Artigos em falta

José Horta Manzano

Nos tempos do lulopetismo, ficou evidente a falta de simancol de Lula da Silva e de quase todos os que lhe gravitavam em torno. A sem-cerimônia daquela gente era constrangedora. Apesar disso, dada a gravidade do que fizeram no terreno criminal, passaram à história como promotores do maior assalto ao Estado. Os louros obtidos com esse crime ofuscam o primitivismo do desajeitado comportamento social. Ninguém mais se recorda do lado pesadão de todos eles. Serão para sempre lembrados pela desenvoltura ao meter a mão na marmelada.

O advento de doutor Bolsonaro trouxe variação aos padrões. Roubalheiras não foram, até o momento, descobertas. (Esperamos que assim continue.) Já do lado do comportamento no dia a dia, ai, ai, ai! A falta de simancol dos lulopetistas é fichinha. O prato do dia agora é a gritante falta de vergonha na cara. Quando, lá fora, o mundo fica sabendo, nós é que passamos a nos sentir constrangidos. E como!

A Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos tomou a peculiar decisão de conceder o prêmio de personalidade do ano a doutor Bolsonaro. Digo peculiar porque me lembra o prêmio Nobel da Paz oferecido a Barack Obama logo no início do mandato. O mundo, naquela época, ficou um tanto embasbacado: «–Mas… se o homem ainda não teve tempo de mostrar serviço, por que é que lhe estão dando esse prêmio adiantado?»

Agora volta a mesma pergunta. Por que é que dão prêmio de personalidade do ano a um presidente em início de mandato, que ainda não fez praticamente nada além de tuitar indecências e banalidades? Pouco importa – o prêmio foi concedido. Agora é tratar de ir buscá-lo. É aí que começa a constrangedora via crucis, que termina com inacreditável falta de vergonha na cara.

Em lugar de guardar discrição na escolha do salão onde promover a festa, os organizadores deixaram vazar cada passo da busca. Como resultado, o mundo ficou sabendo que a presença de doutor Bolsonaro não era bem-vinda em nada menos que três salões nova-iorquinos. De quebra, o prefeito daquela metrópole tascou em nosso presidente o epíteto de «dangerous human being – ser humano perigoso». Um desplante. Perigoso ou não, qualquer ser humano medianamente dotado de brios teria virado a página e enterrado o projeto. Perdeu, mano!

Quá! É não conhecer o presidente do Brasil. Tinhoso, é daqueles que, expulsos pela porta, retornam pela janela. Mostrou que não é somente simancol que lhe falta, mas vergonha na cara. Acionou o Itamaraty para encontrar lugar que se dignasse de o acolher. Descobriram um local em Dallas. Doutor Bolsonaro deve fazer a viagem estes dias. O prefeito da cidade já avisou que não comparecerá à cerimônia, numa mostra de que o sentimento antibolsonarista é difuso e não se restringe a um excitado prefeito de Nova York.

Não sei o que o distinto leitor pensa disso tudo. Fosse comigo, eu não iria. Quando um homem chega ao ponto de ter de mendigar acolhida, não faz jus ao título de personalidade do ano. Ou não? Faltou vergonha na cara.

Surgiu um Kennedy no Trumpistão

Elio Gáspari (*)

O partido Democrata designou o deputado Joseph Kennedy III para discursar na contradita à fala de Donald Trump na sessão de reabertura do Congresso americano. Ele falou durante 13 minutos e, quando terminou, o partido Democrata tinha uma nova estrela.

Com algum exagero, a cena foi comparada ao discurso de um senador pouco conhecido na convenção democrata de 2004. Chamava-se Barack Obama e tinha 43 anos. Quatro anos depois, foi eleito presidente dos Estados Unidos.

Joseph Kennedy III tem 37 anos, está no segundo mandato de deputado e é neto de Robert Kennedy, o senador assassinado em 1968, aos 43 anos, quando estava na bica para ser eleito presidente. Cinco anos antes, seu irmão John morrera em Dallas. (O mais velho da prole, Joseph, explodiu com seu avião durante a Segunda Guerra.)

O breve discurso de Kennedy o colocou na lista de notáveis do partido. Respondeu ao septuagenário Donald Trump com uma peça de perfeita oratória. Unificadora num país dividido, benevolente numa sociedade crispada, ele apontou para o futuro numa época de intransigências vindas do passado.

Condenou o muro que Trump quer construir na fronteira com o México com um toque da maestria retórica de Ronald Reagan em Berlim: “Minha geração vai derrubá-lo”. Surpreendeu, dirigindo-se aos imigrantes em espanhol: “Vamos a luchar por ustedes”. (Ele passou dois anos na República Dominicana fazendo trabalho voluntário.)

Foi um discurso de candidato a muito mais. Pela primeira vez, um Kennedy vai para a cabeceira da pista com chances de decolar. Seu pai foi um deputado medíocre, alguns de seus primos se meteram em escândalos. Com um currículo de primeira (diplomado pelas universidades de Stanford e Harvard), Joseph é abstêmio, casou-se com uma colega de faculdade e tem uma cabeleira normal, que lembra um pouco a do avô, nada a ver com a marquise laqueada de Trump.

(*) Elio Gáspari é jornalista.

Novo aeroporto

José Horta Manzano

Como é bom ser grande empresário num país de gente apática! Nossa falta de noção de pertencimento a uma comunidade faz que cada um de nós reaja com um simples dar de ombros a qualquer notícia, seja ela boa ou má.

O máximo que se vê é algum protestozinho mole aqui ou ali ― alguma manifestação que acaba se desmanchando em vandalismo. De estudar, que é bom, não gostamos. De aprender, que é bom, não gostamos. De nos esforçar, que é bom, não gostamos. De dar o melhor de nós mesmos, que é bom, não gostamos. Passamos a vida à espera de que alguém faça alguma coisa. Costumamos ter a nítida impressão de que o problema não é conosco.

by Carlos Alberto da Costa Amorim, desenhista carioca

by Carlos Alberto da Costa Amorim, desenhista carioca

Alguns poucos se apercebem dessa generalizada tendência ao descaso, ao «tô-nem-aí». Para desgraça nossa, nem sempre são os mais bem-intencionados. Vai daí, nossas portas estão abertas a aventureiros, predadores, espertalhões, inescrupolosos, aproveitadores. A conjunção deletéria do descaso da população com o oportunismo de uma meia dúzia trava o país. E perpetua o insuportável contraste entre a riqueza indecente de uns contra a miséria negra de outros.

Em seu blogue alojado no Estadão, Marina Gazzoni nos contava, semana passada, que está prevista a construção de novo aeroporto (mais um!) para servir a cidade de São Paulo. O projeto foi apresentado por um consórcio de grandes empreiteiras. A certeza de que seja aprovado sem reticências é tão grande, que as construtoras já compraram até o terreno. Afinal, convencer autoridades públicas é especialidade de grandes empresários…

Reinventando o avião by Glen Baxter, desenhista inglês

Reinventando o avião
by Glen Baxter, desenhista inglês

O adjetivo absurdo, de tão usado, já gastou. Dizer que a ideia é absurda soa banal. Contraditória? Incoerente? Insensata? Disparatada? Que cada qual escolha o termo que melhor lhe convier. Estamos diante de uma estupidez sem nome.

O aeroporto de Guarulhos, que há 30 anos serve a capital do Estado, viu passar 32 milhões de passageiros em 2012. No mesmo ano, o movimento de viajantes registrado nos dez aeroportos mais movimentados do planeta foi o seguinte:

    Dubai       = 58 milhões
    Djacarta    = 58 milhões
    Dallas      = 59 milhões
    Paris       = 62 milhões
    Los Angeles = 64 milhões
    Chicago     = 67 milhões
    Tóquio      = 68 milhões
    Londres     = 70 milhões
    Pequim      = 82 milhões
    Atlanta     = 95 milhões (!)

Guarulhos não aparece nem entre os 30 aeroportos mais movimentados do mundo. Como qualquer um pode deduzir, se outros conseguem acolher o triplo dos viajantes atendidos em Cumbica, por que, raios, não seríamos nós capazes de fazer o mesmo? Há maneiras mais práticas, mais baratas, mais eficazes e mais lógicas de melhorar o desempenho da estrutura existente.

Foi um erro ter construído o aeroporto onde se encontra? Muitos dizem que sim. Mas não tem mais jeito: feito está, feito ficará. O que não convém é repetir a asneira.

Visita curta ― saguão de aeroporto desnecessário by Ross Thomson, desenhista inglês

Visita curta ― saguão de aeroporto desnecessário
by Ross Thomson, desenhista inglês

Caieiras, o município «escolhido» pelos empreiteiros, é localidade encarapitada na Serra da Mantiqueira, a quase 800m de altitude, num dos raros pulmões verdes que ainda sobram à roda de São Paulo. Para coroar o desatino, aquela serra é considerada zona de mananciais. Uma parte do abastecimento de água da megalópole depende da preservação e dos bons cuidados que se dediquem à região. E tem mais: como localidade serrana, Caieiras é tão sujeita a nevoeiros como Guarulhos.

Antes de pensar em novo aeroporto, ainda há muito que fazer no velho. Ligação ferroviária rápida, aumento da capacidade dos estacionamentos, construção de novos terminais, desapropriação de terrenos circunvizinhos, melhora na logística de movimento de carga, aprimoramento da formação de pessoal, reforço da segurança. Tudo isso é mais lógico e sai mais barato do que construir mais uma estação aérea.

Não tem cabimento termos estádios padrão Fifa e continuarmos com aeroportos padrão Uagadugu.

A quem beneficiou o crime?

José Horta Manzano

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«Kennedy est un livre ouvert où l’on peut mettre ce qu’on veut»

Kennedy é um livro aberto onde cada um pode pôr o que quiser

Thomas Snegaroff, historiador francês

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Assassinado aos 46 anos, John F. Kennedy deixou de herança a aura de charme que circunda os que morrem na flor da idade. São aqueles que ninguém jamais verá envelhecer. Pertence à casta que inclui Noel Rosa, Che Guevara, Elis Regina, Marilyn Monroe, Eva Perón, James Dean. São gente que pagou com a vida o preço da preservação da eterna juventude na memória coletiva.

Passados cinquenta anos daquele ensolarado e trágico meio-dia texano, muitas perguntas ainda vagam sem resposta. Essas dúvidas não serão provavelmente jamais esclarecidas. Faz parte do fascínio do sorridente presidente.

Centenas de livros já foram escritos sobre o assunto. Dezenas de teorias ― umas plausíveis, outras fantasistas ― têm sido propostas. Há quem garanta que foi obra da máfia. Outros juram que só pode ter sido o FBI do temido Edgar Hoover. Outros ainda enxergam o dedo de Fidel Castro e de seus amigos soviéticos. Até extraterrestres já foram cogitados. Há até mesmo quem acredite ― não são muitos ― na tese oficial, que aponta um assassino individual.

Dallas, 22 nov° 1963

Dallas, 22 nov° 1963

Valéry Giscard d’Estaing foi presidente da França há quase 40 anos, na época em que Gerald Ford era inquilino da Casa Branca, em Washington. Durante uma visita que fez aos EUA, Giscard aproveitou um dos raros momentos em que os dois estiveram a sós para pedir ao presidente americano detalhes sobre as conclusões da Comissão Warren.

A Comissão Warren foi criada por decreto do presidente Lyndon Johnson, sucessor de Kennedy, uma semana depois do assassinato. Sua finalidade era justamente lançar luz sobre os comos e os porquês do evento dramático. Os componentes da comissão eram seis: dois deputados (um democrata e um republicano), dois senadores (um democrata e um republicano), um antigo diretor da CIA, um diplomata e antigo presidente do Banco Mundial. Eram assessorados por um jurista. John Ford, deputado republicano em novembro de 1963, era um dos seis integrantes. Daí a pergunta do presidente francês.

Em entrevista concedida ontem, um Giscard ainda lúcido e vivaz ― aos 87 anos de idade ― confiou que, segundo o relato que ouviu de Ford 40 anos atrás, as conclusões a que chegaram os membros da Comissão Warren não foram satisfatórias. Na realidade, as investigações indicavam que, longe de ser isolado, o crime era o resultado de um complô bem organizado. Cada um dos investigadores guardou a íntima convicção de que o atentado havia sido planejado e executado por alguma entidade. Mas… qual? Na ausência de provas, a comissão resignou-se a encampar a tese de um desequilibrado atirador solitário. Todos assinaram embaixo. Tentaram tranquilizar a opinião pública e pôr um ponto final naquele trauma.

Desde o dia em que ouviu as confidências de Gerald Ford, Valéry Giscard d’Estaing guarda a certeza de que John Kennedy foi vítima de um complô. Os mandantes já hão de estar todos mortos. Quem sabe um dia saberemos quem eram. Ou não.