Desleixo

José Horta Manzano

Para os saudosistas, volta e meia a tevê francesa passa algum trecho de programa dos primórdios da televisão, programas dos anos 1950 ou 1960. As imagens são em preto e branco e não têm a nitidez das atuais, mas são retrato saboroso de uma época.

A construção da identidade de uma nação se faz a partir desse tipo de memória. Sem a imagem, ficamos na conjectura. Aprender com o passado, quando não há desenho, nem estampa, nem figura, fica complicado – especialmente para as jovens gerações, que nasceram num mundo de imagens.

França, Alemanha, Inglaterra, Suíça, Itália e os demais países da Europa ocidental têm todo o acervo de programas televisivos gravado e conservado desde que os primeiros aparelhos de videotape permitiram, lá pelo final dos anos 1950. O mesmo vale para todas a emissões de rádio, devidamente registradas e arquivadas desde que os meios técnicos permitiram a realização de gravações.

Quando a gente vê imagens com cenas de rua de Londres, Paris e Berlim de um século atrás, é de ficar babando. Há quantidade desses filmes que mostram a vida como ela era, não só nas cidades, mas também nos vilarejos. Das nossas principais cidades – que, no entanto, já eram grandinhas no começo do século XX – não há praticamente nada. A conservação da memória através da imagem nunca foi uma preocupação nacional.

E tudo indica que continua não sendo. A perda do Museu da Língua Portuguesa pelo fogo, faz sei anos, mostrou que o descaso para com um dos pilares da formação de nossa nação é mal de raiz. Três anos atrás, repeteco: a pavorosa destruição pelo fogo do Museu Nacional deixou evidente que nada havia mudado, e que continuávamos a desdenhar daquelas “velharia inúteis que não dão camisa a ninguém”.

A tristeza mais recente é a ruína de parte do acervo da Cinemateca Brasileira, de novo pelo fogo, perpetrada estes dias. Antes de tirar o lenço pra chorar a perda, é bom preparar a raiva. Fique-se sabendo que, nos últimos 60 anos, a Cinemateca já foi parcialmente destruída por 5 incêndios e uma enchente! Bota descaso nisso!

Os incêndios precedentes tinham ocorrido em 1957, 1969, 1982 e 2016. Em 2020, foi a vez da água da enchente, que inutilizou 113 mil DVDs.

A gestão(?) Bolsonaro não tem a culpa pelo que aconteceu no passado, sejamos justos. Mas tem responsabilidade – e como! – pelo que acontecerá daqui pra frente. As consequências do pouco caso da atual administração federal hão de se fazer sentir por décadas.

Se a destruição da memória nacional continuar no ritmo atual, os brasileirinhos dos anos 2100 vão se sentir como nós hoje, privados de memória visual do passado. Terão de contar com a transmissão oral, como nas civilizações que ainda não atingiram o estágio da escrita.

Ardido

José Horta Manzano

Em setembro de 2018, o mais significativo repositório da memória nacional virou tragédia e deixou de existir. Quando queimou o Paço de São Cristóvão, que abrigava o Museu Nacional, uma onda de comoção bateu nos costados do mundo civilizado. Uma catástrofe.

Na ocasião, escrevi um artigo contando curiosidades do passado de um edifício que foi residência de quatro gerações de monarcas. As eleições presidenciais estavam próximas e, naturalmente, não se sabia ainda quem havia de vencer. Eram tempos de suave esperança para os que não suportavam mais o descalabro dos governos lulopetistas.

Formulei então votos de que o próximo presidente, fosse ele quem fosse, fizesse uma visita à Biblioteca Nacional logo no início do mandato. Em matéria de memória nacional, é certamente a joia que nos restou depois da perda do museu arso(*).

Ai de nós, quem é que podia imaginar! Acho que ninguém se tinha dado conta de que estava subindo ao trono o indivíduo mais ignorante jamais eleito no Brasil. Pra piorar, apesar de não ter aprendido nem o básico, doutor Bolsonaro despreza a Educação, pisoteia as Relações Exteriores e tem feito o que está em seu poder para a destruição de nossa cobertura vegetal e para a desertificação do país.

É muita desgraça junta. Acho que o presidente aplaudiria se a Biblioteca Nacional ardesse e se, no terreno, fosse instalada uma filial da Disneylândia. É lastimável que, desde que virou o século, o Brasil tenha sido presidido por ignorantes. Para a cultura nacional, o golpe tem sido duro.

Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro

Com o Lula, a intenção era boa, mas o resultado foi pífio. Numa projeção que a psicologia talvez explique, pensou em dar ao país a possibilidade de fazer os estudos que ele não tinha feito. No entanto, passando por cima da instrução elementar, fomentou a abertura de dúzias de faculdades de beira de estrada. (É fato que uma faculdade é mais visível que um grupo escolar, mas ninguém chega lá sem ter passado por aqui.) Botou Gilberto Gil no Ministério da Cultura; o moço é excelente músico, mas… ministro da Cultura? No espremer dos limões, o Lula relegou a formação elementar à ventura.

Da Dilma, esperava-se uma ‘gerentona’ firme e forte. Ao fim e ao cabo, tivemos uma ‘presidenta’ autoritária, falsificadora do próprio currículo, de mente confusa, que não deu a mínima atenção à formação dos brasileirinhos. Sua ‘Pátria educadora’ não passou de slogan.

Do presidente atual, dá tristeza falar. É esse estropício tosco que está aí. Deu vexame na escolha de titulares para a Educação e para a Cultura. Não visitou (nem visitará) a Biblioteca Nacional. Talvez nem saiba que ela existe. Livro não é seu terreno de predileção. Só nos resta torcer pra que ele vá se embora logo. E que o próximo seja um bocadinho melhor. Será difícil ser pior, mas, no Brasil, nada é impossível – principalmente a piora.

(*)Nota etimológica
Arder corresponde diretamente ao verbo latino ardeo/ardere, que significa estar em chamas, queimar. O particípio perfeito latino é arso, palavra que, segundo o Volp, existe em português. Tanto pode ser adjetivo como substantivo.

É curioso que nenhum dicionário online traga esse verbete. Consultei Houaiss, Priberam, Aulete, Michaelis, Porto Editora, Cândido de Figueiredo e 7 Graus – sem sucesso. O Volp é um vocabulário que se limita a atestar a existência da palavra, dar a grafia e o gênero gramatical; porém, não dá o significado. Assim, resta supor que arso tenha o sentido que tinha na língua latina.

Em português, os descendentes de arder não são multidão: ardido, ardor, ardência, ardente, aguardente. E, naturalmente, arso(=queimado, que ardeu, ardido).

Discurso na ONU

José Horta Manzano

Salvo intérpretes simultâneos, ninguém presta muita atenção aos discursos pronunciados na abertura da sessão anual da ONU. Intérpretes, naturalmente, são obrigados, por dever de ofício, a não perder uma palavra. Fora eles, cada um dá importância ao discurso de seu presidente. E a mais nada.

Não escutei todos os discursos – só faltava! –, mas acompanhei o de Bolsonaro, o de Trump e o de mais meia dúzia de dirigentes. Não pretendo aqui fazer análise comparativa entre todos, mas vou revelar a impressão que algumas passagens me deixaram.

Os discursos de Trump e de Bolsonaro seguiram linha semelhante: traziam ambos a palavra de um governante acuado, angustiado, preocupado com o próprio destino. Tanto o discurso de um quanto o do outro se destinavam ao público interno.

Sabe-se que Trump anda pisando em ovos, de olho nas eleições de novembro. Sabe-se também que Bolsonaro anda sentindo o cerco da justiça e da polícia ao próprio clã. Nas entrelinhas, o discurso de ambos deixava transparecer essa preocupação.

Sem atuação internacional digna do tamanho do país, Bolsonaro mencionou as forças de paz que, ao longo da história, contaram com participação de militares brasileiros. Ah, a falta que uma política internacional faz!

Uma diferença notável entre os discursos lulopetistas e o de Bolsonaro é que aqueles reivindicavam, a cada ano, um lugar para o Brasil entre os grandes, com direito a assento permanente no Conselho de Segurança. Com Bolsonaro, parece que o Brasil se acomodou no papel de coadjuvante.

Tanto Trump quanto Bolsonaro se gabaram de ter feito tudo o que não fizeram. Ambos pintaram um quadro de combate à pandemia como se tivessem sido eles os idealizadores. Nada mais falso; foram eles o principal empecilho. Bolsonaro teve o topete de sugerir que foi ele quem deu instruções a prefeitos e governadores. Todos sabem que não foi assim; prefeitos e governadores tiveram que batalhar firme para aplicar as políticas preconizadas pelas autoridades sanitárias mundiais.

Sem se dar conta da contradição, Bolsonaro diz o sim e o não, o verso e o reverso. E faz isso na mesma frase. Em exercício de negacionismo explícito, disse que a floresta, por ser úmida, é incombustível. Logo a seguir, quase sem pausa pra respirar, acrescentou que as queimadas são provocadas pelo caboclo e pelo índio que queimam o roçado em busca da sobrevivência. Afinal, o mato queima ou não queima, doutor?

Trump e Bolsonaro destoaram da polidez aveludada que costuma reinar naquele recinto. O americano atacou veementemente a China, acusando seu maior parceiro comercial de todos os males. O brasileiro acusou (sem provas) a Venezuela pelo derramamento de óleo que atingiu nosso litoral no ano passado. Como se sabe, a origem daquele desastre nunca ficou estabelecida com segurança.

Ficou mais uma vez demonstrado que presidente de uma república não pode ser improvisado. As falas de Trump e de Bolsonaro são a prova disso. Ambos são gente saída não se sabe de onde, sem eira nem beira, oportunistas sem o mínimo de cultura e de abertura de espírito indispensáveis para exercer a função que lhes foi outorgada.

Bolsonaro pronunciou (e louvou) o nome de Trump, o que não é habitual, nem fica bem. Escancara uma subserviência que só faz rebaixar a «soberania» reclamada pelo Planalto. O presidente de Cuba não perdeu a ocasião para queixar-se do «império» (leia-se os EUA); é recorrente.

A Rússia foi feliz na instalação das bandeiras como pano de fundo, atrás de Vladimir Putin. Apareciam, lado a lado, a bandeira nacional e a da ONU. Ficou bonito. Tanto a estética quanto a simbologia ficaram nos trinques.

No fundo, o que mais me agradou da apresentação do Brasil foram as legendas. Tradução benfeita e legenda colocada à margem inferior, permitindo visão integral da imagem. A tradução foi impecável. Pena não se poder dizer o mesmo do discurso. Mas disso a gente já sabia. Ou não?

Triste fim

José Horta Manzano

Este fim de semana, aqui na Europa, os incêndios da floresta amazônica aparecem em toda a mídia: jornais impressos, veículos online, noticiário do rádio e jornais da tevê. Mesas-redondas são organizadas, com políticos, climatologistas, sociólogos, demógrafos, jornalistas. Cada um tem sua opinião sobre o problema. De onde vem? Por que ocorre? A extinção do fogo interessa a alguém? São perguntas que, muitas vezes, não têm resposta.

Das discussões a que assisti, nenhuma mencionou a matança de animais. Há tanto bicho por ali, que os estudos não chegam à quantidade exata. As contas dão sempre números redondos.

Filhote de bicho-preguiça

Numa pesquisazinha rápida, fiquei sabendo que a região abriga mais de 400 espécies de mamíferos. As espécies de répteis são outro tanto. Esse é o número de espécies, não de animais!

Há onças-pintadas, micos-leão-dourados e outros macacos, bichos-preguiça, tatus, antas, sapos. Fico imaginando o triste e doído fim dessas infelizes criaturas. São milhões, zilhões.

Já que essa carnificina comove tão pouca gente, deixo aqui minha lágrima.

Doações midiáticas

José Horta Manzano

Estão fazendo fila os doadores para a causa da reconstrução da catedral Notre-Dame de Paris. Os donativos já atingem um bilhão de euros, quantia respeitável, quase 4,5 bilhões de reais.

Na Europa, os franceses têm fama de reclamões, aquele tipo de gente que nunca está contente. Há nisso um fundo de verdade. Mas, desta vez, parece que têm razão de se queixar. Muitas vozes se levantam pra lamentar que, quando se trata de ajudar aos que precisam, nunca há dinheiro; no entanto, pra reconstruir «uma igreja» ‒ e isso tem de ser pronunciado com boca de pouco caso ‒ chovem milhões.

Para recolher dinheiro, foi aberta uma subscrição nacional. Por seu lado, loterias, vaquinhas e quermesses se organizam em todo o território francês. Logo, logo, vai ser instalada uma conferência de doadores pra arrecadar mais fundos. E, mais que tudo isso junto, chovem doações de grandes empresas e de bilionários.

A família Arnault, a mais rica do país, doou 200 milhões de euros. A família Pinault, outra potência, vai contribuir com 100 milhões. Outros abastados ‒ os Bettencourt, donos do grupo l’Oréal ‒ vão entrar com 200 milhões. Em seguida, vêm os “pequenos” doadores, aqueles que doam 10 ou 20 milhões de euros. São muitos.

Villa Leopolda, na Côte d’Azur (França), propriedade de Madame Lily Safra
Avaliada em US$ 500 milhões, é uma das propriedades mais caras do planeta

Entre esses “pequenos”, está a bilionária Lily Safra ‒ brasileira, nascida no Rio Grande do Sul, viúva do banqueiro Edmond Safra. Segundo algumas fontes, propôs-se a doar 10 milhões de euros (44 milhões de reais). Outros chegam a mencionar 20 milhões (88 milhões de reais). Seja como for, é muuuito dinheiro.

Cada um faz o que quer com o próprio dinheiro. Fica registrada, no entanto, a surpresa. Madame Safra é conhecida pelas doações milionárias que faz regularmente a causas e institutos diversos. É curioso que ela, que cresceu no Rio de Janeiro, não se tenha comovido com o incêndio do Museu Nacional, aquela monstruosa queima de arquivo da memória do país. Não consta que tenha destinado nem um centavo à reconstrução do prédio ou à reconstituição do acervo. É verdade que não teria dado ibope. Doação boa é doação que aparece.

Silêncio é poesia

José Horta Manzano

Logo que começaram a pipocar as mensagens de simpatia de líderes do mundo inteiro abalados com o incêndio de Notre-Dame de Paris, senti uma certa inquietação: que faria doutor Bolsonaro? Será que ia se calar fingindo que era poste? Será que ia mandar mensagem? E, se mandasse, que barbaridade perigava escrever no bilhete?

Aliviado, descubro que o pior não aconteceu. A mensagem do presidente foi sóbria, digna, exatamente como se espera de personagem equilibrado. Não estivesse assinada de próprio punho, eu nem acreditaria que tivesse sido escrita por ele mesmo.

Já Mr. Trump, ai, ai, ai. Que bordoada! O homem se permitiu dar conselho aos bombeiros de Paris, imagine só! Enquanto as chamas consumiam o edifício, sugeriu que fossem despachados aviões-cisterna, daqueles que se usam para combater incêndio florestal. E que despejassem toneladas d’água sobre a catedral.

Condescendentes, os bombeiros de Paris responderam delicadamente que não era uma boa ideia, pois o peso da água perigava destruir o que restava do monumento além de matar pedestres. Muito acertadamente, as normas proíbem o uso de aviões-cisterna em meio urbano. Desta vez, doutor Bolsonaro livrou-se do ridículo.

Em boca fechada não entra mosca, minha gente. Donald Trump calado é um trovador. Se subsiste uma duvidazinha quanto à autoria da mensagem de doutor Bolsonaro, não há que hesitar pra designar o autor do bilhete de Mr. Trump: é ele mesmo.

Quem viu, viu

José Horta Manzano

«Je ne la verrai plus jamais. Il faudra 40 à 50 ans pour la reconstruire ‒ Eu não a verei nunca mais. A reconstrução vai levar 40 ou 50 anos.» As palavras (e as lágrimas) são de Monsieur Stéphane Bern, popular apresentador televisivo que aparece todos os anos na lista das personalidades mais apreciadas pelos franceses. O testemunho foi dado enquanto ainda não se haviam extinguido as brasas do incêndio da catedral Notre-Dame(*) de Paris.

Talvez haja algum exagero na estimativa de Monsieur Bern, compreensível dada a emoção do momento. Na minha opinião, no entanto, por mais importantes que sejam as verbas aplicadas na reconstrução, ela não se fará da noite para o dia. As dificuldades são muito muito grandes.

Para começar, certos materiais simplesmente não existem mais. A parte que se incendiou completamente ‒ o madeirame que sustentava o telhado ‒ era de carvalho maciço. Setecentos anos atrás, árvores de bom tamanho e de boa qualidade já não eram fáceis de encontrar. Hoje em dia, simplesmente desapareceram. Não existem mais. Muitas análises terão de ser feitas só pra encontrar substituto válido.

Os estudos de solidez da estrutura que restou serão minuciosos e longos. Afinal, a ordem de reconstruir por cima de alicerces fragilizados não pode ser dada com leviandade. Nenhum arquiteto gostaria de ver seu nome ligado, para todo o sempre, a um eventual desmoronamento de Notre-Dame em consequência de erro seu. Que terrível estigma!

Obras arquitetônicas há muitas, algumas magníficas como o Taj Mahal. Templos religiosos há milhares, como a igreja de qualquer pracinha. Construções icônicas há um punhado, como o Cristo Redentor. O magnetismo de Notre-Dame vinha do fato de concentrar essas três qualidades: era monumento arquitetônico, templo religioso de primeira grandeza e símbolo da França e de Paris em particular. Com 13 milhões de visitantes por ano, era ‒ disparado ‒ o edifício mais visitado da Europa, quiçá do mundo.

Mas assim são as coisas. Quem viu Notre-Dame por dentro, viu. Quem não viu, não verá.

(*)À cata da repercussão do desastre de Paris, consultei sites escritos em diversas línguas. Achei curioso que nenhum deles traduzisse o nome da catedral. Ninguém falou em Our Lady Cathedral, nem em Cattedrale della Madonna, muito menos em Catedral de Nossa Senhora. Todos mantêm a forma original: Notre-Dame. Não há dúvida, soa muito mais chique.

Birras

José Horta Manzano

by Tiff, desenhista francês

Prisão sem bloqueador
Nem todos os estabelecimentos penitenciários brasileiros são equipados com bloqueador de celular. Numa época como a nossa, em que o barateamento de dispositivos de vigilância envolveu o mundo numa teia de controles, fica difícil justificar essa ausência de monitoramento justamente onde ele é mais necessário. Se alguém souber o motivo dessa lacuna, por favor mande carta para a redação.

Sem seguro
Em agosto de 2017, um balão caiu no velódromo do Parque Olímpico do Rio de Janeiro e provocou incêndio. Era de noite, ninguém se feriu, mas o prejuízo ficou em 10 milhões de reais. Por mais incrível que possa parecer, a instalação esportiva não tinha seguro contra estragos causados pelo fogo. Como o assunto saiu de foco, nunca mais se falou nisso. A conta foi paga, naturalmente, com dinheiro do contribuinte.

De um prédio público, nem se fala: é inadmissível que não tenha seguro. Mas também de um prédio particular, é estranho que proprietários não se preocupem em proteger o que lhes pertence. Em terras mais civilizadas, seguro residencial contra incêndio é obrigatório. Em geral, a seguradora oferece planos que cobrem também queda de raio, chuva de granizo, inundação, vidraça estilhaçada, roubo por arrombamento. Pagar seguro e nunca ter de utilizá-lo é sempre melhor que perder a casa e descobrir que não tinha seguro.

Nome feio
Crodowaldo, Ketymarani, Frankstein, Izuperiu, Leidi Dai são alguns dos prenomes estranhos carregados por milhões de infelizes conterrâneos nossos. A meu ver, a liberdade de imaginação dos pais termina onde esbarra no direito que o filho tem de portar nome digno. O pobrezinho vai ter de arrastar o nome pelo resto da vida. Não se pode admitir que pais ignorantes ou irresponsáveis deem ao filho prenome estigmatizante.

Por que é que nomes que saem do ordinário não são obrigatoriamente submetidos, antes de serem sacramentados, à apreciação do dono do cartório ‒ que se supõe ser pessoa letrada? Em caso de dúvida, que um juiz seja consultado.

Não prejudicar a vida alheia, por meio de atribuição de nome ridículo, é item importante na lista dos direitos humanos. Nessa matéria, um dique de contenção tem de ser erguido pra proteger inocentes. Portar nome digno é mais importante do que vestir azul ou rosa. Alô, dona Damares!

O estrago é maior

José Horta Manzano

Desde que a Operação Lava a Jato levantou a ponta do tapete que enfeita a sala do andar de cima, uma sujeirada começou a sair. Foi como se tivessem erguido a lápide da tumba dos horrores. O que escapou de fantasma não está escrito! As barbaridades que apareceram estes últimos anos deixaram o País de queixo caído. E quando a gente pensa que acabou, lá vem mais.

Dos bilhões surrupiados, nem precisa falar. Dá muita raiva. Poucos meses de cadeia para quem levou a saúde e os sonhos dos compatriotas é muito pouco. Muito pouco. Esses calhordas tinham de apodrecer na masmorra, pra nunca mais sair. A começar pelo chefe de todos eles.

O mal-afortunado incêndio do Museu Nacional foi edificante. Ficamos sabendo que a manutenção do venerando estabelecimento tinha sido confiada a uma universidade federal cuja cúpula dirigente estava dominada por lulopetistas de carteirinha. Os holofotes giraram para outras universidades federais. Veio à luz que estão praticamente todas infestadas por elementos de mesmo jaez.

Em artigo publicado pelo Estadão deste domingo, a jornalista Eliana Cantanhêde focaliza outra secular instituição do Brasil ‒ o Itamaraty ‒ e aponta o profundo entranhamento que a máquina lulopetista pôs em prática ali. A jornalista relata que os embaixadores Celso Amorim e José Viegas, cardeais de alta batina, se encarregaram de impor doutrinamento a uma geração de diplomatas. O resultado foi a vergonhosa diplomacia «ativa e proativa» que se aproximou de ditaduras sanguinárias e dançou quadrilha com elas. Com resultado nulo para os interesses nacionais, frise-se.

O próximo presidente do Brasil ‒ desde que não seja o candidato petista, te esconjuro! ‒ vai ter muito trabalho, mas muito trabalho mesmo, pra repor a casa em ordem. Desde que as credenciais de mérito foram abandonadas em favor da carteirinha do partido, a contaminação ideológica infestou centenas de empresas estatais, agências reguladoras, embaixadas, consulados, até a representação brasileira junto à Organização dos Estados Americanos. A contar de primeiro de janeiro do ano que vem, vai aparecer muito desempregado na praça.

Afinal, o que perdemos no incêndio?

«O incêndio do Museu Nacional só veio comprovar o descaso dos governos federal e estadual com a ciência, história e cultura do Brasil, uma vez que, anualmente, ele custava aos cofres públicos menos do que se gasta com apenas um dos 18 mil juízes do país.

Assim como o Museu Nacional, milhares de outros museus do país ainda dependem de verbas públicas que, muitas vezes, são mal direcionadas. O Museu do Amanhã, por exemplo, não realiza pesquisas e, mesmo assim, recebe anualmente 24 vezes mais do que o Museu Nacional necessitava para a sua manutenção.»

Trecho de excelente artigo publicado no blogue Tunes Engenharia Ambiental, com o detalhe do que se perdeu no incêndio do Museu Nacional. Vale a pena dar uma olhada.

Incendie à Rio

José Horta Manzano

Segunda metade dos anos 1960. Bem jovem, este blogueiro estava na Suécia para um trabalho de alguns meses. Por lá, conheci uma senhora brasileira que, casada com sueco, já vivia no país havia anos. Teria seus 40 e poucos anos. De boa cultura, falava várias línguas.

Na época, fazia sucesso no rádio uma música francesa muito animada, na voz de Sacha Distel, cantor simpático e sorridente. A canção tinha um ritmo meio desengonçado de «samba europeu». A música me agradou mas, à época, minha prática da língua francesa ainda não me permitia entender a letra.

Conversando com minha amiga, contei que gostava da canção, que me parecia muito alegre. Ela retrucou: «Se você entendesse a letra, apreciaria menos». Fiquei surpreso. Por que seria?

Depois fiquei sabendo. A letra conta a história de um incêndio no Rio. Ardia a “fábrica de café”. Os bombeiros foram chamados mas não puderam vir porque não encontravam a mangueira nem a escada. A noite avança. A fábrica queima, o fogo se alastra e destrói o quarteirão inteiro. De manhãzinha, quando não havia mais fogo a combater, os bombeiros avisam que encontraram a mangueira e a escada mas, infelizmente, ainda não podem intervir porque não conseguem dar partida no caminhão: falta a manivela.

Tinha razão minha amiga. A letra é cruel. É zombaria pura pra cima da república bananeira que se imaginava fosse o Brasil naquela época.

Hoje, ao tomar conhecimento da destruição do Museu Nacional por um incêndio, voltei a sentir a mesma vergonha ‘por procuração’ que me assaltou 50 anos atrás. Na rua, tenho a opressiva impressão de que todos me lançam um olhar de reprovação.

Para recuperar o país da corrupção generalizada, sempre há esperança. É permitido acreditar que amanhã as coisas vão melhorar. Já para recuperar a memória que virou fumaça, nada se pode fazer. Quando os bombeiros encontrarem a manivela, será tarde demais. Podem aposentar o caminhão.

A vitória tem muitos pais

José Horta Manzano

A vitória tem muitos pais, mas a derrota é órfã. Dois dias atrás, um prédio de mais de vinte andares no centro de São Paulo pegou fogo e ruiu. Faz algum tempo, passeando pelo street view, eu já tinha reparado no prédio. Naquele momento, o que me chamou a atenção foi a pichação, uma impressionante algaraviada que subia pela lateral envidraçada, do primeiro ao último andar. Na época, fiquei perplexo. Como é possível alguém se introduzir num edifício ‒ visivelmente de escritórios ‒ pra pintar a fachada de cima a baixo?

Agora entendi. Faz anos que o prédio estava invadido por gente desvalida cujos ganhos não são suficientes pra pagar habitação decente. Pelo que li, os habitantes moravam em barracos de madeira armados nos andares, sem água e sem esgoto.

O distinto leitor e eu não sabíamos disso. Ainda que soubéssemos, pouco teríamos podido fazer. Mas há autoridades que sabiam e ‒ cúmulo dos horrores ‒ havia gente que se aproveitava da situação pra extorquir dinheiro daqueles miseráveis. Exatamente como faz a máfia siciliana, cobravam de cada família um «direito de passagem», um aluguel mensal, como se fossem donos do imóvel.

Edifício que se incendiou e ruiu
Foto: SaoPauloAntiga.com.br

Uma vez desmoronado o edifício, começaram a aparecer os podres. O governador conhecia a situação, mas nada podia fazer porque não era de sua alçada. A União, proprietária do imóvel, queria mais é que aquela gente fosse embora. A prefeitura da cidade ficou condoída com o que aconteceu, mas não era a dona do prédio, logo…

Por sua vez, os ditos «movimentos sociais» ‒ que, dizem as más línguas, estão por detrás da extorsão sobre o magro pecúlio dos moradores ‒ eximem-se de toda responsabilidade e acusam prefeitura, governo do Estado e União, todos no mesmo saco.

Em resumo: nenhuma autoridade nem nenhum “movimento social” é responsável. Por exclusão, conclui-se que culpados são os próprios moradores. Vindos de longe, chacoalhados pela vida, tolhidos pela ignorância, explorados por máfias e, pra coroar, acusados de destruir um prédio. Ah, como é fácil acusar quem não pode se defender!

No dia seguinte ao do incêndio, a prefeitura deu a conhecer que o prédio abrigava 130 famílias. E não é tudo: a cidade conta com cerca de 70 outros edifícios invadidos, loteados por famílias necessitadas e, mui provavelmente, controlados por máfias exploradoras da miséria. Dado que nenhuma autoridade é capaz de oferecer solução digna a esses infelizes, a perpetuação da miséria está garantida. E vamos em frente, que a Copa é nossa!

Il gelo che dà foco

José Horta Manzano

No segundo ato da ópera Turandot, última obra de Giacomo Puccini, os libretistas inseriram um verso que diz: «il gelo che dà foco» ‒ o gelo que dá fogo.

Na ópera, é mera imagem poética. Em nosso país, é a dura realidade. Não fosse trágico, seria cômico.

Chamada Folha de São Paulo, 1° maio 2017

Projetos criminosos

José Horta Manzano

Não há acordo entre etimólogos quanto à origem do termo mafia. As duas hipóteses mais frequentemente aceitas ligam a palavra a uma raiz árabe. De fato, a Sicilia esteve, faz um milênio, sob domínio árabe. A ocupação durou dois séculos e deixou marcas na língua.

Especula-se que a palavra poderia derivar do árabe maha (pedreira) ou, quem sabe, de mahias (fanfarronice). Esta última suposição parece sensata. Associação de criminosos costuma reunir membros fanfarrões. O Brasil deste triste início de século já botou muito criminoso bravateiro sob a luz dos holofotes.

Mafia 1Mafia não é exclusividade siciliana. Na própria Itália, há duas outras organizações de bandidos: a camorra em Nápoles e a ‘ndrangheta na Calabria. Associações desse jaez estão presentes também no Japão (yakuza), no México e na Colômbia (os cartéis), na Rússia, na Sérvia, na Tchetchênia, na Bulgária.

No Brasil, até vinte ou trinta anos atrás, não se tinha conhecimento de organismos estruturados para práticas criminosas. O avanço da tecnologia de comunicação, principalmente os telefones celulares, permitiu o aparecimento do PCC, do Comando Vermelho e de outros clubes da mesma natureza.

Nos primeiros tempos, a novidade limitou-se ao andar de baixo. A ascensão de elementos mal-intencionados ao nível federal favoreceu a instalação de sistema análogo no topo do poder. A inovação ainda não tem nome definido. Mensalão e petrolão definem apenas façanhas da organização. Permanecemos à espera de um termo abrangente. Logo virá.

Chamada da Folha de São Paulo, 5 março 2016

Chamada da Folha de São Paulo, 5 março 2016

Alguns métodos são comuns a toda mafia: intimidação, coação, ameaça, cobrança de «pedágio», incêndio criminoso, queima de arquivo.

Interligne 18h

PS: Misterioso incêndio irrompeu ontem nas instalações de Pasadena, aquela refinaria adquirida pela Petrobrás em nebulosas transações.

Meu anjo

Anjo 1Myrthes Suplicy Vieira (*)

Conto sempre para as pessoas mais próximas – para as desconhecidas, não, porque não quero passar por louca – que sinto uma forte presença espiritual ao meu lado sempre que tenho de escrever. Na minha cabeça, trata-se de uma figura masculina poderosa, mas cheia de compaixão. Eu o chamo de “meu anjo”.

Não, ele não é um anjo da guarda comum, desses que se esfalfam por aí para salvar seus protegidos de atropelamentos, quedas, incêndios, bala perdida, etc. Ao contrário, ele já me colocou várias vezes no olho de furacões e em muitas saias justas. Não faz isso por maldade, já que é um ser do bem, mas porque gosta de me desafiar. Fica em pé às minhas costas, impávido e solene, esperando para ver se eu consigo contornar sozinha os obstáculos que enfrento no dia a dia e, quando jogo a toalha, entra em ação me acalmando, como se me dissesse “respira fundo e aprende como se faz”.

Anjo 5Ele atua na minha vida como consultor e conselheiro para assuntos linguísticos. Pode ser de ajuda num número incontável de situações, já que é articulado, culto, sábio, poliglota, versátil, dono de saber enciclopédico e está sempre de bom humor.

Ele não fala comigo. Apenas cochicha no meu ouvido as palavras que procuro em desespero quando tenho de redigir algum texto. Sugere termos coloquiais em outros idiomas quando estou às voltas com minhas traduções e quero impressionar. Alerta para as consequências negativas dos meus exageros, mas também me incita a não ter medo de optar por expressões provocativas. Já chegou a me soprar frases inteiras. Muitas vezes o ritmo de seus ditados é tão intenso que eu me sinto mergulhada numa atmosfera de psicografia – ou, melhor dizendo, de “psicodigitação”. Meu único trabalho é tentar copiar com a máxima rapidez possível as palavras que fluem como se estivéssemos conversando.

Anjo 2Não erra nunca. Certa vez, eu estava à beira de um ataque de nervos tentando passar para o inglês um texto muito complexo, fora da minha área de especialidade. Ele então cochichou no meu ouvido uma palavra que eu desconhecia. Aflita e sem tempo para conferir, digitei a palavra e concluí o trabalho. Mais tarde, ao revisar o texto, fui procurar no dicionário a palavra para ter certeza de que ela se encaixava bem na frase. Um arrepio frio percorreu minha coluna de alto a baixo quando constatei que era a palavra precisa, a mais adequada para transmitir com elegância a mensagem que eu queria.

Outra de suas especialidades é inspirar ideias e projetos sempre que minha criatividade está em baixa. Quando meu cérebro se agita para encontrar saídas para situações difíceis com que me deparo, uma lampadazinha se acende magicamente na minha cabeça. Corro para o computador e começo a digitar febrilmente uma série de lembretes – a respeito de autores, livros, conexões com outros temas, etc. – para investigar mais tarde, com calma. Depois, basta acionar um mecanismo de busca qualquer na rede mundial de computadores para encontrar as referências de que preciso ou investigar nos dicionários possíveis significados das palavras que elenquei ou as ilações que precisam ser mais bem compreendidas.

Anjo 4É nesses instantes que meu anjo entra na área de sua máxima ‘expertise’. Coloca no meu caminho uma série de pistas, assim como quem não quer nada. As pistas podem vir sob forma de uma conversa casual com um vizinho ou amigo, uma experiência na natureza, um comportamento inesperado de minhas cachorras, um livro que surge inesperadamente na minha frente, ou até uma reportagem na televisão.

Foi o que aconteceu ontem. Eu tinha ido dormir com uma sensação de impotência e incredulidade frente aos acontecimentos trágicos do dia. Acordei, porém, maravilhada e embalada por um discurso para lá de otimista de meu anjo. Suas palavras eram tão sábias e doces que me pareciam estrofes de um poema. Falava de esperança, incentivava a procurar novos ângulos de visão para atacar velhos problemas, instilava fé na capacidade de adaptação e superação que é típica do humano. Aconselhava a ir além das aparências e descobrir os sentimentos que estão por trás da realidade violenta de nossos dias.

Anjo 3A mensagem que julguei ter recebido e que me encheu de alegria foi, em resumo, a de que é chegado, enfim, o tempo da delicadeza. As reações exacerbadas de tudo e de todos à nossa volta nada mais são do que meros indicativos de que um ciclo se finda. Já não há mais espaço para dicotomias nem para o maniqueísmo. De agora em diante, seremos todos convidados a nos posicionar ao longo de um contínuo que vai do branco ao negro, do masculino ao feminino, da razão à emoção, da certeza à dúvida. Novas nuances de significados se abrirão diante de nossos olhos atônitos. Bem e mal se misturam e se diluem num oceano de possibilidades de aconchego e de tolerância.

Eu, que sempre fui tão catastrofista, mesmo a contragosto me deixo levar por essa delicada cantiga de despertar. Extasiada, ainda sentindo a onda de esperança evolucionária bater forte no meu peito, só consigo torcer para que outros anjos, ao passar por perto, a ouçam também e digam amém.

(*) Myrthes Suplicy Vieira é psicóloga, escritora e tradutora.

O alvará

José Horta Manzano

Incêndio

Incêndio

Na Suíça, quando compra um imóvel usado, o novo dono é obrigado a mandar chamar ― à sua custa ― uma empresa de eletricidade para elaborar um laudo de conformidade. O técnico virá conferir se toda a instalação elétrica está em ordem. Em seguida, o novo dono receberá, pelo correio, o laudo e a conta. Isso vale tanto para imóveis comerciais como para casas, apartamentos e kitchenettes.

Na França, antes de pôr à venda seu imóvel, o particular cuida de chamar profissionais homologados para verificações. O número delas pode variar conforme a região do país. Se o imóvel tiver sido contruído antes dos anos 50, é necessário apresentar um laudo negativo de presença de chumbo na pintura das paredes internas. Até fins dos anos 1940 (até os anos 50 no Brasil), esse metal costumava fazer parte da composição das tintas. O contacto com o chumbo pode causar uma doença chamada saturnismo. Foi, aliás, o que matou Candido Portinari, grande pintor brasileiro. Na falta desse laudo, a venda do imóvel não será possível.

Ainda na França, outra exigência legal para pôr sua casa à venda é apresentar um laudo indicando a presença (ou a ausência) de amianto. Esse mineral fibroso foi, durante muitas décadas, utilizado principalmente na composição de telhas e de tubos (cimento-amianto). Dado que foram constatadas propriedades cancerígenas no pó de amianto, o material foi irremediavelmente banido do continente europeu. (Diga-se, a título de curiosidade mórbida, que seu uso ainda é autorizado no Brasil. Por quê? Pergunte ao bispo.) Na França, sem laudo, impossível vender o imóvel.

Incêndio

Incêndio

Na Suíça, todo proprietário é obrigado ― por lei ― a contratar seguro contra incêndio que cubra o valor de seu imóvel, seja ele particular ou comercial. Goste ou não goste, pouco importa: a lei manda. E não é só. Todo inquilino também é obrigado a fazer seguro para cobrir seus pertences contra incêndio. Móveis, tapetes, computador, quadros, toda essa tralha entra na conta. É obrigação que todos têm e que todos respeitam.

O valor do seguro é automaticamente adaptado a cada ano. A cada 5 anos, a seguradora manda um novo formulário a cada cliente. O papel já traz uma lista dos objetos que se encontram normalmente numa casa. Ao segurado resta preencher os valores e devolver o papel à companhia. Esta adaptará o valor do seguro à nova composição do mobiliário.

Interligne 18f
Leio hoje na Folha de São Paulo que o Alvará(*) de Funcionamento do grande auditório que se incendiou ontem na capital do Estado estava vencido fazia… 20 anos! O recinto costumava concentrar perto de 2000 pessoas para certos eventos. O alvará ― que certifica o cumprimento das normas de segurança exigidas de lugares onde se apinha muita gente ― tem de ser renovado anualmente.

Incêndio

Incêndio

Isso significa que o Memorial atravessou o mandato dos prefeitos Paulo Maluf, Celso Pitta, Régis de Oliveira, Marta Suplicy, José Serra, Gilberto Kassab e Fernando Haddad sem que nenhum deles se preocupasse com a segurança dos visitantes. Nem eles, nem seus numerosos secretários, assessores e funcionários.

Ei! Tome cuidado você aí, que anda de metrô e utiliza outros serviços públicos dessa megalópole tão orgulhosa de contar com uma batelada de helicópteros. Deus o livre, mas nunca se sabe: um deles pode perfeitamente cair em cima de sua cabeça.

A propósito, de quando datará o último alvará(*) de funcionamento do Teatro Municipal? E do Hospital das Clínicas? E o do Hospital do Servidor Público? E o do Hospital Municipal? Melhor nem perguntar.

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(*) Alvará, segundo os dicionários, provém do árabe hispânico al-baráâ, com o significado de recibo. Não fica claro se a raiz baráâ deu também origem a baralho. Não me parece impossível.
Laudos técnicos não foram feitos para baralhar a vida de ninguém, antes, para preservá-las. Nem todos entenderam isso.

Miscelânea 9

José Horta Manzano

Você sabia?

Nome mal escolhido
A Universidade Federal de Minas Gerais aliou-se à Universidade Federal de Uberlândia para juntas trabalharem num projeto de avião. É um aparelho diferente ― ou diferenciado, como se usa dizer hoje. Tem hélice e motor na traseira, mais ou menos como o 14bis do também mineiro Santos-Dumont.

Bumerangue Ex-27

Bumerangue Ex-27

O nome atribuído à nova aeronave é surpreendente: bumerangue. Um nome que sugerisse algo rápido, que vai para a frente, me pareceria mais adequado. Qualquer coisa como flecha, lança, catapulta, seta, foguete, raio, corisco, chispa transmitiria essa noção. Já bumerangue lembra algo que vai e volta. Aplicado a um objeto comercializado, sugere que será devolvido pelo cliente. Enfim, cada um escolhe para seus filhos o nome que lhe apraz.

Desejamos boa sorte ao bumerangue mineiro. Quando for vendido, que vá e… não volte.

Interligne 18hBandidagem europeia
Tem duas coisas que sempre me surpreenderam nos filmes de cinema, quando o personagem chega de automóvel a algum lugar. A primeira é que sempre ― mas sempre, mesmo ― encontra uma vaga para estacionar exatamente na porta do lugar aonde tem de ir. A segunda é que, diferentemente da vida real, atores jamais trancam a porta do veículo. Batem a porta do carro, e tchau!

Carro sem rodas Neuchâtel, Suíça

Carro sem rodas
Neuchâtel, Suíça

Vaga para estacionar já faz tempo que se tornou artigo raro, seja no Brasil, seja no exterior. Quanto à segurança, já não é a mesma de antigamente. Aqui ao lado está uma foto tirada na Suíça algumas semanas atrás. Mostra um carro cujas rodas foram surrupiadas durante a noite. Parece impossível, não é? Pois é, eu também jamais imaginei que algo parecido pudesse ocorrer.

E tem mais: aconteceu num vilarejo minúsculo onde, segundo o proprietário do veículo, «há mais vacas que habitantes».

Já não se fazem mais lugares civilizados como antigamente.

Interligne 18h

Protesto incongruente

Caixa d'água

Caixa d’água

Aconteceu durante a onda de manifestações de junho passado. Em meio a tanta coisa que ocorria naqueles dias agitados, a notícia passou meio despercebida.

Na mui nobre localidade maranhense de Paraibano, situada a 425 quilômetros de São Luís, os munícipes, exacerbados pela crônica falta d’água, não tiveram dúvida: atearam fogo à estação de distribuição de água da Companhia de Saneamento.

Agora, sim, terão água à vontade. Taí o exemplo magistral de um protesto inteligente.

Interligne 18h

Miscelânea 03

José Horta Manzano

Descaso
Em seu blogue, Diego Zanchetta alerta os distraídos dirigentes da cidade de São Paulo para o fato de a bandeira brasileira desfraldada justamente na ultrasimbólica Praça da Bandeira estar degradada, com um rasgo velho de três meses.

Bandeira Brasil rasgada

Bandeira Brasil rasgada

Para quem não conhece, explico que a praça e sua bandeira monumental podem ser avistadas tanto do prédio da Prefeitura quanto da Câmara Municipal. Os ocupantes atuais desses dois mui oficiais imóveis não podem alegar ignorância.

Com certeza estarão todos por demais absortos por seus negócios pessoais, sem tempo a perder com essas picuinhas.

Interligne 24

De mal a pior
Para quem esteve estes últimos dias passeando na Groenlândia, informo que, na sexta-feira 24 de maio, a presidência de nossa República foi exercida pelo senhor Renan Calheiros.

Os que votaram no coronel devem estar felizes. De qualquer maneira, ninguém pode reclamar. O presidente do Senado foi escolhido por seus pares. Afora os suplentes, todos os senadores foram eleitos por nós. Ou não?

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Arrombada a porta, põe-se a tranca
Quinta-feira passada um incêndio pavoroso irrompeu numa distribuidora de petróleo estabelecida num bairro residencial(!) de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Uma jornada inteira de trabalho não foi suficiente para que os bombeiros dessem cabo das chamas. O sinistro alastrou-se por residências próximas. Uma pessoa perdeu a vida.

Depois da catástrofe, o Secretário Estadual do Meio Ambiente do RJ declarou que a empresa não tinha licença para funcionar.

É compreensível que um camelô, que carrega sua empresa numa sacola, monte sua banquinha sem autorização, numa esquina qualquer, enquanto o rapa não aparece. Mas… uma distribuidora de petróleo?

Fica no ar a pergunta: se uma distribuidora de petróleo pode operar sem a devida autorização, para que serve uma instituição com o pomposo nome de Secretaria Estadual do Meio Ambiente? Não é mais que um cabide de empregos?

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Argentinização
Esta semana a imprensa deu uma notícia inquietante sobre a inflação. A Folha de São Paulo intitulou a matéria «Prévia da inflação oficial desacelera em maio para 0,46%, diz IBGE».

Previsão de inflação

Previsão de inflação

De que estou reclamando? Se a inflação dá sinais de baixar, por que o descontentamento?

Está nas entrelinhas, meu amigo. O que me perturba é a palavra oficial, presente no título e no corpo do texto. Quando se fala em «inflação oficial», subentende-se que exista uma outra, não oficial.

Estaremos voltando ao inferno dos anos 1980 e 1990? Dizem alguns que a Argentina é o Brasil amanhã.

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E o porteiro não foi preso!

José Horta Manzano
Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 6 abril 2013

Cada estado traz seu aporte à União. É a regra. Cada um entra com um óbulo condizente com sua população e suas posses. Há estados, no entanto, cuja contribuição tem sido relativamente mais importante que a de outros. Um deles é o Rio Grande do Sul.

Alguns fatos que marcaram a História do Brasil têm origem no estado sulino ou guardam alguma relação com ele. De lá nos veio Getúlio Vargas, fundador da única ditadura de um homem só que o País já conheceu. João Goulart, último presidente a ser apeado por golpe de estado, era gaúcho também. Durante a era militar, aquele que certamente foi o presidente mais esclarecido e mais equilibrado chamou-se Ernesto Geisel. Era gaúcho. O estado pampiano nos deu também Elis Regina, a cantora maior.

Ultimamente, a contribuição do Rio Grande tem incitado o Brasil a dar passos importantes no processo civilizatório. Com decisões ousadas, seus juízes foram os primeiros a equiparar uniões homossexuais a enlaces tradicionais. Suas resoluções podem ter causado algum frisson, mas provocaram as primeiras fissuras no gesso que emprisionava o melindroso assunto.

Faz dois meses, o Brasil e o mundo foram sacudidos por uma notícia pavorosa. O incêndio de uma boate de Santa Maria havia ceifado a vida de 250 jovens e arruinado a razão de existir de milhares de pais, irmãos, namoradas. Foi a tragédia mais mortífera dos últimos decênios. A mídia do mundo inteiro repercutiu a trágica informação.

Brasil

Escaldados com o desenrolar habitual da Justiça brasileira ― que à vezes lembra um jogo de dados viciados ― nenhum de nós esperava que as diligências jurídico-policiais dessem grande resultado. Em casos assim, sabe-se que a tática dos poderosos é: protelar, procrastinar, engavetar, entravar e torcer para que o povo esqueça. Na pior das hipóteses, prende-se o porteiro ou a mulher do café.

Surpreendentemente, não foi o que aconteceu. Era trágico demais, e os brios gaúchos não estavam dispostos a permitir que jeitinho e malemolência contaminassem o processo. Foram em frente.

O comandante regional do Corpo de Bombeiros foi afastado pelo governador em pessoa. Num primeiro momento, 28 pessoas foram responsabilizadas no inquérito. Entre elas, 19 agentes públicos, bombeiros, secretários. Até o prefeito municipal foi arrolado.

Como se costuma dizer, nada do que for feito trará de volta os que partiram no alvorecer de sua jornada terrena. Mas da desgraça surge a luz. O desastre de Santa Maria terá servido para confirmar, se ainda fosse preciso, que nosso País está mudando aceleradamente. E não só na área econômica, que, a computar-se o espaço desproporcional que ocupa na mídia, parece ser a única preocupação nacional.

Não são as leis nem os decretos que forjam a sociedade. Pelo contrário, é a sociedade que, por meio de seus representantes, faz que novas leis sejam votadas e que novos decretos sejam assinados. Leis, regras e regulamentos apenas formalizam o que já tiver sido sopesado e decidido pelo tecido social.

Dentro de 10 ou 20 anos, o Brasil será um país muito diferente do que conhecemos hoje. A troca de ideias e a interação intensa que internet propicia é indomável. Hoje em dia, tudo se sabe, boas e más notícias se alastram feito fogo de palha. Está cada dia mais difícil ocultar certos crimes e «malfeitos» que antes passavam ignorados.

O ultracomentado processo do mensalão ― e principalmente seu desfecho ― teria sido visto como obra de ficção apenas dez anos atrás. Seus atores jamais imaginaram, nem em pesadelo, que um dia pudessem ser julgados e condenados a anos de prisão. Caíram na armadilha que o progresso tecnológico lhes preparou.

O antigo juiz trabalhista conhecido como Lalau foi condenado, já faz alguns anos, a meio século de prisão em regime fechado. No entanto, a benevolência que costumamos conceder aos poderosos não lhe causou mais que um pequeno desconforto: teve de trocar férias permanentes em suntuoso apartamento de Miami por dias tranquilos em sua mansão paulista. A desculpa, acolhida pela Justiça, tinha sido a idade avançada do condenado, como se a culpa desbotasse com os anos. Como prova de que o olhar da sociedade está em processo acelerado de mudança, Lalau foi levado estes dias a uma penitenciária.

Está cada vez mais próximo o dia em que os pequeninos poderão exercer sua função sem recear inculpação automática em caso de problema no andar de cima.

Em Santa Maria, pelo que noticiaram os jornais, o porteiro da boate não foi preso. Nem a mulher do café.

Arrombada a porta, põe-se a tranca

José Horta Manzano

Nos idos de 1967, eu estava trabalhando na Suécia. Travei conhecimento com uma senhora muito simpática. Poliglota e inteligente, teria ali pelos 40 anos. Tinha nascido no Brasil, mas, casada com um sueco, vivia em Malmö fazia já vários anos. Vamos chamá-la senhora Almgrén, mas não posso garantir que fosse esse o nome. Passou muito tempo e já não tenho certeza.

Uma música francesa, gravada por Sacha Distel (1933-2004), estava nas paradas de sucesso, como se dizia na época. Na crista da onda, muito popular. Era ― como explicar? ― um «samba europeu». Um ritmo um tanto desengonçado que grande parte do povo do Velho Continente acreditava ser música brasileira. Aliás, muitos ainda acreditam, acreditem.

O compasso da canção, divertida e bem animada, hesitava entre cumbia, conga e rumba. Chamava-se «L’incendie à Rio», o incêndio no Rio. Meu conhecimento de francês, precário à época, não me permitia entender a letra.

Comentei com a senhora Almgrén que eu gostava muito daquela música. Maliciosamente, ela me replicou que, se eu entendesse a letra, por certo gostaria menos. Fiquei um tanto perplexo. “Ué” ― pensei ― “e por quê?”

Sacha Distel

Sacha Distel

Indulgente, minha amiga explicou que a letra relatava um incêndio imaginário numa torrefação de café no Rio de Janeiro. E descrevia a atrapalhação dos bombeiros que não encontravam as mangueiras, nem o esguicho, nem a escada. Somente no final da noite, quando todo o quarteirão estava reduzido a cinzas, os petrechos foram encontrados. Assim mesmo, os bombeiros continuavam não podendo sair do quartel porque o caminhão estava enguiçado e ninguém sabia onde estava a manivela para dar partida no motor.

Uma zombaria total, como se vê. Retratava nosso País como era visto pelos europeus, um lugar muito alegre e animado, mas totalmente bagunçado. Quem quiser recordar (ou conhecer) L’incendie à Rio, pode dar uma espiada aqui. Vem com vídeo, música e letra.

O bem informado blogue de Sonia Racy, alojado no Estadão, nos informa neste 30 de janeiro que a Câmara Federal do Brasil não tem brigadistas de incêndio. Pior que isso, a Casa não dispõe sequer de servidores treinados para casos de incêndio(!). Não acredita? Pois confira aqui.

Quando a canção de Sacha Distel fez sucesso, fazia 3 ou 4 anos que se encerrara a «Guerra da Lagosta», um daqueles conflitos sem batalha e sem sangue. Foi nessa época, dizem, que De Gaulle teria pronunciado a célebre frase «o Brasil não é um país sério». Dizem outros que jamais o general teria cometido tal afronta. Ele nunca confirmou. Tampouco desmentiu. Vamos deixar para voltar ao assunto noutra ocasião.

Neste finzinho de janeiro, passados alguns dias do pavoroso drama de Santa Maria, aparecem outros podres, aos borbotões: casas de espetáculo funcionando sem alvará, proteção contra incêndio inexistente, pessoal não treinado. Em resumo: é a ganância de braço dado com a irresponsabilidade. Se nem a Câmara ― a casa dos representantes do povo brasileiro! ― escapa do descaso, imagine o resto. Nossos 513 deputados devem, realmente, estar totalmente ocupados com outros assuntos.

É urgente que os poderosos que mandam no Brasil tomem um banho de integridade e de probidade. Queira o destino que o inconcebível drama gaúcho tenha sido a última tragédia decorrente de desleixo aliado ao descaso e à cupidez. Já está na hora levar as coisas a sério.

Que o clichê sublinhado pelo irreverente Incendie à Rio possa ser atirado à lata de lixo do passado. Para nunca mais voltar.