Dar asilo aos perseguidos

José Horta Manzano

Alimentar quem tem fome, agasalhar quem tem frio, consolar os que choram, proteger os indefesos, abrigar os perseguidos. São princípios universais, base de toda sociedade organizada e termômetro de seu grau de civilização.

O Brasil está rodeado de vizinhos estranhos e imprevisíveis. Alguns até violentos. No tempo em que cada país vivia fechado em seu universozinho, sem grande contacto com o exterior, vizinhos tinham pouca importância. Mas a roda girou e a ordem mundial se alterou.

Com a melhora nos transportes e nas comunicações, a proximidade geográfica passou a ter maior significado nas relações entre os povos. Cinquenta anos atrás, uma viagem internacional ― fosse ela a Assunção ou a Bruxelas ― causava o mesmo pasmo. Era assunto para relatos que duravam meses, anos até. Hoje não é mais assim. A proximidade dos vizinhos tem assumido importância crescente.

Se é um bem ou um mal? Pois não me parece nem um nem outro. É da vida. Tendemos todos a ter mais intimidade com o vizinho de parede do que com o que vive na rua de baixo. E a recíproca é verdadeira: nossos vizinhos também nos veem, mais e mais, como gente digna de atenção e de respeito.

Foi nessa continuidade histórico-política que um senador boliviano, perseguido pelo governo de seu país e sentindo-se por ele ameaçado, buscou asilo na embaixada do Brasil em La Paz. Causou rebuliço em nosso governo popular. Por um lado, princípios universais de convivência ensinam que se deve dar asilo aos perseguidos. Por outro, dar proteção a um desafeto de governante amigo pode ser interpretado como afronta. Que fazer?

Oficialmente, nada se fez. Brasília escudou-se detrás de desculpa cômoda: o governo boliviano se negava a conceder salvo-conduto para o asilado abandonar o país em segurança. No entanto… por baixo do pano, as coisas não se desenrolavam exatamente assim.

Não tivesse a notícia sido publicada pelo Estadão, em sua edição de 14 fev°, não seria de acreditar. Se você não leu, não perca: é edificante. Clique aqui. Sabemos agora que, logo que o senador bateu à porta de nossa embaixada e lá foi acolhido, Brasília e La Paz entabularam tratativas para resolver o problema de maneira indolor para os dois governos e, se possível, infernizando e desgraçando a vida do ousado parlamentar.

O plano era remover de nossa embaixada o refugiado incômodo, instalá-lo num avião venezuelano e despachá-lo para a Venezuela de Chávez ou para a Nicarágua de Ortega ― gente notoriamente confiável e amiga. Para coroar o cenário de sórdida deslealdade, o senador não deveria ser informado do destino final de sua viagem.

Dois motivos impediram o sucesso da infame operação. Primeiro, o asilado não concordou em embarcar num voo de destino ignorado. Segundo, Chávez, apesar do desvelo do ápice do suprassumo da quinta-essência da superior medicina cubana, faleceu. E a urdidura secreta foi por água abaixo. O senador teve de ser resgatado pela compaixão de um funcionário de nossa embaixada, que arriscou seu futuro profissional na empreitada.Roger Pinto 2

O senador refugiado sobrevive hoje em Brasília no quarto de empregada ― perdão! ― no quarto de auxiliar de serviços domésticos do apartamento de um senador brasileiro. É cômodo sem janela, de uns 5 metros quadrados, onde não cabe nem criado-mudo.

É inconcebível que nossos governantes, que, em nome do Estado brasileiro, deram refúgio na embaixada ao político perseguido, não lhe proporcionem o alojamento e a proteção que lhe são devidos. Mais inexplicável é o fato de o terem acolhido em La Paz e de se recusarem agora a confirmar-lhe asilo em território nacional.

Melhor teria feito o señor Molina se tivesse procurado a embaixada de um país civilizado. Fez mau negócio, o infeliz parlamentar.

Copas e Jogos Olímpicos podem servir para anestesiar o distinto público interno. Casos como o do senador boliviano corroem a imagem de nosso país no exterior. É pena.

O fim da zelite

José Horta Manzano

Segundo o discurso oficial, a zelite foi apeada do poder doze anos atrás. Desde então, nos livramos da promiscuidade entre o probo e austero governo tupiniquim e o execrável e corrupto império norte-americano.

Demos as costas ao bicho-papão para melhor dar as mãos a compañeros mais póximos do nosso feitio. Ahmadinejad, os Castros e Chávez foram os primeiros. Depois aceitamos novos sócios no clube dos virtuosos: Correa, Evo, Ortega, Zelaya e a inefável señora de Kirchner. As inscrições continuam abertas, mas por tempo limitado.

Para coroar tudo, estabelecemos as bases de uma sólida, profícua e duradoura parceria estratégica com a Rússia, a Índia e, principalmente, com a China. Foi a melhor decisão político-econômica jamais tomada na história deste país. Afastamo-nos dos malvados e atrelamos nosso vagão à locomotiva chinesa que representa, sabemos todos, o futuro brilhante da humanidade. Um modelo de equidade, lisura e justiça.

Perdemos algumas plumas no meio do caminho, é verdade. Mas que importa se descemos alguns degraus, se nos desindustrializamos, se voltamos a ser produtores de matéria-prima? Isso é coisa pouca se comparado ao caminho radioso que preparamos para nós mesmos.

O grito lançado em 1822 pelo filho do rei tinha ficado meio entalado na garganta. Afinal, que história é essa de o símbolo maior da zelite ― o herdeiro da coroa! ― liberar o país? Coisa esquisita. Pois agora a obra está completa. Estamos independentes!

O governo popular, preocupado exclusivamente em servir ao povo, fechou o círculo. Os peçonhentos americanos ― ou estadunidenses, como usam dizer alguns ― foram definitivamente removidos de nosso horizonte.Interligne 18d

Excelente reportagem de investigação assinada por Rubens Valente e publicada na Folha de São Paulo deste 15 de julho contradiz frontalmente os parágrafos anteriores. Essa história de bater na madeira e nos isolar dos malvados do Norte não passa de cortina de fumaça, produto de elaborado marketing palaciano. A história real é bem diferente.

Se já não o fizeram, leiam a reportagem da Folha. Ela nos informa que os serviços de inteligência dos Estados Unidos continuam colaborando estreitamente com a Polícia Federal brasileira. Acordos ― alguns sigilosos, outros não ― continuam sendo firmados entre os dois países.

Ajuda financeira

Ajuda financeira

Entre 1999 e 2008, ajuda financeira por um total de 140 milhões de reais foi oferecida pelas autoridades americanas. E, naturalmente, aceita pelos altos responsáveis brasileiros.

Essa detestável zelite não tem jeito mesmo: a gente enxota pela porta, e ela entra pela janela. Acabrunhado, o governo popular não sabe mais que fazer.

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Interligne vertical 5Nota pessoal:
Não tenho notícia de que nenhum de nossos parceiros estratégicos ― China, Índia, Venezuela, Bolivia, Nicarágua, Irã & companhia ― tenha desatado os cordões da bolsa para nos enviar alguma ajuda. Nem que fosse simbólica.

Quem semeia vento…

José Horta Manzano

… colhe tempestade.
Qui sème le vent récolte la tempête.
Chi semina vento raccoglie tempesta.
As you sow, so shall you reap.
Quién siembra vientos recoge tempestades.
Wer Wind sät wird Sturm ernten.

Catavento

Catavento

A sabedoria vem de longe, mais precisamente do Antigo Testamento. Espertos, os antigos já tinham se dado conta de que, para atrair simpatia, melhor sorrir do que fazer cara feia. Honey catches more flies than vinegar, atraem-se mais moscas com mel do que com vinagre, dizem os ingleses.

Nesta quinta-feira, toda a mídia europeia menciona, em tom levemente jocoso, a desaventura vivida pelo presidente da Bolívia. Por mais que faça ares indignados, nosso caro hermano Evo não convence. Ele sabe muito bem ― ou deveria saber ― por que tantos chefes de Estado europeus desconfiam dele e não procuram esconder esse sentimento.

O presidente do país vizinho tem aprontado estes últimos anos. Aliou-se ao que há de mais duvidoso na vizinhança: Chávez, Correa, Ortega, os Kirchner, os Castros. Já invadiu e encampou refinaria de petróleo brasileira. Acusou diplomatas estrangeiros de espionagem e os expulsou. Num gesto autocrático, fez votar uma Constituição à sua imagem e semelhança e nela inscreveu tudo aquilo que satisfazia seus interesses.

Vento

Vento

O destrambelhado Snowden ― aquele que botou a boca no trombone e agora se esconde ― pediu asilo a mais de 20 países. A maioria deles não quis saber de confusão e caiu fora. Até Correa, presidente do Equador, se esquivou com a justificativa de o candidato ao asilo não se encontrar em território equatoriano.

Já a Bolívia não disse nem sim nem não. Ficou de estudar o caso. Deixou o resto do mundo com a pulga atrás da orelha. Isso dá uma pista sobre o porquê da má vontade com que Evo foi tratado.

O Brasil, naturalmente, juntou sua voz ao coro dos vizinhos para reclamar do trato humilhante dispensado ao mandachuva. É normal que assim seja. Solidariedade diplomática não rima necessariamente com sinceridade. Logo passa.

É difícil entender por que razão Evo, Correa, Maduro & companhia insistem em brigar com os mais ricos. Para começar, são seus melhores clientes e, mais que isso, são justamente aqueles que lhes poderiam dar uma mão nas horas difíceis.

Tempestade

Tempestade

Enfim, eles que resolvam seus próprios problemas. Tolice será o governo brasileiro ir além da solidariedade de fachada. Não há razão para nos equipararmos a esses ressentidos, a essa gente que estacionou nos anos 50.

Os doze anos de experiência no comando já devem ter ensinado a nosso governantes que ideologia não dá camisa a ninguém.

Aqui se faz, aqui se paga. Quem não quiser ser colhido pela tempestade, que não semeie o vento.

A hora é agora

José Horta Manzano

Regimes autoritários cujo mando está em mãos de um homem só dificilmente sobrevivem ao desaparecimento do guia, do timoneiro, do number one, ou como se queira chamá-lo. Assim foi na China de Mao, na Itália de Mussolini, na Espanha de Franco, no Portugal de Salazar e até no Haiti de Duvalier.

Há exceções que apenas confirmam a regra. São pouquíssimas. Entre elas, a mais conhecida: a Coreia do Norte. Poucas informações passam pela malha finíssima de segredo que envolve o país, mas tudo indica que sai líder, entra líder, e tudo continua como antes.

A partida de Chávez deixou órfãos. Não penso tanto nos eleitores que, fanáticamente ou não, o apoiavam. Para os venezuelanos, até que o futuro não se anuncia tão sombrio. Pior do que estava, é difícil que fique. Alguém terá de dirigir o país. Será aquele que o quase ditador havia ungido, será algum outro, será o chefe da oposição, pouco importa: alguém surgirá. E esse alguém estará a léguas do carisma do predecessor. Como disse François Hollande ao substituir Nicolas Sarkozy, o país terá, por fim, um presidente «normal». Seja ele quem for, o novo dirigente venezuelano será menos exótico.

Os verdadeiros órfãos de Chávez estão fora das fronteiras venezuelanas. Como é que ficará o clã dos Castros em Cuba? E a Nicarágua de Ortega? E a Bolívia, o Equador? E a Argentina, nossa vizinha tão próxima? Todos eles dependiam, em maior ou menor medida, do apoio venezuelano. Um precisava de ajuda econômica, outro carecia de sustentação política, aqueloutro necessitava esteio ideológico. Alguns precisavam de tudo isso. Todos terão de encarar um futuro incerto. Nenhum deles tem chance de sair ganhando.America latina

No fundo, no fundo, o Brasil não é o maior prejudicado pela a falta do comandante. Pelo contrário. Não se pode contrariar o destino, nem refazer a História. Se uma luz miraculosa lograsse iluminar meia dúzia de decididores em Brasília, o que hoje parece uma contrariedade poderia ser transformado em tremenda oportunidade de “remettre l’église au milieu du village”, como dizem os franceses, de repor as coisas nos devidos lugares no âmbito do Mercosul.

Nosso bizarro clube está cada vez mais para agremiação ideológica que para associação de promoção comercial. O pequeno Paraguai, punido por respeitar sua própria Constituição, já foi botado para escanteio faz meses. Um Uruguai espremido entre dois vizinhos gigantescos não tem como fazer ouvir sua voz. A Venezuela, antes de retomar o caminho do crescimento equilibrado, assistirá a inevitáveis querelas intestinas que tendem a enfraquecê-la ainda mais. A Argentina, já afligida por crônicos problemas econômicos, será estrangulada pela falta dos dólares bolivarianos. Nesse cenário de infortúnio, o Brasil tem duas opções: ou continua sua obra estéril de bom samaritano, ou assume de vez as rédeas do clube e impõe-lhe as normas que o farão desempacar.

Pode insistir, como vem fazendo há anos, na tentativa de salvar a economia argentina. Até hoje, tem sido perda de tempo, de esforço e, principalmente, de dinheiro. Um poço sem fundo. Temos passado anos a discutir troca de geladeiras por chuveiros elétricos, enquanto muitos trens passaram. Não lhes fizemos caso, perdemos todos eles e continuamos a discutir geladeiras e chuveiros.

As cabeças pensantes de Brasília ― que ainda as há, tenho certeza ― podem agarrar a oportunidade para desempoeirar o Mercosul e para abrir o subcontinente a novos acordos comerciais e a novos horizontes condizentes com os tempos atuais. Que se ponham de lado as ideologias que nos atravancam e que se pense no crescimento econômico do País. O subcontinente nos acompanhará, é certeza.

Continuo torcendo para que os que decidem em nossas altas esferas virem a página dos ressentimentos pessoais e deem ouvidos ao chamado dos novos tempos. Não tenho muita esperança, mas não custa sonhar. Sai de graça e não faz mal a ninguém.

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Nota: Fala-se no diabo, e logo aparece o rabo. Li um post da Sylvia Colombo, correpondente da Folha de SP em Buenos Aires. Achei que era um bom complemento ao texto acima. Se quiser conferir, o caminho está aqui.