O pizzo

Folha de São Paulo, 23 mar 2022

José Horta Manzano

Na linguagem da bandidagem mafiosa italiana, o pizzo – italianização do original siciliano “pizzu” – é uma forma de extorsão praticada por organizações criminosas. É a “taxa de proteção” cobrada de pequenos comerciantes e até de empresas de porte médio, que não têm outro remédio se não pagar.

Não se tem certeza sobre a origem do termo. É aceito por todos que se trata de forma dialetal siciliana. Dado que, no falar daquela ilha, “pizzu” é o bico de pequenas aves, acreditam alguns que o ato mafioso lembre as bicadinhas que passarinho dá quando se alimenta. Já outros são de opinião que “pizzu” seja uma forma abreviada de “capizzu” (cabeceira da cama), transmitindo a imagem de que os que se resignam e pagam o pedágio podem descansar tranquilos.

E ai de quem não pagar! Uma manhã, ao chegar para abrir a loja, o recalcitrante pode ter a terrível surpresa de encontrar seu comércio incendiado. Os que forem se queixar às autoridades correm até risco de vida.

Nesta altura, quero fazer uma correção. Mais de uma vez, devo ter qualificado o Brasil como terra de bandidos. Eu não estava fundamentalmente errado, mas a definição estava imprecisa.

Estes dias, quando as manchetes trazem a notícia das práticas vigentes no Ministério da Educação (da Educação!), sou obrigado a desembaçar minha definição. Não vivemos numa terra de bandidos, mas numa terra de mafiosos.

Nos tempos do mensalão e do petrolão, a dinheirama extorquida vinha de grandes empresários, principalmente do ramo de construção. No final, quem acabava sendo lesado era o povo, naturalmente, mas a conta chegava de modo indireto, em suaves prestações.

As notícias dessa nova forma de “pedágio” mostram que a bandidagem se alastra e contamina nosso quotidiano. A curriola que dá sustentação ao governo federal não mais se limita a extorquir milhões de grandes empresários. Seus tentáculos já estão coagindo prefeitos a pagar o “pizzo”.

Falta muito pouco para chegarem ao cidadão comum. Em breve, estaremos todos alimentando diretamente a máfia que se instalou nas entranhas da República e que vem sendo acariciada – e incentivada – pelos mais altos escalões que nos presidem.

Em matéria de corrupção generalizada, estamos correndo a passos largos para transformar nosso país numa grande Venezuela ou numa Rússia tropical.

O cancelamento

Visite a Rússia
Antes que Putin visite você

 

José Horta Manzano

O que ninguém ousava imaginar até poucas semanas atrás ficou claro: a intenção de Vladímir Putin é cancelar a Ucrânia. Estou utilizando o verbo no sentido atual, como ele vem sendo usado nas redes sociais quando se quer “botar alguém fora do jogo”. O objetivo de Putin é o cancelamento da Ucrânia. Ele quer que ela deixe de existir como país e se transforme em província russa.

A Federação Russa é formada por 85 regiões administrativas. Parte delas tem autonomia limitada, enquanto a maioria é governada por interventor enviado diretamente por Moscou. Putin quer transformar a Ucrânia na 86ª região administrativa da federação. E com interventor nomeado.

Por quê?

É preciso voltar algumas décadas e dar uma espiada na “carreira” do personagem que hoje manda e desmanda naquele país. De origem humilde, o jovem Vladímir foi, na escola, aluno medíocre e briguento. Violento, os esportes de luta corporal sempre o atraíram. No fim da adolescência, procurou emprego no KGB – os serviços de espionagem externa, o equivalente soviético da CIA americana.

Sua folha de serviços é a de um obscuro funcionário. Guardadas as devidas proporções, lembra a passagem de Bolsonaro pelo Exército. Putin foi enviado a Dresden (na Alemanha Oriental, então satélite de Moscou), onde permaneceu alguns anos e aprendeu a língua alemã. Com o desmonte da União Soviética, no início dos anos 1990, voltou a Leningrado (hoje São Petersburgo), sua cidade natal.

Retornado à pátria, Putin põe um pé na política. Em pouco tempo, tornou-se assessor de Anatoli Sobtchak, prefeito da cidade. Segundo más linguas, Sobtchak era o “chefe da máfia de São Petersburgo”. Putin tornou-se seu braço direito. Daí para a frente, sua ascensão se acelerou. Não é difícil entender por quê.

Já na segunda metade dos anos 1990, conseguiu ser admitido como assessor de Boris Eltsin, presidente o país. No fim dos anos 1990, Eltsin estava sofrendo pesadas acusações de corrupção e enriquecimento ilícito. Para escapar à justiça, bolou um plano.

Em primeiro lugar, nomeou Vladímir Putin para o cargo de “chefe do governo” e propôs um pacto. Ele, Eltsin, renunciaria à presidência e Putin assumiria no seu lugar. Em troca, Putin assinaria um decreto concedendo imunidade total ao predecessor, o que o livraria de todo processo judicial. Eltsin renunciou em 31 de dezembro de 1999. Naquele mesmo dia, Putin assumiu e assinou o decreto, tal como combinado. Coisas da Rússia. Só da Rússia?…

Naquele momento, Putin era visto como um presidente fantoche, uma marionete manipulada, uma figura inócua e passageira. Quem pensou assim enganou-se pesadamente. O rapaz era vivo e, tendo nas mãos as rédeas do poder, não soltou mais. No fim deste ano, vão se completar 23 anos desde o dia em que subiu ao trono.

Na verdade, o povo russo nunca viveu sob regime democrático. Do feudalismo tsarista, passou à ditadura soviética. Tão acostumados estão a essa opacidade do andar de cima, que não estavam preocupados que o poder estivesse nas mãos de Putin ou de um outro. Isso não era importante, como não é até hoje. Importante mesmo, naquele momento, é que as prateleiras de lojas e supermercados estavam abastecidas. Povo de barriga cheia não faz revolução.

Na Rússia, o poder é vertical, de tipo mafioso: quem manda é o capo, os outros obedecem. (Acaba de me ocorrer a frase de Pazuello.) Não há instituições como conhecemos no nosso mundinho, imperfeito mas democrático. Não há Congresso nem Justiça como conhecemos. O Parlamento e a Justiça estão enfeudados ao chefe. Processos são viciados, oponentes são assassinados ou condenados a pesadas penas de prisão. Toda divergência é silenciada pela violência. A informação é controlada pelo Estado. Não há mídia independente. Só se faz o que seu mestre autoriza. Putin é a versão moderna de um Luís 14, um rei-sol anacrônico que destoa dos ideais de nosso mundo ocidental.

O poder corrompe, como diz o adágio. Putin enfiou na cachola que vai ficar na História como aquele que restaurou a glória do Império Russo dos tempos de antigamente. A conquista da Ucrânia é apenas o primeiro passo. A mídia tem descrito como “guerra” os acontecimentos destes dois dias. Não é a melhor descrição. Não se trata de guerra, mas de invasão pura e simples. Invasão de um país soberano por um outro país soberano. A última vez em que a Europa assistiu a uma barbaridade desse tipo faz 80 anos. O invasor chamava-se Adolf Hitler. Todos sabem como a aventura terminou.

A grande preocupação de Bolsonaro, nosso aprendiz de ditador, é escapar da justiça. Com esse objetivo, tem tentado cooptar as Forças Armadas e aparelhar tribunais. Nossas instituições são mais resilientes que as da Rússia, mas… tudo tem limite. Se nosso aprendiz for deixado à vontade mais algum tempo, podemos chegar a um momento de inflexão, um ponto de não-retorno.

Para se livrarem do perigo, a única arma que os brasileiros têm é o voto. Em outubro, a independência de nossas instituições democráticas depende da decisão dos eleitores. Não haverá segunda chance.

Observação
Não podemos esquecer que, semana passada, o capitão se solidarizou com a causa russa. Declarou isso diante de Vladímir Putin e das câmeras. Até hoje não se retratou. A conclusão é evidente: concorda com o cancelamento da Ucrânia e com todos os males que advirão dessa atrocidade. Nosso perigo mora no Planalto.

O cidadão de Floresta

José Horta Manzano

Faz séculos que a Sicília, aquela ilha de aspecto triangular que aparece ao pé da bota italiana, vem sofrendo com a truculência da máfia local, uma das mais violentas do planeta. Depois da queda do Partido Democrata Cristão, o índice de selvajaria diminuiu, é verdade, mas não desapareceu de todo.

Aos 75 anos de idade, signor Antonino Cappadona, prefeito do vilarejo siciliano de Floresta, conheceu a Itália dos anos de chumbo. Naquela década de 1970, dia sim, outro também, o país era sacudido por atentados mafiosos e assassinatos terroristas. Daquela época, o (hoje velho) homem político há de ter guardado lembrança pavorosa.

Floresta, província de Messina, Sicília, Itália

É por isso que, como todos os italianos, acompanhou angustiado a acolhida dada pelo Lula ao terrorista Cesare Battisti. Como todos os conterrâneos, sofreu esperançoso durante os vaivéns da novela da extradição do condenado. Como os demais compatriotas, exultou quando o evadido foi recapturado, repatriado e despachado a prisão de segurança máxima.

Apesar de ter prometido extraditá-lo, o Brasil não chegou a honrar o compromisso, dado que a Bolívia, sem frescura, entregou homem aos policiais italianos que o tinham vindo buscar. Pouco importa ‒ o que ficou marcado foi a promessa eleitoral de doutor Bolsonaro. A entrega de Battisti contou como se a extradição tivesse sido obra do Brasil.

Floresta, o vilarejo de montanha siciliano, tem população pra lá de modesta: não chega a 500 almas. Descomplexado mas feliz ao ver mais um assassino atrás das grades, signor Cappadona hasteou a bandeira brasileira, ao lado da italiana, na sacada da bela fachada de pedra da prefeitura. E não ficou por aí. Sob proposição sua, a câmara aprovou a concessão de cidadania honorária a doutor Jair Bolsonaro.

Nosso presidente, agora o mais novo cidadão honorário de Floresta, foi convidado a visitar o povoado pra receber pessoalmente a homenagem. O prefeito Cappadona contou que ficaria feliz se, pela mesma ocasião, pudessem estar presentes os familiares das quatro vítimas por cuja morte Battisti foi condenado.

Ainda que doutor Bolsonaro desejasse dar uma passadinha por Floresta, as exigências da segurança presidencial tornam a visita problemática. Dificilmente ele subirá as encostas das montanhas sicilianas. Tem nada, não. Valeu a intenção.

A vitória tem muitos pais

José Horta Manzano

A vitória tem muitos pais, mas a derrota é órfã. Dois dias atrás, um prédio de mais de vinte andares no centro de São Paulo pegou fogo e ruiu. Faz algum tempo, passeando pelo street view, eu já tinha reparado no prédio. Naquele momento, o que me chamou a atenção foi a pichação, uma impressionante algaraviada que subia pela lateral envidraçada, do primeiro ao último andar. Na época, fiquei perplexo. Como é possível alguém se introduzir num edifício ‒ visivelmente de escritórios ‒ pra pintar a fachada de cima a baixo?

Agora entendi. Faz anos que o prédio estava invadido por gente desvalida cujos ganhos não são suficientes pra pagar habitação decente. Pelo que li, os habitantes moravam em barracos de madeira armados nos andares, sem água e sem esgoto.

O distinto leitor e eu não sabíamos disso. Ainda que soubéssemos, pouco teríamos podido fazer. Mas há autoridades que sabiam e ‒ cúmulo dos horrores ‒ havia gente que se aproveitava da situação pra extorquir dinheiro daqueles miseráveis. Exatamente como faz a máfia siciliana, cobravam de cada família um «direito de passagem», um aluguel mensal, como se fossem donos do imóvel.

Edifício que se incendiou e ruiu
Foto: SaoPauloAntiga.com.br

Uma vez desmoronado o edifício, começaram a aparecer os podres. O governador conhecia a situação, mas nada podia fazer porque não era de sua alçada. A União, proprietária do imóvel, queria mais é que aquela gente fosse embora. A prefeitura da cidade ficou condoída com o que aconteceu, mas não era a dona do prédio, logo…

Por sua vez, os ditos «movimentos sociais» ‒ que, dizem as más línguas, estão por detrás da extorsão sobre o magro pecúlio dos moradores ‒ eximem-se de toda responsabilidade e acusam prefeitura, governo do Estado e União, todos no mesmo saco.

Em resumo: nenhuma autoridade nem nenhum “movimento social” é responsável. Por exclusão, conclui-se que culpados são os próprios moradores. Vindos de longe, chacoalhados pela vida, tolhidos pela ignorância, explorados por máfias e, pra coroar, acusados de destruir um prédio. Ah, como é fácil acusar quem não pode se defender!

No dia seguinte ao do incêndio, a prefeitura deu a conhecer que o prédio abrigava 130 famílias. E não é tudo: a cidade conta com cerca de 70 outros edifícios invadidos, loteados por famílias necessitadas e, mui provavelmente, controlados por máfias exploradoras da miséria. Dado que nenhuma autoridade é capaz de oferecer solução digna a esses infelizes, a perpetuação da miséria está garantida. E vamos em frente, que a Copa é nossa!

Os sem-passaporte

José Horta Manzano

Quando a situação se torna insustentável a ponto de o cidadão não ver outra saída senão abandonar a terra natal, surge a dúvida: para onde ir? Por razões culturais, políticas, linguísticas ou histórico-geográficas, cada povo tem preferências que lhe são próprias.

A maioria dos brasileiros, independentemente de origem étnica ou posição social, tende a olhar direto para os Estados Unidos. Faz um século que é assim. Por mais que Mr. Trump se aplique a desconstruir a imagem do país, os EUA continuam a ser vistos como terra prometida. Descendentes de japoneses, por seu lado, costumam ver na terra dos ancestrais um porto seguro. Há também conterrâneos nossos que se espalham por Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Portugal e tantos outros destinos.

Não é segredo para ninguém que a Venezuela atravessa o pior momento de sua história. Tirando a franja ligada à ditadura, a população pula miudinho. Ricos e pobres pelejam contra inflação de quatro algarismos, falta de alimentos e de remédios, altíssima taxa de desemprego, criminalidade. À vista de ingredientes tão explosivos, não espanta que haja mães entregando filhos a quem se dispuser a alimentá-los. Coisa de deixar de cabelo em pé.

Venezuelanos também sentem atração pelos Estados Unidos, mas não só. Por razões históricas e linguísticas, enxergam a Espanha e a América hispânica com simpatia. As estimativas atuais dão conta de que 250 mil deles elegeram a Espanha como lugar para iniciar vida nova. A América de fala espanhola tem a preferência de quase 800 mil venezuelanos, dos quais meio milhão se encontram na vizinha Colômbia. O total de expatriados beira 5% da população. É como se dez milhões de brasileiros tivessem optado pela emigração, uma enormidade.

Para acentuar o calvário de nossos vizinhos do norte, várias máfias se jogam sobre os infelizes como urubus sobre carniça. Uma das mais ativas é a que controla a emissão de passaportes. Agem de forma covarde e pra lá de maldosa. Para deixar o país, precisa ter passaporte, não é? Pois então, vamos assaltar os que buscam obter o documento ‒ pensam eles.

No serviço de emissão de passaportes situado na região leste de Caracas, age uma quadrilha de funcionários corruptos que extorquem milhares de dólares dos candidatos a obter o ansiado documento. Num país falido, o negócio é altamente rentável. Quem não quiser pagar, simplesmente não vai conseguir o documento. Pela via oficial, seu passaporte vai demorar mais de ano pra ficar pronto. Se vier um dia.

Coisa parecida acontece com venezuelanos residentes no exterior. Quando se dirigem ao consulado para renovar o passaporte, recebem a terrível notícia: a renovação é impossível. Por quê? As desculpas variam: pode ser por falta de papel, por falta de tinta, por falta de vontade, por falta de vergonha.

Desconfia-se que señor Maduro tenha dado ordem para impedir que expatriados retornem ao país. Cidadãos que vivem no exterior, menos expostos à demagogia oficial, tendem a se posicionar contra a ditadura vigente. Se dispuserem de passaporte, perigam voltar à pátria e votar contra o tiranete nas eleições que devem ocorrer em breve. Melhor mantê-los longe.

Ao fim e ao cabo, com passaporte vencido, os venezuelanos expatriados se veem em situação delicada. Ainda que se encontrem em situação regular no país em que vivem, a falta do documento lhes causa problemas no dia a dia. Ficam impedidos, por exemplo, de renovar visto de permanência, de encontrar emprego, de conseguir casa pra morar. Vê-se que, em ditaduras, o povo não passa de massa de manobra a serviço da nomenklatura.

Tinha razão o Lula presidente quando, ao assinar acordo entre a Petrobrás e a estatal venezuelana de petróleo, declarou que a Venezuela tinha «democracia em excesso». Sábias palavras de um visionário.

Il capo di tutti i capi

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 25 novembro 2017.

Com tanto escândalo doméstico, a mídia nacional deu pouca atenção à notícia. Por seu lado, veículos do mundo todo, em especial na Itália, deram especial destaque à morte de Salvatore ‘Toto’ Riina, o maior capo mafioso de que se tem notícia, que expirou semana passada. Conhecido pelo cognome de «La Belva» ‒ o animal feroz ‒, Riina começou cedo a exprimir a selvageria que lhe ia por dentro. Já aos 18 anos, numa rixa, matou o adversário. Foi esse o primeiro homicídio de uma longa série que ninguém conseguiu, até hoje, calcular direito.

Na sua Sicilia natal, a fama de rapaz violento logo se espalhou e chegou aos ouvidos de um dos diferentes clãs mafiosos. Não demorou para que fosse recrutado. ‘Toto’ revelou-se bom soldado e, em poucos anos, atingiu o ápice da organização criminosa. Seu caráter era talhado sob medida para a função. Sanguinário e impiedoso, o «padrino» cometeu uma vintena de assassinatos com as próprias mãos. Mais que isso, foi responsável intelectual por centenas de homicídios. Entre as vítimas, estavam integrantes de clãs rivais, dois juízes que investigavam a organização, policiais, comerciantes que se recusavam a pagar a contribuição exigida pelos criminosos.

Corleone, Sicilia: cidadezinha natal do “capo di tutti i capi”

O capo conseguiu a façanha de escapar aos braços da lei durante um quarto de século. É voz corrente que chefes mafiosos gozavam de especial proteção por parte de homens políticos de alto coturno. É legítimo concluir que isto explique aquilo. Coincidindo com o desmantelamento da União Soviética, desapareceu, no início dos anos 1990, o Partido Democrata Cristão, que havia dominado a política italiana desde o fim da Segunda Guerra.

A profunda mudança na orientação do regime há de ter causado o fim da complacência de que gozava o personagem. Em 1993, a polícia italiana conseguiu apanhá-lo no vilarejo onde havia nascido e do qual nunca se havia afastado. Preso, passou a residir em cárceres de segurança máxima. Enfrentou numerosos processos que lhe renderam, no total, 26 sentenças de prisão perpétua.

Mesmo encarcerado, respeitou a «omertà». Não entregou ninguém, desafiando o Estado até o fim. Em mais de uma ocasião, declarou que não se arrependia de nada. Acrescentou que tanto se lhe dava ser condenado a 30 ou a 3000 anos de cadeia ‒ não se vergaria. Consta que, do fundo da cela, ainda dava ordens aos antigos subordinados, numa demonstração de que continuava reverenciado dentro da máfia.

No início deste ano, visto o deterioramento do estado de saúde do cliente, seus advogados haviam requerido lhe fosse concedido direito a prisão domiciliar. A Justiça negou-lhe o benefício sob a alegação de que a ala prisional dos hospitais italianos estava perfeitamente equipada para fornecer-lhe os cuidados necessários. Faleceu aos 87 anos no hospital de Parma.

O caso do capo mafioso convida à reflexão. É verdade que seus crimes são realistas, com sangue e tripas, explosões e atentados, notícia no jornal e repercussão internacional. É verdade que a crueldade do personagem é de dar frio na barriga. Assim mesmo…

Em nosso país cordial ‒ tirando um ou outro caso nevoento, como a misteriosa série de assassinatos de São Bernardo do Campo faz uns quinze anos ‒, a máfia política é menos carniceira. Seus integrantes contentam-se em saquear dinheiro público, que mal há nisso?

Pois eu lhes digo que as centenas de vítimas do grande capo siciliano, com todo o respeito que devo a elas, são quantidade negligenciável perto dos milhões de brasileiros martirizados pela rapina do erário levada a cabo por figurões do andar de cima. Entre as vítimas, estão os mortos por falta de atendimento hospitalar, os que descambam para a marginalidade por falta de encaminhamento, os estropiados por falha de manutenção das estradas, os envenenados por ausência de saneamento básico, os condenados à ignorância pela precariedade da Instrução Pública.

Para nossos capos, não haverá prisão perpétua. Para a maioria, não haverá sequer julgamento. Os (poucos) condenados beneficiarão de favores de pai pra filho: regime aberto, prisão domiciliar, liberdade com tornozeleira e outros mimos. Francamente, os capos brasileiros são mais iguais que os italianos.

Inferno bolivariano

José Horta Manzano

Señor Maduro, (ainda) presidente da sofrida Venezuela, está pulando na corda bamba. Sua base congressual, composta por não mais que 1/3 dos parlamentares, é amplamente minoritária. O povo passa fome. O país, que pouco ou nada exporta além de petróleo bruto, não tem mais onde encontrar dinheiro. Pra piorar, o preço do petróleo caiu muito estes últimos anos. Fator agravante é a inflação, que deve fechar este ano por volta de 800% ‒ nível que os brasileiros com menos de 30 anos não têm ideia do que possa ser.

venezuela-6Não se sabe bem por que, o governo decidiu abruptamente tirar de circulação a nota de 100 bolívares, a de maior valor e também a mais utilizada no país(*). Note-se que seu valor é de 7 centavos de dólar. Sim, a maior nota do país vale em torno de 20 centavos de real! Pra fazer compras, desde que haja o que comprar, o cidadão tem de carregar uma sacola de dinheiro. Com o banimento da maior nota, o povo ficou sem meios de pagamento. Resultado: este fim de semana, mercadões e mercadinhos foram invadidos e saqueados. O exército foi chamado a intervir.

As fronteiras rodoviárias do país estão fechadas. No oficial, a medida foi tomada para impedir a passagem de «máfias», como se mafioso costumasse atravessar fronteira de ônibus, passaporte na mão. No paralelo, a medida foi tomada para impedir o esvaziamento do país. Se bobearem, metade da população periga abandonar a terra natal, criando um problemão com os vizinhos.

Nas condições atuais, não tem mais jeito: señor Maduro tem de cair e levar consigo todos os auxiliares, assessores, milicianos e apaniguados. O sistema esgotou-se. Raspado o fundo das gavetas, não há mais de onde tirar dinheiro. Nem o lulopetismo, que poderia usar nosso dinheiro pra dar uma mão a Maduro, vai poder ajudar. Embora muitos dos bilhões roubados de nossos impostos ainda devam estar vagando por aí, os rapinadores, acuados, estão mais preocupados em guardá-los para remunerar batalhões de advogados. Ninguém está ligando para «hermanos» necessitados.

venezuela-7Saídas há, embora todas as opções sejam traumáticas. A mais suave seria que Maduro renunciasse, um governo provisório assumisse, novas eleições fossem convocadas. Maduro não se candidataria. Logo após a renúncia, se mudaria para Cuba e sairia de cena. Infelizmente, é pouco provável que as coisas caminhem assim. Ditadores, como se sabe, perdem o contacto com a realidade. Até o último minuto, acreditam que ganharão a partida. Hajam vista Hitler, Ceaușescu & congêneres.

Outra opção, tipicamente hispano-americana, é o golpe de Estado. A única instituição capaz de fazê-lo com boa chance de dar certo é o exército. Chávez tinha sido militar de formação. Maduro, que passou ao largo das casernas e fez a vida como motorista de ônibus, não inspira reverência dos militares.

Se falharem os dois primeiros caminhos, só resta um tenebroso fim: a guerra civil. É a pior das saídas. A da Espanha (anos 1930), a do Líbano (anos 1970-1980), a da antiga Iugoslávia (anos 1990) e todas as outras deixaram um rastro de desolação e de feridas abertas que, décadas depois, ainda não cicatrizaram completamente. Esperemos que os infelizes «hermanos» não tenham de seguir por essa vereda.

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(*) Talvez não tenha nada que ver, mas o súbito desaparecimento da moeda faz lembrar o que Fernando Collor fez ao assumir a presidência do Brasil. Naquela ocasião, a intenção do confisco da poupança dos brasileiros era frear a inflação. O plano fracassou rapidamente. Se não deu certo aqui, não dará ali. Espero que não seja esse o projeto do paranoico señor Maduro. Se bem que…

Fifa-Mafia

José Horta Manzano

O alemão Thomas Kistner (1958-) é jornalista e escritor. Especializado em esportes, escreve para o quotidiano de Munique Süddeutsche Zeitung. Nos últimos anos, publicou meia dúzia de livros, os mais polêmicos dos quais mostram a promiscuidade entre esporte, dinheiro e dopagem. Naturalmente, seu cavalo de batalha é a Fifa, organização que coordena o esporte mais popular do mundo.

Seu penúltimo livro, lançado em 2014, chama-se FIFA-Mafia. Die schmutzigen Geschäfte mit dem Weltfußball ‒ Fifa-Mafia, os negócios sujos do futebol mundial. O nome já diz tudo. E olhe que foi escrito antes da espetaculosa ação da polícia suíça que mandou para o xilindró um certo senhor José Maria Marín acompanhado de meia dúzia de cartolas planetários.

blatter-2«A Fifa e a máfia se assemelham ao oferecer cargos e empregos a filhos, tios, sobrinhos, amigos próximos, que trabalham em empresas secretas mundo afora. Há uma enorme rede de negócios em torno da Fifa que inclui parentes de dirigentes.» Profundo conhecedor da cúpula futebolística, Kistner faz afirmações dessa magnitude.

No entanto, como se sabe, pau que nasce torto não tem jeito. Em que pese a prisão e a extradição para os EUA de figurões medalhados, a chefia do futebol mundial continua a dar mostras de compadrio e conivência com o crime. Proteger companheiros ainda é palavra de ordem.

O exemplo mais recente é o novo estatuto da Conmebol, o organismo que coordena o futebol sul-americano. Como é natural, encontros periódicos reúnem os presidentes das diversas confederações do subcontinente. Em geral, têm lugar no Paraguai, onde está a sede da entidade. Nada estava previsto para o caso de algum presidente faltar à reunião. Pois essa lacuna foi preenchida.

jornal-5Dado que senhor Del Nero, presidente da CBF (Confederação Brasileira de Futebol) teme ser preso caso viaje ao exterior, o estatuto da Conmebol aceita, desde setembro último, que um substituto tome o lugar de qualquer presidente ausente. A medida, como se vê, tem beneficiário líquido e certo. O cartola que preside aos destinos do futebol pentacampeão não ousa pôr os pés além das fronteiras nacionais por medo de ser preso. A situação já dura mais de três anos. Charmoso, não?

Mas deixa estar, jacaré, que a lagoa há de secar. Enfronhado no assunto, o mencionado jornalista alemão avalia que as condenações e as multas bilionárias aplicadas pela Justiça americana devem ser anunciadas a qualquer momento e poderão significar o fim da Fifa. Não seria má notícia. Quando a maioria das laranjas está podre, mais vale jogar fora o cesto inteiro.

Projetos criminosos

José Horta Manzano

Não há acordo entre etimólogos quanto à origem do termo mafia. As duas hipóteses mais frequentemente aceitas ligam a palavra a uma raiz árabe. De fato, a Sicilia esteve, faz um milênio, sob domínio árabe. A ocupação durou dois séculos e deixou marcas na língua.

Especula-se que a palavra poderia derivar do árabe maha (pedreira) ou, quem sabe, de mahias (fanfarronice). Esta última suposição parece sensata. Associação de criminosos costuma reunir membros fanfarrões. O Brasil deste triste início de século já botou muito criminoso bravateiro sob a luz dos holofotes.

Mafia 1Mafia não é exclusividade siciliana. Na própria Itália, há duas outras organizações de bandidos: a camorra em Nápoles e a ‘ndrangheta na Calabria. Associações desse jaez estão presentes também no Japão (yakuza), no México e na Colômbia (os cartéis), na Rússia, na Sérvia, na Tchetchênia, na Bulgária.

No Brasil, até vinte ou trinta anos atrás, não se tinha conhecimento de organismos estruturados para práticas criminosas. O avanço da tecnologia de comunicação, principalmente os telefones celulares, permitiu o aparecimento do PCC, do Comando Vermelho e de outros clubes da mesma natureza.

Nos primeiros tempos, a novidade limitou-se ao andar de baixo. A ascensão de elementos mal-intencionados ao nível federal favoreceu a instalação de sistema análogo no topo do poder. A inovação ainda não tem nome definido. Mensalão e petrolão definem apenas façanhas da organização. Permanecemos à espera de um termo abrangente. Logo virá.

Chamada da Folha de São Paulo, 5 março 2016

Chamada da Folha de São Paulo, 5 março 2016

Alguns métodos são comuns a toda mafia: intimidação, coação, ameaça, cobrança de «pedágio», incêndio criminoso, queima de arquivo.

Interligne 18h

PS: Misterioso incêndio irrompeu ontem nas instalações de Pasadena, aquela refinaria adquirida pela Petrobrás em nebulosas transações.

Ponte dos espiões

José Horta Manzano

Ponte 2Pense num filme de espionagem, daqueles que se passam na época da Guerra Fria. Numa manhã fria e brumosa, um espião americano, desmascarado em Moscou, ensaia os primeiros passos da travessia duma ponte sobre rio fronteiriço entre as duas Alemanhas. No mesmo momento, um espião soviético, capturado meses antes em Washington, faz o mesmo gesto em sentido contrário.

Avançam lentamente. Os caminhos se cruzam bem no meio da ponte. Sem se olhar nos olhos, cada qual continua reto até a margem oposta. «Pronto, elas por elas. Estamos quites» – suspiram aliviados os policiais e agentes que, armados até os dentes, tinham permanecido de cada lado da fronteira. Tudo correu bem. É o capítulo final de uma longa tratativa que se desenrolou nos bastidores, longe de toda publicidade.

Se o distinto leitor imagina que cenas como essa fazem parte de um passado poeirento e enterrado para sempre, convido-o a reconsiderar a questão. A imprensa italiana em peso afirma hoje que, sem a dramaticidade cinematográfica da travessia da ponte, nova troca de prisioneiros acaba de ocorrer.

Aeronave que transportou Pizzolato de SP a Brasília 23 out° 2015

Aeronave que transportou Pizzolato de SP a Brasília
23 out° 2015

A verdadeira história da extradição do mensaleiro Pizzolato, que acaba de chegar a Brasília para uma temporada na Papuda, é menos charmosa e bem menos jurídica do que se possa imaginar. Nosso mensaleiro interpreta o papel de um dos prisioneiros que atravessam a ponte. E quem é o outro?

Segundo a imprensa italiana, que deve ter seus fundamentos para afirmá-lo, a outra moeda da negociação chama-se Pasquale Scotti. É antigo membro da camorra (máfia napolitana), condenado à prisão perpétua por mais de 20 homicídios. Gente fina, como se vê. O bom moço estava no Brasil havia mais de 30 anos. Sob identidade falsa, vivia no Recife.

Ponte 1Foi capturado pela Polícia Federal em maio. Informada pela Interpol, a Itália logo pediu extradição do cidadão. O que se segue não foi publicado, mas pode ser imaginado. Autoridades italianas e brasileiras concluíram acordo na base do «eu te mando este, você me devolve aquele».

De fato, o STF autorizou a extradição de signor Scotti no dia 20 de outubro. Dois dias depois, a Itália entregou signor Pizzolato a agentes da PF brasileira. Baita coincidência, né não? Parece que a imprensa italiana sabe do que está falando.

Os detalhes da troca de prisioneiros estão na Agência Brasil (em português) e no jornal turinês La Repubblica (em italiano).

Corrupto no bolso

José Horta Manzano

Você sabia?

Nem tudo está perdido. O recém-nomeado superintendente regional da Polícia Federal no Estado de São Paulo é membro da mesma corrente de pensamento seguida pelo juíz federal Moro, do Paraná.

Em entrevista ao Estadão, foi simples e direto: «É pegar corrupto no bolso», ou seja, o confisco das posses dos assaltantes do dinheiro público é pra lá de eficiente no combate a organizações criminosas que compõem as máfias brasileiras.

Disney RossetiUm mês de carceragem, tornozeleira, prisão domiciliar não bastam. Assim como a cupidez foi o motor dos larápios, a prevenção reside na perspectiva de perder tudo o que roubaram. E, por cima disso, ainda pagar multa pesada, proporcional ao valor surrupiado.

Execração pública não dissuade cara de pau. Os sem-vergonha são gente sem vergonha. Estamos cansados de ver políticos cassados – ou que renunciaram ao mandato para fugir à cassação – voltarem à ativa, cara limpa e sorridente, como anjinhos recém-escorregados de uma nuvem.

Apesar da pouca idade, o novo superintendente já acumulou experiência no ramo. Estes dois últimos anos, funcionou como adido policial junto à embaixada do Brasil na Itália. Além de participar do caso Pizzolato, teve ocasião de entrar em contacto com a experiência da polícia antimáfia daquele país. Uma escola e tanto!

Quero aproveitar o ensejo pra compartilhar uma curiosidade com o distinto leitor. O novo superintendente chama-se Disney Rosseti. São duas palavras de grafia distorcida.

O sobrenome italiano, bastante comum, deveria escrever-se Rossetti, com dois tt. Tal nome indica que, lá pelo século 13 ou 14, quando sobrenomes começaram a ser atribuídos, o patriarca da família era ruivo. Rosso (= vermelho), rossetto (vermelhinho), rossetti (os vermelhinhos). Um tê se perdeu quando a família chegou ao Brasil.

Isigny-sur-mer, Normandia, França

Isigny-sur-mer, Normandia, França

O prenome – pra lá de original – lembra Walt Disney, o idealizador de simpáticos personagens que povoaram nossa infância. Você sabia que, apesar da aparência britânica, Disney tem origem francesa?

Pois é, vem da Normandia, norte da França. Nada mais é que a grafia inglesa – um pouco arrevesada – do francês d’Isigny (= de Isigny). Quem leva esse sobrenome há de ter tido, centenas de anos atrás, um antepassado originário da graciosa cidadezinha francesa de Isigny-sur-mer, situada à beira do Canal da Mancha, bem em frente à Grã-Bretanha.

Operação sorriso

José Horta Manzano

Fifa WM 2010Há forte similitude entre o modus operandi da clique que se apoderou da cúpula da Fifa e a que se aboletou na cúpula federal do Brasil. Para chegar lá e perenizar-se no poder, ambas se valeram do mesmo expediente: fizeram uso das regras em vigor. Concebidas para ser usadas por gente bem-intencionada, as regras não resistiram ao mau uso. Acabaram se voltando contra si mesmas num processo autodestrutivo.

No Brasil, mensalões e petrolões cuidaram da compra dos mandarins. A cooptação dos pequenos, menos complicada e menos arriscada, fluiu pela bolsa família – genial achado que garantiu ao governo o enfeudamento perene de hordas de assistidos.

Fifa WM 2006Pros lados de Zurique, embora tenha saído mais caro, a Fifa seguiu caminho análogo. De todo modo, caro ou barato, que importa? A conta é sempre paga por terceiros.

Por mais benévolo que seja nosso olhar, não encontramos mais que uma vintena de grandes nações futebolísticas. A Fifa tem 209 membros. Na hora das escolhas, o voto de uma Andorra vale tanto quanto o de uma Alemanha. A voz do Nepal tem o mesmo peso que a da Inglaterra.

Fifa WM 2002Os medalhões logo se deram conta de que, se era difícil cooptar uma Alemanha ou uma Inglaterra, ganhar o voto de numerosos pequenos países demandava menos esforço. E saía mais barato.

E assim fizeram durante anos e anos. Como o sistema estava dando certo, afrouxaram os controles. Boladas de dinheiro, cada vez mais consistentes, foram movimentadas pelo circuito bancário. Acreditando-se inimputáveis, os dirigentes do futebol mundial acharam que estava tudo dominado. Enganaram-se.

Os EUA começaram a se interessar pelo que acontecia. As razões são múltiplas:

Interligne vertical 11a* depois da Copa 1994, o esporte da bola no pé conheceu ganho de popularidade naquele país;

* os montantes movimentados são tão elevados que chamam a atenção e despertam desconfiança;

* os maiores patrocinadores da Fifa são empresas americanas, entre elas Visa e Coca-Cola;

* com bilhões, prestígio e métodos opacos, a Fifa começava a incomodar o poderio americano;

* a próxima copa está programada para se desenrolar na Rússia, país com o qual os EUA têm uma pendenga. A tentação de melar o jogo era muito grande.

No meu entender, está aí a explicação para o que está acontecendo. Sepp Blatter diz que pretende continuar no trono até o fim do ano. Imprudente, a afirmação não faz sentido. Seria como se Collor, havendo renunciado, guardasse as rédeas do País durante quase um ano, à espera de novas eleições.

Imagino que Herr Blatter seja despachado rapidinho. Depois disso, o mais adequado será substituí-lo pelo príncipe jordaniano – o único que ousou desafiar o poderoso capo. Agora que o chefão caiu, são muitos os que criaram coragem para se candidatar. São como toureiros posando com o pé em cima de touro morto. Valor tem de ser dado àquele que enfrentou a fera enquanto ela rugia.

Copa 14 logo 2No frigir dos ovos, o mundo saiu ganhando. Corruptores e futuros corrompidos pensarão duas vezes antes de agir. Por alguns anos, a Fifa deverá ser governada sem derivas mafiosas. Muita gente sente que, a partir de agora, o esporte mais popular do mundo será mais bem administrado.

Os EUA saíram bem na foto e acabaram ficando com o crédito desta verdadeira operação sorriso.

A quem beneficiou o crime?

José Horta Manzano

Interligne vertical 10.

«Kennedy est un livre ouvert où l’on peut mettre ce qu’on veut»

Kennedy é um livro aberto onde cada um pode pôr o que quiser

Thomas Snegaroff, historiador francês

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Assassinado aos 46 anos, John F. Kennedy deixou de herança a aura de charme que circunda os que morrem na flor da idade. São aqueles que ninguém jamais verá envelhecer. Pertence à casta que inclui Noel Rosa, Che Guevara, Elis Regina, Marilyn Monroe, Eva Perón, James Dean. São gente que pagou com a vida o preço da preservação da eterna juventude na memória coletiva.

Passados cinquenta anos daquele ensolarado e trágico meio-dia texano, muitas perguntas ainda vagam sem resposta. Essas dúvidas não serão provavelmente jamais esclarecidas. Faz parte do fascínio do sorridente presidente.

Centenas de livros já foram escritos sobre o assunto. Dezenas de teorias ― umas plausíveis, outras fantasistas ― têm sido propostas. Há quem garanta que foi obra da máfia. Outros juram que só pode ter sido o FBI do temido Edgar Hoover. Outros ainda enxergam o dedo de Fidel Castro e de seus amigos soviéticos. Até extraterrestres já foram cogitados. Há até mesmo quem acredite ― não são muitos ― na tese oficial, que aponta um assassino individual.

Dallas, 22 nov° 1963

Dallas, 22 nov° 1963

Valéry Giscard d’Estaing foi presidente da França há quase 40 anos, na época em que Gerald Ford era inquilino da Casa Branca, em Washington. Durante uma visita que fez aos EUA, Giscard aproveitou um dos raros momentos em que os dois estiveram a sós para pedir ao presidente americano detalhes sobre as conclusões da Comissão Warren.

A Comissão Warren foi criada por decreto do presidente Lyndon Johnson, sucessor de Kennedy, uma semana depois do assassinato. Sua finalidade era justamente lançar luz sobre os comos e os porquês do evento dramático. Os componentes da comissão eram seis: dois deputados (um democrata e um republicano), dois senadores (um democrata e um republicano), um antigo diretor da CIA, um diplomata e antigo presidente do Banco Mundial. Eram assessorados por um jurista. John Ford, deputado republicano em novembro de 1963, era um dos seis integrantes. Daí a pergunta do presidente francês.

Em entrevista concedida ontem, um Giscard ainda lúcido e vivaz ― aos 87 anos de idade ― confiou que, segundo o relato que ouviu de Ford 40 anos atrás, as conclusões a que chegaram os membros da Comissão Warren não foram satisfatórias. Na realidade, as investigações indicavam que, longe de ser isolado, o crime era o resultado de um complô bem organizado. Cada um dos investigadores guardou a íntima convicção de que o atentado havia sido planejado e executado por alguma entidade. Mas… qual? Na ausência de provas, a comissão resignou-se a encampar a tese de um desequilibrado atirador solitário. Todos assinaram embaixo. Tentaram tranquilizar a opinião pública e pôr um ponto final naquele trauma.

Desde o dia em que ouviu as confidências de Gerald Ford, Valéry Giscard d’Estaing guarda a certeza de que John Kennedy foi vítima de um complô. Os mandantes já hão de estar todos mortos. Quem sabe um dia saberemos quem eram. Ou não.

É verdade, mesmo!

José Horta Manzano

A Interpol acaba de incluir em seu seleto rol de procurados o Signor Henrique Pizzolato, antigo diretor do Banco do Brasil, condenado a quase 13 anos de reclusão no processo do mensalão.

O homem foi diretor do Banco do Brasil, minha gente! O banco mais antigo do País, aquele que abriu as portas em 1809, por vontade de Dom João VI. Justamente aquele que estampa, na versão inglesa de seu site, o lema «A history of trust» ― uma História de confiança. Quanta ironia…

Wanted! ― Henrique Pizzolato ― Wanted!

Wanted! ― Henrique Pizzolato ― Wanted!

Por enquanto, pelo menos, o cavalheiro fugido escapa da Papuda. Tranquilo, vai poder usufruir da parte que lhe coube do butim surrupiado do suado povo brasileiro. Tranquilo? Tenho lá minhas dúvidas.

Não deve ter sido fácil escolher entre passar algum tempo eclipsado numa cela brasileira padrão cinco estrelas, ao abrigo de olhares indiscretos, e passar o resto da vida se esgueirando rente aos muros italianos e desconfiando da própria sombra. O Signor Pizzolato fez sua escolha. Ganhou, com isso, o raro privilégio de ter nome, idade e foto difundidos pela polícia internacional. Wanted! É glória reservada a um punhado de gente fina.

Lembrei-me de um detalhe pitoresco. Há de ser mera coincidência, mas vale a pena mencionar. Uma das tradicionais atividades da mafia siciliana é o achaque de pequenos comerciantes. Os pequeninos são coagidos a pagar aos criminosos uma «taxa de proteção». Caso se recusem, as represálias podem chegar à destruição do comércio ou até pior que isso. Em terras sicilianas, o montante extorquido leva o curioso nome de «pizzo».

A desonestidade já é terrível defeito. Mas a defecção ― uma traição perpetrada contra seus próprios comparsas ― é ainda mais tremenda. Shame on Signor Pizzolato. Vergogna!

Devagar com o andor

José Horta Manzano

Papa Francisco

Papa Francisco

O melhor conselho que se pode dar ao Papa Francisco ― se é que cai bem dar conselho a um papa ― é que procure pisar leve. Ele anda caminhando por terreno minado. A Cúria e o establishment vaticano estão se sentindo incomodados com a falta de cerimônia do pontífice. Quando se sacode o abacateiro, algum abacate pode até nos cair na cabeça. E dos grandes.

Por detrás do ar circunspecto e dos gestos suaves e compungidos dos cardeais que administram as burras e os segredos do Vaticano, há muito mais do que possa imaginar nossa ingenuidade. Interesses financeiros gigantescos, relações perigosas com grupos de reputação sulfurosa.

O Washington Post adverte que as reformas promovidas pelo papa estão deixando «muito nervosos» os capi (chefões) da organização mafiosa ‘Ndrangheta(*). Esse bando de criminosos, ativos na Calábria, são considerados ainda mais violentos que os mafiosos sicilianos.

Se facilitar, Papa Francisco poderá passar para a História como Francisco, o Breve. Seria um desperdício.

(*) Para quem faz questão de pronunciar bem.
Nessa palavra, os italianos põem o acento tônico na primeira sílaba. Portanto, pronuncie drângueta, como lâmpada, cândida, cânfora.

¿ Por qué no te callas ?

José Horta Manzano

O povo brasileiro pode sentir-se protegido. Big Brother cares for you ― lá no andar de cima, os figurões cuidam de você.

Prisioneiro

Prisioneiro

Já faz quase uma semana que o clima político-policial anda agitado em consequência da revelação que o Estadão fez sobre o crime dito organizado. Falo das investigações e das provas trazidas pelo Ministério Público do Estado de São Paulo sobre a gangue autodenominada PCC.

Matilhas criminosas costumam prosperar lá onde o Estado estiver ausente. As máfias do sul da Itália, da Rússia, da região balcânica têm-se valido desses desvãos para progredir. Nosso país tem uma classe política que muito fala e pouco faz. Os discursos, os pronunciamentos, os anúncios, os comícios apontam todos para um futuro radioso de felicidade geral. Na prática, a teoria tem sido outra.

Preocupados mais com politicagem do que com política, nossos governantes vivem dentro de uma bolha confortável que os isola do dia a dia da nação. Absorvidos por permanentes manobras visando à manutenção de seu próprio poder, desconectam-se da tarefa para a qual foram eleitos. A administração é abandonada a assessores e auxiliares que, incompetentes, vão empurrando com a barriga.

O resultado está aí. O governador do Estado mais importante do País fica sabendo pelos jornais que sua eliminação vem sendo planejada por uma súcia de presidiários.

Criminosos com contabilidade e Conselho de Administração

Criminosos com contabilidade e Conselho de Administração

A presidência da República acaba de anunciar que, dentro em breve, o Brasil estará em condições de tornar seguras as mensagens emitidas por brasileiros. Paradoxalmente, essas mesmas autoridades, tão lestas a reorganizar o fluxo da comunicação entre gente comum, são incapazes de coibir o uso de telefones celulares nas prisões. É paradoxal. Haja descaso!

¿ Por qué no te callas ?

¿ Por qué no te callas ?

Para coroar, vem agora o ministro da Justiça em pessoa declarar que considera inaceitável «a atuação e a dimensão» (sic) da corja de prisioneiros. É de perguntar que atuação ele esperava da malta. E qual seria a dimensão «aceitável».

*

Há horas em que é melhor fechar a boca para não dizer besteira.

Pra que lado eu corro?

José Horta Manzano

Salsicha

Fabricação de salsicha

«Gesetze sind wie Würste, man sollte besser nicht dabei sein, wenn sie gemacht werden»

Leis são como salsichas: é melhor não estar por perto quando são fabricadas.

Citação atribuída a Otto von Bismarck (1815-1898), homem político alemão.

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Decididamente, há um bocado de esquizofrenia na maneira como o governo brasileiro vem-se comportando com relação às revelações públicas de espionagem americana.

Lado A
Pela pluma de Denise C. Marin, o Estadão de 8 de agosto nos informa que o Planalto está disposto a dar «proteção» ― seja lá o que isso signifique ― a um jornalista americano. Note-se que o homem a quem se está propondo proteção não a solicitou. Oferecer blindagem a quem não pediu é prática utilizada sistematicamente por organizações mafiosas. Vindo de um governo, é menos usual.

Mas essa é uma outra história. Soaria artificial se eu comparasse a proteção garantida pelo Estado brasileiro a estrangeiros divulgadores de segredos de Estado com o pizzo extorquido por chefes de clã sicilianos em troca de defesa e segurança.

O jornalista é cidadão americano, vive no Brasil e oficia como correspondente do jornal londrino The Guardian. Andou escrevendo, no respeitável periódico para o qual trabalha, aquilo que todos já sabiam sem que estivesse escrito. Disse simplesmente que espiões espionam.

É uma das práticas mais antigas do planeta. Ela começa com vizinhos, que se espreitam através das frestas da veneziana. Passa por camelôs, firmas comerciais, indústrias, que se espiam como podem, com maior ou menor classe. E chega até países, que se espionam mutuamente com a sofisticação de que são capazes.

Todos fazem isso. Não é o fato de não se falar de um fato que faz que ele não exista. Não se costuma falar de espionagem, mas a realidade é que ela sempre existiu e sempre existirá. De certas coisas, não convém falar. Ponto e basta. É como a fabricação de salsichas: mais vale não conhecer detalhes.

Lado B
O mesmo artigo do Estadão nos dá conta de que o governo brasileiro anda preocupado com a visita aos EUA, que dona Dilma tem programada para o mês de outubro. Nestes tempos de popularidade escassa, na falta de uma recepção com chuva de papel picado na Quinta Avenida, umas fotos sorridentes ao lado de Obama fariam grande bem a nossa mandachuva.

Essa é sem dúvida uma das razões que explicam esse comportamento «morde e assopra» do governo brasileiro. Com a China desacelerando, é prudente não levantar muito a crista perante um de nossos maiores clientes.

Rica de informações, a matéria do jornal ainda informa que o Brasil está propenso a retomar com os EUA as negociações, emperradas faz quase 15 anos, sobre o compartilhamento da base de lançamento de Alcântara. Compartilhar com o inimigo que nos espiona! Quem diria…

Conclusão I
Que o país que nunca espionou nenhum outro atire a primeira pedra! Essa lapidação não periga acontecer.

Conclusão II
Essas «revelações» feitas por iluminados ou por surtados podem causar algum espalhafato mas não abalam a marcha do mundo. Se a História guardou o nome de alguns espiões famosos tais como Judas, Mata Hari, Joaquim Silvério dos Reis, Günter Guillaume, não há registro de denunciadores de espiões.

Com ou sem «proteção» do Estado brasileiro, a glória desse senhor será efêmera.

Interligne 37b

Com ditadura é mais fácil

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 4 maio 2013

«L’important dans la vie ce n’est point le triomphe, mais le combat.
L’essentiel n’est pas d’avoir vaincu, mais de s’être bien battu.»

O importante na vida não é o triunfo, mas o combate.
O essencial não é vencer, mas lutar bem.

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Que me perdoem pela longa citação. É a famosa máxima ― geralmente mencionada truncada ― do barão Pierre de Coubertin, aquele que, 120 anos atrás, ressuscitou os Jogos Olímpicos. Achei importante citá-la na íntegra.

Quando o barão pronunciou essas palavras, todos fingiram acreditar. Mas elas seguem um raciocínio contrário à natureza humana. Não tivessem nossos antepassados vencido, e não estaríamos nós aqui. É importante lutar, mas vencer é o objetivo natural de toda contenda. Ninguém compete pelo simples prazer de renhir. Dizem alguns biógrafos, aliás, que nem o próprio barão acreditava na frase que havia pronunciado.

Há mentiras e meias-verdades em que a gente faz que acredita. Nem que seja só para evitar discussão. Um antigo presidente de nossa República, quando ainda exercia o cargo, disse certa feita que a Venezuela padecia de excesso de democracia. Todos fizeram cara de acreditar. Pra que discutir?

François Hollande, quando ainda candidato à presidência da França, garantiu que consertaria a economia do país já no primeiro ano de mandato. Alguns eleitores acreditaram, outros só fizeram cara. O homem foi eleito. Um ano depois, a economia continua a mergulhar num abismo que parece não ter fim, enquanto a taxa de desemprego sobe à estratosfera. Estes dias, Monsieur Hollande voltou a prometer que, daqui para o fim do ano, sem falta, estará tudo dominado e o país terá entrado nos eixos. Agora, vai. A gente faz que acredita. Pra que discutir?

No Brasil, ao término de um processo conhecido como mensalão, alguns figurões de alto coturno foram considerados culpados e, ato contínuo, condenados por crimes vários. Curiosamente, alguns dos anjos caídos ― justamente os que mais alto se situavam na hierarquia ― continuam a jurar não ter jamais cometido os crimes pelos quais foram sentenciados. Alegam ter sido vítimas de uma farsa grotesca e garantem que uma corte internacional de arbitragem reconhecerá a iniquidade da condenação. Todos fazemos de conta que acreditamos. Pra que discutir?

De vez em quando, um medalhão nos surpreende com alguma declaração fora de esquadro. Semana passada, por exemplo, o secretário-geral da Fifa nos brindou com uma pérola. Em tom de queixa contra a burocracia brasileira, afirmou que «um nível mais baixo de democracia é preferível para organizar uma Copa do Mundo». Trocando em miúdos, o mandarim insinuou que, na hora de preparar um campeonato mundial, nada se compara a uma boa ditadura.

Crédito: Guilherme Bandeira www.olhaquemaneiro.com.br

Crédito: Guilherme Bandeira
http://www.olhaquemaneiro.com.br

O secretário-geral tem tudo para se sentir blindado. No ano passado, depois de fazer um de seus desastrados pronunciamentos, foi declarado persona non grata pelo Ministro dos Esportes do Brasil. Sabe-se lá por que milagre, o incêndio foi apagado rapidinho e o episódio foi esquecido. Monsieur Valcke voltou a ser persona grata em nossas terras.

De novo incensado, sentiu-se livre para reclamar da quantidade de interlocutores com os quais é obrigado a dialogar no Brasil. Gostaria de ter uma só pessoa com quem conversar. Se essa pessoa for o mandachuva maior, melhor ainda.

O secretário-geral mostrou-se nostálgico da Copa de 1978, aquela que serviu de vitrina para os ditadores argentinos mostrarem ao mundo a excelência do regime. Na época, naturalmente ninguém mencionou o lado sombrio e as dezenas de milhares de desaparecidos.

Para coroar, o figurão não se privou de formular votos para que a Copa seguinte, a da Rússia, seja mais do seu feitio. Chegou ao despudor de mencionar o nome de Putin. Mostrou-se seguro de que o tsar de todas as Rússias ainda estará firme no poder, e de que, com ele, o diálogo será mais fluido. Ninguém duvida.

O relacionamento entre a Fifa e o governo brasileiro é complicado, difícil de delinear. O que parece nem sempre é. A riquíssima Fifa é organização notoriamente corrupta. A elite política brasileira também está habituada a lidar com muito dinheiro e não costuma mostrar especial empenho em coibir a corrupção por estas bandas.Copa 14 logo 2

Mas cada turma tem seus métodos, seu jeito de operar. Mal comparando, costurar um acordo entre a Fifa e os governantes brasileiros é tentar conciliar, digamos, capos da Máfia siciliana com chefes da Camorra napolitana. Para chegar lá, precisa ter boa vontade e paciência. Muita paciência.

Nosso consolo é que, no fim, o esporte vencerá. Afinal, o importante é competir. Pra que discutir?