
Sofisma
Argumento ou raciocínio concebido com o objetivo de produzir a ilusão da verdade que, embora simule um acordo com as regras da lógica, apresenta na realidade uma estrutura interna inconsistente, incorreta e deliberadamente enganosa; argumentação capciosa, concebida com a intenção de induzir em erro, o que supõe má-fé por parte daquele que o apresenta.
Ato falho
Fenômeno descrito por Sigmund Freud, que se caracteriza por erro na fala, na escrita, na memória ou numa ação física, que permite inferir a existência de desejo reprimido, e a respeito do qual não se pode dizer, portanto, que tenha ocorrido acidentalmente por distração ou cansaço; formação de compromisso entre o inconsciente e o consciente.
Cabe a cada um dos que me leem elencar os casos mais emblemáticos e seus exemplos favoritos em cada uma dessas categorias. Mas, reflitamos um pouco, o que é preciso fazer para colocar um ponto final nessa fase de involução civilizatória e curar nossas doenças anímicas?
Depois de muito pensar, tenho a propor uma solução salomônica: vamos dividir o Brasil ao meio e entregar cada parte a um dos lados da disputa. O objetivo desse novo Tratado de Tordesilhas será, é claro, identificar quem ama mais sua pátria e quem veste melhor o uniforme de estadista. A divisão poderá ser feita horizontalmente, fixando a linha de fronteira por exemplo na altura de Brasília, ou verticalmente, usando a mesma referência. Uma Assembleia Constituinte será naturalmente convocada fora do Congresso, contando com a ajuda especializada de intelectuais de todos os matizes ideológicos para a elaboração das novas cartas magnas. Através de plebiscito, a população escolherá as novas formas de governo e de representação política apresentadas pelos sábios da nação. Aos poucos, definiremos também as formas de convivência mais satisfatórias entre o Brasil do Norte e o Brasil do Sul (ou Brasil do Leste e Brasil do Oeste) e construiremos novos laços com outros países. A definição da moeda, da língua nacional e da preferência por um estado laico ou religioso em cada novo país serão outras preocupações na sequência.
Pensando bem, a principal desvantagem dessa linha de raciocínio é que, além de dar um trabalho danado para recomeçar do zero, continuaríamos divididos. A favor de minha proposta, só o alívio que sentiríamos todos com a reconceituação daquilo em que consiste nossa cidadania.
(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.