Eletricidade

Independência energética – 1
Faz uma semana, foi inaugurado o mais longo cabo submarino de transmissão de eletricidade. Com seus 720km de comprimento, liga a Grã-Bretanha à Noruega, e custou uma fortuna. Segundo o anúncio oficial, “os dois reinos podem, a partir de agora, compartilhar suas energias renováveis”.

Num momento em que o preço mundial do gás está nas alturas, a novidade é bem-vinda. A troca de eletricidade funciona de modo singular. Quando venta forte na Inglaterra (país onde o que não falta é vento), as turbinas eólicas giram a todo vapor. Nessas horas, a produção de eletricidade é superior ao consumo. Como ensinou doutora Dilma, não é possível estocar vento. Nessas horas de superprodução, o cabo serve para exportar eletricidade para a Noruega a preços de liquidação. Na Noruega não venta tanto.

Enquanto consome a eletricidade inglesa, a Noruega deixa que a chuva e o derretimento da neve encham suas barragens. Assim que estão cheias e de novo prontas para produzir energia, é hora de fazer o caminho inverso. O excesso vai, pelo mesmo cabo, para a Grã-Bretanha, levando força e luz a precinho camarada. Na Grã-Bretanha, a topografia não permite a construção de barragens importantes.

O sistema é um achado. É daquele tipo de ideia que a gente se pergunta por que não pensaram antes.

 

 

Independência energética – 2
Na semana que passou, foi inaugurado o maior parque solar do estado de São Paulo. Construído por uma empresa de origem portuguesa, é o quinto entre os maiores parques brasileiros. Situado às margens do Rio Tietê, no oeste do estado, necessitou investimento de 750 milhões de reais e gera energia suficiente para suprir as necessidades de 750 mil pessoas.

Fazendo as contas, dá 1000 reais por habitante. É uma quantia que, no final, não me parece elevada, tendo em vista os benefícios. Se, por hipótese, se decidisse produzir energia solar suficiente para os 200 milhões de brasileiros, seria necessário investir 200 bilhões de reais – o que não me parece exagerado. (Com os bilhões constantemente surrupiados do Tesouro Nacional, daria pra cobrir o território nacional de parques solares. Rapidinho.)

É claro que meu devaneio é teórico, pois há que pensar ainda na transmissão da energia gerada. Há que lembrar ainda que, na hora de consumir energia, certas indústrias são bem mais gulosas. Por seu lado, não se pode esquecer que já existe uma rede instalada de produção de eletricidade.

Tendo em mente que gás e petróleo são fontes de energia fadadas a sumir do cardápio dentro em breve, está mais que na hora de decidir o caminho a seguir quando a energia fóssil estiver aposentada.

Em teoria, o Brasil é um país que não precisava usar nem uma gota de petróleo nem de gás. Para extrair energia solar, temos sol o ano inteiro – o que nem sempre ocorre em outros lugares.

Quanto à água, se sobrar alguma depois que Bolsonaro passar, poderemos continuar explorando a energia hidroelétrica.

Embora não possa ser estocado (Doutora Dilma dixit), temos muito vento. Não dá pra guardar vento no bolso, mas dá pra conservar energia em baterias, por exemplo.

Nosso país tem tudo o que precisa pra abandonar toda fonte de energia fóssil. Tenho certeza de que o caminho é esse. Por enquanto, está um pouco complicado, mas assim que o capitão desaparecer e deixar de atrapalhar, vamos dar passos largos na boa direção.

Os velhinhos da ponte

José Horta Manzano

Pontus e Ola Berglund são gêmeos idênticos, tão parecidos que a gente tem dificuldade em saber quem é quem. Têm 73 anos. Nasceram e foram criados em Gotemburgo, a segunda cidade mais populosa da Suécia. Moram a pouca distância um do outro, questão de meia hora de carro, com uma peculiaridade: um mora na Suécia e o outro na Noruega – separados por uma fronteira.

Esse detalhe nunca os impediu de se ver, visto que fronteira, naquela região do mundo, não é empecilho. Os gêmeos sempre foram muito ligados. Faz tempo que mantêm o hábito de se encontrar uma vez por semana, ora na casa de um, ora na do outro. Desde que se divorciou, Ola se sente muito sozinho e aprecia particularmente esses encontros com o irmão.

No entanto, quando surgiu a pandemia, as regras de passagem da fronteira endureceram e os dois não puderam mais se visitar. Foi quando tiveram a ideia de continuar os encontros semanais com uma pequena diferença: não se encontrariam mais na casa de um ou de outro, mas na fronteira.

Faz mais de um ano que os irmãos se encontram assim. Todas as sextas-feiras às 11h da manhã, chova ou faça sol, os dois se dirigem à velha ponte que liga a Suécia à Noruega e que passa por cima de um dos inúmeros fiordes daquela costa acidentada. Caminham até o meio da ponte e cada um se posiciona a um metro de distância da linha traçada no asfalto marcando a fronteira entre os dois países.

Dessa forma, matam dois coelhos com uma só cajadada: respeitam a proibição de atravessar a fronteira e obedecem à regra de manter dois metros de distância um do outro. Cada um desdobra sua cadeira portátil, sentam-se ambos e passam um bom tempo batendo papo e refazendo o mundo. Lá pelas tantas, cada um tira da mochila sua garrafa térmica, seu sanduíche, e… é hora do lanche.

Os raros carros que passam são conduzidos por motoristas munidos de autorização especial. Às vezes, nossos gêmeos são confundidos com guardas de fronteira, o que os diverte muito. Depois de um ano desse ritual, os dois já estão conhecidos na região. Tem gente que vem só pra conhecer de perto os dois velhinhos da ponte.

Depois do divórcio, Ola vive sozinho na sua cidadezinha norueguesa. Indagado se não lhe fazia falta um contacto físico, um abraço no irmão, respondeu que sim, falta fazia. Mas, quando a vontade aperta, dá um abraço em si mesmo. “Afinal, somos idênticos!”

Arca de Noé vegetal

José Horta Manzano

Você sabia?

Uma dúzia de anos atrás, numa gelada ilha norueguesa localizada nas cercanias do Polo Norte, foi inaugurado o maior depósito de sementes do planeta. Seu nome em inglês é Svalbard Global Seed Vault ‒ Silo Global de Sementes, situado no arquipélago de Svalbard.

O ambicioso projeto, posto em marcha por iniciativa conjunta dos governos escandinavos, tem agregado apoio de outros países e da iniciativa privada. A Fundação Bill & Melinda Gates dá patrocínio significativo. Uma vintena de países também contribui ‒ o Brasil entre eles.

Entrada do Silo Global de Sementes, em Svalbard

A ideia é antiga. De fato, já existem, espalhados pelo globo, numerosos pequenos bancos de sementes. No entanto, cada um deles está especializado num tipo limitado de espécies, com vistas a preservar o patrimônio regional. O projeto norueguês é mais ousado: visa a reunir sementes de todas as plantas que crescem no planeta, com foco especial nas espécies que servem de alimento ao homem.

De propósito, o sítio de estocagem foi escolhido numa região de clima extremamente frio. Escavado numa colina, o «banco» fica a 120m de profundidade. A temperatura gira constantemente entorno de 18° abaixo de zero, exatamente como num congelador. Sem necessidade de compressor, naturalmente.

O intuito é salvaguardar todas as variedades vegetais que compõem a alimentação humana em todos os pontos do planeta. Catástrofes naturais, enchentes, incêndios florestais, guerras, contaminação química ou atômica podem levar certas culturas à extinção. Daí a utilidade do silo global. Ele está para a vegetação terrestre como um “backup” está para o computador.

Longyearbyen, povoado mais importante do arquipélago
clique para ampliar

Atualmente, o silo já armazena mais de um milhão de variedades vegetais, provenientes de todos os cantos do mundo. As sementes não duram eternamente. O tempo de armazenamento pode variar, mas não é ilimitado. As mais frágeis têm de ser renovadas a cada 50 anos, antes de perder a fertilidade. As mais resistentes podem ser estocadas por cinco mil anos ou até mais. Assim mesmo, para maior garantia, o silo norueguês tenciona renovar o estoque de cada espécie a cada vinte ou trinta anos.

Antes do que se imaginava, o sistema já mostrou sua utilidade. A guerra que tem sacudido a Síria estes últimos anos matou gente, destruiu cidades e acabou com plantações. As regiões onde os embates se acalmaram pretendiam voltar a cultivar a terra castigada, mas faziam falta sementes de espécies desaparecidas. Foram acudidos pelo silo global.

Foi a primeira demonstração prática da utilidade do banco vegetal. Oxalá fosse a última.

Artigo publicado originalmente em 14 março 2018.

Sanção econômica

José Horta Manzano

Antigamente, a gente dizia bloqueio ou embargo. Hoje, a expressão é mais sexy: ‘sanções econômicas internacionais’. Trocado em miúdos, dá na mesma: é chantagem que não diz seu nome. Manda quem pode; quem não pode, obedece. Quando um país não se comporta como manda o figurino, está se arriscando a sofrer sanções econômicas, que durarão enquanto o malcomportado não se emendar.

O mundo se acostumou a ver esse tipo de arma ser sacada principalmente por razões políticas. É o caso de Cuba, que está sob embargo americano há quase sessenta anos. Coreia do Norte e Irã também estão na berlinda, só que por outra razão: a comunidade internacional não quer que eles continuem fabricando as armas nucleares que eles insistem em desenvolver.

A Rússia é outra que enfrenta sanções por se ter apoderado da Crimeia. O território anexado por Moscou é uma península populada por russos, que foi tradicionalmente russa por séculos. Aquela terra só se tornou ucraniana nos anos 1950, quando o líder soviético Kruchev – um ucraniano – a entregou de mão beijada à Ucrânia.

Todos esses países cometeram algum pecado que a sociedade não está disposta a aceitar. Sanção econômica é medida vistosa, de efeito psicológico garantido, mas de pouca eficácia na resolução dos problemas. Haja vista a gerontoditadura cubana que, apesar de mais de meio século de embargo, continua de pé. O mesmo se pode dizer do Irã dos aiatolás e da Coreia do Norte. Da Rússia, então, nem se fala. Sanção costuma doer no bolso, mas não é garantia de acabar com os males que pretende combater.

Noruega: criação de salmão

Um grande fabricante de calçados, dono de marcas como Timberland e outras, anunciou a suspensão de compra de couro brasileiro. A regra permanecerá em vigor até que haja razoável certeza de que o couro utilizado não está contribuindo para o agravamento do dano ambiental ao país. É notícia da pesada! O comunicado da empresa abalou ânimos em Brasília e chegou ao Planalto. A partir daí, não está claro o que aconteceu, o que se sabe é que o anúncio de suspensão foi… suspenso. Algo do tipo ‘desculpem a nossa falha’.

Sente-se que, por detrás, pressão forte há de ter sido exercida. Daí o recuo do fabricante de calçados. Mas deixe estar que o problema continua a se alastrar. Por sua vez, o maior produtor mundial de salmão, uma firma norueguesa, fez uma ameaça. Anunciou que cogita suspender compra de soja do Brasil. Sabendo que esse produto é amplamente utilizado nas ‘fazendas’ de criação de salmão, a suspensão de compra periga fazer estrago grande. Como no caso da Timberland, o reclamo da norueguesa liga-se ao desleixo do Brasil com a preservação da natureza.

Se doutor Bolsonaro persistir em ofender, insultar e dar trombada em líderes mundiais e, ainda por cima, a se lixar para a preservação ambiental, é provável que, dentro de muito pouco tempo, o Brasil se torne um grande Irã, sancionado economicamente pelos compradores mais importantes. A perda pode ser duradoura: quando um cliente deixa de comprar nossos produtos e vai se abastecer em outra fonte, surge o risco de ele nunca mais voltar.

Se o distinto leitor tem o número de telefone de doutor Bolsonaro, seu dever patriótico é alertá-lo do perigo.

O Brasil à beira de sofrer sanções econômicas! Quem diria…

Ignorantões

José Horta Manzano

Confirmando que o alto escalão da República continua nadando de braçada na arrogância que só a ignorância permite, doutor Bolsonaro reeditou uma fala já soltada em novembro passado por aquele seu ministro que tem nome de pedra semipreciosa.

Na época, o time presidencial tinha ficado ressentido por causa de um comentário feito por uma ONG norueguesa sobre a destruição que aniquila o que resta de nossa cobertura vegetal. Doutor Onyx disse então que, em matéria de preservação ambiental, o Brasil não tinha nada a aprender com a Noruega, país que já tinha destruído todas as florestas. Santa ignorância! Logo a Noruega, um dos países mais verdes da Europa!

Chamada do Portal BR18 (Estadão) – 4 julho 2019

Desta vez, foi o próprio presidente da República. Se contar, ninguém acredita. Durante café da manhã tomado com parlamentares hoje de manhã, doutor Bolsonaro saiu-se com esta: «Sobrevoei a Europa, já por duas vezes, e não encontrei 1km2 de floresta». De novo: santa ignorância!

Europa: cobertura florestal
crédito: jakubmarian.com

Está aqui um mapa que mostra, em verde, as regiões da Europa que têm mais de 15% do território coberto de floresta. Além dessas zonas, há quantidade de outras onde a cobertura florestal existe, mas não atinge 15%. Há trechos de floresta por toda parte. Daqui de casa, por exemplo, avisto floresta pelas janelas de um lado e de outro do imóvel. E olhe que vivo em zona densamente construída!(*)

Em torno da mesa desse café da manhã presidencial deviam ser todos broncos, tanto quem falava quanto quem ouvia e achava graça. Mapeamentos feitos por peritos valem mais do que ‘dois sobrevoos’ do continente.

Mas que gente é essa?

(*) A Suíça e outros países europeus contam com técnicos especializados em preservação da floresta. São a versão moderna do antigo lenhador, aquele que ia buscar lenha no mato. Os de hoje são funcionários contratados pela administração local. Com formação em botânica, examinam as árvores e dão instruções aos operários para abater aquelas que chegaram ao fim da vida ou que estão doentes. Uma floresta tem de ser vigiada, saneada, observada, cuidada.

Além de ser homem de poucas letras, nosso presidente tem assessores fracos, mancos e zarolhos. O resultado é esse aí: desastroso.

Lorenzoni e a Mata Atlântica

José Horta Manzano

Doutor Bolsonaro precisa nomear, com urgência, um porta-voz. Ainda deslumbrado pelo sucesso nas urnas, o entourage do presidente eleito tem ido ao pote com muita sede e já dá sinais inquietantes de embriaguez. A vaidade de quem se vê de súbito num palco iluminado está contaminando a fala do primeiro círculo e poluindo a comunicação.

O doutor tem de mostrar quem é que manda no barraco. Entre o general vice, o primeiro-filho, o ministro da Justiça designado e o coordenador-geral da transição, reina a cacofonia. Não se passam dois dias sem que um deles dê declaração-bomba, daquelas que fazem a delícia da imprensa e semeiam desconforto na população.

BR18 – Estadão
clique para ampliar

A mais recente vem de doutor Lorenzoni, importante peça no tabuleiro, atual coordenador da transição de governo. Em declaração dada ontem, passou um pito nos noruegueses e incitou-os a «aprender com o Brasil». A briga é com ONGs ambientais que cuidam da floresta tropical. Irritado, doutor Lorenzoni acusou a Noruega de não ter preservado suas florestas, enquanto o Brasil «preservou a Europa inteira, mais cinco Noruegas».

Mata Atlântica em 1500 e atualmente: restam 8%
crédito: planetabiologia.com

Melhor seria se tivesse guardado a língua no bolso. Falar sabendo é uma coisa, falar sem saber e ainda de modo debochado é o fim da picada. Aqui acima, está um mapa da Mata Atlântica. Compara a floresta que os primeiros europeus encontraram em 1500 com o que resta atualmente. Conseguimos aniquilar 92% da cobertura. Isso é que é preservação!

Aqui abaixo vai um mapa da cobertura florestal da Europa atualmente. É fácil constatar que os países escandinavos ‒ Noruega incluída ‒ são justamente os mais verdes, os que melhor preservaram suas florestas.

Europa: cobertura florestal
crédito: jakubmarian.com

O falatório no seio da equipe de doutor Bolsonaro está ensurdecedor. O fato de falarem todos ao mesmo tempo já é irritante. Se, além de falarem junto, ainda proferem besteiras, é caso de polícia.

Arca de Noé vegetal

José Horta Manzano

Você sabia?

Dez anos atrás, numa gelada ilha norueguesa localizada nas cercanias do Polo Norte, foi inaugurado o maior depósito de sementes do planeta. Seu nome em inglês é Svalbard Global Seed Vault ‒ Silo Global de Sementes, situado no arquipélago de Svalbard.

O ambicioso projeto, posto em marcha por iniciativa conjunta dos governos escandinavos, tem agregado apoio de outros países e da iniciativa privada. A Fundação Bill & Melinda Gates dá patrocínio significativo. Uma vintena de países também contribui ‒ o Brasil entre eles.

Entrada do Silo Global de Sementes, em Svalbard

A ideia é antiga. De fato, já existem, espalhados pelo globo, numerosos pequenos bancos de sementes. No entanto, cada um deles está especializado num tipo limitado de espécies, com vistas a preservar o patrimônio regional. O projeto norueguês é mais ousado: visa a reunir sementes de todas as plantas que crescem no planeta, com foco especial nas espécies que servem de alimento ao homem.

De propósito, o sítio de estocagem foi escolhido numa região de clima extremamente frio. Escavado numa colina, o «banco» fica a 120m de profundidade. A temperatura gira constantemente entorno de 18° abaixo de zero, exatamente como num congelador. Sem necessidade de compressor, naturalmente.

O intuito é salvaguardar todas as variedades de vegetais que compõem a alimentação humana em todos os pontos do planeta. Catástrofes naturais, enchentes, incêndios florestais, guerras, contaminação química ou atômica podem levar certas culturas à extinção. Daí a utilidade do silo global. Ele está para a vegetação terrestre como um “backup” está para o computador.

Longyearbyen, povoado mais importante do arquipélago
clique para ampliar

Ao comemorar dez anos de existência, o silo já armazena mais de um milhão de variedades vegetais, provenientes de todos os cantos do mundo. As sementes não duram eternamente. O tempo de armazenamento pode variar, mas não é ilimitado. As mais frágeis têm de ser renovadas a cada 50 anos, antes de perder a fertilidade. As mais resistentes podem ser estocadas por cinco mil anos ou até mais. Assim mesmo, para maior garantia, o silo norueguês tenciona renovar o estoque de cada espécie a cada vinte ou trinta anos.

Antes do que se imaginava, o sistema já mostrou sua utilidade. A guerra que tem sacudido a Síria estes últimos anos matou gente, destruiu cidades e acabou com plantações. As regiões onde os embates se acalmaram pretendiam voltar a cultivar a terra castigada, mas faziam falta sementes de espécies desaparecidas. Foram acudidos pelo silo global.

Foi a primeira demonstração prática da utilidade do banco vegetal. Oxalá fosse a última.

Bandeiras secretas

José Horta Manzano

Você sabia?

Antes de 1994, quando ainda vigorava o regime de segregação racial conhecido como apartheid, a África do Sul ainda se sentia próxima dos tempos coloniais. A população branca segurava firme as rédeas do poder mas, assim mesmo, pairava no ar a pouco agradável impressão de estar vivendo em terra alheia. A prova é que a bandeira do país guardava três bandeirinhas «de reserva» bem na faixa branca central. Embora já fosse independente, o país tinha dificuldade em desgrudar das origens britânica e neerlandesa.

Antiga bandeira da África do Sul. Foi substituída pela atual em 1994.

Com a eleição de Nelson Mandela à presidência e a transição miraculosamente pacífica que se seguiu, o regime mudou, o apartheid foi para o museu e a bandeira, naturalmente, foi redesenhada.

Hoje em dia, poucos são os países cuja bandeira guarda inserida uma bandeirinha «de lembrança». Esse fenômeno é frequente com pequenos territórios britânicos que vivem em regime de semi-independência.

Há uma bandeira, no entanto, que leva nada menos que oito bandeirinhas ocultas, como num jogo de esconde-esconde. É a elegante bandeira da Noruega. Como os demais países escandinavos, ostenta a cruz viking.

Bandeira da Noruega e as oito bandeiras escondidas.

Apesar da aparência relativamente simples, uma observação mais atenta revelará oito bandeiras nacionais mimetizadas, como naqueles quebra-cabeças que desafiam a «encontrar o coelho».

Há mais casos de bandeiras ocultas dentro de outras. Há que prestar atenção: quem procura, acha. Todavia, uma coisa é certa: nosso lindo pendão da esperança não se aninha dentro de nenhum outro.

Crédito
A descoberta das bandeiras ocultas dentro do pendão norueguês se deve à perspicácia do blogueiro espanhol Diego González.

Rain forest

José Horta Manzano

Doutor Temer visitou a Noruega esta semana. O porquê da viagem não ficou suficientemente claro. Terá havido alguma razão específica, mas ignoro qual seja. A mídia brasileira não deu grande importância à vilegiatura presidencial. O mais comentado foi a gafe cometida pelo doutor ao declarar diante de microfones que estava para se encontrar com o rei da Suécia. (Na verdade, ia ser recebido pelo rei Harald, da Noruega.)

Primeira-ministra deixa claro que, caso o desmatamento no Brasil aumente de novo, a ajuda norueguesa será cortada.
Chamada do jornal Adresseanvisen, Oslo.

Mais do que irritar os anfitriões, esse tipo de deslize faz sorrir e mostra ignorância do hóspede. Volta e meia acontece. Lembro-me quando o presidente americano Ronald Reagan, de visita ao Brasil, levantou um brinde de agradecimento ao governo da Bolívia. Ponha-se na conta do despreparo do discursante e adicione-se uma pitada de cansaço e de defasagem horária. Não é o fim do mundo.

Já a primeira-ministra norueguesa pronunciou crítica azeda à corrupção no Brasil. Mas isso faz parte do jogo de cena. De qualquer maneira, o Brasil ‒ assim como os demais países da América Latina ‒ são vistos como corruptos, pelo menos do ponto de vista escandinavo. Ainda que, por um milagre, nossos governantes se transformassem subitamente em arcanjos, os povos daquelas bandas levariam muito tempo pra se convencer. Os clichês têm vida longa.

O problema maior levantado pela primeira-ministra e repercutido por manifestantes nas ruas foi outro. A preocupação mais aguda é o desmatamento que continua, impávido e impune, na Amazônia. A cabeça de um nórdico não concebe que empreiteiros botem abaixo extensas áreas de floresta úmida sem que ninguém os impeça e sem que nenhuma punição lhes seja infligida. O Brasil tem território vasto, é verdade, mas os modernos meios de observação permitem vigilância permanente. Nada escapa ao olho de lince de um satélite. Se nenhuma ação é tomada contra os infratores, é porque aí tem coisa.

Oslo: manifestação durante visita de doutor Temer

O resultado é que o governo norueguês, chateado, vai cortar pela metade a ajuda de milhões de coroas que dava ao Brasil todos os anos para cuidar melhor do patrimônio florestal. Há que entender que fornecem esse auxílio não por serem bonzinhos mas por entenderem que a extinção das florestas tropicais será catastrófica para o clima do planeta inteiro ‒ inclusive o deles.

Caso o Brasil não dê um basta ao desmatamento, Oslo periga fechar definitivamente a torneirinha de dólares a partir do ano que vem. A gente acaba se convencendo de que deve haver extraordinários interesses ocultos por detrás da impunidade de desmatadores. Como contraponto à Lava a Jato, está na hora de instalar uma Serra a Jato.

Viagem à Rússia

José Horta Manzano

Doutor Temer está de viagem para longe. Vai visitar a Noruega e a Rússia, países vizinhos, ambos a dois passos do Polo Norte. O que é que há de comum entre eles? Bem, tirando a fronteira de pouco mais de 200km, a característica mais saliente é que são ambos grandes produtores de petróleo. O objetivo oficial da visita presidencial resume-se a vagas ‘tratativas comerciais’. O detalhe não foi explicado tim-tim por tim-tim.

Não dá pra acreditar que o presidente de um país cuja maior empresa petroleira tem sido tão maltratada vá dar lições de administração àqueles brancos de olhos azuis. A empresa Gazprom, gigante do petróleo russo, vai bem apesar da corrupção que, dizem, é imensa. Os russos devem ser mais competentes em matéria de rapina. Tiram o leite sem matar a vaca.

Há outro motivo que está atraindo muitos visitantes à Rússia estes dias. Está-se desenrolando lá a Copa das Confederações, aquela que se disputa um ano antes da Copa do Mundo. O Brasil não participa, dado que o representante da América do Sul é o Chile. Isso explica o desinteresse da mídia nacional pelo evento. Será nosso presidente fervoroso amante do futebol? Será que sua paixão pela bola rolando o levaria a deixar o conforto de Brasília pela poltrona de um estádio? Difícil acreditar.

Dança cossaca

Doutor Temer saiu ameaçando processar aquele atrevido que o denunciou, o moço de nome simplório e sobrenome pio. «Me segura, que eu bato!» ‒ parecia dizer, à espera da turma do deixa disso. Como é curioso… Faz mais de um mês que veio a público a ousada gravação feita na calada. O Brasil inteiro ficou sabendo. Naquele momento, a resposta presidencial não passou de um desmentido. Foi veemente e vigoroso, mas não passou disso.

Todo cidadão que se considera injuriado, difamado ou caluniado costuma tomar providências jurídicas imediatas. Doutor Temer não tomou nenhuma. Passado um mês, sai para um passeio escandinavo-siberiano de uma semana deixando no ar a ameaça: «Ainda vou processar aquele indivíduo!»

Por que não o fez até hoje? Há de ser porque Temer teme. Num processo dessa natureza, certos podres não revelados antes perigam vir à tona. Melhor não abrir processo antes de combinar com os russos. Talvez seja justamente essa a razão da viagem a Moscou: combinar com os russos.

Novo hino

José Horta Manzano

Você sabia?

A história do hino nacional suíço é tão movimentada como a história do país. Imagine só: até 1961, a melodia era a mesma do hino britânico. Não cheguei a assistir pessoalmente, mas imagino que a execução dos hinos antes de encontros esportivos internacionais havia de ser um momento histriônico.

Num jogo entre Suíça e Reino Unido, bastava tocar o hino uma vez só. Os britânicos cantariam «God save the Queen» enquanto os helvetos entoariam «Rufst du, mein Vaterland» (ou «Ô monts indépendants», conforme a língua do freguês).

Suisse 16Quando o hino suíço começou a se difundir pelo país, em meados do século XIX, o fato de dois países usarem a mesma melodia não tinha tanta importância. Aliás, a melodia do hino britânico ‒ cujo autor não se conhece com certeza ‒ foi ou ainda é utilizada em numerosos outros cânticos nacionais, oficiais ou reais.(*)

Em 1961, o governo federal abandonou o hino antigo e adotou um canto provisório. Foi promovido ao estatuto de Cântico Suíço e está em vigor até hoje. A adoção de uma música definitiva foi adiada. Agora, meio século depois, a hora chegou.

Em 2014, foi lançado um concurso para a escolha de novo hino. As condições, bastante restritivas, exigem que a nova melodia lembre a antiga. Além disso, a letra tem de ser calcada na mensagem contida no preâmbulo da Constituição do país. Não sobra muita margem para inventar moda.

Das 208 composições inscritas, as seis finalistas acabam de ser publicadas na rede. Todos os residentes no país estão convidados a visitar o site oficial e votar em sua preferida. Das seis, sairão as três finalistas. Todos votarão de novo, e a grande vencedora será anunciada em 12 set°, considerado dia aniversário da fundação da Suíça moderna.

Suisse 17Caso o distinto leitor tenha curiosidade em conhecer as seis classificadas, pode clicar aqui. Dado que o país tem quatro línguas nacionais, cada hino conta com quatro versões: alemã, francesa, italiana e romanche. Para mudar de língua, clique na janelinha que aparece no canto superior direito da página.

O planeta está morrendo de impaciência de conhecer o vencedor. Vai ser difícil esperar até setembro.

Interligne 18b

(*) A melodia do «God save the Queen» foi (ou ainda é) adotada em outros países:

Alemanha ‒ hino do império até 1918
Liechtenstein ‒ hino nacional até hoje
Noruega ‒ hino real até hoje
Rússia ‒ hino nacional até 1833
Suécia ‒ hino nacional em vigor no século XIX
Suíça ‒ hino nacional até 1961

Os amigos do Lula

José Horta Manzano

Um dos objetivos maiores da agigantada vaidade do Lula era conseguir um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Nem que fosse um postozinho de segunda classe, sem direito a veto. O que importava a nosso messias, custasse o que custasse, era entrar nos livros de História como aquele que tinha alçado o País a patamar de destaque.

Burkina Faso 2Hoje é ideia morta e enterrada. Nossa bizarra política exterior mostrou-se incapaz de se impor no Mercosul, onde somos sócios ultramajoritários com 70% das ações. Até em Honduras, o Lula tentou e fracassou. Recuou inclusive na Bolívia. Mais tarde, chegamos a nos desentender com o pequeno Paraguai. E a África então? Sumiu na poeira do caminho.

Mas não era assim antes de 2010. Nossa trôpega diplomacia, esquecida de que quem manda na ONU são as grandes potências, procurava agregar o maior número possível de nações deserdadas, na esperança de que apoiassem o pleito do Brasil. A ingenuidade que reinava pelas bandas do Planalto devia sonhar com um levante dos países pobres, uma espécie de Revolução Francesa mundializada.

Burkina Faso 1Em 2007, no dia em que o mandachuva do Alto Volta(*) – hoje chamado Burquina Fasso – completava 20 anos à frente do país, o Lula fez questão de prestigiar, com sua presença, o personagem. Pouco importou a nosso líder o fato de o antigo capitão Blaise Compaorê ter chegado ao poder na esteira de um golpe de Estado em que o mandachuva anterior foi assassinado.

Nosso presidente tampouco se importou com o fato de os 20 anos de mando do bambambã africano terem mantido o país entre os 10 mais atrasados do mundo. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Burquina Fasso é de 0.343. O Brasil tem 0.744. A Noruega atinge 0.944.

Burkina Faso 3O Lula apertou amistosamente a mão do ditador, discursou, posou para fotos, foi acolhido em visita de Estado com direito a tapete vermelho e hospedagem principesca. O ditador continua lá até hoje. O povo continua na mesma indigência. Só que, faz uns dois dias, a situação mudou.

O povo, cansado de tanta miséria e tanta corrupção, se sublevou contra a enésima tentativa do «presidente» de alterar a Constituição a fim de ganhar mais um mandato. «Chega, que já aguentamos 27 anos! Está na hora de acabar com isso!» – clamam.

A guerra civil está declarada. Os edifícios públicos de Uagadugu, a capital, estão sitiados. Alguns foram incendiados. Quebra-quebras, tiros e incêndios já causaram 30 mortes. O «dono do país» disse que não renuncia. Tudo, agora, está nas mãos do exército. O que os generais decidirem será respeitado à força.

Tenho certeza de que, na impossibilidade de viajar para prestar solidariedade ao amigo africano em apuros, nosso messias já telefonou a ele. Dizem que, homem fiel, nosso líder nunca traiu ninguém. Não será a esta altura da vida que há de começar.

Interligne 18b

apud Cahiers d'études africaines by Yves Person

apud Cahiers d’études africaines
by Yves Person

(*) Desde o século XV, navegadores portugueses visitaram a costa da África ocidental. Cada acidente geográfico recebia nome, fosse rio, cabo, estuário, ilha, promontório, golfo. Por razões hoje esquecidas, um rio que desembocava naquelas redondezas recebeu o nome de Rio da Volta.

Quatro séculos depois, quando o território atravessado pelo rio se tornou protetorado francês, recebeu o nome de Alto Volta, como temos nós o Alto Tietê ou o Alto Amazonas.

Em 1984, por ocasião de um golpe de Estado, o nome – que trazia perfume de tempos coloniais – foi substituído por denominação de sabor local.

Mais uma última informação: Burquina Fasso conta com mais de 60 etnias, cada uma falando sua própria língua. Para se entenderem, utilizam o francês.

Cartilha da Fifa

José Horta Manzano

Na mais recente edição de sua revista semanal, a Fifa tirou do forno, fresquinho e crocante, um manual à atenção de estrangeiros desavisados que porventura se arrisquem a visitar o Brasil por ocasião da «Copa das copas».

O Estadão não gostou. Chamou de «cartilha» o que não passa de um punhado de obviedades abordadas num tom jocoso. O jornal paulista chega a tratar a «cartilha» de polêmica. Só falta desafiar a Fifa para um duelo de cavalheiros, como derradeiro recurso para lavar a honra. Qual… O Estadão está a cometer um rematado exagero.

O artigo ― assinado por Flávia Lopes Sant Anna e pelo editor da revista, Thomas Renggli ―, não faz mais que repisar clichês sobre comportamentos habituais dos brasileiros. Alguns desses chavões, aliás, fazem parte do arsenal de qualidades das quais nosso povo se orgulha.

«Manual» da Fifa ― texto

«Manual» da Fifa ― texto

Falta de pontualidade, lei do mais forte, dificuldade em dizer não, propensão ao contacto físico com o interlocutor ― beijos e abraços. Restaurantes que oferecem quantidades industriais de comida. Tendência a deixar problemas de molho para resolvê-los de afogadilho na última hora. São ou não são características nossas?

Já algumas semanas atrás, o Planalto se tinha indignado com camisetas de forte apelo erótico patrocinadas pela Fifa. A mais alta instância do futebol global reincide: os conselhos aos turistas vêm paramentados com foto de meia página mostrando beldades vestidas de sol.

Que fazer? É assim que somos vistos pelos estrangeiros. Mas, acredite, não há que se indignar. O forasteiro, olho fixo na promessa de prazeres tropicais, passa por cima dos inconvenientes.

Não há inverdades no manual da Fifa. Ele apenas reflete a imagem que, faz séculos, temos mostrado aos que vêm de fora. Os pintores Johann Rugendas e Jean-Baptiste Debret ― que certamente se cumprimentaram nas ruelas do acanhado Rio de Janeiro dos primeiros anos da Independência ― trataram de fazer chegar aos europeus uma imagem paradisíaca destas terras.

«Manual» da Fifa ― ilustração

«Manual» da Fifa ― ilustração

Um século mais tarde, Carmen Miranda, de chapéu de frutas e olhar malicioso, reforçou o padrão. Em nossos dias, nove entre dez estampas brasileiras de propaganda turística mostram sol, praias, pouca roupa, um agradável perfume de vida mansa e de dolce far niente.

Que resultado esperamos? Que turistas nos visitem imaginando encontrar uma Alemanha ou uma Noruega tropical? Que esperança! Eles vêm exatamente em busca das delícias dos trópicos.

Em vez de nos irritar, mais vale seguir o conselho final do manual da Fifa: «Relaxa e aproveita», em português no texto. É versão expurgada do pronunciamento vulgar feito anos atrás por uma senhora de fino trato ― hoje ministra da República.

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Obs:
Horas depois de ter suscitado reação indignada, o artigo desapareceu do site da Fifa.

Como nos veem

José Horta Manzano

Frequentemente me perguntam como o Brasil é visto do estrangeiro. É difícil responder. Eu diria que, salvo raras exceções, o europeu já não enxerga mais nosso País como uma imensa floresta infestada de cobras e macacos. Já é alguma coisa, mas a visão evoluiu pouco, ainda não tanto como gostaríamos. Os clichês têm vida longa.

Julgamentos do STF, vinda de médicos de Cuba, leilão de pré-sal, licitação de trem-bala, nada disso é noticiado por aqui. Por um lado, porque não apresenta grande interesse para o europeu médio, e, por outro, porque não se encaixa no que o imaginário popular espera do Brasil. Além do que, francamente, o europeu está-se lixando para uma penca de corruptos que está sendo julgada. Que sejam castigados ou não, a História do mundo não vai se alterar. Acaso alguém, no Brasil, se emocionou quando alguns dirigentes do Regime Khmer Vermelho foram julgados no Camboja?

Falou-se muito da visita do papa Francisco, isso sim. Todos os canais de tevê e as estações de rádio davam frequentes boletins. Afinal, é o primeiro papa não-europeu e não originário da orla mediterrânea. A Argentina e o Brasil são percebidos mais ou menos como o brasileiro percebe a Ucrânia e a Polônia ou a Suécia e a Noruega ― dois países que fazem parte de uma só salada. Portanto, a visita do papa ao Rio foi ressentida aqui mais ou menos como a primeira visita que o recém-eleito João Paulo II fez à sua Polônia natal.

Mas o grande assunto destes últimos anos foi, sem dúvida alguma, o levante popular de junho. Eu não diria que chegou a assustar, mas surpreendeu todos. Justamente porque contradizia a ideia que todos têm de um povo brasileiro alegre, feliz, despreocupado, desligado da realidade, desorganizado. Excluídas as catástrofes naturais, faz tempo que o Brasil não aparecia com tanta insistência nas manchetes.

Nem mesmo isto funciona mais! by Patrick Chappatte, cartunista suíço

Nem mesmo isto funciona mais!
by Patrick Chappatte, cartunista suíço

Antes desses protestos, o último a reter a curiosidade dos europeus, salvo melhor juízo, foi o Guga. E isso aconteceu justamente porque, como no caso das passeatas, o esportista catarinense fugia ao clichê. A aparência física do moço não corresponde à imagem que por aqui se tem dos habitantes do Brasil. O esporte em que ele sobressaía tampouco bate com o que geralmente se espera. Além do que, o tenista, com seu eterno sorriso, conquistou simpatias. O povo aqui se sentiu tão surpreso como nos sentiríamos nós se um futebolista birmanês fosse sagrado melhor jogador do ano.

Bem, que a verdade seja dita. Temos de reconhecer que os governantes do Brasil não se têm esforçado para passar ao mundo a ideia de um país sério e organizado. Faz já uns dez anos que nossos mandachuvas tentam pular direto do estágio do carro de boi para o do avião supersônico. Enganam-se. Não se começa a construir um edifício pelo telhado.

O Brasil não será visto como país importante só porque o Planalto decidiu que assim deve ser. Toda obra tem de começar pelas fundações. Não se podem queimar as etapas. O caminho é longo, mas inevitável. Só nos resta torcer para que a decisão ― irresponsável, a meu ver ― de acolher a Copa do Mundo em 2014 não contribua para arranhar a imagem do País. Que já não é lá essas coisas.

Quem tem medo de povo?

José Horta Manzano

A Noruega é uma monarquia parlamentar. O rei é chefe do Estado, com funções meramente simbólicas. Como a rainha da Inglaterra e outros monarcas modernos, o rei da Noruega não interfere na vida política. Representa a base, o cimento que mantém a sociedade unida. Os políticos vêm e vão, dependem de confirmação periódica pelo voto. No final, acabam passando. Já o monarca permanece, firme e forte, até que abdique do trono ou que exale o último suspiro. O governo é exercido pelo parlamento e chefiado pelo primeiro-ministro.

Falando em eleições, a Noruega se prepara para renovar os 169 membros de seu parlamento. Entre 1° de julho e 6 de setembro, os cidadãos têm o direito de votar por antecipação. Os que preferirem podem deixar para votar no último dia, 9 de setembro.

Noruega

Noruega   –   clique para ampliar

O país conta com dois partidos políticos principais que congregam, juntos, cerca de 60% dos votos. Uma meia dúzia de partidos menores compartilham o resto. O vencedor virá, com certeza, de um dos dois partidos majoritários. Neste momento, as pesquisas indicam empate entre os dois candidatos principais. Um deles é justamente o atual primeiro-ministro, Jens Stoltenberg.

Sabemos todos que a sociedade escandinava está entre as mais igualitárias do planeta. Nesse campo, a norueguesa sobressai. Ninguém por lá está interessado em títulos. O tratamento de respeito correspondente a «o senhor/a senhora» foi abolido já faz muitos anos. Todos se chamam usando a mesma palavra: Du. Senhor Fulano ou Senhora Sicrana são fórmulas do passado, que hoje fariam sorrir. Nem em cartas comerciais de cerimônia se deve dar título ao destinatário. Quando não se conhece a pessoa e se tem de ser formal, escreve-se o nome e o sobrenome. E basta.

Dito isso, Jens Stoltenberg, o sorridente primeiro-ministro, é candidato a suceder a si mesmo. Quis saber de perto o que o povo pensava dele e de seu governo. Chegou à conclusão de que cabeleireiros e taxistas são profissionais que costumam recolher declarações íntimas e espontâneas de muita gente em pouco tempo. Dado que não leva jeito para cabeleireiro, decidiu exercer a função de taxista por um dia inteiro.

Noruega

Noruega   –   clique para ampliar

Vestiu o uniforme, pendurou o crachá de rigor, enfiou óculos escuros para disfarçar, e pôs mãos à obra. Aproveitou para filmar os acontecimentos (*) com uma câmera discreta. A oportunidade era excelente para matar dois coelhos de uma só cajadada: ficar a par dos comentários da população e fazer seu marketinguezinho a preço de ocasião.

Acertou na mosca. Ainda não se sabe se o vídeo o terá ajudado a ganhar alguns votos, mas o fato é que fez sucesso planetário. Foi repercutido da Islândia até o Bangladesh.

Como deve ser bom viver num país onde o primeiro-ministro pode sair à rua sem proteção e, principalmente, sem medo de povo, de agressões ou de vaias.

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(*) Assista ao vídeo, que vale a pena. São menos de 3 minutos.

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Que tal um friozinho?

José Horta Manzano

Você sabia?

No Brasil, quando o termômetro cai a 18°, a gente diz que está friozinho. Se desce mais uns 5 graus, dizemos que está muito frio. Abaixo de 10°, todos reclamarão que está parecendo o Polo Norte. É uma questão de hábito.

A vilazinha siberiana de Oymyakón (Оймякон em escrita cirílica), com seus quinhentos habitantes, é considerada a localidade ― habitada em permanência ― mais fria do planeta. Há regiões ainda mais geladas, mas são povoadas por pinguins ou por algum cientista de passagem.Oymyakón 1

O lugarejo de que lhes falo está situado na Federação Russa, na parte oriental da Sibéria, mais precisamente na República da Yakútia. Nas noites de janeiro, o mês mais frio, faz 50° abaixo de zero. Isso é uma média, evidentemente. Há períodos em que a temperatura desce de verdade. Já roçaram os 70° abaixo. Isso, sim, é que é frio para ministro nenhum botar defeito.

O mais inacreditável é que, em alguns dias do verão, o termômetro resolve subir tropicalmente. Em julho de 2010, encostou nos 35°! Não segurou a canícula por muito tempo, mas chegou lá.

Oymyakón é uma das três únicas localidades habitadas em que a amplitude térmica ― a diferença entre a máxima e a mínima ― ultrapassa 100 graus centígrados. As outras vilas estão também na Sibéria, naturalmente.

E olhe que a latitude, embora elevada (63°) não justifica tudo. No extremo norte da Noruega, por exemplo, fica a cidadezinha de Hammerfest onde, apesar da latitude mais elevada (70°), a média do mês mais frio não desce abaixo de menos 5°. São artes do Gulf Stream.Oymiakón 3

Em outras regiões do mundo, as escolas primárias fecham suas portas quando neva. A autoridade considera que um chão nevado pode representar perigo para a passagem dos petizes. Em Oymyakón, a escola só fecha quando o frio desce abaixo de menos 50°.

Mas não se afobem. Já estamos em abril, a primavera está aí. Oymyakón já está registrando médias bem mais confortáveis, em torno de menos 13, menos 14, por aí. Para este 14 de abril, a Central Meteorológica Russa prevê mínima de –27° e máxima de –2°. O verão, como podem ver, está batendo à porta. Para a semana que entra, deve melhorar.

Os serviços meteorológicos brasileiros não trabalham com a precisão dos russos, que, temos de reconhecer, são campeões no assunto. Também, não temos tanta necessidade. Nossa amplitude térmica é bem mais estreita. O que interessa mesmo é saber se vai chover ou não.

Falando em amplitude, não consegui identificar a localidade brasileira com maior diferença entre a máxima e a mínima absoluta. Acredito que poderia bem ser alguma cidadezinha da serra catarinense. De qualquer maneira, a variação anual não chega nem à metade dos 100 graus de Oymyakón.Oymiakón 2

Muito pelo contrário, nossa tropicalidade faz que a diferença entre os meses quentes e os mais frescos seja pequena, às vezes insignificante. Fernando de Noronha, um dos pontos mais observados de nosso território, registra média de 26.8° no mês mais quente e 25.5° no mais frio. Dá para ir à praia o ano inteiro.

Aceita um refrigerante?

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Nota: Em Oymyakón não há moradores de rua.

Parceria estratégica

José Horta Manzano

Já faz uns dez anos que, na onda de alinhamento automático com tudo o que lhe soasse antiamericano ou antieuropeu, o governo brasileiro houve por bem incentivar as curiosas relações político-comerciais ditas «sul-sul». Stricto sensu, a expressão é gritantemente inexata. É um tremendo equívoco sustentar que China, Rússia e Índia sejam países «do sul». Mas relevemos a impropriedade geográfica e passemos ao que interessa.

Todas las monedas tienen dos caras ― dizem os espanhóis. Para nós, a cara está de um lado apenas. E a coroa, entalhada no verso, nem sempre é tão reluzente como parece.

Desdenhando as economias ricas ― hoje conhecidas como «países centrais» ― o Brasil preferiu cortejar nações periféricas. Após um rufar de tambores que prenunciava futuro radioso, a mágica está dando chabu. A realidade é cruel e começa a revelar-se pouco faceira.

Ninguém se deu conta de que as nações ditas emergentes têm necessidades semelhantes às nossas. Nossos manufaturados não são de grande valia para esses novos parceiros. A complementaridade que se buscava tinha outro nome: concorrência. Competição feroz.

Nossa obstinação tinha objetivos muito mais políticos do que comerciais. Em vez de seguir o sábio exemplo de países que alavancaram o nível de vida de seu povo fortalecendo a economia discretamente, na moita, sem se preocupar em aparecer como grandes potências, o Brasil instalou a carroça à frente dos bois. Deu-se ares de nação poderosa sem se preocupar em reforçar seu esqueleto, em sanar suas próprias deficiências. Nossa infraestrutura continua rudimentar, a calamitosa instrução pública continua a prover nossa juventude de formação tosca.

Deu no que deu. O Brasil, um gigante em aparência, continua assentado em pés de barro. Ações são tomadas apenas em caráter de emergência, no sufoco, sem planejamento de longo prazo. Remenda-se aqui, tapa-se um buraco ali, constrói-se um puxadinho acolá. Toca-se a trombeta, mas a banda não acompanha.

Mas não reclamemos, gente impertinente! Ainda nos resta… o feijão! Esse é nosso, e ninguém nos tira. Será?

A China ― sempre ela, o nosso melhor «parceiro estratégico» ― tem usufruído de nossa ingenuidade. Não acredita? Pois então continue a leitura.

O bacalhau vem de Portugal ou da Noruega. E o feijão preto, evidentemente, é produto da terra, brasileiro legítimo. Certo? É o que imaginamos todos. A realidade é um pouco diferente.

Crédito: Die grüne Speisekammer

Crédito: Die grüne Speisekammer

Artigo pra lá de instrutivo publicado pela Folha de São Paulo deste 15 de janeiro nos informa que a China se tornou nosso maior fornecedor de feijão preto. Estamos comprando feijão da China, companheiros!

E não é só. Nos últimos quatro anos, a importação de produtos agrícolas cultivados em terras chinesas quadruplicou. Passou de 0,8 a 2,3 bilhões de dólares por ano. E a gente que imaginava que o grande país oriental, superpovoado, não tinha espaço nem para enterrar seus mortos na horizontal. Vivendo e aprendendo.

Já faz anos que nosso país se desindustrializa. Disso, já sabíamos todos. Pois agora ficamos sabendo que nos tornamos dependentes da China para o feijão nosso de cada dia. E para o bacalhau também, pasmem.

Como é reconfortante saber que estamos sendo governados por gente de visão. Viva a parceria estratégica!