O passaporte italiano do Jair

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 25 fevereiro 2023

Como se dizia antigamente, “Continua o sucesso da novela ‘Quando é que ele volta?’, em cartaz há dois meses e seguida do Oiapoque ao Chuí!” A bolsa de apostas está fervendo. Há quem acredite que a volta do capitão será semana que vem; outros juram que ele só retorna em abril; há até quem pense que ele vai acabar fixando residência num paraíso fiscal pra nunca mais voltar.

No vaivém dos capítulos, de vez em quando alguém se lembra de que o ex-presidente e os filhos têm direito a recuperar a nacionalidade italiana. Dois de seus filhos, surpreendidos outro dia na porta da representação italiana em Brasília, não esconderam a razão de estarem ali: tentavam acelerar o processo de reconhecimento de nacionalidade, trâmite que se arrasta há tempos. (Dado o acúmulo de pedidos, processos podem levar anos.)

Entrevistado alguns dias atrás, um senador da República Italiana alegou desconhecer qualquer pedido de reconhecimento de cidadania feito por Jair Bolsonaro. A declaração passou a falsa impressão de que a recuperação da nacionalidade italiana é individual, e que cada membro de uma mesma família tem de abrir seu próprio processo. Não é exatamente assim que funciona.

O objetivo final do processo de reconhecimento de cidadania é a inscrição do requerente na “Anágrafe”, registro italiano em que estão inscritos todos os cidadãos do país. Os fatos civis da população – nascimentos, casamentos, divórcios, óbitos – são todos registrados ali. É um registro civil com “fio condutor”, ou seja, parte do princípio que todo recém-nascido se integra numa linhagem. Uma consulta à Anágrafe permite apurar a árvore genealógica de cada cidadão desde a instituição do registro civil, no século 19.

No caso dos que emigraram no passado, o fio se interrompe. Embora os descendentes nascidos no exterior continuem com direito à nacionalidade italiana, o fato de não estarem registrados na Anágrafe os impede de tirar documentos. No fundo o objetivo do processo de recuperação da cidadania é transcrever certidões estrangeiras de nascimento, casamento e óbito na Anágrafe do município de origem.

A condição para as transcrições é o respeito à ordem das gerações. Jair Bolsonaro é bisneto do último antepassado que figura nos registros italianos. Para ser inscrito, terá de apresentar as certidões que o ligam a essa pessoa, ou seja, documentos de seus bisavós, de seus avós, de seus pais e os seus próprios. Seguindo a lógica, a inscrição de seus filhos – já solicitada por eles – só será possível depois da inscrição de todos os antepassados, incluindo o próprio Jair Bolsonaro.

É aí que mora o truque. É irrelevante o capitão ter ou não ter solicitado a recuperação de sua cidadania. Pela lógica do “fio condutor”, quando seus filhos estiverem inscritos na Anágrafe, ele já figurará automaticamente nesse registro, ainda que nunca tenha solicitado. Isso lhe permitirá tirar o passaporte italiano. Em resumo: inscrito algum dos filhos, o pai também estará inscrito.

Cabe agora uma consideração. A subida de Giorgia Meloni ao cargo de primeira-ministra da Itália levou apreensão aos países vizinhos. Suas antigas demonstrações de apreço por Mussolini, Putin, Trump e Bolsonaro deixaram os demais membros da União Europeia ressabiados. Para limpar a própria imagem e escapar à repulsa inspirada por seus heróis, la Meloni decidiu desradicalizar seu perfil. Abjurou a antiga fé no fascismo, renegou Trump, denunciou Putin, condenou Bolsonaro. Um dia depois da visita de Biden a Kiev, foi de romaria encontrar o presidente Zelenski e anunciar reforço na ajuda militar italiana.

Agora, que a primeira-ministra deixou de assustar o mundo, a última coisa que ela deseja é criar problemas para si mesma e para seu país. Caso o processo de reconhecimento da cidadania de qualquer um dos rebentos de Bolsonaro chegue ao fim, o capitão estará automaticamente inscrito na Anágrafe e apto a receber seus documentos. A essas alturas, ele pode muito bem decidir homiziar-se no país, o que causaria um problema espinhudo caso o Brasil (ou algum tribunal internacional) resolvesse requerer sua extradição.

É de crer que o processo de recuperação de cidadania dos bolsonarinhos não chegue ao fim tão já.

Quem tem telhado de vidro…

José Horta Manzano

Anos atrás, quando autoridades italianas indicaram à PF que um certo Signor Battisti, foragido da Justiça daquele país, se encontrava vivendo ilegalmente no Brasil, nossa polícia não perdeu tempo: surpreendeu o indivíduo no Rio de Janeiro e o conduziu algemado a Brasília. Naquele momento, ninguém sabia, mas a ação espetaculosa não era mais que a primeira página de uma interminável novela. A lenga-lenga, recheada de altos e baixos, durou vários anos, envolveu advogados, parlamentares, a PF, o Ministério da Justiça, o STF, a presidência da República. Ninguém pode afirmar que tenhamos chegado ao ponto final. Não é impossível que o epílogo ainda esteja por escrever.

Tarso Genro, governador do RS by Marco Aurélio, desenhista gaúcho

Tarso Genro, governador do RS
by Marco Aurélio, desenhista gaúcho

Saíram todos chamuscados daquele execrável episódio. O prisioneiro, depois de viver encarcerado durante anos, em meio a incertezas, está marcado para o resto da vida ― onde quer que vá, será reconhecido e olhado com certa reserva. O ministro da Justiça da época, ao conceder asilo ao foragido, foi forçado a alegar que desconfiava da Justiça italiana, numa atitude arrogante que pegou muito mal. O STF, que empurrou a decisão final para a presidência da República, desagradou a muita gente. A decisão do presidente da República ― tornada pública no apagar das luzes do mandato ― que confirmou o asilo ao estrangeiro ornou a novela com fecho de ouro. As autoridades italianas devem ter saído enfurecidas, o que é compreensível.

Os anos passaram e o mundo girou. O processo do mensalão está chegando ao fim e cada condenado executa a pirueta que lhe parece mais conveniente. Uns dizem que não têm nada que ver com a história, que estavam de passagem. Outros alegam que foram julgados pela imprensa ― como se o julgamento não tivesse sido público e transmitido ao vivo por rádios e tevês. Há até guerrilheiros que, embora tenham empunhado armas e participado de guerrilha na selva, hoje derramam lágrimas que destoam da bravura que outrora exibiam.

by Dalcio Machado, desenhista paulista

by Dalcio Machado, desenhista paulista

Um dos condenados, talvez mais realista que os demais, não acreditou em Papai Noel. Perspicaz, deu-se conta, bem antes dos outros, de que o desfecho poderia não ocorrer em meio a gargalhadas em volta de uma pizza. Preparou minuciosamente sua fuga do País. Não está claro se Signor Pizzolato solicitou emissão de seu passaporte italiano antes do escândalo do mensalão. Pouco importa. O que importa é que, aos olhos da Itália, ele é um cidadão do país peninsular igual a todos os outros. Todo Estado civilizado costuma zelar por seus súditos.

Algum tempo atrás, as autoridades judiciais brasileiras exigiram, como medida de precaução, que todos os réus da Ação Penal 470 consignassem seu passaporte. Signor Pizzolato fez mais que os outros: entregou dois, o brasileiro e o italiano. Fechadas, como de costume, sobre si mesmas e pouco afeitas a práticas internacionais, as autoridades de Brasília foram dormir tranquilas. Um homem sem passaporte não pode viajar, devem ter pensado.

Se o olhar de nossas sumidades fosse um pouco além de seu próprio umbigo, saberiam que um cidadão estrangeiro cujo passaporte tiver sido confiscado pode solicitar um novo, desde que não esteja sendo procurado pela polícia de seu próprio país. Era exatamente o caso de Signor Pizzolato. Bastou-lhe comparecer a um consulado italiano e requerer um novo passaporte.

Alberto Alpino, desenhista capixaba

by Alberto Alpino, desenhista capixaba

Imaginam muitos que o fujão tenha passado por peripécias semelhantes às do senador boliviano que viajou clandestinamente de La Paz até o Mato Grosso. Pois eu não vejo a coisa assim. Não tenho como provar, mas tudo me diz que, ao deixar definitivamente sua cobertura em Copacabana, o réu fugido já levava no bolso o documento que lhe permitiria viajar para onde quisesse. Atravessar a fronteira entre o Brasil e qualquer um de seus vizinhos é moleza. Em numerosas cidades de fronteira, no Rio Grande por exemplo, a divisa entre dois países é representada por uma avenida. Atravessada a rua, é fácil chegar a Buenos Aires, de onde partem diariamente voos para Roma e para Milão. Elementar, meu caro Watson.

Agora é que chega a hora de a porca torcer o rabinho. A malandragem demonstrada pelo Planalto no caso Battisti ainda é muito recente. Os personagens estão vivos e na ativa, todos se lembram. Esperar grande empenho por parte de Roma é ilusão. O fato de o Brasil dar guarida a um condenado por envolvimento em quatro assassinatos pegou muito, muito mal na Itália. Será praticamente impossível reaver o cidadão italiano Pizzolato, cuja ficha, em terra itálica, está limpa.

Os italianos, que residam na Itália ou no estrangeiro, estão inscritos no registro do município onde vivem ou ao qual estão ligados. Esse banco de dados leva o nome de anágrafe. As autoridades italianas sabem perfeitamente onde vive Signor Pizzolato. Daí a transmitir a informação às autoridades de Brasília são outros quinhentos. Quem tem telhado de vidro…