Bullying

José Horta Manzano

Muita coisa mudou de meio século para cá. Sem dúvida, a sociedade evoluiu. No entanto, observando de outro ponto de vista, percebemos que certos problemas que nos parecem modernos já existem há séculos.

Desde que o mundo é mundo, crianças e adolescentes convivem com o que hoje se chama “bullying”. No passado, o jovem atazanado por colegas de classe podia até não apreciar as gozações, mas a situação não costumava degenerar a ponto de afetar sua saúde mental.

Hoje, vivemos uma época mais controlada, mais vigiada, mais restritiva, em que é bom policiar o que se diz e o que se faz porque qualquer deslize pode dar encrenca. Acosso estudantil sai nos jornais, entra na boca do povo e se torna preocupação de saúde pública.

Nessa linha, o governo do Mato Grosso do Sul acaba de lançar programa de combate à evasão escolar. Uma das medidas chama a atenção: facilitação para que esses jovens tiranizados tenham acesso à cirurgia reparadora. Os conceptores do plano partem do pressuposto que, quando um aluno é maltratado em razão de sua aparência física, a solução é… modificar a aparência física.

Sem querer ser alarmista, tenho de alertar para a chegada ao mundo estudantil do eugenismo que ameaça a sociedade brasileira.

A cirurgia plástica desenvolveu-se a partir dos anos 1920. Sua intenção era reparadora, para acudir soldados que voltavam da guerra com o rosto massacrado e disforme. Atualmente, esse ramo cirúrgico vem se dedicando a corrigir pequenos defeitos da natureza – ou pequenas imperfeições que o paciente acredita ter no corpo.

Vai daí, o império da beleza física é imposto por tique-toques e outras redes. Muitas jovens se fazem preencher os lábios, por exemplo, ainda que uma boca carnuda entre em contradição com um rosto de traços finos. O resultado é por vezes desastroso. Mas assim é. Estamos apostando numa cartilha eugenista, em busca de uma sociedade em que todos se parecem. São reflexos desse movimento que parecem estar chegando à escola.

Segundo o governo do MS, trata-se de um “programa de combate à evasão escolar”. Por baixo do nome ingênuo e suave, enxergo problemas graves. Eis alguns.

O primeiro, como já disse, é a aceitação da tendência eugenista, que nivela a sociedade com base num ser humano idealizado, modelo do qual ninguém tem direito de se afastar. Teorias eugenistas, que obrigam todos os cidadãos a se formatarem no mesmo molde, são vistas com simpatia pelos extremos do espectro político (direita ou esquerda). Tanto o regime nazista na Alemanha quanto o comunista na URSS adotaram essa cartilha de formatação em massa, e correram em direção ao desastre. Sabemos como terminou.

O segundo problema do programa do MS é de ordem ética. Ao aceitar que cabe ao ofendido tomar a iniciativa de disfarçar a própria aparência para escapar à violência do ofensor, o projeto desafia a ordem moral vigente em nossa sociedade. O senso comum diz que, em caso de maus-tratos, cabe ao tirano desculpar-se e emendar-se. Ao ceder às exigências do ofensor, o programa dá razão ao valentão, invertendo assim os valores.

Uma última observação tem a ver com igualdade de tratamento, tema muito debatido atualmente. Em princípio, todos os alunos humilhados têm direito a igualdade de soluções. Se o poder público oferece solução a um caso particular, deveria estar em condições de oferecer solução a todos os casos de maus-tratos no âmbito escolar.

O programa mato-grossense propõe solução cirúrgica para orelhas de abano, nariz fora dos padrões, mamas superdesenvolvidas, estrabismo, obesidade. Só que… esses “defeitos” não são os únicos que resultam em tirania contra um aluno. Há casos em que nenhuma cirurgia é útil.

Como é que fica a humilhação do “foguinho” (que tem cabelo vermelho)? E a do “dentuço” (prognata superior)? E a do “chove dentro” (prognata inferior)? E a do “sol de peneira” (sardento)? E a do “perna fina”? E a do “bochecha”? E a do “tição” (preto)? E a do “branquela” (albino)? E a do “tampinha” (baixinho)? E a do “arroz de pauzinho” (oriental)? E a do “bicha” (n° de chamada 24)? Enquanto os coleguinhas “se livram” do acosso, estes vão ficar a ver navios? Onde está a igualdade de tratamento?

Pois é, acredito que esse programa de “correção” da aparência de crianças para aproximá-las de um modelo idealizado é um barco cheio de furos. Dá impressão de solidez, mas não chegará a porto nenhum.

Tem mais. Imperfeição física não é o fator essencial para o aparecimento do “bullying” direcionado a um infeliz aluno. O Zé Grandão da classe pode até ter nariz torto, orelha de abano, verruga na testa, olho caído, sarda e outros “defeitos”, mas jamais será vítima de abuso nenhum. Simplesmente porque ninguém ousa afrontá-lo, com medo do físico imponente.

Por seu lado, um aluno franzino e tímido, ainda que não apresente imperfeição visível, é forte candidato a tornar-se o cristo da turma.

Acredito que a atenuação do problema só virá com a educação da criançada. Se não tiverem recebido boa educação em casa – o que parece ser o caso de muita gente hoje em dia –, a escola terá de se encarregar. Só o ensino poderá informar aos jovens o que pode e o que não pode. Civilidade se aprende.

Me parece que o trabalho do mestre não é emitir guia para aluno obeso fazer lipo pelo SUS. Sua tarefa é, antes, dar ao gordinho orientação básica sobre o valor nutritivo dos alimentos. Melhor será encaminhá-lo ao dietetista do que ao bisturi.

Observação
O distinto leitor talvez tenha notado que utilizei mais de uma palavra para designar “bullying” escolar. Nossa língua, que é rica, oferece diferentes possibilidades para representar a mesma realidade: acosso, intimidação, abuso, tiranização, humilhação. Podem ainda servir: prepotência e maus-tratos.

A China perdeu a face

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 31 janeiro 2021.

O povo chinês é extremamente sensível, dono de uma sensibilidade que foge a nossos padrões. A deles é mais rigorosa, formal, à flor da pele, apegada a valores milenares. O peso do coletivo esmaga arroubos individuais. Espera-se que todos se comportem como manda o figurino. No Brasil, somos mais indulgentes; não está em nossa índole levar tudo a ferro e fogo. Situações que consideramos triviais podem chocar os chineses. Quem se relaciona com eles – se quiser ser bem sucedido – deve tomar cuidado para não se indispor com o interlocutor. Deve ter em mente que até atitudes que nos parecem anódinas podem melindrar e bloquear o que estava sendo tratado.

Em qualquer parte do mundo, “perder a face” é visto como situação desagradável. Na China, é mais grave. Por um lado, não precisa muito para uma pessoa “perder a face”; por outro, é uma das ofensas mais profundas que se possa infligir a alguém. De todas as peculiaridades da alma chinesa, talvez seja o conceito de “face” o mais difícil de assimilar. Faz séculos que tradutores pelejam para encontrar o melhor termo para traduzi-lo. É mais ou menos o que ocorre com a palavra ‘saudade’. Assim mesmo, nossa saudade, que é sentimento humano e universal, pode ser traduzida com um rodeio de duas ou três palavras. Já o conceito chinês de “face”, para ser plenamente percebido, requer um mergulho na civilização daquele país.

Se a tradução exata é difícil de encontrar, os conceitos de orgulho, brio, dignidade e prestígio se aproximam e dão uma pista. O culto da “face” regula os relacionamentos sociais na China. O simples fato de interromper alguém que fala é considerado comportamento ofensivo, porque faz o interlocutor “perder a face”. Aquele que falava vai se sentir desprestigiado. Consertar o estrago não será tarefa simples. O único modo é “dar-lhe face”, conceito complementar ao anterior. Para devolver a face ao cidadão ofendido, pedido de desculpas não vale. As palavras-chave para reaver dignidade arranhada são: elogio, prestígio, admiração, deferência. Há que lisonjear, incensar, acariciar, paparicar.

Na China, espera-se que cada cidadão respeite o próximo como respeita a si mesmo. Um exemplo emblemático é quando duas pessoas travam conhecimento. Cada um vai entregar seu cartão de visitas ao outro segurando-o com as duas mãos. E, naturalmente, toma com as duas mãos o que lhe está sendo oferecido. Esse gesto de deferência significa que o respeito que se tem pelo próximo é igual ao que se tem por si mesmo.

Os chineses são especialmente ciosos da própria imagem quando se trata de relações internacionais. É terreno minado. Como toda nação antiga e de passado glorioso, os chineses sentem aquela nostalgia do brilho perdido, o que os torna deveras susceptíveis. Em 1999, quando de sua visita oficial à Suíça, Jiang Zemin, presidente da China, foi alvo de protestos populares. Não houve agressão física, apenas a presença de manifestantes com faixas que pediam a independência do Tibete – país anexado pela China em 1951. Furioso, o dirigente recusou-se a cumprir o resto do programa. Em rápido e inflamado discurso de despedida, declarou que aquilo não eram modos de receber um visitante, e que a Suíça havia perdido um bom amigo. As relações entre os dois países ficaram abaladas por uma década.

Imagine agora o distinto leitor como devem estar sendo recebidas, na China, as agressões proferidas por ministros e deputados nossos, compartilhadas pelos mais altos escalões sem que o presidente da República digne de reprovar. É a China inteira “perdendo a face”! A humilhação, como se sabe, é a melhor maneira de fazer inimigos duráveis. Quem faz um chinês “perder a face” arruma um inimigo vitalício.

Bolsonaro (ou quem lhe suceder) terá de tentar “devolver a face” à China para abrandar os efeitos da ofensa. Um “desculpa aí, pô!” não vai bastar. Há de ser tarefa longa e paciente. Um bom começo será convidar o presidente chinês para visita de Estado, com direito a recepção de arromba, todas as honras, desfile do 7 de Setembro ou camarote num sambódromo, giro turístico pelo Brasil, hospedagem em palácios de prestígio, banquetes de 15 pratos. Na hora da sobremesa, é bom lembrar que chinês não aprecia pratos de gosto açucarado demais. Convém evitar leite condensado.

Corona-Infektion

José Horta Manzano

Como pode o distinto leitor imaginar, a mídia planetária deu destaque à notícia do resultado positivo do teste de doutor Bolsonaro para covid-19. Cada um temperou a informação com molho à sua moda, uns mais ácidos, outros menos.

Para Bolsonaro, é um combate contra a humilhação
Die Welt, Alemanha

Achei interessante a reflexão do alemão Die Welt. O longo artigo diz que, para Bolsonaro, começa agora um combate contra a humilhação. E argumenta: “A infecção é, portanto, também uma pequena humilhação para o presidente e sua tribo. Mesmo para seus devotos mais fanáticos, fica cada vez mais difícil defender a abordagem que ele tem feito do coronavírus, visto que os conselhos presidenciais nem parecem beneficiá-lo”.

É pra refletir em casa.

Passo maior que a perna

José Horta Manzano

De criança, a gente costumava cantar:

Passa, passa três “vez”
O último que ficar
Tem mulher e filhos
Que não pode sustentar

Ah, essa sabedoria popular é… sabida! Os antigos já entendiam que só deve formar família quem tiver condições de a sustentar. Quem não tem competência não se estabelece, como diz o outro.

A ignorância e a ingenuidade de nosso guia causaram estragos profundos. Sua megalomania, à qual vassalos submissos diziam amém, atingiu em cheio a imagem do Brasil no exterior. A olhos estrangeiros, nosso país se apequenou.

O Lula e a sucessora mandaram criar 17 (dezessete!) embaixadas. Estão todas situadas em países pequenos, com os quais temos discretas relações políticas e comerciais. Só nas Antilhas e no Caribe ‒ sem contar estados maiores, como Cuba, República Dominicana e Haiti ‒ temos dez embaixadas. Estão em países que a gente não conhece nem de nome: Nassau, Antigua & Barbuda, St-Kitts e Nevis, Santa Lucia, Barbados, Granada, Dominica e por aí vai.

Ciranda 1Até na Coreia do Norte, o Lula abriu embaixada. Na época, havia 6 brasileiros no país, 3 dos quais formavam a família do embaixador. Os outros três eram funcionários da representação. Não se tem notícia de que a “colônia” tenha aumentado.

Meus distintos leitores hão de ter ficado sabendo, estes últimos meses, de vexames dados por numerosas representações brasileiras no exterior. Algumas não tinham recursos nem para aluguel, conta de telefone, salário de funcionário, despesas do dia a dia. Uma humilhação.

A decisão de instalar uma fileira de representações prendia-se à falsa premissa de que a quantidade de bandeiras nacionais içadas no exterior dava prova cabal de que o Brasil se havia tornado país importante. Uma pirotecnia. Um rojão que deu chabu.

Embaixada do Brasil em Bridgetown, Barbados

Embaixada do Brasil em Bridgetown, Barbados

Sob nova direção, o Ministério das Relações Exteriores acaba de encomendar estudo da relação entre os custos e os benefícios dessa megalomania. É provável que embaixadas ociosas sejam extintas.

Os caminhos para demonstrar a força de um país são outros, mais árduos. Experiências calcadas no amadorismo acabam custando caro aos cofres públicos ‒ que, ao fim e ao cabo, são alimentados pelos impostos de todos nós.

Frase do dia — 245

«Que argumento terá uma mãe da favela para convencer seu flho a pegar em livros e não em fuzis se os corruptos estiverem exibindo diariamente o seu sucesso e os trabalhadores honestos continuarem pobres, humilhados e ofendidos, trancados em seus casebres porque as ruas estão ocupadas pela bandidagem?»

Fernão Lara Mesquita, jornalista, em seu blogue Vespeiro.

Fim de reino

José Horta Manzano

Por mais autoritária que seja – ou que goste de parecer –, dona Dilma não controla nem seus próprios ministros. O fato ficou evidente estes dias. Um aqui, outro ali, quinze deles deram demissão. Ou, como se diz mais diplomaticamente, «puseram seu cargo à disposição».

Dona Marta, que não perde ocasião para sobressair, demitiu-se de forma teatral. Teve o topete de criticar publicamente a política econômica da presidente. Relaxemos e gozemos, irmãos!

Reunião ministerial

Dos 39 ministros, mais da metade continua dando uma de joão sem braço, como se o fim do primeiro mandato da presidente não lhes dissesse respeito. E pensar que, quando digo que a equipe governamental se tornou um verdadeiro balaio de caranguejos, tem gente que me chama de exagerado…

A maior parte da culpa por essa desordem repousa sobre os ombros da própria presidente. Há ritos que devem ser instituídos e cumpridos. Se, numa empresa, há reuniões periódicas de gerentes e diretores, por que seria diferente no governo do País?

Nem que fosse pra inglês ver, dona Dilma deveria estabelecer uma reunião – mensal, digamos – com presença obrigatória de todos os ministros. Cada participante teria direito a 5 minutos, durante os quais exporia o que fez desde a última reunião e o que pretende fazer no próximo mês. Em três horas, a agenda estaria liquidada e os ministros sentiriam que fazem parte de uma equipe. A ausência desse rito resulta em dispersão, cada um agindo por conta própria e fazendo o que bem entende. Quem perde é o País.

Demissão coletiva
Manda a decência que decisões de grosso calibre sejam tomadas de forma concertada. A demissão deveria ter sido apresentada conjuntamente por todos os ministros. Teria sido a maneira mais civilizada de proceder. Não tendo sido respeitada essa regra de compostura, caberia à presidente tomar a iniciativa de pôr todos de aviso prévio. A mandatária fez isso somente com o ministro da Fazenda, numa decisão humilhante para o atingido. Os outros continuam olhando para o lado, como se não tivessem nada que ver com o peixe.

Reuniao trabalho 1Resumo da ópera
A presidente não soube organizar o trabalho ministerial. Em consequência, seus assessores nunca se deram conta de que formavam uma equipe. O final melancólico está aí: cada um age à sua guisa. Uns saem humilhados, outros saem humilhando.

A presidente colhe o que plantou.

Jogo de cena ― Capítulo 2

José Horta Manzano

Brasil-Bolívia fronteira

Brasil-Bolívia fronteira

Minha curiosidade começa a ser satisfeita. Como eu previa (cf. meu post Jogo de Cena de 25 ago 2013), apareceu uma rocambolesca explicação. Acredite quem quiser.

Segundo o relato, a iniciativa de remover o senador boliviano de seu asilo precário na embaixada do Brasil em La Paz foi tomada pelo próprio chefe daquela representação diplomática. Com que então, o homem mandaria às favas seu futuro profissional ― por sua própria decisão ― para arriscar-se numa missão digna de James Bond? Acredite quem quiser.

Muito oportunamente, o embaixador tinha sido chamado ao Brasil. Os negócios estavam sendo tocados por um funcionário menor. Foi deste último a iniciativa de organizar a retirada do senador. Logo, ninguém poderá jamais acusar um diplomata de alto coturno de comportamento inadequado. A imagem do Itamaraty está salva e continua imaculada. Acredite quem quiser.

Bolívia - alfândega

Alfândega boliviana

Segundo o Estadão, o comboio viajou 22 horas, passou por cinco controles militares(!) e atravessou a fronteira. Tudo isso sem que ninguém desconfiasse de nenhuma anormalidade. Acredite quem quiser.

Assim que o grupo chegou a Corumbá, o diplomata brasileiro que chefiava a comitiva não se preocupou em alertar seus superiores. Preferiu procurar diretamente um parlamentar, o senador brasileiro Ferraço. Juntos, tentaram desesperadamente encontrar o presidente do Senado. Sem sucesso. Logo, ninguém poderá jamais suspeitar que o Itamaraty ou o presidente da câmara alta estivesse a par do que se tramava. Acredite quem quiser.

Ao inteirar-se do que havia ocorrido, a chancelaria boliviana acionou a Interpol. Naturalmente, só fizeram isso depois de certificar-se de que o senador havia de fato transposto a fronteira. Acredite quem quiser.

Candidamente, nosso chanceler Patriota faz saber que, nos bastidores, já se confabulava havia tempos, com vistas a uma «saída discreta». Não precisava nem dizer. Taí o resultado.

Brasil-Bolívia transporte

Transporte Brasil-Bolívia

Daqui a algumas semanas, ninguém mais se lembrará do caso. O senador boliviano viverá meses tranquilos em nosso território até que um novo golpe derrube o regime bolivariano de Evo. Vale lembrar que, considerando unicamente o século XX, mais de 15 presidentes (ou ditadores) bolivianos foram derrubados por golpes de Estado. Nas Américas, só o instável Haiti fez mais.

De tudo isso, fica uma evidência: apesar das aparências, as altas esferas do Planalto não estão total e automaticamente alinhadas com La Paz. Ainda restam alguns habitantes do andar de cima não contaminados pelo bolivarianismo. É notícia boa e importante.

Jogo de cena

José Horta Manzano

Todos já ouviram falar no drama do senador boliviano que, ameaçado pelo governo do folclórico e bolivariano Evo, tinha solicitado asilo à embaixada do Brasil em La Paz faz mais de um ano. Ao ligar o rádio, a tevê ou a internet neste domingo, todos ficarão sabendo que o homem passou a fronteira e se encontra em território brasileiro. Melhor assim.

O círculo mais próximo do senador garante que ele concederá à imprensa uma entrevista coletiva na segunda-feira 26 de agosto. O Itamaraty preferiu não comentar o assunto. O governo boliviano fechou-se num silêncio ensurdecedor.

Seja o que for que disserem ― antes, durante e depois da entrevista do senador ― nós, meros mortais, jamais saberemos exatamente o que aconteceu. Alguma historinha rocambolesca terá de ser costurada, naturalmente, para tirar todo resquício de responsabilidade das costas das autoridades bolivianas e das brasileiras. Mas eu não poria a mão no fogo sobre a veracidade do relato que está por vir.

Vigiar uma embaixada e impedir a entrada ou a saída de alguma pessoa não é empreendimento difícil. Que o diga o senhor Assange, que continua cumprindo sua pena de privação de liberdade na representação londrina do Equador. Por coincidência, um país também bolivariano.

Embaixada do Brasil La Paz, Bolívia

Embaixada do Brasil
La Paz, Bolívia

Em 1956, na esteira da fracassada revolução húngara, o cardeal József Mindszenty recebeu asilo na Embaixada dos EUA em Budapest, onde permaneceu 15 longos anos. Só saiu quando lhe foi concedido, na sequência de um acordo político, um salvo-conduto para deixar o país. Antes disso, nem por sonho. Faleceu 4 anos depois de libertado, já com 83 anos.

Portanto, nenhuma explicação, por mais sofisticada que venha, me fará acreditar que o senador boliviano «fugiu» da embaixada. E em seguida? Dirigiu-se ao aeroporto, comprou uma passagem, entrou num avião, desceu em Corumbá (ou em Cuiabá, dependendo da fonte)? Tudo isso sem dinheiro e sem passaporte? Me engana, que eu gosto ― como diz o outro.

É muito mais plausível que a vinda do senador seja fruto de um arreglo político entre Brasília e La Paz. Nenhuma das partes estava interessada em fazer durar a situação. Ao mesmo tempo, nenhuma queria perder a face. Estou curioso para ouvir a explicação oficial.

Há males que vêm para bem. Nesse melodrama, algo de positivo começa a apontar: o Brasil aparenta já não mais estar de joelhos diante da Bolívia. Que alívio! Como parecem distantes aqueles tempos bizarros em que o Lula não só aceitou como também aprovou a invasão e a encampação de uma refinaria da Petrobrás situada em território boliviano. Uma prova de fraqueza!

Vale lembrar que o sócio majoritário da semiestatal de petróleo somos nós, o povo brasileiro. O governo federal, por mais enfatuados que sejam seus integrantes, não é dono da gigante. Ele é mero representante dos verdadeiros donos, que somos nós. Fosse o Brasil um país menos preocupado com direitos individuais e mais atento ao Direito ― com D maiúsculo ―, o presidente pusilânime teria sido processado por crime de responsabilidade.

Enfim, vamos a quedarnos con lo bueno. A novela de La Paz teve final feliz. Podemos dormir em paz.

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Despacho do Estadão e da Folha de São Paulo.