A solução do problema sírio

José Horta Manzano

Durante meio milênio, a região onde se situa a Síria atual esteve sob o mando do Império Otomano, como era chamada a extensa zona dominada pelos turcos. Quando espocou a Primeira Guerra mundial, os otomanos tiveram o azar de escolher o lado errado: apoiaram a Alemanha e o Império Austro-Húngaro. Perderam.

Na sequência da derrota, a Grã-Bretanha e a França puseram em prática o plano já acertado anos antes: repartiram o Oriente Médio em zonas de influência britânica ou francesa, um pouco para cada um. As fronteiras da Síria, tanto quanto as dos outros países da região (Jordânia, Iraque, Líbano, Kuwait), foram desenhadas nas pranchetas de Londres e de Paris. Muito provavelmente por ignorância, os decididores deram pouca ou nenhuma importância à população local, às etnias, às religiões, às alianças ou inimizades seculares. Deu no que deu. O caldeirão ferveu.

Na época dos otomanos, quando as ordens vinham de Constantinopla, estavam todos no mesmo saco, sob domínio estrangeiro. A partir do momento em que tiveram de autogovernar-se, o problema se pôs: qual das comunidades toma as rédeas? Aquilo virou um faroeste onde manda quem grita mais.

Repare na complexidade étnica da população síria
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Como se não bastassem as brigas intestinas, interesses externos têm contribuído para apimentar o molho. A criação do Estado de Israel, a descoberta de petróleo na região, a Guerra do Iraque, as pretensões iranianas de domínio regional, o antagonismo entre EUA e Rússia são fatores agravantes. Chegamos ao ponto em que nenhuma solução será satisfatória para todos. O emaranhado de interesses é tão complexo que, por mais que se procure um ponto de equilíbrio, não é possível encontrá-lo. Tem-se de optar pelo «menos pior».

Infelizmente, a única linguagem que se fará ouvir será a da firmeza e da força. Apesar de todos os defeitos, o longo período de domínio otomano trouxe relativa paz à região. Não será uma oposição entre EUA e Rússia que vai aplacar ódios ‒ só pode desembocar numa guerra por procuração. A melhor solução passará por um acordo, de preferência sob patrocínio da ONU, que garanta:

A destituição do atual ditador
É condição sine qua non. Enquanto Bachar permanecer no comando, será impossível acalmar os ânimos. O acúmulo de ódios é grande demais.

O desarmamento da população
Sempre haverá revólver escondido dentro de colchão. Mas todo esforço deve ser envidado para confiscar e neutralizar armamento pesado, tradicional e químico.

A manutenção da base naval russa de Tartus
Sem isso, nenhum acordo será alcançado ‒ toda proposta será vetada pelos russos. Eles veem a base como necessária para garantir presença na região.

Outra visão da complexidade étnica do território
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A criação de uma federação
A atual Síria será partilhada entre dezenas de microestados. Para definir as fronteiras, serão levadas em conta as diferenças entre os diversos povos: religião, língua, tradições, história.

Um poder central neutro sob mando externo
Um protetorado deverá ser estabelecido, preferivelmente sob a guarda da ONU. Um representante escolhido pelas Nações Unidas exercerá o poder executivo. Será substituído periodicamente. Não deverá ser árabe, nem originário da região, nem de nenhum dos membros permanentes do Conselho de Segurança.

Pronto, aí está a solução, que o resto é blá-blá-blá. Podem, naturalmente, deixar tudo como está pra ver como fica. A guerra não terá fim e ninguém sairá ganhando. Menos os fabricantes de armas, que continuarão esfregando as mãos.

Procura-se porto seguro

José Horta Manzano

O caldeirão do Oriente Médio ferve. Sempre ferveu, não é de hoje. Ponto de origem e de difusão da civilização ocidental, abriga uma emaranhado de povos díspares. As linhas de fratura passam pela língua, pela religião, pela etnia, pelo histórico de enfrentamentos que alimenta a discórdia. Para engrossar o caldo, há petróleo naquela parte do mundo, o que atrai interesse comercial e político.

Síria: mosaico étnico

Síria: mosaico étnico

Não adianta tapar o sol com a peneira: nunca houve e nunca haverá democracia na região. Pelo menos, democracia como entendemos nós. É inviável, não tem jeito. O intrincado de problemas é de tal grandeza, que não há como formar consenso. O mando será obrigatoriamente autoritário, que não há outra maneira. Todos dirão «sim, senhor» a quem gritar mais alto.

Mais brutais ou menos, mais sanguinárias ou menos, mais restritivas ou menos ‒ essa é a graduação possível entre as ditaduras. Que ninguém espere ver o povo da Síria, do Iraque, do Kuwait e de numerosos outros territórios da região elegendo um dia, democraticamente, seus representantes e dirigentes, numa democracia pluripartidária. Vai demorar muito pra esse dia chegar. Por enquanto, vige a lei do mais forte.

Base militar naval russa de Tartus, Síria

Base militar naval russa de Tartus, Síria

Muita gente tem reclamado da ação dos russos na Síria, de sua aliança com o sanguinário Bashar el-Assad. Pra começar, sanguinários são todos os chefes de guerra daquelas paragens. Não há um melhor que outro. O fato é que a dinastia el-Assad conseguiu segurar o país e manter uma certa estabilidade, ainda que precária, desde 1970.

Quanto aos russos, que o distinto leitor me perdoe a franqueza: não estão nem aí para os povos da região, para o drama dos desabrigados, para o sofrimento dos feridos nem mesmo para os infelizes que perderam a vida. O interesse crucial é conservar a base naval de Tartus, na Síria, concedida a eles por Hafez el-Assad (o pai), nos anos 1970. Desde então, a troca de favores entre Moscou em Damasco tem sido contínua. É um toma lá dá cá. Por um lado, a Rússia faz o necessário para garantir o trono da dinastia alauíta e seu domínio sobre o país. Por outro, o clã garante a cessão da base, verdadeiro «Guantánamo russo».

Bashar el-Assad e Vladimir Putin

Bashar el-Assad e Vladimir Putin

A Rússia, apesar de ser o maior país do planeta em superfície, ressente-se cruelmente da falta de abertura marítima para águas temperadas, livres de gelo o ano inteiro. Para ser operacional o tempo todo, sua frota marítima tem de contar com bases instaladas em clima mais ameno. As instalações de Tartus são ideais para abrigar a frota mediterrânea. Assim como os Assad têm garantido a permanência russa na região, os russos não pretendem abandonar os Assad. Se o clã que domina a Síria é composto por gente pouco recomendável, tanto faz. Essa preocupação não tira o sono dos dirigentes de Moscou.

Só no dia em que as potências entenderem o objetivo maior dos russos é que será possível pensar em trégua, conferência ou acordo de paz. É capital enfiar na cachola que a Rússia sempre dará seu apoio a quem lhe garantir a permanência da base naval.

Plebisul

José Horta Manzano

Nestes tempos de eleições, um plebiscito informal ‒ sem validade legal ‒ está passando em brancas nuvens. De fato, um coletivo de cidadãos formou-se para promover consulta popular no Paraná, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul com vista a desmembrar os três Estados sulinos do resto do Brasil. Os eleitores foram convocados para este sábado 1° de outubro.

Embora a iniciativa pareça desfocada, merece algumas considerações. Movimentos separatistas sempre existiram no mundo e tudo indica que assim continuará. Para que um divórcio seja viável, é imperativo que exista um problema permanente e insolúvel. Não vislumbro nenhum motivo válido nem irremediável a sustentar o pleito do comitê separatista.

plebisul-2O Brasil, como um todo, vai mal. Disso sabemos todos. Mas sabemos também que há soluções para repor nosso país no bom caminho. Os acontecimentos políticos e sociais dos últimos dois anos, com Lava a Jato & companhia, estão mostrando a via. Embora ainda haja resistência e esperneio de setores interessados em que nada mude, o tempo é senhor do destino: sabemos que as mudanças que estão começando a tomar forma são passos no bom sentido. Portanto, a situação de débâcle que atravessamos não deve nem pode ser considerada definitiva. É grande a esperança de que o amanhã seja melhor.

O planeta está repleto de separações ‒ já consumadas ou apenas desejadas ‒ por razões de absoluta incompatibilidade de coexistência. Motivos religiosos são fonte de fortes atritos: Irlanda, Iraque, Síria, Sudão são exemplos conhecidos. São regiões em que divergências de fé podem levar a enfrentamentos sangrentos. Não é o caso do Sul do Brasil.

Há casos de disparidade linguística. Metade da Ucrânia fala ucraniano, enquanto outra metade fala russo. Uns e outros não se entendem e não fazem questão de conviver sob o mesmo teto. Catalães falam língua própria, diferente do castelhano ‒ língua dominante na Espanha. Em casos assim, muitos advogam a separação como solução. Não é o que acontece no Sul do Brasil. Por lá, todos assistem às mesmas novelas e identificam os diálogos como língua materna, exatamente como ocorre nos demais Estados da União.

plebisul-1Há casos mais cabeludos. A nação curda, unida pela língua, pela religião e pelas tradições, encontra-se espalhada por quatro países. Vicissitudes históricas privaram a nação curda de um Estado. A situação, difícil de resolver, é ponto importante de discórdia entre turcos, sírios, russos e americanos na atual guerra travada naquela região. O «fator curdo» torna a leitura das razões do conflito incompreensível para nós. Nada disso ocorre no Brasil.

Os Estados do extremo sul tanto têm pontos comuns entre si quanto têm parecença com o resto do país. Nem mais, nem menos. Naquelas bandas, faz mais de século que não se ouve falar em províncias oprimidas por um poder central tirânico. Nem mesmo durante a última ditadura isso aconteceu ‒ não foram mais nem menos oprimidos que os demais brasileiros. Aliás, diga-se de passagem que, dos cinco presidentes militares, três eram gaúchos.

Não sei qual é exatamente a intenção do comitê que incentiva esse extravagante movimento separatista. Seja ela qual for, um anseio tão radical não se justifica. Fica a impressão de ser obra de um pequeno grupo que, em vez de baralhar as cartas, melhor faria se contribuísse para o bem comum. Todos temos outras prioridades neste momento. Generosidade é bom.

A condessa descalça

José Horta Manzano

Muito se tem falado e escrito sobre o par de sapatos que Michel Temer decidiu comprar na China. Dez em cada dez comentaristas põem o enfoque no fato de as importações de calçados chineses ter balançado o coreto dos fabricantes brasileiros. Têm razão, pegou mal pra caramba, mas não é tudo.

Kruchov 2Quando o assunto é ou tudo o que lhe diz respeito, precisa tomar cuidado. Em todas as civilizações ‒ numas mais, noutras menos ‒ os pés carregam conotação simbólica negativa. Dar um chute ou uma rasteira em alguém, entre nós, é desaforo pesado. No mundo árabe, homem não cruza as pernas ao sentar justamente pra não apontar o pé para o vizinho, gesto considerado agressivo.

Todos se lembrarão daquele jornalista que atirou um sapato no presidente Bush quando de uma coletiva no Iraque, ofensa feroz. Os muito antigos talvez se lembrem do folclórico Nikita Kruchev, mandatário da finada URSS, quando discursou na tribuna da ONU em 1960. Iracundo, tirou o sapato do pé, brandiu-o diante de centenas de espectadores boquiabertos e bateu repetidas vezes no púlpito. Sapatos, por natureza, pisam poeira e cocô. Botas lembram invasão militar. São objetos a manipular com precaução.

Temer 3A imagem de nosso presidente descalço experimentando sapato em plena cúpula do G20 é patética. Se foi aconselhado a fazê-lo, talvez para mostrar que é homem simples e comum, terá sido muito mal orientado. Proponho ao distinto leitor imaginar Mister Obama, Frau Merkel, Monsieur Hollande ou Gaspadin Putin fazendo a mesma coisa. Inconcebível, não?

Pé 1Aceitar a função de chefe de Estado implica vergar-se ao ritual que acompanha o cargo. Em campanha eleitoral, candidato tem de comer pastel de feira e buchada de bode, ainda que não lhe apeteçam. Outras funções têm outras exigências. De um chefe de Estado em aparição pública, espera-se atitude respeitosa, sorriso permanente, moderação, recato. E pés calçados, se faz favor.

Ninguém espera que um homem dê conta, sozinho, de segurar as rédeas do país. É capital cercar-se de assessores competentes. Vamos torcer para que, em assuntos cruciais, senhor Temer recorra a gente mais esclarecida.

Crédito: Marc Ferrez

Crédito: Marc Ferrez

Nota 1
O simbolismo do calçado é universal e antigo. No Brasil, no tempo da escravidão, enquanto homens livres usavam sapatos, escravos não tinham esse direito. Ainda que se vestissem com relativa decência, andavam descalços.

Nota 2
A Associação Brasileira das Indústrias de Calçados já se manifestou. Pela voz de seu presidente, prometeu levar um par de sapatos brasileiros ao presidente.

Nota 3
Não sei se os hábitos brasileiros terão evoluído, mas nos países do centro e do norte da Europa sapatarias não têm mais funcionários para ajoelhar e calçar clientes. Cada um se serve, experimenta sozinho e paga na saída. Calçadeiras estão à disposição. Balconistas apenas servem para responder a perguntas ou para ir buscar tamanho maior ou menor dos modelos expostos.

Nota 4
O título deste artigo faz referência a filme homônimo de 1954, dirigido por Joseph Mankiewicz e estrelado por Ava Gardner e Humphrey Bogart.

Cada cabeça, uma sentença ― 4

José Horta Manzano

Como numerosos países, a Irlanda oferece, a seus nacionais que tencionem viajar ao estrangeiro, informações práticas sobre usos e costumes de diversos destinos. O site do ministério irlandês de assuntos exteriores exibe longa lista com duas centenas de países e regiões. A extensa relação inclui até lugares pouco frequentados como as Ilhas Salomão, o Turcomenistão, a Coreia do Norte.

Por curiosidade, andei consultando algumas fichas. Fiquei agradavelmente surpreso: são extensas, bastante acuradas e atualizadas. Para o Brasil, por exemplo, entre as dezenas de perigos óbvios, chegam a alertar para o risco do golpe conhecido como Boa-noite, Cinderela. Para a eventualidade de o turista ser assaltado, dão as mesmas recomendações que a polícia: não resista; mais vale entregar o ouro aos bandidos do que perder a vida.

Em verde, os países mais seguros

Em verde, os países mais seguros

Naturalmente, as dicas estão na rede, accessíveis a todos. A equipe do departamento de informações da Televisão Suíça andou folheando as advertências. Levaram um susto daqueles de cair da cadeira. Contrariando o que parecia óbvio, a Suíça não aparece entre os mais seguros. A equipe ficou despeitada.

A triste constatação foi parar na manchete do site de informações da rádio-televisão pública. Para mostrar o choque e para acentuar o desagrado, o título da matéria foi: «Segundo a Irlanda, a Suíça é mais perigosa que o Brasil».

Cada um enxerga o mundo com os próprios óculos. Ficou patente que as autoridades irlandesas mostram maior preocupação com o risco de atentados e de tumultos sociais do que com a criminalidade nossa de todos os dias.

Pais perigoso 1Em função do risco, os países estão classificados em cinco categorias. Na primeira, entram os menos perigosos, aqueles que requerem nada mais que cuidados básicos. Entre outros, estão lá os EUA, a Suécia, a Nova Zelândia, a Alemanha e… o Brasil.

Pais perigoso 2Na segunda categoria, estão as regiões que requerem cuidado redobrado. Estão lá a China, a Rússia, Angola, a Turquia e… a Suíça(!).

Pais perigoso 3No terceiro degrau, situam-se os destinos que exigem extrema atenção. Nesse nível, estão a Venezuela, a Argélia, a Nigéria e… a França(!).

Pais perigoso 4O quarto nível compreende os países que só devem ser visitados em caso de necessidade absoluta. O Sudão, o Paquistão, o Congo estão entre eles.

Finalmente, na quinta categoria, estão os países que não devem ser visitados em hipótese alguma. Como é compreensível, lá estão a Líbia, a Síria, o Iraque, o Afeganistão.

Ânimo, minha gente. No olhar simpático e indulgente dos irlandeses, o Primeiro Mundo é aqui!

Brasil longe do terror

José Horta Manzano

No fim de semana passado, quando participava de reunião multinacional na Turquia, dona Dilma foi questionada sobre o risco de ataque terrorista ao Brasil durante os Jogos Olímpicos de 2016. A pergunta fazia sentido, dado que Paris acabava de sofrer mortífero atentado.

Dilma 1Dilma respondeu um tanto evasivamente, sem muita convicção, como se a pergunta a tivesse irritado: «não estamos muito preocupados com a possibilidade de atos terroristas no Brasil, uma vez que estamos muito longe». Soou distante e não convenceu.

Dias mais tarde, ao dar-se conta de que a afirmação da presidente não havia tranquilizado ninguém, o Planalto incumbiu o ministro da Justiça de serenar a plateia. Com cara de sério, ele cumpriu o contrato. Não sei se todos acreditaram. Em todo caso, o mui oficial portal Cuba Debate – aquele que publica as Reflexiones de Fidel – repercutiu a fala do ministro. Segundo o figurão, o Brasil «está totalmente preparado para garantir a segurança nos Jogos Olímpicos».

Menos romântico e mais próximo da realidade, o jornal O Globo trouxe, no sábado 21 de novembro, interessante artigo sobre ataques terroristas recenseados de 1970 até nossos dias. Uma análise mais atenta indica que o Brasil não está assim tão “longe” como imagina dona Dilma.

Ataques terroristas de 2000 a 2014 Crédito: Jornal O Globo

Ataques terroristas de 2000 a 2014
Crédito: Jornal O Globo

Entre 2000 e 2014, nosso país registrou nada menos que 17 ações terroristas, mais de uma por ano. É verdade que estamos longe do impressionante total de quinze mil atentados ocorridos no Iraque ou dos dez mil do Paquistão. Assim mesmo, constatamos que o Brasil foi alvo de mais atentados do que países teoricamente mais expostos como: Marrocos (12), Croácia (11), Sérvia (11), Portugal (2), Romênia (1) e Polônia (1).

Assalto 5Se, a esses atos reconhecidamente terroristas, acrescentarmos nossos costumeiros arrastões, sequestros-relâmpago, assaltos à mão armada & companhia, ultrapassamos Afeganistão e Paquistão com um pé nas costas. Sem contar os «malfeitos» do andar de cima naturalmente.

Brasil… longe do terror?

Frase do dia — 134

«Segundo o ministro do Esporte, Aldo Rebelo, os torcedores ingleses podem vir tranquilos para a Copa da Fifa. Não haverá ― garantiu ― perigo maior que o enfrentado pelos soldados britânicos no Iraque. Faltou explicar se os torcedores deverão vir armados, como os militares enviados à guerra.»

Rolf Kuntz, jornalista, em sua coluna do Estadão, 10 maio 2014.

País de alto risco

José Horta Manzano

A 45 dias do pontapé inicial da «Copa das copas», o Ministério de Relações Exteriores da Alemanha lançou novo alerta aos cidadãos que planejem viajar ao Brasil. Mostra como se está degradando a imagem de nosso país.

A página Reise- und Sicherheitshinweise (Conselhos de Viagem e de Segurança) é daquelas que costumam ser consultadas pelas agências de turismo e pelos próprios turistas. Dá uma imagem desoladora do Brasil.

Como o mundo enxergava o Brasil

Como o mundo enxergava o Brasil

Quem lê o artigo fica com a nítida impressão de que nosso país está no mesmo patamar de um Iraque ou de um Afeganistão. Diz lá que, em solo tupiniquim, não se respeitam as leis. Diz também que o turista periga ser vítima de ladrões, sequestradores ou até ver-se envolvido num conflito entre policiais e bandidos ― como aconteceu recentemente no Rio de Janeiro.

O informe ministerial vai mais fundo, sempre no mesmo tom. Relata que, infelizmente, arrastões e delitos violentos não estão descartados em nenhum ponto do Brasil e que, nas cidades maiores, a taxa de criminalidade é ainda mais elevada.

Recomenda aos turistas alemães que se abstenham de vestir roupas chamativas, de usar joias e de carregar muito dinheiro. Aconselha-os também a ocultar celulares, a carregar computadores portáteis numa sacola e a deixar documentos no cofre do hotel.

Chama a atenção para o perigo que correm os visitantes ao aventurar-se por ruas desertas após o horário comercial ou nos fins de semana. Até o golpe conhecido como Boa-noite, Cinderela é mencionado. Os alemães são instados a desconfiar de bebida oferecida por estranhos. Especial atenção deve ser prestada quando estiverem em bar frequentado por prostitutas: não perder nunca de vista o próprio copo.

Como o mundo passou a enxergar o Brasil

Como o mundo passou a enxergar o Brasil

Quanto à comunicação, o ministério informa que ela não é viável em alemão nem em inglês. Diz que, no sul do país, a língua espanhola é parcialmente compreendida. E termina reconhecendo que algum conhecimento rudimentar de português é ainda a única solução. Fica patente a falta de estudo generalizada.

E essa «Copa das copas», que foi bolada justamente para projetar a imagem de um Brasil-potência, alegre, pujante, forte, generoso, bem administrado, em via de civilização!

O Brasil ficou mais conhecido, mais falado, mais comentado, é verdade. Infelizmente, não exatamente no tom que se esperava.

Que furo n’água, minha gente! Ai, ai, ai, se arrependimento matasse…

É no Iraque?

José Horta Manzano

Você sabia?

Quais são as cidades mais violentas do mundo? Onde é que o número de homicídios é mais elevado? Assim, de supetão, a lógica aponta para o Oriente Médio ― Bagdá, Damasco. Talvez Cabul ou mesmo alguma metrópole africana, que a coisa por lá, às vezes, pega feio. Será?

Pois o Consejo Ciudadano para la Seguridad Pública y Justicia Penal, organização com sede no México, fez o estudo. Apurou minuciosamente o número de assassinatos cometidos no planeta em 2013. Em seguida, confrontou com a população de cada localidade. E acaba de publicar, para cada cidade, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes .

O resultado é assustador. Entre as 50 cidades mais violentas do mundo, não há nenhuma do Oriente Médio. Estão lá somente 3 africanas ― todas na África do Sul. E o resto? Pasmem: as outras 47 estão localizadas no continente americano.

Estão lá 9 do México, 6 da Colômbia, 5 da Venezuela, 4 dos Estados Unidos, 2 de Honduras. Outros 5 países contribuem com uma cidade cada um. Mas… a conta não bate. Para chegar a 50, faltam 16 cidades. E onde é que elas estão? Uma bala perdida para quem errar.

Yes! Estão no Brasil sim, senhor! Dezesseis cidades. Das cinquenta piores, uma em cada três é nossa. Um detalhe inquietante: sete dessas capitais violentas sediarão jogos da «Copa das copas». Welcome, mister!

Nessa lista das mais violentas, uma cidade sul-africana aparece na 41a. posição. É justamente aquela que homenageia Nelson Mandela, prêmio Nobel da paz e pacificador da África do Sul.

O destino, por vezes, tem umas tiradas desconcertantes.

Interligne 18b

    Cidade              País       Homicídios   Habitantes     Taxa
—————————————————————————————————————————————————————————————————–
01  San Pedro Sula      Honduras        1,411      753,990   187.14
02  Caracas             Venezuela       4,364    3,247,971   134.36
03  Acapulco            México            940      833,294   112.80
04  Cali                Colômbia        1,930    2,319,684    83.20
05  Maceió              Brasil            795      996,733    79.76
06  Distrito Central    Honduras          946    1,191,111    79.42
07  Fortaleza           Brasil          2,754    3,782,634    72.81
08  Guatemala           Guatemala       2,123    3,103,685    68.40
09  João Pessoa         Brasil            515      769,607    66.92
10  Barquisimeto        Venezuela         804    1,242,351    64.72
11  Palmira             Colômbia          183      300,707    60.86
12  Natal               Brasil            838    1,454,264    57.62
13  Salvador            Brasil          2,234    3,884,435    57.51
14  Vitória             Brasil          1,066    1,857,616    57.39
15  São Luís            Brasil            807    1,414,793    57.04
16  Culiacán            México            490      897,583    54.57
17  Ciudad Guayana      Venezuela         570    1,050,283    54.27
18  Torreón             México            633    1,167,142    54.24
19  Kingston            Jamaica           619    1,171,686    52.83
20  Cidade do Cabo      África do Sul   1,905    3,740,026    50.94
21  Chihuahua           México            429      855,995    50.12
22  Victoria            México            167      339,298    49.22
23  Belém               Brasil          1,033    2,141,618    48.23
24  Detroit             EUA               332      706,585    46.99
25  Campina Grande      Brasil            184      400,002    46.00
26  New Orleans         EUA               155      343,829    45.08
27  San Salvador        El Salvador       780    1,743,315    44.74
28  Goiânia             Brasil            621    1,393,575    44.56
29  Cuiabá              Brasil            366      832,710    43.95
30  Nuevo Laredo        México            172      400,957    42.90
31  Manaus              Brasil            843    1,982,177    42.53
32  Santa Marta         Colômbia          191      450,020    42.44
33  Cúcuta              Colômbia          260      615,795    42.22
34  Pereira             Colômbia          185      464,719    39.81
35  Medellín            Colômbia          920    2,417,325    38.06
36  Baltimore           EUA               234      619,493    37.77
37  Juárez              México            505    1,343,406    37.59
38  San Juan            Puerto Rico       160      427,789    37.40
39  Recife              Brasil          1,416    3,845,377    36.82
40  Macapá              Brasil            160      437,256    36.59
41  Nelson Mandela Bay  África do Sul     412    1,152,115    35.76
42  Maracaibo           Venezuela         784    2,212,040    35.44
43  Cuernavaca          México            227      650,201    34.91
44  Belo Horizonte      Brasil          1,800    5,182,977    34.73
45  Saint Louis         EUA               109      319,294    34.14
46  Aracaju             Brasil            300      899,239    33.36
47  Tijuana             México            536    1,649,072    32.50
48  Durban              África do Sul   1,116    3,442,361    32.42
49  Porto Príncipe      Haiti             371    1,234,414    30.05
50  Valencia            Venezuela         669    2,227,165    30.04

As 16 cidades brasileiras estão assinaladas

Frase do dia — 118

«Há um mês, em Bagdá, no Iraque, um instrutor de homens-bomba detonou sem querer um explosivo e matou 22 de seus alunos. Pena. Mas, como eram terroristas-suicidas, apenas foram para o céu mais cedo».

Ruy Castro, escritor e jornalisa, in Folha de São Paulo 10 março 2014.

Frase do dia — 112

«Na política externa, mesmo que a reforma do Conselho de Segurança da ONU andasse, qual a contribuição efetiva do Brasil à segurança internacional se, no próprio território, 50 mil homicídios/ano superam a destruição de vida nos conflitos do Afeganistão, do Iraque e do Sudão?»

Marcos Troyjo, economista e cientista social, em sua coluna in Folha de São Paulo, 28 fev° 2014.

Os dois tabus

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 4 jan° 2014

Desde que o mundo é mundo, a humanidade cultiva dois temas sensíveis: raça e religião. Lidar com eles requer prudência e tacto. Evitar acidentes é dever de todos.

Embora a razão de ser de toda religião seja a crença na continuação da vida após a morte física, a diversidade de ritos, dogmas, preceitos, obrigações, proibições é notável. Cada credo tem seu catálogo de regras. O assunto, delicado, é daqueles que se hão de tratar com luvas e pinça. Muita guerra já se travou e muita gente já morreu por divergências religiosas.

O Brasil teve sorte. As práticas animistas dos habitantes originários e o aporte de tradições africanas atenuaram a rigidez e o dogmatismo de colonizadores e de imigrantes. Embora nem sempre nos apercebamos disso, é de reconhecer que não padecemos de conflitos religiosos. Vão longe os tempos da Controvérsia de Valladolid, da Inquisição e das conversões forçadas. O afluxo de gente de vários quadrantes incutiu tolerância à índole nacional.

Visto assim do alto, esse traço de nosso caráter pode até parecer banal. Pois não é. Há pontos no globo onde ainda se luta por divergências de fé. Como prova, estão aí a Irlanda do Norte, o Egito, o Sudão, o Tibete. Até na Europa Ocidental, fricções de ordem religiosa obrigam parlamentos a legislar sobre vestimenta feminina ― o porte da burca ou do véu islâmico, por exemplo. Em nossas terras, a sunga e o fio dental já cuidaram de banir esses rigores. Nosso problema está resolvido.

Stop racismo! Crédito: harrycutting.com

Stop racismo!
Crédito: harrycutting.com

O racismo, outro tema sensível, planta raízes nos estratos mais primitivos do subconsciente. É a manifestação da desconfiança que dedicamos aos que não pertencem a nosso clã. Na prática, esse sentimento se exprime através da repulsa aos que têm cor de pele diferente da nossa, que não falam nossa língua, que não se comportam como nós. Em resumo: rejeitamos o que foge à norma.

Países onde coexistem etnias diferentes costumam ser palco de fricções. Um nada pode provocar conflitos. Essa intolerância está na raiz de atritos crônicos na Palestina, na Síria, no Iraque, na Índia, na Rússia. Na mesma linha, rebeliões nas periferias francesas e surtos de violência nos EUA nos lembram que a paz racial está longe de ser conquista planetária.

Múltiplos fatores forjaram o Brasil. Temos qualidades de fazer inveja: clima agradável, gente afável, ambiente tolerante, povo acolhedor. Mas arrastamos problemas pesados: corrupção, paternalismo, baixa instrução crônica, gritantes disparidades econômicas.

«Deus é brasileiro», dizemos às vezes. Pois olhe, ainda que não passe de um dito jocoso, o fato é que, até hoje, conseguimos escapar da armadilha dos dois grandes tabus. Costumamos encarar com bonomia a diversidade religiosa de nosso povo. Tem até gente que professa duas religiões! A fé ― ou a descrença ― de cada um não constitui obstáculo à convivência. Na esfera racial, a intensa miscigenação do povo brasileiro é a prova maior de que a tolerância e a flexibilidade são a regra, não a exceção. E é melhor assim.

Sabe-se lá por que, de uns anos para cá, o ideal de igualdade e de unidade que alicerça nossa sociedade vem sendo artificialmente solapado. O elenco de normas oficiais passou a dispensar tratamento diferente a determinadas categorias de cidadãos segundo critérios raciais. Cotas e quilombos ― noções inexistentes até há pouco tempo ― entraram na pauta da modernidade brasileira.

A intenção, apesar de leviana, foi nobre. Já o resultado, a médio prazo, pode escorregar para uma ladeira perigosa e não prevista. «Discriminação positiva» é conceito ambíguo: positiva ou negativa, discriminação será sempre discriminação. Para subir de um lado, a gangorra tem de descer do outro. A cada vez que um grupo de cidadãos for privilegiado, a lógica elementar ensina que outro grupo será obrigatoriamente defraudado.

Stop racismo!

Stop racismo!

Políticas desse jaez trafegam na contramão do processo civilizatório ― são danosas para a consolidação de um sentimento de unidade nacional. Pelo contrário, podem atiçar melindres raciais, semear ressentimentos e abalar a concórdia que costumava reinar entre nós.

Se o nível de instrução pública é baixo, que se faça o necessário para elevá-lo. Dar como favas contadas que alguns são menos instruídos que outros unicamente por terem cor de pele diferente é generalização barata, uma falácia, uma ofensa. Estamos cutucando a onça com vara curta. Cuidado, ela pode se enervar!

Que a aragem leve do novo ano sopre sabedoria a nosso legislador. Mais vale recuar enquanto é tempo. Feliz ano-novo a todos!

V como Velocidade

José Horta Manzano

Sigismeno é boa gente, mas meio bobão. Embora seja muito aplicado, atencioso e curioso, a compreensão de certas coisas lhe escapa. Para compensar, o que lhe falta de cultura sobra-lhe de boa vontade. É um tipo agradável.

Hoje, logo de manhã, leu uma chamada do Estadão online que lhe deu nó nos miolos. A manchete associa o nome de Ayrton Senna ― o símbolo de um Brasil veloz e triunfante ― a um reles congestionamento de tráfego, símbolo de um Brasil lento e descrente.

Eu lhe expliquei que, assim que o glorioso campeão de velocidade sobre quatro rodas desapareceu num trágico acidente, seu nome havia sido dado à antiga Rodovia dos Trabalhadores. A intenção, naturalmente, era ligar o nome do corredor a uma estrada por onde se costumava transitar em alta velocidade.

Sigismeno, que não sabia disso, olhou-me muito espantado. Ele me perguntou por que tinham «desomenageado» (não reparem, Sigismeno inventa neologismos de vez em quando) todos os trabalhadores para homenagear um só. Quis saber se uma só figura podia ser mais importante que todos os outros reunidos. Fiquei sem saber responder.

Chamada do Estadão de 29 nov° 2013

Chamada do Estadão de 29 nov° 2013

Refletindo um pouco mais sobre o caso, concluí que realmente não faz sentido, numa cidade que se expande a cada dia, dar preferência a desnomear logradouros tradicionais para honrar novos ídolos. Teria sido tão mais simples dar o nome do campeão a, digamos, um novo bairro. Um bairro inteiro!

Além de não desonrar todos os trabalhadores do Brasil, traria vantagem adicional: afastaria o vexame de ligar o nome de Senna ao de um congestionamento de tráfego.

É comum e compreensível banir estátuas e homenagens a heróis caídos em desgraça. Na antiga União Soviética, estátuas de Stalin desapareceram. Naquele país, até uma cidade mudou de nome: Leningrado recuperou seu primitivo nome de São Petersburgo. No Iraque, a imensa escultura representando Saddam foi posta abaixo. Na própria cidade de São Paulo, logo em seguida à implantação do regime republicano, a Rua da Imperatriz virou 15 de novembro, enquanto a Rua do Príncipe tornou-se Quintino Bocaiuva.

Já faz quase 20 anos que a estrada mudou de nome. Mas só hoje Sigismeno se deu conta disso. Ficou deveras chocado com a confiscação do nome antigo, perpetrada em detrimento de todos os trabalhadores. Há de ser para confirmar a tradicional máxima: rei morto, rei posto. Mesmo assim, não faz sentido. Trabalhador nunca foi rei no Brasil.

Se Sigismeno chegar a alguma conclusão, eu lhe conto.

Lá não exatamente como cá

José Horta Manzano

Antigamente, exportávamos café. Chegada a industrialização, incrementamos o comércio exterior vendendo chuveiros elétricos para a África e automóveis Passat para o Iraque.

A partir dos anos 1990, começamos a exportar gente. Levas de brasileiros sem formação partiram à conquista do mundo, numa onda migratória que não deixa de lembrar a dispersão de europeus pelo mundo 100 anos antes. Todos empurrados pelo mesmo aperto.

Um novo ítem está pronto para entrar na pauta de exportação: nossa vasta expertise em assaltos coletivos. Temos lá ampla experiência, um know-how preciso e precioso, ainda longe do alcance de todo o mundo, como se verá.Interligne 23

O profissionalismo
Em parcas linhas, a Folha de São Paulo nos informa que 3 bandidos puseram suas mãos à obra em frente ao Aeroporto de Congonhas ― um dos campos de pouso mais movimentados do País. Promoveram um arrastão e levaram os pertences de pelo menos 5 pessoas. Em seguida, escafederam-se.

O caso foi registrado no distrito, mas nenhum dos agredidos julgou útil comparecer à delegacia para formalizar queixa. Ponto para os bandidos, que provavelmente jamais serão identificados. Isso é trabalho bem feito.

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O amadorismo

Bandido mascarado

Bandido mascarado

Este mesmo fim de semana, 4 bandidos aprendizes tiveram a brilhante ideia de levar a cabo um arrastão num restaurante chinês da região parisiense. O acontecimento, fora de moda desde a invasão dos bárbaros, mereceu colunas inteiras de todos os grandes quotidianos franceses. Rádio e televisão não deixaram de noticiar um dos primeiros exemplos da nova e exótica modalidade de crime.

A prova de que os autores do «malfeito» desconhecem o moderno jeito brasileiro de arrastar e continuam confinados ao modus faciendi do século XIX é o fato de se apresentarem mascarados. Fica clara a influência da bandidagem de cinema, popularizada por Holywood desde os anos 30. Isso é coisa de jovens que assistiram demais a programas de tevê.

Caubói mascarado

Caubói mascarado

Imaginem que, para preparar o ataque, os quatro haviam roubado um automóvel na tarde do mesmo dia. Eu disse roubado, não furtado: fizeram descer a proprietária com seu bebê nos braços e levaram o carro.

Terminado o arrastão, os aprendizes não encontraram nada melhor a fazer do que abandonar e incendiar o carro roubado, bem no bairro onde viviam. Espertos, não? Fogaréu, correria, gritos, espanto. Alertada, a polícia chegou rápido, extinguiu as chamas, interrogou testemunhas. Três dos larápios foram logo presos. O quarto, parece história cômica, havia esquecido seus documentos dentro do carro roubado. É de dar dó, coisa de principiantes, tsk, tsk. Não precisou nem a polícia procurar. O elemento se dirigiu ao distrito e se entregou de livre e espontânea vontade.

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É chegada a hora de instaurar um verdadeiro programa de intercâmbio de experiências, digamos, arrastatórias. É uma questão de solidariedade companheira, de dar a mão a quem precisa.

Afinal, o Brasil, que já atingiu patamar de total desenvolvimento e de excelência nesse quesito, tem obrigação moral de prestar assistência a bandidos emergentes como esses da França.

A desigualdade entre as duas sociedades está ficando insuportável.

A intervenção

José Horta Manzano

Quem examinar um mapa do Oriente Médio atual, com seus países bem delimitados e desenhados em diferentes cores, dificilmente se dará conta de que aquela partilha territorial é criação totalmente artificial.

Desde tempos imemoriais, a extremidade leste do Mediterrâneo foi habitada. Para lá convergiram populações vindas de horizontes diversos, cada qual com sua língua, seus costumes, suas tradições, sua religião.

Seja pela fertilidade de alguns de seus vales, seja por razões religiosas, seja ainda por sede de poder econômico, muitos se interessaram por aquelas terras ― tanto gente miúda, quanto poderosos. Desde os sumérios e os hititas, muitos povos habitaram a região. Até mesmo os romanos estenderam seus domínios até lá, ao conquistarem a orla mediterrânea do Oriente Médio.

Após a débâcle de Roma, Constantinopla, a atual Istambul, tornou-se o centro de gravidade. Dali saíam as ordens e ali chegavam os impostos, que é o que mais interessava.

A partir do século X, levas de população turcomana provenientes da Ásia Central arribaram e fincaram pé no extremo leste da Anatólia, a península onde se assenta a Turquia atual. Era um povo aguerrido. Seus chefes tinham sede de expansão.

Em cinco séculos, conquistaram toda a Anatólia, tomaram Constantinopla, desbancaram o Império Romano do Oriente, subjugaram a península balcânica e chegaram às portas de Viena. O Oriente Médio, do Mar Negro ao Egito, da Arábia Saudita à Tunísia foi submetido a uma dominação turca que duraria 400 anos. Formou-se o longevo Império Otomano.

Império Otomano

Mas o mundo gira. Quando estourou a Grande Guerra, em 1914, o sultão de Constantinopla tomou uma decisão que levaria ao desaparecimento do império: aliou-se à Alemanha. Perderam a guerra. O Tratado de Sèvres (1920) e o Tratado de Lausanne (1923) sacramentaram o esfacelamento da velha potência e sua partilha entre os vencedores.

A região foi retalhada na prancheta pelos vencedores. Inglaterra e França, potências dominantes à época, decidiram quem ficaria com o quê. E desenharam o contorno dos novos países. Raças, religiões, costumes, línguas e tradições não foram a preocupação maior dos novos mandatários.

O resultado foi a criação de países artificiais. A Síria, o Iraque, a Jordânia, o Líbano abrigam populações heterogêneas, que pouco têm a ver entre si. Dentro das fronteiras nacionais coabitam inimigos históricos.

Se um simulacro de coesão subsistiu até nossos dias, foi porque cada um dos novos países foi governado com mão de ferro por ditaduras ou governos pra lá de autoritários. Foi uma calma de aparência, como a que se viu na  Iugoslávia de Tito, na Espanha de Franco, na Tchecoslováquia comunista.

Nós outros, que vivemos em nações mais uniformes e que desconhecemos tensões étnicas ou religiosas, temos dificuldade em entender a realidade daquela região. Em palavras mais chãs, temos a impressão de que todos são meio malucos por ali, que se agridem sem real motivo.

É um pouco mais complicado que isso. A Síria, como o Iraque e os vizinhos, abriga nações díspares. Um curdo da Síria deve sentir-se tão sírio quanto um escocês se sente inglês. Certos xiitas de Basra consideram-se tão iraquianos quanto certos bascos se consideram espanhóis. A região é uma verdadeira colcha de retalhos.

Estes dias, o presidente da França e o primeiro-ministro britânico ameaçaram fornecer armas aos oponentes do mandachuva sírio. À primeira vista, parece uma decisão justa. Se a ditadura pode, impunemente, massacrar seu próprio povo, por que razão não auxiliar os pequeninos a se defenderem?

Desgraçadamente, o problema não é assim tão simples. Se, por hipótese, o ditador for apeado do poder, quem tomará seu lugar? Qual das minorias sobrepujará as demais? Vamos simplesmente trocar uma ditadura por outra?

Longe de mim aprovar que velhos, mulheres e crianças sejam trucidados nessa guerra sem fim. Que o ditador abandone seu trono e vá curtir o resto de seus dias nalgum paraíso ― há sempre gente interessada em acolher endinheirados. Mas como ficará depois?

Não tenho a resposta, muito menos o poder de interferir. Não tenho muita fé, mas sempre resta um fio de esperança de que os grandes deste mundo estejam pensando nisso.

Como em 1918, são justamente a França e a Grã-Bretanha as potências que se dizem prontas a intervir. Que intervenham, pois, e que ponham fim ao massacre. E que redesenhem o mapa da região levando em conta, desta vez, o interesse das populações. Não será tarefa fácil.

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Nota: Um artigo do Estadão de 17 de março, de autoria de Guilherme Russo, vem corroborar minha opinião. Quem se interessar vai encontrá-lo aqui.