Este blogueiro é do tempo em que – 38

Jornal O Globo, 12 março 2023

José Horta Manzano

“Buscar naufrágio” é passatempo para espíritos sádicos que ficam na praia observando passarem os barcos e torcendo para que um deles naufrague. Este blogueiro é do tempo em que arqueólogos não se dedicavam a esse passatempo. Costumavam buscar destroços de uma embarcação naufragada.

“Navio escravagista”? Nããão! Navio não tem ideologia. Escravagismo é atributo humano. Navio que carrega escravos chama-se navio negreiro. No tempo em que escola ensinava e aluno aprendia, o poema épico Navio Negreiro, de Castro Alves, um arrebatado libelo abolicionista, costumava fazer parte do programa.

Vamos reescrever a chamada?


Em Angra, arqueólogos buscam destroços que podem ser do último navio negreiro a vir ao Brasil.


 

Quem é mesmo?

José Horta Manzano

Faz muito tempo que os vi pela última vez ‒ afinal, ambos faleceram há mais de cem anos e o tempo abranda a memória. Assim mesmo, a lembrança que guardei dos dois grandes escritores foi a seguinte:

Machado de Assis era este:

Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908)

Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908)

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Castro Alves era este:

Antônio Frederico de Castro Alves (1847-1871)

Antônio Frederico de Castro Alves (1847-1871)

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A Folha de São Paulo de ontem publicou uma chamada intrigante. Falando de um, pôs o retrato do outro. Salvo melhor juízo, naturalmente.

Chamada da Folha de São Paulo, 25 jun 2016

Chamada da Folha de São Paulo, 25 jun 2016

Nota birrenta
His mother’s death fica bem em inglês. La mort de sa mère é irreprovável em francês. Já em português brasileiro, o possessivo é perfeitamente dispensável em casos como esse. Chora a morte da mãe” soa mais fluido e mais natural.

O que é bom dura pouco

Interligne vertical 2José Horta Manzano

Por que será que a grande ceifadeira chega tão cedo para levar gente tão promissora? «Bicho ruim não morre», costuma-se dizer. Na verdade, todo bicho, bom ou ruim, acaba morrendo, que não tem jeito de escapar. Mas tem muita gente fina que se vai cedo demais e nos deixa um gosto de quero mais.

Frédéric Chopin foi-se aos 39 anos. Wolfgang Amadeus Mozart nos deixou aos 35. Noel Rosa foi colhido com 27 aninhos. Castro Alves partiu aos 24 e Gonçalves Dias aos 41. Cacilda Becker, Edith Piaf e Lilian Lemmertz não chegaram a completar meio século ― antes disso foram chamadas de volta. Elis Regina, precoce em tudo o que fez, disse adeus antes dos 37.

Se há alguém que fez falta foi o carioca Sergio Porto, conhecido como Stanislaw Ponte Preta. Espírito brilhante, revelou humor fino e cáustico desde que escreveu sua primeira crônica. Tampouco ele chegou a completar meio século. Aos 45, seu coração parou de bater.

Mas a curta carreira foi suficientemente densa para nos deixar pérolas valiosas. Muita gente já deve ter ouvido falar em febeapá, termo que ainda hoje, quase 50 anos depois de seu desaparecimento, ainda é citado aqui e ali. Era o título de sua obra maior: Festival de Besteira que Assola o País. Tornou-se palavra comum. Uma suprema homenagem, espontânea e justa, ao inteligente escritor. Transcrevo abaixo uma de suas crônicas. Dispensa maiores explicações. A simples leitura destas linhas deixa perceber a joia que o Brasil perdeu num triste 30 de setembro de 1968.

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Com a ajuda de Deus
Stanislaw Ponte Preta

Tia Zulmira, pesquisadora do nosso folclore, descobre mais um conto anônimo. Conforme os senhores estão fartos de saber, quando uma coisa não tem dono, passa a ser do tal de folclore. Assim é com este conto muito interessante que a sábia macróbia colheu alhures.

Diz que era um lugar de terra seca e desgraçada, mas um matuto perseverante um dia conseguiu comprar um terreninho e começou a trabalhar nele e, como não existe terra bem tratada que deixe quem a tratou bem na mão, o matuto acabou dono da plantação mais bonita do lugar.

Foi quando chegou o padre. O padre chegou, olhou para aquele verde repousante e perguntou quem conseguira aquilo. O matuto explicou que fora ele, com muita luta e muito suor.

— E a ajuda de Deus — emendou o sacerdote.

O matuto concordou. Disse que no começo era de desanimar, mas deu um duro desgraçado, capinou, arou, adubou e limpou todas as pragas locais.

— E com a ajuda de Deus — frisou o padre.

O matuto fez que sim com a cabeça. Plantou milho, plantou legumes, passou noites inteiras regando tudo com cuidado e a plantação floresceu que era uma beleza. O padre já ia dizer que fora com a ajuda de Deus, quando o matuto acrescentou:

— Mas deu gafanhoto por aqui e comeu tudo.

O matuto ficou esperando que o padre dissesse que deu gafanhoto com a ajuda de Deus, mas o padre ficou calado. Então o matuto prosseguiu. Disse que não esmorecera. Replantara tudo, regara de novo, cuidara da terra como de um filho querido e o resultado estava ali, naquela verdejante plantação.

— Com a ajuda de Deus — voltou a afirmar o padre.

Aí o matuto achou chato e acrescentou:

— Sim, com a ajuda de Deus. Mas antes, quando Ele fazia tudo sozinho, o senhor precisava ver, seu padre. Esta terra não valia nada.Interligne 3aFonte: Ponte Preta, Stanislaw. O melhor de Stanislaw Ponte Preta: crônicas escolhidas; seleção e organização de Valdemar Cavalcanti. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004, p. 85.