Áurea

Áurea (RS)

José Horta Manzano

Você sabia?

Duas semanas atrás, a Câmara de uma cidadezinha gaúcha de 3.600 habitantes aprovou uma lei municipal pouco comum no Brasil. Vamos conhecer a história.

A cidadezinha é Áurea, no alto vale do Rio Uruguai, norte do Rio Grande do Sul. O povoado começou a se formar 120 anos atrás, com a chegada de imigrantes poloneses. Seus descendentes constituem hoje mais de 90% da população.

Nos anos 1930, na tentativa de consolidar o advento de um “homo brasilicus” alforriado dos laços que prendiam os imigrantes à pátria de origem, a ditadura Vargas exerceu forte pressão para transformar os recém-chegados de então em brasileirinhos de quatrocentos anos. Em Áurea, o uso da língua polonesa no espaço público foi banido. Também foi proibido o ensino dessa língua em escolas.

Assim mesmo, Áurea resistiu. Não podendo fazer parte do ensino escolar, o polonês foi transmitido de geração em geração por via oral, no seio de cada família. Chegamos ao dia de hoje com boa parte da população – principalmente os mais velhos – “se virando” em polonês. Uns falam bem, outros mais ou menos, muitos entendem mas não falam, uns poucos leem.

Agora vamos à nova lei municipal. Ela institui a língua polonesa como idioma cooficial no município, ao lado da língua portuguesa – como permite o Artigo 216 da Constituição Federal. O objetivo é valorizar o aprendizado e a transmissão dessa língua, além de dar apoio a eventos culturais, artísticos e turísticos que promovam o idioma dos antepassados.

A (quase) totalidade dos habitantes tem sobrenome de origem polonesa, muitas vezes estropiado. Para corrigir essa anomalia, um dos incisos da lei preconiza que esses sobrenomes passem a ser corretamente grafados.

Os vereadores de Áurea estão de parabéns. A iniciativa me parece simpática, justa e oportuna. Nenhum aureense vai deixar de falar português só porque melhorou seu conhecimento da língua dos avós ou bisavós. O conhecimento de uma língua estrangeira, seja ela qual for, desempoeira a mente e alarga o horizonte intelectual. Só traz benefícios.

Agenda do cercadinho

Antônio Britto (*)

Em um governo ao menos sensato, a existência de qualquer crise levaria à busca imediata de soluções. No padrão Bolsonaro, comportamento reiterado ao longo desses 2 anos, a crise leva a um modelo fixo de reação: transferência imediata de responsabilidades, busca de culpados e insinuações autoritárias tentando colocar as Forças Armadas a serviço dos interesses do presidente, o que não deveria ser novidade para o Exército.

Na prática, tornou-se uma forma de saber como Bolsonaro avalia a própria popularidade ou as dificuldades que enfrenta. Se são realmente grandes e prejudicam seus índices de aceitação, no próximo cercadinho as Forças Armadas serão usadas por ele. Esta semana não foi diferente: pressionado pelo crime de Manaus, o fracasso na vacinação e as dificuldades para a retomada econômica, Bolsonaro deu uma inesquecível contribuição à ciência política determinando que são as Forças Armadas que definem a existência da democracia entre nós.

(*) Antônio Britto Filho, jornalista, foi ministro da Previdência Social do governo Itamar Franco; foi também governador do RS. O texto é excerto de artigo publicado no Poder360.

O inverno extraordinário

José Horta Manzano

Você, que vive no Sul ou no Sudeste, às vezes sente um friozinho. Mas saiba que já houve épocas bem mais geladas. Entre os distintos leitores, muito poucos hão de se lembrar do terrível inverno de 1955. Aqui vai a descrição detalhada do fenômeno extraordinário daquele ano, coisa que só acontece uma vez por século.

Quarta-feira, 27 julho 1955. Naquela data, mais de 60 anos atrás, tinha início a mais espetacular onda de frio já oficialmente registrada no Brasil. Os registros oficiais de 1912 até a atualidade estão aí para confirmar.

ANÁLISE GERAL
A onda polar que atingiu o Brasil no final de julho 1955 foi marcante em cinco aspectos atípicos.

1°) A extensão territorial
Segundo os dados disponíveis, a onda polar derrubou as temperaturas em mais de 60% do território nacional ― mais de 5 milhões de km2. Mais: embora não tenham sobrado cartas sinóticas, os dados indicam que a frente fria ultrapassou a linha do Equador.

2°) A geada
As geadas cobriram extensão territorial excepcional. Estima-se que o fenômeno tenha ocorrido em 90% da região Sul. Chegou a gear em quase todo o litoral gaúcho e também em alguns trechos do litoral de Santa Catarina e do Paraná, fenômeno pra lá de raro.

3°) A neve
Nevou nos três estados sulinos com grande intensidade. A altura da neve acumulada no solo atingiu 70cm na serra catarinense. Além disso, no alto da serra gaúcha, o fenômeno continuou por 4 dias consecutivos. Foi a nevada mais longa já registrada na região. A neve cobriu também áreas de baixa altitude do RS e parte expressiva do PR.

4°) As máximas diurnas
A temperatura máxima diurna registrada em todos os municípios atingidos pela onda de 1955 foi anormalmente baixa. O caso mais emblemático ocorreu em São Joaquim (SC), onde, durante três dias seguidos, o termômetro permaneceu abaixo de zero ― tanto de noite quanto de dia.

5°) As mínimas noturnas
As ondas de frio registradas em 1918, 1925 e 1933, embora muito fortes, não cobriram regiões tão extensas quanto a de 1955. Em centenas de localidades brasileiras, o recorde de baixa temperatura verificado em 1955 ainda não foi quebrado. Essa afirmação vale tanto para o extremo sul do RS quanto para a Amazônia.

Após escrupulosa comparação, pode-se garantir que a frente polar de 55 foi a mais importante de todas as que já se registraram no Brasil.

A CRONOLOGIA DO FENÔMENO

Nota: Os dados que se seguem baseiam-se nos registros no Inmet

Terça-feira, 26 julho 1955
O sul do Chile e o sudoeste da Argentina são invadidos por uma massa polar de trajetória continental. Ao mesmo tempo, o sul do Brasil vive um forte veranico.

Quarta-feira, 27 julho 1955
A massa de ar progride em direção ao norte e chega ao Rio Grande do Sul. Durante o dia, a temperatura despenca e o Inmet já registra neve à tarde em Bom Jesus. Enquanto isso, o Estado de São Paulo recebe a pré-frontal, com bastante vento, mas sem queda de temperatura.

Quinta-feira, 28 julho 1955
A massa polar, apesar de intensa, enfrenta grande resistência e avança lentamente pelo Brasil. No RS e em SC já faz muito frio e cai neve. Em Bom Jesus (RS), neva forte durante a tarde e a noite. No PR, a temperatura só cai mesmo a partir do meio da tarde e no Estado de SP a pré-frontal continua forte. Pelo interior, a massa polar avança em direção à Amazônia.

Sexta-feira, 29 julho 1955
O bloqueio do veranico perde força, mas ainda assim o ar polar avança devagar pelo Brasil. No Centro-Oeste, a onda de frio chega a Cuiabá e dá início a uma forte friagem. Em São Paulo, o tempo muda à tarde com a chegada da frente fria. As temperaturas despencam. Neva muito nas serras gaúchas e catarinenses. Em Bom Jesus (RS), registra-se intensa queda de neve durante 24 horas seguidas.

Em São Joaquim (SC), além da nevasca, a temperatura máxima do dia foi negativa. Não subiu acima de -1ºC.

Em Joaçaba, no interior catarinense, nevou a tal ponto que houve interrupção no tráfego de algumas ruas. A precipitação durou o dia inteiro. No fim do dia, a neve chegaria ao Paraná. Em Porto Alegre (RS), a máxima foi de apenas 8,5ºC, uma das mais baixas registradas até hoje.

Sábado, 30 julho 1955
A onda de frio atua com fortíssima intensidade no Sul, em parte do Sudeste, na maior parte do Centro-Oeste e até no oeste da Amazônia brasileira. O dia amanhece gelado desde o Rio Grande do Sul até o Amazonas.

Em Cuiabá a mínima chega a 4,3ºC e, na cidade de Lages (SC), desce a 5ºC negativos. Nesse dia, continua a nevar nas serras do RS e de SC, embora já com menor intensidade. Por outro lado, as precipitações caem sob forma de neve intensa sobre vasta região do Paraná. A cidade de Palmas (PR) recebeu de 30 a 50cm de neve, volume extremamente raro.

No Paraná, neva nas cidades de Clevelândia, Francisco Beltrão, Santo Antônio, União da Vitória, Inácio Martins, Guarapuava, Cascavel e Pato Branco, entre outras.

Também em Curitiba parece ter ocorrido o fenômeno. Jornais locais da época afirmam que caíram flocos de neve nos bairros do Bacacheri, Boqueirão e na região do Afonso Pena. É perfeitamente plausível, dado que a temperatura variou entre -2ºC e 3ºC na cidade naquele dia.

Também foi divulgada pela imprensa a queda de neve em Porto Alegre (RS). Mas o Inmet não registrou oficialmente essa ocorrência.

Outro fato digno de nota é a temperatura máxima diária mais baixa registrada em São Joaquim (SC): apenas -2,0ºC. Só em uma outra ocasião registrou-se máxima diária inferior a essa: foi em julho de 1993, com 2,4ºC negativos.

Ao mesmo tempo em que tudo isso ocorre no Sul, a massa polar continua seu avanço e chega a Manaus (AM). Ao longo do dia o tempo abre em toda a Região Sul.

Domingo, 31 julho 1955
A onda de frio atua no auge de sua força em todo o Centro-Sul e em boa parte da Amazônia. Na Região Sul, o céu limpo na madrugada favorece a queda da temperatura e a formação de fortes geadas. A friagem, como o fenômeno é chamado na Amazônia, atua com força total.

Veja algumas mínimas registradas no Brasil naquele dia:

Guarapuava (PR): -8,4ºC
São Joaquim (SC): -8,1ºC
Ivaí (PR): -6,0ºC
Curitiba (PR): -5,0°C
Aquidauana (MS): -0,9ºC
Paranaguá (PR): 2,3ºC
Laguna (SC): 2,4ºC
Florianópolis (SC): 4,0ºC
Cruzeiro do Sul (AC): 10,2°C
Manaus (AM): 18,5°C

Pela manhã, as geadas devastaram as lavouras de café do Paraná. Foi um desastre econômico, dado que a rubiácea era, de longe, o principal produto de exportação do País.

Em São Paulo, geou apenas na cidade de Catanduva, que registrou mínima de -1ºC. No leste do estado, o céu ficou limpo a partir da tarde e as temperaturas despencaram à noite.

No Amazonas, a onda polar ultrapassou a linha do Equador.

Segunda-feira, 1 agosto 1955
De a madrugada, o frio atingiu seu auge e o amanhecer foi gélido no Centro-Sul. Eis algumas mínimas:

Rio Grande do Sul
Bom Jesus: -9,8°C (recorde histórico do Estado)
Alegrete: -3,0°C
Bagé: -2,0°C
Iraí: -4,3°C
Passo Fundo: -2,5°C
Pelotas: -3,4°C
Porto Alegre: -1,2°C
São Luiz Gonzaga: -1,2°C
Santa Maria: -2,0°C

Santa Catarina
São Joaquim: -6,4°C
Urussanga: -4,6°C
Camboriú: -1,2°C

Paraná
Castro: -7,5°C
Rio Negro: -7,2°C
Ivaí: -6,1C°
Jaguariaíva: -2,7°C
Paranaguá: 3,8°C

São Paulo
Avaré: 0,3°C
São Paulo (Mirante de Santana): 1,5°C
São Paulo (Horto Florestal): 0,7°C

Mato Grosso
Cuiabá: 9,0°C
Aquidauana: -2,2°C
Corumbá: 3,3°C

Amazônia
Alto Tapajós: 11,1°C
Uaupés: 18,1°C
Manaus: 19,0°C
Iauaretê: 16,5°C (na linha do Equador)
Cruzeiro do Sul: 9,6°C

As geadas foram muito intensas em toda a Região Sul e atingiram também boa parte de São Paulo. Geou em Catanduva, Limeira, Avaré, Itú, Monte Alegre do Sul, Tatuí. Em Presidente Prudente, a mínima desceu a -1ºC.

Neste dia, a onda de frio começou a perder força, embora ainda mantendo temperaturas relativamente baixas durante o dia.

Terça-feira, 2 agosto 1955
A onda de frio perde força rapidamente, mas de manhã o frio foi intenso principalmente no Estado de São Paulo.

Mínimas:
Camboriú, SC: -1,2°C
São Paulo, SP: -2,1°C (recorde histórico)
Santos, SP: 4,3°C
Iguape, SP: 3,2°C
Angra dos Reis, RJ: 9,9°C
Itajubá, MG: 1,2°C

No dia 3 ainda foram registradas mínimas negativas no Sul do país, mas no dia 4 o ar frio já se dissipava totalmente. Mesmo assim, Teresópolis registrou apenas 1,2°C.

Foi o fim da superonda polar do inverno de 1955.

Com informações de: Abaixodezero.com

Publicado originalmente em 26 jul° 2013

 

Loteria

José Horta Manzano

Eta eleiçãozinha complicada, essa que vem pela frente! Faltando cinco meses, o horizonte está pra lá de turvo.

Para o lado dos ‘habitués’, o «hômi», confirmadamente preso, é carta fora do baralho. Destituída, a doutora tampouco teria a menor chance ‒ aliás, parece que nem vai ousar se candidatar. Quanto a doutor Aecinho, aquele que chegou a arrecadar mais de 50 milhões de votos(!), está com um pé na cadeia, execrado por todos.

Dos novos, nenhum arrebata corações. Estão todos num pântano aflitivo, envisgados numa geleia de dar dó. Candidatos sem brilho, sem programa, sem ideias, sem estofo, sem fibra. Uma pasmaceira.

Pouco importa a filiação partidária de cada um ‒ os partidos brasileiros carecem tristemente de ideologia. Cada pretendente teria de se manifestar e dizer a que veio. Tevês, rádios e portais estão aí esperando, com o microfone ligado e tendido. Se não falam, há de ser porque não têm grande coisa a dizer.

Uma certeza, no entanto, parece delinear-se: pelo chacoalhar da carroça, há grande chance de o próximo presidente ser um paulista. De fato, cinco dos candidatos viram a luz no Estado de São Paulo, ainda que a vida tenha levado alguns deles a se estabelecer alhures. Os paulistas de nascimento são os seguinte doutores: Jair Bolsonaro, Ciro Gomes, Geraldo Alckmin, Guilherme Boulos e Álvaro Dias.

by Constantin Ciosu (1938-), desenhista romeno

Nos dias atuais, em que a mobilidade é bem maior que no passado, o lugar de nascimento não tem o mesmo significado de antes. Antigamente, o indivíduo nascia, vivia e morria na mesma região. Hoje é diferente.

Se o próximo presidente for um paulista, será o primeiro presidente eleito originário do Estado desde 1906, quando Rodrigues Alves deixou o Palácio do Catete. Doutor Temer é paulista, concedo, mas não foi eleito presidente: chegou lá de paraquedas. Por isso, não conta.

Dos demais candidatos pressentidos para a eleição de 2018, temos dois cariocas (João Amoêdo e Fernando Collor), uma acriana (Marina Silva), uma gaúcha (Manuela d’Ávila), um alagoano (Aldo Rebelo), um pernambucano (Flávio Rocha), um goiano (Henrique Meirelles) e um nascido no Chile (Rodrigo Maia).

And the winner is…

Quem desdenha quer comprar

José Horta Manzano

Nota do Estadão desta Quinta-Feira Santa traz a explicação do Lula para a baixíssima adesão do povo à passagem de sua caravana pelo Sul:

«Se quisesse fazer campanha, não faria esse percurso, em locais desabitados, onde tem mais cabeça de gado do que gente(sic). Eu não iria pra Bagé fazer campanha. Mas eu queria ir lá pra conhecer a Unipampa, que eu criei».

Os habitantes de Bagé e os de todo o Rio Grande apreciarão a elegância do comentário.

A caravana de Lula teve escolta policial

Elio Gáspari (*)

Nos primeiros dias de sua caravana pelo Rio Grande do Sul, Lula passou por algo que jamais lhe tinha acontecido. Em Bagé a estrada foi bloqueada e, de um guindaste, pendia um Pixuleco encarcerado. Em Santa Maria reuniram-se manifestantes para hostilizá-lo. Para chegar a São Borja, com escolta policial, teve que tomar uma estrada de terra porque a rodovia estava bloqueada. Em São Vicente do Sul um grafite dizia “Lula ladrão”.

O percurso do ex-presidente foi semelhante ao que ele fez em 1994, quando disputou a Presidência contra Fernando Henrique Cardoso e o real. Ele atravessou o Rio Grande do Sul num ônibus sem que houvesse um só incidente. Tinha a proteção discreta e suave de dois faz-tudo petistas. Um chamava-se Freud. O outro, Espinoza, media 2m02cm e pesava 112 quilos.

Lula chegava a uma cidade, às vezes reunia-se com fazendeiros ou empresários, ia para a praça e discursava. Em Rosário do Sul, desceu do palanque para entrevistar populares. Se o público não esquentava, dizia que lugar de político ladrão é a cadeia. Se fosse pouco, recorria a um infalível pedido de confisco dos bens do ex-presidente Fernando Collor. Esse era um tempo em que ele ainda falava “cidadões” (em Livramento), e o PT pedia nota fiscal de todas as suas despesas.

Mudaram Lula, o Brasil e seus adversários. O comissariado diz que os manifestantes hostis são uma “milícia fascista”, mas a partir de um certo momento a caravana foi protegida por uma patrulha do MST. Durante o consulado petista, o governo não patrocinou nenhum ato de violência, mas Lula chegou a ameaçar com o que seria o “exército do Stédile”, referindo-se a João Pedro, donatário do movimento dos sem-terra desde o século passado.

É de justiça lembrar que, em julho de 2003, um grupo de 15 militantes do PSTU foi protestar diante do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo contra uma visita do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e a reforma da Previdência de Lula. Apanharam, e o técnico judiciário Antônio Carlos Correia acabou com o nariz quebrado. Acusou os “pit bulls petistas”. Palocci está na cadeia, e o PT lutou contra a reforma de Temer.

Lula e seus adversários mudaram para pior. O Brasil, quem sabe.

(*) Elio Gáspari é jornalista.

De corrupção e de pedras

José Horta Manzano

Você sabia?

Das trevas, nasce a luz. Dizem que senhor Cabral, o probo ex-governador do Rio de Janeiro, aquele que atualmente goza um merecido período de vilegiatura no Complexo Penitenciário de Bangu, roubou pra caramba. Pelo que sai nos jornais, foram dezenas, quiçá centenas de milhões. Em moeda forte naturalmente.

Na época das vacas obesas, como homem requintado que é, não presenteava a esposa com bugigangas compradas na feirinha de artesanato. Os mimos vinham direto da prestigiosa H. Stern. Diz uma reportagem do Estadão que as 40 peças que o então governador comprovadamente adquiriu do mais conhecido joalheiro do país somam 6,3 milhões de reais. Um par de brincos custou, sozinho, 1,8 milhão. Ah, como é fácil ser pródigo com dinheiro alheio!…

Ametista bruta

Perante cliente tão ilustre, a direção da joalheria não hesitou em entrar na dança. Afinal, quando a orquestra toca samba, quem é que vai dançar valsa? Dado que o cliente pagava em dinheiro e não exigia recibo nem nota fiscal, o comerciante aproveitou para «esquecer» de registrar as vendas. Fraudaram, assim, o fisco. Rapina alimentando sonegação, veja só.

Engolfados no escândalo que resultou na prisão do extraordinário cliente, os dirigentes da rede joalheira não puderam escapar da condenação e da pena. Foram multados em 19 milhões de reais. Além disso, terão de emitir as notas fiscais «esquecidas» quando das vendas ao pródigo casal. Depois disso, regularizadas as transações, os montantes entrarão na contabilidade e serão taxados como manda o figurino.

Ametista lapidada

A punição não termina aí ‒ e é agora que chegamos ao ponto interessante da história. Além da multa, os proprietários da rede de lojas, herdeiros do pioneiro Hans Stern, foram condenados a prestar serviços à sociedade. Os detalhes não estão acertados, mas há grande possibilidade de que o mais tradicional fabricante e comerciante de joias do Brasil ofereça cursos profissionalizantes durante dois anos.

A notícia é pra lá de auspiciosa. Se dependesse de mim, anularia a multa e a substituiria por uns vinte ou trinta anos de cursos. O Brasil sairia ganhando, pode acreditar. Se estou enlouquecendo? Não, distinto leitor, é que, por acaso, conheço certas particularidades do ramo. Dou-lhes duas ou três pinceladas para entenderem aonde quero chegar.

Sabe qual é a capital mundial da lapidação de pedras coloridas? (Pedras coloridas são todas as preciosas e semipreciosas, com exceção do diamante.) Disse Antuérpia? Errou. Disse Londres? Errou. Nova York? Paris? Roma? Qual nada. Já faz anos que o maior centro de lapidação do planeta é Bangkok, capital da Tailândia.

Geodo de ágata ‒ vista externa

Como é possível num país que, em matéria de pedra, não produz nem mosaico português para calçamento de rua? Trata-se de decisão que veio de cima, política de longo alcance elaborada já faz anos. O Estado tailandês ofereceu a seus jovens aprendizado e formação no trato das gemas e das pedras finas. Formou-se uma legião de especialistas. Hoje são milhares de pequenas indústrias familiares ocupando salinhas em imensos arranha-céus. Do mundo inteiro chegam pedras que, uma vez lapidadas, são reexportadas com valor agregado.

Agora, outra pincelada. Sabemos todos que o Brasil é a maior província mineral do planeta. O Rio Grande do Sul é conhecido por suas pedras duras compostas de silício: ágatas, ametistas e numerosos quartzos. São pedras que, depois de trabalhadas, se transformam em joias ou em esculturas de valor. Agora vem a pergunta: Porto Alegre é, certamente, o maior centro exportador de joias e objetos de ametista e ágata, não é mesmo? Errado.

Geodo de ágata ‒ vista interna

Tirando meia dúzia de exceções, as pedras gaúchas são exportadas à China em estado bruto. O mais das vezes, geodos inteiros ‒ ainda fechados(!) ‒ são acondicionados em contêineres e vendidos a dois ou três dólares por quilo. Artesãos chineses se encarregarão de transformar esse material em joias e esculturas, centuplicando o valor.

Taí. Se os joalheiros apanhados e condenados se dispusessem a investir em criação de escolas para iniciar jovens brasileiros ao beneficiamento de pedras, eu não só anularia a multa como ainda lhes daria uma medalha. A longo prazo, quem sai ganhando é o país.

Plebisul

José Horta Manzano

Nestes tempos de eleições, um plebiscito informal ‒ sem validade legal ‒ está passando em brancas nuvens. De fato, um coletivo de cidadãos formou-se para promover consulta popular no Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul com vista a desmembrar os três Estados sulinos do resto do Brasil. Os eleitores foram convocados para este sábado 1° de outubro.

Embora a iniciativa pareça desfocada, merece algumas considerações. Movimentos separatistas sempre existiram no mundo e tudo indica que assim continuará. Para que um divórcio seja viável, é imperativo que exista um problema permanente e insolúvel. Não vislumbro nenhum motivo válido nem irremediável a sustentar o pleito do comitê separatista.

plebisul-2O Brasil, como um todo, vai mal. Disso sabemos todos. Mas sabemos também que há soluções para repor nosso país no bom caminho. Os acontecimentos políticos e sociais dos últimos dois anos, com Lava a Jato & companhia, estão mostrando a via. Embora ainda haja resistência e esperneio de setores interessados em que nada mude, o tempo é senhor do destino: sabemos que as mudanças que estão começando a tomar forma são passos no bom sentido. Portanto, a situação de débâcle que atravessamos não deve nem pode ser considerada definitiva. É grande a esperança de que o amanhã seja melhor.

O planeta está repleto de separações ‒ já consumadas ou apenas desejadas ‒ por razões de absoluta incompatibilidade de coexistência. Motivos religiosos são fonte de fortes atritos: Irlanda, Iraque, Síria, Sudão são exemplos conhecidos. São regiões em que divergências de fé podem levar a enfrentamentos sangrentos. Não é o caso do Sul do Brasil.

Há casos de disparidade linguística. Metade da Ucrânia fala ucraniano, enquanto outra metade fala russo. Uns e outros não se entendem e não fazem questão de conviver sob o mesmo teto. Catalães falam língua própria, diferente do castelhano ‒ língua dominante na Espanha. Em casos assim, muitos advogam a separação como solução. Não é o que acontece no Sul do Brasil. Por lá, todos assistem às mesmas novelas e identificam os diálogos como língua materna, exatamente como ocorre nos demais Estados da União.

plebisul-1Há casos mais cabeludos. A nação curda, unida pela língua, pela religião e pelas tradições, encontra-se espalhada por quatro países. Vicissitudes históricas privaram a nação curda de um Estado. A situação, difícil de resolver, é ponto importante de discórdia entre turcos, sírios, russos e americanos na atual guerra travada naquela região. O «fator curdo» torna a leitura das razões do conflito incompreensível para nós. Nada disso ocorre no Brasil.

Os Estados do extremo sul tanto têm pontos comuns entre si quanto têm parecença com o resto do país. Nem mais, nem menos. Naquelas bandas, faz mais de século que não se ouve falar em províncias oprimidas por um poder central tirânico. Nem mesmo durante a última ditadura isso aconteceu ‒ não foram mais nem menos oprimidos que os demais brasileiros. Aliás, diga-se de passagem que, dos cinco presidentes militares, três eram gaúchos.

Não sei qual é exatamente a intenção do comitê que incentiva esse extravagante movimento separatista. Seja ela qual for, um anseio tão radical não se justifica. Fica a impressão de ser obra de um pequeno grupo que, em vez de baralhar as cartas, melhor faria se contribuísse para o bem comum. Todos temos outras prioridades neste momento. Generosidade é bom.

Jogo dos sete erros

José Horta Manzano

Segunda-feira de Carnaval. Na redação do jornal, saíram todos: chefe, subchefe, vice-chefe, auxiliar do chefe. Nem o pretendente a chefe ficou. Sobrou para os estagiários.

Jacques, gaúcho trilegal e leitor fiel do blogue, costuma prestar atenção ao que lê na mídia. Ficou ‘estarrecido’ ‒ como costuma dizer aquela em quem vocês estão pensando ‒ com o que encontrou. A edição gaúcha do G1 traz uma coleção de fazer inveja.

Alguns são modismos, outros são imprecisões, outros, ainda, erros primários. A Pátria Educadora continua arreganhando os dentes. Cariados.

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2016-0208-04 G1 RSEstado (da Federação) pede letra maiúscula.

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2016-0208-03 G1 RSFazer foto? Soa esquisito. Este blogueiro é do tempo em que ninguém “fazia” foto. Foto se tirava.

Interligne 28a2016-0208-02 G1 RSÉ irritante ver o verbo seguir usado como sinônimo de continuar. Seguir sugere algum movimento: seguir em frente, seguir alguém, seguir um desfile. No presente caso, o barco está imóvel debaixo d’água há dez dias. Seguir não serve. Substitua-se por continua, permanece, está, perdura, mantém-se.

Interligne 28a2016-0208-07 G1 RSComo todo nome próprio, Carnaval, que é nome de festa, pede inicial maiúscula.

Interligne 28a2016-0208-01 G1 RSNão contente com o sumiço do til, o escriba transformou o feriado numa ferida. Uma grande ferida. Um feridão!

Interligne 28a2016-0208-05 G1 RSNuma curta chamada, três reparos.
Primeiro: não se ateia fogo em, ateia-se fogo a.
Segundo: o cobrador não foi ferido após o assalto, mas no assalto.
Terceiro: dizer que o suspeito fugiu com o dinheiro é exagerar no politicamente correto. Não se pode dizer assaltante? Ou será que tem de esperar que o processo transite em julgado?

Interligne 28a2016-0208-06 G1 RSPronto, aqui está a cereja em cima do bolo. O termo óculos, redução da expressão par de óculos, é plural. Sempre. Os linguistas chamam a esse fenômeno pluralia tantum. Não se assuste. Diga os óculos, meus óculos, seus óculos. Vai acertar.

Interligne 28a

Gaúchos opinam

José Horta Manzano

O jornalista Políbio Braga repercute pesquisa realizada estes dias pelo Instituto Paraná Pesquisas. Trata da intenção de voto do eleitorado gaúcho, caso eleições para presidente da República fossem realizadas hoje.

Dos candidatos propostos, os eleitores escolheram na seguinte ordem:

Aécio Neves     43,8%
Lula da Silva   19,5%
Marina Silva    14,7%
Ronaldo Caiado   3,4%
Eduardo Cunha    2,8%
Nenhum deles     7,9%
Indecisos        7,9%

Urna 7

Quando o nome de Aécio Neves for substituído pelo de Geraldo Alckmin, governador de São Paulo, o resultado embolou. Assim mesmo, o amargor dos gaúchos pelo pífio desempenho do governo nos últimos 12 anos se reflete nas declarações de voto a nosso guia.

Fica assim:

Geraldo Alckmin   29,9%
Lula da Silva     20,7%
Marina Silva      20,3%
Eduardo Cunha      5,0%
Ronaldo Caiado     4,3%
Nenhum deles      10,4%
Indecisos          9,4%

A deputada e as medalhas

José Horta Manzano

Não sei qual terá sido a repercussão do folclórico episódio protagonizado por uma deputada estadual gaúcha que outorgou a 21 de seus familiares a Medalha do Mérito Farroupilha – mais alta honraria oferecida pela Assembleia do Rio Grande do Sul.

Se alguém ficou sem saber, pode ler a notícia no Estadão ou na Folha de São Paulo. Transcrevo agora a reação irônica e bem-humorada do jornalista gaúcho David Coimbra.

Interligne 18h

Interligne vertical 16 3KfUm pedido para a deputada das medalhas

David Coimbra (*)

Medalha 3Não é verdade que a deputada Marisa Formolo, do PT, homenageou 21 parentes na Assembleia Legislativa. Nada disso. Foi VOCÊ quem homenageou os 21 parentes da deputada, o marido dela, filhos e netos, todos aqueles cunhados, mais um genro e, o que mais me surpreende, uma nora – as mulheres em geral não se dão bem com as noras.

Sim, foi VOCÊ e, glup, eu também, porque a Assembleia Legislativa representa o povo do Rio Grande do Sul. Nós é que pagamos aquelas medalhas que os Formolo ostentarão com orgulho cívico na galinhada de domingo. Espero que ninguém deixe a medalha que nós demos cair na sopa de capeletti.

A deputada disse que tomou essa iniciativa para valorizar a família. Achei bonito. Tanto que venho aqui, como contribuinte e cidadão, fazer uma solicitação à parlamentar. É o seguinte:

Dona Marisa, gostaria, por favor, que o povo do Rio Grande do Sul desse uma medalha para a minha mãe. Dona Diva, o nome dela. A minha mãe, digo.

Medalha 1Veja, deputada: minha mãe era professora da rede estadual de ensino. Só por isso ela merecia ser homenageada. Ensinou criancinhas por anos e anos e anos. Eu mesmo testemunhei galalaus se aproximando emocionados dela e balbuciando, como se ainda fossem meninotes: “Profe… senhora me ensinou a tabuada…”

Mas, depois de se desquitar, minha mãe não conseguiu sustentar os três filhos com o salário pago pelo mesmo Estado que paga o seu salário, deputada. Assim, ela foi ser vendedora de livros da Abril Cultural. Trabalhava sábados, domingos e, desta forma, os três filhos conseguiram fazer faculdade, sonho de toda família descendente de imigrantes.

Medalha 4Verdade que a minha mãe nunca foi do PT. Reconheço que isso pesa contra a concessão da homenagem. Ser do PT é legal porque você pode fazer o que quiser, mentir na campanha, montar caixa dois, tomar algum da Petrobrás, tudo, e continuará com a imagem de defensor dos oprimidos. Você pode até ser preso, que entrará no presídio de punho cerrado, vitorioso, uma vítima dos poderosos. É lindo ser do PT.

Medalha 2Li também que seu irmão foi agraciado com a maior honraria do Estado porque foi presidente de sindicato. Droga. Minha mãe nunca foi presidente de sindicato. Não dava tempo! Ela tinha de trabalhar para pagar as prestações do BNH, as contas da casa, os livros que a escola pedia todo começo de ano, essas coisas que as pessoas que não têm medalha pagam.

Por fim, fiquei sabendo que a senhora é autora do projeto de lei que institui a Política Estadual de Apoio ao Bambu, no que, evidentemente, teve o respaldo e o incentivo de toda a sua prolífica e engalanada família. Maldição! Que eu saiba, minha mãe nunca deu muita bola para o bambu.

É… pensando bem, deixa a minha mãe sem homenagem mesmo. Vou ter de avisar a Dona Diva que o almoço de domingo vai ser sem medalha.​

(*) David Coimbra é colunista do jornal gaúcho Zero Hora.

A China e o macaco gaúcho

José Horta Manzano

Justiça

Justiça

Na China, a família do condenado à pena capital tem de pagar ao governo pela bala utilizada na execução. Era assim, não sei se a prática continua. Talvez estejam cobrando com desconto ― na «potência oriental» tudo se costuma negociar.

Quis mencionar esse estranho costume para embasar o que vem a seguir. A aplicação da pena capital é resquício de barbárie que perdura em certas regiões. Além de ser punição de arrepiar qualquer cristão, tem um defeito: é irreparável. Seu risco maior é o de servir de ponto final a um erro judiciário. Uma vez executada a sentença, não há volta possível. A descoberta tardia de que o culpado não era bem aquele só pode render um inócuo pedido de desculpa. Nada trará o defunto de volta.

Se a pena capital já causa horror, a cobrança feita à família do condenado chinês ultrapassa os limites do suportável. Pelo menos, em nossa maneira de enxergar o mundo. Com efeito, um dos princípios basilares de nosso Direito é a individualidade da culpa. Não se pode exigir de ninguém que pague pelo crime de um outro. Cada um é responsável por seus próprios atos.

Macaco 1Já comentei neste espaço, faz alguns dias, o caso daquela moça que chamou de macaco um jogador do time adversário, insulto que se transformou em comoção nacional. Levada à Justiça, a causa teve desdobramentos rápidos e pesados.

Começo por aplaudir a rapidez da decisão judicial. Habituados que estamos a ver processos se arrastando por anos, resta-nos saudar a diligência do Superior Tribunal de Justiça Desportiva. Isso dito, a decisão, em si, me deixa pensativo. Mais que isso, preocupado.

Enquanto a xingadora foi banida de estádio por dois anos ― pena relativamente leve ― a mão da justiça foi particularmente pesada para com os outros atores da cena. Árbitro e bandeirinhas ficaram proibidos de atuar por várias semanas e ainda terão de pagar multa. E o clube da moça impudente ― o Grêmio, do Rio Grande ― levou a bofetada maior: foi excluído do campeonato em que atua, a Copa do Brasil. O castigo é encorpado.

Que a moça seja castigada, estou plenamente de acordo. Infringido o regulamento e apanhado o culpado, não tem jeito, tem de responder pelo delito. Já a extensão da punição ao clube é, a meu ver, discutível. A agremiação não tem como exercer controle sobre seus aficionados. Na medida que são maiores e vacinados, os torcedores são os únicos responsáveis por suas ações.

Crédito: Kopelnitsky, EUA

Crédito: Kopelnitsky, EUA

Esse tipo de punição em que Benedito pode ser condenado pelo crime de Sebastião exala um desagradável perfume de justiça chinesa.

Pior que isso, abre a porta para malandragem grossa. Indivíduos mal-intencionados podem perfeitamente se infiltrar na torcida do time adverso para provocar, por meio de baderna, apupo ou ofensa, o rebaixamento da equipe rival. Ou não?

Frase do dia — 87

«Essas pessoas não foram julgadas pelo seu passado, mas por suas atitudes no presente. Foram julgadas, condenadas e presas. (…) Eu não participo e acho que não pode ser uma orientação partidária fazer isso»

Olívio Dutra (PT/RS), ex-governador do Rio Grande do Sul, ao se posicionar com relação às “vaquinhas” marquetadas por desenvoltos companheiros. In blog Rosane de Oliveira, alojado no jornal Zero Hora, 24 jan° 2014.

Frase do dia — 47

«Funcionou o que deveria funcionar. O STF julgou e a Justiça determinou a prisão. Cumpra-se a lei.»

Olívio Dutra, ex-ministro do governo do Lula, ex-governador do RS e um dos fundadores do PT, num lampo de independência e de bom-senso raro entre seus correligionários.
A informação sobre a opinião de Dutra sobre o mensalão foi publicada por Jimmy Azevedo no Jornal do Comércio de Porto Alegre.

Quem tem telhado de vidro…

José Horta Manzano

Anos atrás, quando autoridades italianas indicaram à PF que um certo Signor Battisti, foragido da Justiça daquele país, se encontrava vivendo ilegalmente no Brasil, nossa polícia não perdeu tempo: surpreendeu o indivíduo no Rio de Janeiro e o conduziu algemado a Brasília. Naquele momento, ninguém sabia, mas a ação espetaculosa não era mais que a primeira página de uma interminável novela. A lenga-lenga, recheada de altos e baixos, durou vários anos, envolveu advogados, parlamentares, a PF, o Ministério da Justiça, o STF, a presidência da República. Ninguém pode afirmar que tenhamos chegado ao ponto final. Não é impossível que o epílogo ainda esteja por escrever.

Tarso Genro, governador do RS by Marco Aurélio, desenhista gaúcho

Tarso Genro, governador do RS
by Marco Aurélio, desenhista gaúcho

Saíram todos chamuscados daquele execrável episódio. O prisioneiro, depois de viver encarcerado durante anos, em meio a incertezas, está marcado para o resto da vida ― onde quer que vá, será reconhecido e olhado com certa reserva. O ministro da Justiça da época, ao conceder asilo ao foragido, foi forçado a alegar que desconfiava da Justiça italiana, numa atitude arrogante que pegou muito mal. O STF, que empurrou a decisão final para a presidência da República, desagradou a muita gente. A decisão do presidente da República ― tornada pública no apagar das luzes do mandato ― que confirmou o asilo ao estrangeiro ornou a novela com fecho de ouro. As autoridades italianas devem ter saído enfurecidas, o que é compreensível.

Os anos passaram e o mundo girou. O processo do mensalão está chegando ao fim e cada condenado executa a pirueta que lhe parece mais conveniente. Uns dizem que não têm nada que ver com a história, que estavam de passagem. Outros alegam que foram julgados pela imprensa ― como se o julgamento não tivesse sido público e transmitido ao vivo por rádios e tevês. Há até guerrilheiros que, embora tenham empunhado armas e participado de guerrilha na selva, hoje derramam lágrimas que destoam da bravura que outrora exibiam.

by Dalcio Machado, desenhista paulista

by Dalcio Machado, desenhista paulista

Um dos condenados, talvez mais realista que os demais, não acreditou em Papai Noel. Perspicaz, deu-se conta, bem antes dos outros, de que o desfecho poderia não ocorrer em meio a gargalhadas em volta de uma pizza. Preparou minuciosamente sua fuga do País. Não está claro se Signor Pizzolato solicitou emissão de seu passaporte italiano antes do escândalo do mensalão. Pouco importa. O que importa é que, aos olhos da Itália, ele é um cidadão do país peninsular igual a todos os outros. Todo Estado civilizado costuma zelar por seus súditos.

Algum tempo atrás, as autoridades judiciais brasileiras exigiram, como medida de precaução, que todos os réus da Ação Penal 470 consignassem seu passaporte. Signor Pizzolato fez mais que os outros: entregou dois, o brasileiro e o italiano. Fechadas, como de costume, sobre si mesmas e pouco afeitas a práticas internacionais, as autoridades de Brasília foram dormir tranquilas. Um homem sem passaporte não pode viajar, devem ter pensado.

Se o olhar de nossas sumidades fosse um pouco além de seu próprio umbigo, saberiam que um cidadão estrangeiro cujo passaporte tiver sido confiscado pode solicitar um novo, desde que não esteja sendo procurado pela polícia de seu próprio país. Era exatamente o caso de Signor Pizzolato. Bastou-lhe comparecer a um consulado italiano e requerer um novo passaporte.

Alberto Alpino, desenhista capixaba

by Alberto Alpino, desenhista capixaba

Imaginam muitos que o fujão tenha passado por peripécias semelhantes às do senador boliviano que viajou clandestinamente de La Paz até o Mato Grosso. Pois eu não vejo a coisa assim. Não tenho como provar, mas tudo me diz que, ao deixar definitivamente sua cobertura em Copacabana, o réu fugido já levava no bolso o documento que lhe permitiria viajar para onde quisesse. Atravessar a fronteira entre o Brasil e qualquer um de seus vizinhos é moleza. Em numerosas cidades de fronteira, no Rio Grande por exemplo, a divisa entre dois países é representada por uma avenida. Atravessada a rua, é fácil chegar a Buenos Aires, de onde partem diariamente voos para Roma e para Milão. Elementar, meu caro Watson.

Agora é que chega a hora de a porca torcer o rabinho. A malandragem demonstrada pelo Planalto no caso Battisti ainda é muito recente. Os personagens estão vivos e na ativa, todos se lembram. Esperar grande empenho por parte de Roma é ilusão. O fato de o Brasil dar guarida a um condenado por envolvimento em quatro assassinatos pegou muito, muito mal na Itália. Será praticamente impossível reaver o cidadão italiano Pizzolato, cuja ficha, em terra itálica, está limpa.

Os italianos, que residam na Itália ou no estrangeiro, estão inscritos no registro do município onde vivem ou ao qual estão ligados. Esse banco de dados leva o nome de anágrafe. As autoridades italianas sabem perfeitamente onde vive Signor Pizzolato. Daí a transmitir a informação às autoridades de Brasília são outros quinhentos. Quem tem telhado de vidro…

Vamos ver como evolui

José Horta Manzano

Desta vez, não deu

Não se sabe bem quem terá tido a ideia. O marketing foi deixado aos cuidados de um músico baiano que costuma se apresentar com a cabeça encimada por uma touca que lembra a de um mestre-cuca. Um pouco menos elegante, é verdade.Touca mestre-cuca

Inventaram um dispositivo meio esquisito, parecido com brinquedo de criança, feito de plástico, recheado de bolinhas, com alças laterais onde se encaixam os dedos. Para rimar com ecologia, anunciaram que seria feito a partir de cana-de-açúcar. Para rimar com nacionalismo, foi tingido de verde.

Na hora de escolher o nome, fizeram um esforço especial para escapar do ridículo. Quiseram compensar a escolha infeliz do apelido dado ao simpático tatuzinho que simboliza a Copa (mas não só…), o pobre Fuleco. Chamaram o novo brinquedinho de caxirola. Não ocorreu a ninguém que os estrangeiros pronunciarão caksirôla. Faltou aconselhamento.

Para reforçar o marketing, distribuíram a novidade ― de graça! ― num recente jogo de futebol. Cinquenta mil exemplares. Que desastre! Torcedores descontentes com o desempenho de sua equipe não pensaram duas vezes. Tomados pela decepção e pela raiva, lançaram sobre o gramado o que traziam na mão. Era justamente nossa caksirôla em fase de teste. Centenas delas terminaram no gramado, perturbando o jogo. A história não diz se o dispositivo foi aprovado como instrumento. Contudo, o teste detectou que é excelente projétil.

Resultado: autoridades baianas baniram o aparelhinho das partidas que vierem a ser disputadas em Salvador. É de imaginar que outros Estados sigam o exemplo, a não ser que… bem, sabemos todos que os argumentos da Fifa costumam ser convincentes.

Vamos ver como evolui.Interligne 4f

Brincando com a saúde… dos outros

Uma mafia de falsificadores de leite foi flagrada no Rio Grande do Sul estes dias. Por ganância, batizavam o alimento com substâncias comprovadamente cancerígenas. O detalhe sórdido é que um dos criminosos mandava separar uma parte do leite bom para consumo de sua família. A adulteração vinha em seguida. Mateus, primeiro os teus!Vache 2

Em 2008, escândalo semelhante estourou na China. Uma gangue mafiosa explorava o mesmo filão. Acrescentavam melamina ao leite. Apanhados, foram presos e julgados. O caso rendeu duas penas de morte e mais uma de prisão perpétua. As penas capitais já foram executadas em 2009. A firma de lacticínios ― a maior da China ― foi à falência.

Voltemos ao Rio Grande. Dos 8 presos, um já foi solto. Seis ― bem orientados por seus defensores ― declararam que só se pronunciarão em juízo. O oitavo falou. Disse que não sabia de nada.

Que pena merecem os que vendem gato por lebre e expõem crianças, velhos e doentes ao câncer?

Vamos ver como evoluiInterligne 4i

E o porteiro não foi preso!

José Horta Manzano
Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 6 abril 2013

Cada estado traz seu aporte à União. É a regra. Cada um entra com um óbulo condizente com sua população e suas posses. Há estados, no entanto, cuja contribuição tem sido relativamente mais importante que a de outros. Um deles é o Rio Grande do Sul.

Alguns fatos que marcaram a História do Brasil têm origem no estado sulino ou guardam alguma relação com ele. De lá nos veio Getúlio Vargas, fundador da única ditadura de um homem só que o País já conheceu. João Goulart, último presidente a ser apeado por golpe de estado, era gaúcho também. Durante a era militar, aquele que certamente foi o presidente mais esclarecido e mais equilibrado chamou-se Ernesto Geisel. Era gaúcho. O estado pampiano nos deu também Elis Regina, a cantora maior.

Ultimamente, a contribuição do Rio Grande tem incitado o Brasil a dar passos importantes no processo civilizatório. Com decisões ousadas, seus juízes foram os primeiros a equiparar uniões homossexuais a enlaces tradicionais. Suas resoluções podem ter causado algum frisson, mas provocaram as primeiras fissuras no gesso que emprisionava o melindroso assunto.

Faz dois meses, o Brasil e o mundo foram sacudidos por uma notícia pavorosa. O incêndio de uma boate de Santa Maria havia ceifado a vida de 250 jovens e arruinado a razão de existir de milhares de pais, irmãos, namoradas. Foi a tragédia mais mortífera dos últimos decênios. A mídia do mundo inteiro repercutiu a trágica informação.

Brasil

Escaldados com o desenrolar habitual da Justiça brasileira ― que à vezes lembra um jogo de dados viciados ― nenhum de nós esperava que as diligências jurídico-policiais dessem grande resultado. Em casos assim, sabe-se que a tática dos poderosos é: protelar, procrastinar, engavetar, entravar e torcer para que o povo esqueça. Na pior das hipóteses, prende-se o porteiro ou a mulher do café.

Surpreendentemente, não foi o que aconteceu. Era trágico demais, e os brios gaúchos não estavam dispostos a permitir que jeitinho e malemolência contaminassem o processo. Foram em frente.

O comandante regional do Corpo de Bombeiros foi afastado pelo governador em pessoa. Num primeiro momento, 28 pessoas foram responsabilizadas no inquérito. Entre elas, 19 agentes públicos, bombeiros, secretários. Até o prefeito municipal foi arrolado.

Como se costuma dizer, nada do que for feito trará de volta os que partiram no alvorecer de sua jornada terrena. Mas da desgraça surge a luz. O desastre de Santa Maria terá servido para confirmar, se ainda fosse preciso, que nosso País está mudando aceleradamente. E não só na área econômica, que, a computar-se o espaço desproporcional que ocupa na mídia, parece ser a única preocupação nacional.

Não são as leis nem os decretos que forjam a sociedade. Pelo contrário, é a sociedade que, por meio de seus representantes, faz que novas leis sejam votadas e que novos decretos sejam assinados. Leis, regras e regulamentos apenas formalizam o que já tiver sido sopesado e decidido pelo tecido social.

Dentro de 10 ou 20 anos, o Brasil será um país muito diferente do que conhecemos hoje. A troca de ideias e a interação intensa que internet propicia é indomável. Hoje em dia, tudo se sabe, boas e más notícias se alastram feito fogo de palha. Está cada dia mais difícil ocultar certos crimes e «malfeitos» que antes passavam ignorados.

O ultracomentado processo do mensalão ― e principalmente seu desfecho ― teria sido visto como obra de ficção apenas dez anos atrás. Seus atores jamais imaginaram, nem em pesadelo, que um dia pudessem ser julgados e condenados a anos de prisão. Caíram na armadilha que o progresso tecnológico lhes preparou.

O antigo juiz trabalhista conhecido como Lalau foi condenado, já faz alguns anos, a meio século de prisão em regime fechado. No entanto, a benevolência que costumamos conceder aos poderosos não lhe causou mais que um pequeno desconforto: teve de trocar férias permanentes em suntuoso apartamento de Miami por dias tranquilos em sua mansão paulista. A desculpa, acolhida pela Justiça, tinha sido a idade avançada do condenado, como se a culpa desbotasse com os anos. Como prova de que o olhar da sociedade está em processo acelerado de mudança, Lalau foi levado estes dias a uma penitenciária.

Está cada vez mais próximo o dia em que os pequeninos poderão exercer sua função sem recear inculpação automática em caso de problema no andar de cima.

Em Santa Maria, pelo que noticiaram os jornais, o porteiro da boate não foi preso. Nem a mulher do café.

Para pensar em casa

José Horta Manzano

Este blogue traz uma que outra citação. Pode ser um provérbio latino, pode ser uma frase pronunciada por algum figurão de nossos tempos, se bem que garimpar frases inteligentes, nestes tempos estranhos, está-se tornando tarefa árdua. É trabalhoso, mas não impossível. A prova vem logo aqui abaixo. Não resisti à tentação de reproduzir duzentas e poucas palavras encharcadas de sensatez.

Sob o título Prepotência sem Fronteiras, o perspicaz Elio Gáspari tomou sua pluma mais corrosiva e publicou em sua coluna da Folha online deste 13 de janeiro um tópico digno de ser recortado e levado para ler em casa. É melhor morrer amigo dele.

Elio Gáspari

Elio Gáspari

“Don Corleone orienta o comissariado

Elio Gáspari

Num momento luminoso para o PT, o companheiro Olívio Dutra, fundador do partido, ex-prefeito de Porto Alegre e ex-governador do Rio Grande do Sul, disse ao deputado José Genoino: “Eu acho que tu deverias pensar na tua biografia, na trajetória que tens dentro do partido. Eu acho que tu deverias renunciar. Mas é a minha opinião pessoal, a decisão é tua. Não tenho porque furungar(*) nisso”.

Dias depois, o comissário André Vargas, secretário de Comunicação do partido, disse que Olívio fora “pouco compreensivo”. E mostrou a faca: “Quando ele passou pelos problemas da CPI do Jogo do Bicho, teve a compreensão de todo o mundo. (…) Ele já passou por muitos problemas, né?”

Engano. Durante o governo de Olívio Dutra, o PT gaúcho foi apanhado numa maracutaia, mas ele nunca foi acusado de envolvimento direto no caso. Processo judicial, nem pensar. Genoino e seus colegas foram condenados pelo Supremo Tribunal Federal.

Olívio Dutra é de um tempo em que petistas rachavam apartamento em Brasília (seu parceiro era Lula). Quando deixou a prefeitura, voltou a ser um bancário. Com seus bigodes e uma bolsa tétrica, anda de ônibus. Passou por problemas, mas nunca passou pelas soluções dos comissários de hoje.

A resposta de André Vargas indica que, no PT 2.0, uma pessoa com a biografia de Olívio é um estorvo, tornando-se necessário colocá-lo ao alcance de qualquer suspeita.”

(*) Furungar é regionalismo gaúcho. Quer dizer remexer, xeretar. (Nota do blogueiro).