Tutti buona gente

José Horta Manzano

Dá muito gosto ver que, no exterior, nossos figurões continuam na ribalta, no centro das atenções. Vejam esta que nos vem da China.

China Global Television Network (CGTN) é um dos braços do poderosíssimo conglomerado estatal chinês de informação. Sua versão online em língua inglesa traz uma notícia de Angola.

Revela que a Igreja Universal do Reino de Deus, propriedade do bilionário ‘bispo’ Macedo, está enfrentando sérios problemas com a justiça. Em Angola, um dos 130 países onde está implantada, a empresa está sendo processada pela prática de numerosos crimes, como: associação criminosa, fraude fiscal, exportação ilícita de capitais, abuso de confiança & conexos. Vejam só.

Sexta-feira passada, o procurador-geral do país decretou o confisco de sete templos da empresa, situados em território angolano.

En passant
Doutor Macedo não é aquele amigão de doutor Bolsonaro? Não é aquele que (re)batizou o presidente e teve a honra de aparecer a seu lado no desfile do 7 de setembro? Pois então, diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és. Estão ambos sintonizados na mesma frequência. Baixa frequência, naturalmente.

Troca-troca

José Horta Manzano

Esta manchete de agora há pouco mostra o estado de descontrole ao qual chegamos. A tibieza do governo da República leva alguns cidadãos mais ousados a mercadejar: “Pago pra me deixar abrir a loja”. É o cúmulo.

Desorientados, os brasileiros são bem capazes de sair nadando atrás do canto da sereia. Muita gente fina ainda vai aprovar o gesto desse comerciante mais preocupado com o próprio lucro do que com a saúde dos clientes. Alguém pode até se deixar impressionar: “Veja que generosidade! Oferece respiradores, artigo que está em falta nos hospitais”.

Respiradores não se tiram do chapéu. É altamente improvável que esse camarada tenha estocado esses aparelhos no porão de casa. Portanto, está fazendo terrorismo barato, brincando com a ansiedade da população.

Tem mais. Ainda que ele tivesse um carregamento de respiradores, a proposta de toma lá dá cá seria indecente. Se esse lote de aparelhos realmente existir, o comerciante merece sofrer confisco da mercadoria e processo por tentar se aproveitar da ingenuidade alheia em proveito próprio.

A dura semeadura

José Horta Manzano

Em artigo publicado esta semana, o diário espanhol El Pais deu conta do terrível calvário que o povo venezuelano está sofrendo em decorrência da corrupção generalizada que assola o país. A situação é inimaginável. A vida de nossos infelizes vizinhos do norte se está dissolvendo numa implacável geleia geral.

Um caminhão que percorre os 800km que vão de Táchira a Caracas com uma carga de 3000kg de bananas chega ao destino com 300kg a menos. É a regra e já faz parte da rotina. Postos de polícia cobram «pedágio» de todos os caminhões que trafegam. Todos têm de pagar o dízimo.

Um mês atrás, produtores de queijo do Estado de Apure passaram duas noites num cárcere por se terem recusado a entregar dez por cento da carga que levavam. O confisco generalizado conta com o apoio de policiais e de prefeitos municipais, todos alinhados com o tiranete Maduro. A mercadoria sequestrada será vendida no mercado negro a peso de ouro.

by Darío Castillejos, desenhista mexicano

A situação, grave e revoltante, desanima os agricultores. Os que costumavam cultivar para vender desistem e acabam plantando para sobreviver. A produção encolhe a olhos vistos. Faltam sementes. Faltam insumos. O assalto generalizado gera escassez e provoca violenta subida dos preços, alimentando a já descontrolada inflação.

Quinze anos atrás, a produção agrícola da Venezuela cobria 70% das necessidades da população. Em 2017, a produção nacional mal deu pra suprir 25% do consumo.

A vida no Brasil, ainda que nos pareça dura, é verdadeiro paraíso aos olhos de um venezuelano. Nossa corrupção, que corrói o fruto do trabalho de todos, é menos visível. Na Venezuela, esse tipo de criminalidade é escancarado, onipresente. O baque é mais violento. Como se sabe, violência gera violência, num círculo infernal.

Os infelizes vizinhos que fogem do país para refugiar-se em Roraima têm fome. Por maiores que sejam nossos problemas, passar fome, para nós outros, é inconcebível.

Quando se assiste a esse drama, dá um tremendo alívio. Se não tivéssemos afastado do governo o lulopetismo ‒ cujo chefe chegou a dizer um dia que «a Venezuela tem democracia em excesso» ‒, poderíamos estar na mesma situação.

Escapamos! Deus é brasileiro.

Ironias do destino

José Horta Manzano

A vida nem sempre é espetáculo cor-de-rosa. Volta e meia, ela dá um boléu e a gente leva um tombo. Mas há tombo e tombo. A gente pode se levantar ileso, sacudir a poeira e dar a volta por cima. Mas pode também sentir o baque e ficar estatelado no chão sem poder se reerguer.

Costuma-se dizer que o brasileiro tem a memória curta, que esquece hoje o que aconteceu ontem, que um fato novo empurra o antigo para o fundo do poço. Assim mesmo, muitos hão de recordar-se que, no apagar das luzes do mandato, a poucos dias de deixar o Planalto, Lula da Silva exigiu ‒ e obteve ‒ passaporte diplomático. Não só para si, como para mulher, filhos e agregados.

Na época, a imprensa noticiou o ocorrido e uma grita se alevantou. Mas foi erupção breve. Em pouco tempo, ninguém mais voltou ao assunto. Aliás, nem se sabe ao certo se os passaportes obtidos fraudulentamente foram devolvidos. É permitido acreditar que não.

Diferentes modelos de passaporte emitidos pelo Estado brasileiro

Alguns dias antes do julgamento do dia 24 de janeiro de 2018, o Lula mandou avisar que estava de viagem marcada pra Etiópia. Independentemente do que fosse decidido em Porto Alegre, embarcaria na madrugada do dia 26. E não se falava mais nisso.

Nocauteado pela Justiça, o ingênuo houve por bem bancar o marrudinho. Em discurso para plateia amestrada, declarou com todas as letras que não estava disposto a acatar a determinação judicial. Ah, pra quê! Sacudiu a caixa de marimbondos. Um juiz de Brasília, sob cuja responsabilidade corre outro processo contra o falastrão, alarmou-se com a valentia. Com raciocínio lógico, entendeu que o não acatamento a uma decisão judicial podia se traduzir por fuga do país. Não esqueçamos o caso Pizzolato.

Incontinente, ordenou que se confiscasse o passaporte daquele que se propunha a desacatar a Justiça. Lula da Silva, de bom ou mau grado, foi obrigado a cumprir a imposição. Não o fizesse, perigava ser preso imediatamente. Não sei se o passaporte era o diplomático ‒ aquele vermelhinho. Seja como for, o demiurgo teve de passar pela humilhação de vê-lo confiscado e retido. De pouco terá valido a (falsa) imunidade que o documento lhe parecia garantir. A impostura teve vida curta.

Nota interessante
Lula da Silva pretendia cantar de galo numa cúpula realizada em Adis Abeba pela FAO ‒ Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura. Observe-se que essa instituição é dirigida por doutor José Graziano da Silva, que foi ministro do Lula. Yes, um afilhado político.

Nota picante
Até ontem, dia 25, o distinto público podia visitar o site internet da FAO e colher ali toda informação que desejasse. De lá pra cá, o Lula foi obrigado a devolver o passaporte e a cancelar a viagem. Hoje, 26, o site está fora do ar, inaccessível. Casou, mudou e não convidou. Será mera coincidência, naturalmente.

Nota latina
Nummus regnat ubique.
O dinheiro reina por toda parte.

Menos médicos

José Horta Manzano0-Sigismeno 1

Estava conversando com meu amigo Sigismeno. Pra variar, o bate-papo era sobre as últimas peripécias da movimentada política nacional. Perguntei eu:

‒ Você viu, Sigismeno, essa decisão que Cuba tomou no âmbito do programa de mais médicos?

‒ Não, essa me escapou. O que foi mesmo?

‒ Pois estavam para enviar uma leva de 700 médicos, dentro do acordo firmado nos governos lulopetistas, quando, de repente, a viagem do pessoal foi bloqueada. E não foi por falta de avião. Parece que não virão mais médicos cubanos. Por aqui, alguns aplaudem a medida, outros não.

‒ E qual a razão da suspensão de envio de profissionais? Informaram?

‒ Olhe, Sigismeno, se entendi bem, 88 dos médicos já enviados ao Brasil entraram na Justiça com pedido para permanecer em nosso território. Não querem saber de voltar para a ilha de origem. Miséria por miséria, preferem a nossa. Para estancar a hemorragia e minorar o vexame, Havana prefere não mandar mais médico nenhum.

‒ E você acredita que a razão seja realmente essa?

‒ É o que a mídia noticiou, Sigismeno. Que eu saiba, ninguém pôs a afirmação em dúvida.

‒ Pois então, me dá muito orgulho ser o primeiro.

‒ Ah, você não tem jeito, Sigismeno. Sempre em desacordo com a maioria. E qual seria, segundo você a razão da súbita suspensão do programa?

‒ Bom, vamos fazer um rápido ‘flashback’. Faz alguns anos, assim que esse envio de médicos foi anunciado, eu já desconfiei que aí tinha coisa meio obscura. Aliás, se não me engano, comentei com você.

‒ Tem razão. Você ficou encafifado com o fato de os médicos não receberem o salário integral na conta bancária como todo assalariado.

‒ Pois é. Na época, o trato era remunerar os profissionais com dez mil reais mensais, o que me parecia um salário correto. O chato é que o médico só recebia três mil, sendo o resto confiscado e enviado diretamente ao governo cubano.

‒ É, era isso. Mas onde é mesmo que você viu problema?

‒ Sabendo que o lulopetismo não é composto de gente «boazinha», cujo desejo profundo é ajudar o sofrido povo cubano, concluí que a dinheirama enviada a Cuba havia de ter outro destino. Desde o começo, me pareceu claro que, daquela bolada, uma parte engordava as caixas do partidão caribenho e outra parte… voltava em malas, malotes e até cuecas.

‒ Ah, é verdade, Sigismeno! Agora me lembro da sua reflexão. Mas o que tem de ver a sua desconfiança com o que está acontecendo agora?

‒ Ora, me parece a consequência lógica da mudança de governo no Brasil. Se o vaivém financeiro funcionou enquanto duraram os governos “amigos”, a engrenagem engripou assim que caíram em desgraça. Depois de impeachment, Lava a Jato, Moro, Lista de Fachin e que tais, o circuito se rompeu.

‒ E por quê?

‒ Ah, não me peça detalhes. Não tenho espiões nem microfones ocultos no Planalto. A verdade é que o círculo não circula mais, se assim me posso exprimir. Talvez a gente não esteja conseguindo enxergar a razão justamente por ela ser simples e evidente: os principais atores da tragicomédia estão presos ou na iminência de sê-lo. Preferem não agravar a própria situação.

Desembebedamento

José Horta Manzano

Você sabia?

Vou «beber até cair», dizia a marchinha de Carnaval de 1959, aquela em que o protagonista pedia «Me dá um dinheiro aí!». Naqueles tempos antediluvianos, além de beber até cair, o indivíduo ainda se sentia no direito de exigir dinheiro alheio. O mundo deu voltas e muita coisa mudou. Genebra é bom exemplo.

Na cidade suíça, a polícia acaba de adotar regras mais rigorosas para lidar com a bebedeira. No âmbito privado, nada se altera. Desde que seja maior de idade e que esteja em perfeito uso da razão, cada um tem o direito de encher a cara. Se o fizer sem causar distúrbio à ordem pública, o único castigo será uma ressaca danada no dia seguinte.

alcool-1No entanto, se o estado de ebriedade o levar a infringir determinações que regem a harmonia da sociedade, o culpado pode ser obrigado a pôr a mão no bolso e pagar preço elevado.

Quem, em consequência de bebedeira, perturbar a ordem pública ‒ coisa que acontece frequentemente com quem forçou na dose ‒ será obrigado a pagar multa de 300 francos (cerca de mil reais). De fato, a lei considera que não cabe à sociedade arcar com custos causados por comportamentos individuais problemáticos. Intervenção policial tem seu preço.

Tem mais. Se o estado do bebum não permitir que seja deixado pelas ruas ‒ caso daquele que «bebeu até cair» ‒ a polícia o conduzirá ao distrito, onde ficará o tempo necessário até voltar ao estado normal. Em geral, passa o resto da noite numa cela especialmente destinada ao desembebedamento. Quando tiver atingido estado sóbrio, será chegada a hora de botar a mão no bolso. Uma noite em célula de desembebedamento custa 300 francos (cerca de mil reais). Se o infrator estiver desprevenido, que não seja por isso: receberá a conta pelo correio.

guarana-1Agora, só pra arrematar, um curioso pormenor referente ao bafômetro. Como no resto do mundo, em Genebra também a polícia faz blitz noturnas aleatórias nas ruas. Quando suspeitam que um motorista tenha bebido mais do que devia, solicitam gentilmente que sopre no bafômetro. Aqui não tem essa de se recusar a soprar: polícia mandou, tem de obedecer.

Se o teste der resultado negativo, o motorista será liberado na hora. No caso de resultado positivo, porém, o indivíduo terá de pagar pelo teste. Custa 100 francos (cerca de 300 reais). Sem prejuízo das consequências habituais desse tipo de comportamento: multa, confisco da carteira de habilitação e conexos.

Vai um guaraná aí? É mais prudente.

Escrita automática

José Horta Manzano

Se o distinto leitor imagina que a escrita automática do título é introito de artigo sobre psicografia, devo desenganá-lo. O caso de hoje é mais prosaico.

Falar sem refletir é próprio do ser humano. Ao falar, a gente hesita às vezes, por um instante, em busca de um adjetivo ou de um verbo mais adequado. O mais das vezes, no entanto, as palavras fluem automaticamente. Sai como sai. E é bom que assim seja, senão a comunicação seria difícil.

Avião 3Já a escrita demanda um bocadinho de reflexão. O exercício se complica com a importância do texto. Bilhetinho a ser grudado na geladeira não exige concentração nem volteios, a coisa sai como sai. Pra redação de concurso ou artigo de jornal, a história é outra. Não se deve simplesmente lançar as palavras como nos brotam.

Nem todos se dão conta disso, é uma evidência. Ainda hoje topei com artigo no Estadão ‒ bem escrito, por sinal ‒, que peca por irreflexão. O assunto não é transcendente. Relata-se o bloqueio, por parte do fisco, de bens de conhecido jogador de futebol. Iate e avião confiscados! Ao fechar a matéria, o escriba informa que «a sentença cabe recurso».

Iate 1Escorregou. É usual, em notícia de condenação, explicar que cabe recurso. Com isso, quer-se dizer que a sentença não é definitiva, e que o condenado ainda pode contestar. Em outras palavras, cabe recurso significa que é cabível que o interessado interponha recurso. Trocando em miúdos, é admissível a possibilidade de apelar à autoridade que proferiu a sentença para tentar reformá-la.

Ao declarar que «a sentença cabe recurso», o articulista trocou os pés pelas mãos. O que cabe não é a sentença, mas o recurso. Tivesse dito «a sentença admite recurso» ou «contra a sentença, cabe recurso», teria acertado. Fica para a próxima.

Corrupto no bolso

José Horta Manzano

Você sabia?

Nem tudo está perdido. O recém-nomeado superintendente regional da Polícia Federal no Estado de São Paulo é membro da mesma corrente de pensamento seguida pelo juíz federal Moro, do Paraná.

Em entrevista ao Estadão, foi simples e direto: «É pegar corrupto no bolso», ou seja, o confisco das posses dos assaltantes do dinheiro público é pra lá de eficiente no combate a organizações criminosas que compõem as máfias brasileiras.

Disney RossetiUm mês de carceragem, tornozeleira, prisão domiciliar não bastam. Assim como a cupidez foi o motor dos larápios, a prevenção reside na perspectiva de perder tudo o que roubaram. E, por cima disso, ainda pagar multa pesada, proporcional ao valor surrupiado.

Execração pública não dissuade cara de pau. Os sem-vergonha são gente sem vergonha. Estamos cansados de ver políticos cassados – ou que renunciaram ao mandato para fugir à cassação – voltarem à ativa, cara limpa e sorridente, como anjinhos recém-escorregados de uma nuvem.

Apesar da pouca idade, o novo superintendente já acumulou experiência no ramo. Estes dois últimos anos, funcionou como adido policial junto à embaixada do Brasil na Itália. Além de participar do caso Pizzolato, teve ocasião de entrar em contacto com a experiência da polícia antimáfia daquele país. Uma escola e tanto!

Quero aproveitar o ensejo pra compartilhar uma curiosidade com o distinto leitor. O novo superintendente chama-se Disney Rosseti. São duas palavras de grafia distorcida.

O sobrenome italiano, bastante comum, deveria escrever-se Rossetti, com dois tt. Tal nome indica que, lá pelo século 13 ou 14, quando sobrenomes começaram a ser atribuídos, o patriarca da família era ruivo. Rosso (= vermelho), rossetto (vermelhinho), rossetti (os vermelhinhos). Um tê se perdeu quando a família chegou ao Brasil.

Isigny-sur-mer, Normandia, França

Isigny-sur-mer, Normandia, França

O prenome – pra lá de original – lembra Walt Disney, o idealizador de simpáticos personagens que povoaram nossa infância. Você sabia que, apesar da aparência britânica, Disney tem origem francesa?

Pois é, vem da Normandia, norte da França. Nada mais é que a grafia inglesa – um pouco arrevesada – do francês d’Isigny (= de Isigny). Quem leva esse sobrenome há de ter tido, centenas de anos atrás, um antepassado originário da graciosa cidadezinha francesa de Isigny-sur-mer, situada à beira do Canal da Mancha, bem em frente à Grã-Bretanha.

Ladroagem consentida

José Horta Manzano

Assalto 1Agiotagem, especulação, extorsão, pirataria, ladroeira, desfalque, afano, dilapidação, sangria, rapina, espoliação, gatunagem, exploração, ratonice, saqueio, patifaria, golpe, empalmação, usura.

Qualquer um desses termos serve para dar nome ao esbulho praticado pelas companhias de cartão de crédito no Brasil. Entram no mesmo saco operadoras e estabelecimentos bancários.

Saiu ontem a notícia dos juros que vêm sendo aplicados aos infelizes que caem na ciranda do dito crédito rotativo. Já seria de péssimo gosto se fosse piada. Infelizmente, piada não é, mas usura institucionalizada.

Chamada do Estadão, 30 jul° 2015

Chamada do Estadão, 30 jul° 2015

O distinto leitor já deve ter feito as contas. Se contrair uma dívida de R$ 1.000 em janeiro e não reembolsar, no final do ano estará devendo, só de juros, R$ 3.720. Adicionando os mil que tomou emprestado, terá de desembolsar R$ 4.720 para quitar a dívida. São quase cinco vezes o valor do empréstimo.

Que significa isso? A resposta está lá em cima, no primeiro parágrafo. Qualquer palavra serve. Pode acrescentar mais uma: imoralidade. Já nos tempos bíblicos, penas do inferno eram prometidas a quem ousasse praticar agiotagem.

Carte de credit 3O que me surpreende é que aumentos bem menos percutentes provoquem protestos, passeatas, quebra-quebras, enquanto esse confisco legalizado passa em branco. Será que ninguém pensou, até hoje, em se organizar para pôr de pé uma entidade que se oponha a situação tão indecente?

Gostaria de lembrar aqui um artigo da Constituição da República, dispositivo jamais posto em prática. O parágrafo 3° da alínea VIII do artigo 192 diz textualmente:

Interligne vertical 14Interligne vertical 15«As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima desse limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar.»

Que estão esperando os interessados para denunciar evidente e continuado crime de usura?

MasterCard  crédito rotativo na Suíça Taxa de juros: 14,93% ao ano

MasterCard crédito rotativo na Suíça
Taxa de juros: 14,93% ao ano

A título de comparação, é interessante saber que, na Suíça, usuários de crédito rotativo em cartão de crédito pagam 14,93% de juros anuais – o que já é considerado altíssimo.

Ressalve-se que a inflação helvética é nula. Portanto, para garantir aos operadores brasileiros o mesmo nível de ganho, seria necessário levar em conta a inflação. Exagerando, consideremos que seja de 15%. Chega-se a um juro em torno de 30% ao ano. Elevado, mas compatível com o que se pratica no mundo.

Visa, Mastercard, American Express e mais duas ou três empresas monopolizam o mercado planetário. Se 30% são suficientes para manter rentabilidade aceitável em outros países, por que é que, no Brasil, têm de ganhar dez vezes mais?

Não tenho resposta.

Show para a galeria francesa

José Horta Manzano

Na quinta-feira 28 de março, o presidente François Hollande concedeu uma entrevista. A notícia parece banal, mas tem significado especial.

Como acontece em muitos países, no Brasil inclusive, o jornal televisivo francês das 20h é programa de forte audiência. O presidente escolheu esse momento particular para fazer seu pronunciamento.

Grande parte da população deve ter engolido seu jantar sem olhar para o prato, preferindo degustar as palavras presidenciais, olhos fixados na telinha. No entanto, os que esperavam ouvir algum anúncio espalhafatoso continuaram famintos.

Os tempos mudaram. Ilhas de prosperidade em meio a oceanos tempestuosos ― como o governo brasileiro apresentava nosso País lá pelos anos 70 ― ficaram no passado. Hoje em dia, sem muito alarde, a globalização vai-se impondo. Se a China espirra, o mundo pega uma gripe danada. Se os Estados Unidos bambeiam, o planeta desaba. Está tudo muito ligado. Ninguém mais faz milagre sozinho.

Durante sua campanha, o candidato Hollande fez uma montanha de promessas, algumas delas gritantemente demagógicas. Uma no cravo, outra na ferradura, tentou arrebanhar votos de simpatizantes de toda a paleta política, da esquerda trotskista à direita radical.

Entre outros compromissos polêmicos, jurou por todos os deuses que faria incidir imposto de 75% sobre beneficiários de salários superiores a um milhão de euros por ano. Não precisa ser nenhum mágico em economia para entender que pouquíssimos atingem essa faixa de ganho.

Era o tipo de promessa inócua, pura jogada de marketing. Feita apenas para agradar à galeria, seria incapaz de encher os cofres da nação e muito menos de endireitar as finanças. Assim mesmo, muita gente deve ter-se deixado impressionar pela falácia. O resultado é que Monsieur Hollande foi eleito, no segundo turno, com 51% dos votos.François Hollande

Já comentei sobre consequências dessa promessa aberrante em artigo de dezembro do ano passado. O primeiro efeito foi afugentar gente que, sem ter cometido nenhum crime, se sentiu subitamente malquista pelo simples motivo de ganhar muito.

O sistema eleitoral do país, com deputados eleitos em dois turnos, faz que o parlamento seja composto quase exclusivamente por representates dos dois partidos majoritários: um ligeiramente de esquerda, outro levemente de direita. Não há, portanto, necessidade de coalizões, muito menos de mensalões.

Hollande, que conta com folgada maioria parlamentar, conseguiu sem dificuldade fazer votar a lei dos 75%. Ato contínuo, deputados descontentes apelaram para a Cour Constitutionnelle(*), a instituição francesa que tem por atribuição pronunciar-se sobre a constitucionalidade de uma nova lei. A corte negou provimento, com o argumento de que todo imposto ultrapassando 2/3 dos ganhos do cidadão é confiscatório. Portanto, inconstitucional. A lei foi invalidada.

Pois não é que o presidente, certamente para não deixar transparecer a derrota, voltou ao ataque? Fez isso durante a entrevista televisiva. Anunciou que a intenção de confiscar três quartas partes de ganhos elevados continuava em pauta.

Na impossibilidade de cobrar a derrama de cidadãos, decidiu enviar a conta às empresas. A nova lei ― que será seguramente votada por sua maioria parlamentar ― especifica que os cidadãos pagarão, de seu próprio bolso, o máximo autorizado, e que o resto será pago por seu empregador. Assim, chegará de qualquer maneira aos 75% e estará cumprida sua promessa de campanha.

Formado em excelentes e prestigiosos institutos, o presidente é, supõe-se, homem de cultura. Imagina-se que seus assessores também sejam. Portanto, a solução proposta é desconcertante. É produto típico do que os franceses chamam la gauche caviar, a esquerda festiva. Um agrupamento de políticos bem-nascidos, daqueles que só conhecem a precariedade de ouvir falar.

Muito poucas empresas pagam salários tão elevados. E muito poucos são os funcionários que atingem esses picos. As firmas visadas são todas multinacionais, com ramos, braços, filiais e sucursais implantadas em dezenas de pontos do planeta. Não é difícil imaginar que uma parte dos salários mais elevados possa vir a ser paga fora das fronteiras nacionais, longe do alcance do fisco.

Pior que isso, há um efeito perverso que pode causar mal maior ao país inteiro. Firmas estrangeiras que, em ascensão acelerada, estejam procurando um país para acolher sua base europeia vão pensar duas vezes antes de escolher a França.

A Receita sempre alcança os pequeninos, aqueles que não têm como escapar de sua malha. Malha fina ou malha grossa. Já os que ganham milhões têm acesso a subterfúgios cuja existência nós outros nem de longe imaginamos.

As atuais sondagens de opinião mostram que o presidente da França está navegando em patamares baixíssimos de aprovação popular. Não será a insistência cabeçuda nessa medida confiscatória que lhe servirá de alavanca para subir nas pesquisas.

Melhor teria sido se Monsieur Hollande tivesse aproveitado a deixa, jogado a culpa na corte constitucional e virado a página.

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(*) No Brasil, o STF acumula as funções de Corte Suprema e de Corte Constitucional. Na França, há uma instituição para cada uma dessas funções. A finalidade precípua da Cour Constitutionnelle é, quando instada a fazê-lo, pronunciar-se sobre a compatibilidade de uma lei com a Constituição.

Os exilados fiscais

José Horta Manzano

Diferentemente de outros países, que procuram atrair as grandes fortunas, a França vem se distinguindo por perseguir os ricos. É paradoxal, mas é assim. A tendência se acelerou desde que o presidente Hollande tomou posse de seu cargo, alguns meses atrás. Uma de suas promessas de campanha ― demagógica a mais não poder ― foi de elevar a 75% (setenta e cinco porcento!) a alíquota de imposto de renda de quem ganha mais de um milhão de euros por ano.

É um raciocínio estreito, pois quem ganha fortunas desse nível sempre encontra meios de defender seu patrimônio. Já faz muitos anos que franceses afortunados vêm se expatriando para escapar a essas taxas escorchantes. São industriais, artistas, esportistas, escritores. Não são ladrões, não cometeram peculato, nem assaltaram o erário. Ganham seu dinheiro dentro da lei.

Quando o Estado retém a metade dos ganhos de certos cidadãos, já está exagerando. Quando chega a alíquotas de 75%, já não estamos falando mais de imposto. O nome é outro: confisco.

Faz anos que franceses ricos já estabeleceram seu domicílio fiscal no estrangeiro. Alain Delon, Charles Aznavour, Alain Prost, Johnny Hallyday, Marie Laforêt são os mais conhecidos. Mas há muitos e muitos outros de quem se fala menos, por não fazerem parte do mundo do espetáculo.

Bilhões de euros escapam, assim, à receita francesa em consequência de uma política míope que, se angaria votos, priva as burras do Estado de recursos mais que polpudos.

O caso mais recente envolve o ator Gérard Depardieu. Pessoalmente, não morro de simpatia por ele. Mas há que separar paixão e razão. O ator decidiu estabelecer-se num vilarejo belga, a alguns passos da fronteira francesa. Essa mudança de residência fiscal indignou o Primeiro Ministro da França, que a descreveu a decisão como «miserável, digna de um pobre tipo».

Gérard Depardieu

Gérard Depardieu

Como se diz na França, Depardieu não costuma «guardar a língua no bolso», não é o tipo de pessoa que leva desaforo pra casa. De bate-pronto, resolveu dar o troco ao desajeitado ministro. Numa carta aberta publicada este domingo, ele se insurge contra o insulto de que foi vítima. E, num arrebatamento, declara sua intenção de renunciar à cidadania francesa. Disse também que, em 2012, pagou impostos equivalentes a 85% de seus ganhos. Declarou ainda que vai-se embora porque se dá conta de que seu país abomina e sanciona o sucesso, a criação, o talento e a diferença.

O prefeito do vilarejo onde Depardieu comprou sua residência está rindo à toa.