O king

José Horta Manzano

Uma parte dos britânicos tem o sentimento de que a monarquia, ainda que constitucional, é tradição empoeirada, que não combina com os tempos atuais. As gerações mais antigas são mais complacentes e não se sentem chocadas pelos gastos engendrados pela família real. Já os mais jovens são menos indulgentes.

Nos últimos setenta anos, toda discussão séria em torno da abolição da monarquia foi inibida pela personalidade carismática da rainha Elizabeth II. O magnetismo da monarca era tão grande que abafou toda dissensão. A maioria dos britânicos sentia orgulho de sua rainha e, colateralmente, da família real – apesar das estrepolias. (Ou talvez por causa delas.)

Esta semana, ainda estamos em período de luto. A comoção provocada pelo falecimento de Elizabeth II ainda paira no ar. O reino tem novo rei, mas, na verdade, a ficha ainda não caiu. Só a partir da semana que vem, quando a poeira baixar, é que os súditos vão pouco a pouco encarar a nova realidade.

Uma pesquisa do site britânico YouGov, feita no primeiro semestre deste ano para aferir a popularidade dos membros da família real, informa que o (agora) rei Charles III ocupava um obscuro 12° posto. Em primeiro, aparece a rainha, com 68% de popularidade. Seguem-se os filhos de Charles, as noras, a irmã (Anne), a esposa (Camilla) e até algumas sobrinhas. Charles alcançava apenas 34% de popularidade, nível muito baixo para um rei.

A emoção da perda da rainha fez que a popularidade do novo rei subisse imediatamente. Mas não há que se deixar enganar por esse movimento. O que sobe muito rápido hoje pode descer amanhã com a mesma rapidez. Bastam dois ou três escorregões do novo monarca.

Ele nem esperou passar o período de luto para começar a escorregar. Pelo menos em duas ocasiões, já mostrou diante das câmeras toda a sua arrogância e todo o seu mau humor. Comporta-se como um ser superior, que todos são obrigados a temer e a reverenciar.

Num dos episódios, no momento de assinar uns documentos, a caneta vazou. O soberano deu um piti, saiu praguejando, largou a esposa desamparada falando sozinha.

O outro vexame também ocorreu na hora de assinar papéis. (Francamente, parece que Charles tem um problema com canetas.) Incapaz de encontrar um lugar na mesinha para acomodar a bandejinha com as canetas, fez uma careta de impaciência, sacudiu a bandeja para chamar um serviçal e obrigou-o a vir correndo tirar o pequeno porta-canetas para ele conseguir assinar. Foi um acesso de arrogância explícita.

A continuar desse jeito, sua popularidade vai pro beleléu, e a aventura pode terminar mal. A Grã-Bretanha, que já teve seu Brexit, pode perfeitamente ter um Kingxit.

Cinco anos de adiamento

“Frexit”, o Brexit da França
Objetivo do programa da candidata Marine Le Pen

 

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense de 30 abril 2022

Na Europa, desde a derrota do nazi-fascismo, ao final da Segunda Guerra, as ideias da extrema direita foram guardadas em geladeira. Não é que tenham sido erradicadas, longe disso, que a capacidade do ser humano de armazenar baixos instintos é infinita. É que, durante as décadas seguintes, toda alusão a essas ideias trazia lembranças dolorosas a uma população que havia presenciado a guerra e seu cortejo de morte e miséria. Por longos anos, nada que pudesse trazer à memória bombardeios e privações teve lugar à mesa.

O tempo passou e a geração que havia assistido ao desastre provocado por ideias extremistas foi pouco a pouco desaparecendo. No entanto, mesmo com o rareamento de testemunhas oculares, a ressurgência do extremismo de direita continuou tímida: um ameaço de surto aqui, outro acolá, nada mais. Nem a débâcle da União Soviética e o abandono da doutrina comunista foram capazes de sacudir o torpor da direita extrema.

Desde sempre, ideias de retraimento, de fechamento sobre si mesmo, de defesa de uma hipotética pureza étnica, de cerceamento à livre circulação, de hermetismo diante da imigração circularam em surdina. Mas permaneceram subjacentes, como bomba à espera de um detonador. Um dia, sem que ninguém tivesse antecipado, surgiu o estopim. Veio personificado no dirigente do país mais poderoso do planeta. Chamava-se Donald Trump.

Os que votaram por sua reeleição devem julgar que foi bom presidente. Já os 7 milhões de votos de diferença com que Joe Biden o superou amortecem essa percepção. Na política externa, o homem fez estragos. Pirotecnia, como a que pôs em prática com o dirigente da Coreia do Norte, nem sempre é o melhor caminho para resolver problemas internacionais.

O pior legado de Trump foi sem dúvida sua adesão explícita à doutrina do fechamento sobre si mesmo, escancarada pela tentativa de construção de um muro de contenção na fronteira por onde entram os indesejados. Sua desenvoltura desinibiu movimentos subterrâneos ao redor do mundo, que criaram coragem para se expor à luz do meio-dia.

Dirigentes de figurino abertamente reacionário – como o italiano Salvini, o húngaro Orbán, o esloveno Jansa e o próprio Bolsonaro – não teriam se sentido tão à vontade para subir ao palco se Trump não lhes houvesse antes carpido o terreno. A expressão é batida, mas continua verdadeira: Trump abriu a caixa de Pandora. Os males lá trancafiados despertaram de um torpor de sete décadas.

Comparado com o de outros países da Europa, o sistema político francês é sui generis. Por um lado, o presidente da República, eleito pelo sufrágio popular direto, detém poder muito grande, herdeiro que é de um rei guilhotinado há dois séculos. Por outro lado, o voto distrital puro aliado a um bipartidarismo de facto tendem a dar ao presidente maioria no Parlamento, tornando-o (quase) tão poderoso como os reis do passado.

A campanha eleitoral francesa foi acompanhada com lupa pela União Europeia. De fato, caso a vitória fosse favorável à extrema direita de Marine Le Pen, a Europa, como a conhecemos, deixaria de existir. Embora a candidata extremista tenha suavizado o discurso e arredondado os ângulos de seu programa, mantinha a firme intenção de retirar seu país da Otan e da Europa. Mais que isso, tencionava pôr fim à livre circulação das gentes, restabelecer os controles nas fronteiras, abandonar o euro, ressuscitar o finado franco francês. E, para coroar, aproximar a França da Rússia e firmar pacto militar com Putin.

Se a União Europeia resistiu ao Brexit, não resistiria à saída da França – membro fundador, o maior em superfície, o segundo em economia, o único detentor de armamento nuclear. Para Vladímir Putin, uma vitória de Madame Le Pen seria notícia estupenda. Seria prenúncio do enfraquecimento e talvez do desmonte da União Europeia, sonho acalentado por Moscou. Seria um revés para Otan, organização que é pedra no sapato de Putin. Por fim, seria um sinal verde para candidatos a autocrata ao redor do globo, um dos quais aliás ocupa atualmente o Palácio do Planalto.

Desta vez, passou. Mas foi por pouco. O mundo democrático ganhou cinco anos de adiamento, a duração do novo mandato de Macron. Em 2027 voltamos a conversar. Se, daqui até lá, um conflito nuclear não tiver extinguido a humanidade.

Au pair

José Horta Manzano

Pouco conhecida entre nós, a expressão au pair define uma atividade difundida e bastante apreciada pelos jovens europeus. A falta de intimidade com a expressão, faz que ela seja às vezes traduzida por ‘babá’, o que não corresponde necessariamente à realidade.

A imagem de um rapaz (mais frequentemente de uma moça) au pair surge no século 19. A construção de estradas de ferro facilitou muito as viagens. Trechos que demandavam dias de estrada passaram a ser percorridos em poucas horas – um achado. O mundo ficou mais perto, e a mocidade se empolgou.

Aos poucos, foi se firmando nova atividade para a juventude. A jovem au pair é aquela que passa algum tempo – geralmente um ano – no exterior, hospedada na casa de uma família com crianças. O trato é paritário (=au pair), ou seja: a moça tem casa, comida e roupa lavada; em troca, dá um pouco do seu tempo para cuidar das crianças e ajudar na arrumação da casa.

Em geral, o principal interesse da jovem au pair não é tanto cuidar de criança, mas aprender a língua, num regime de mergulho total. A família costuma pagar o curso intensivo de língua e dar horas livres para a hóspede poder frequentá-lo. A jovem recebe, além disso, uma mesada, coisa pouca, que não chega a ser um salário, mas dinheiro de bolso.

De origem francesa, a expressão au pair é utilizada na maioria das línguas, sem tradução nem adaptação. Na origem, o termo era usado unicamente em economês, para tratar de paridade entre moedas.

Até pouco tempo atrás, grande parte das jovens candidatas a uma colocação como au pair sonhavam com a Inglaterra. É natural, a atração da língua inglesa supera a das demais. Só que, passado o Brexit, as autoridades britânicas tomaram uma decisão polêmica.

Talvez com intenção de melhorar as estatísticas de desemprego, decidiram despertar à força vocações de mocinhas britânicas candidatas a uma colocação au pair dentro das fronteiras do Reino Unido. Para aumentar a atratividade da “profissão”, promoveram-na à categoria de profissão especializada, com piso salarial fixado em 20 mil libras por ano.

Não sei se vai dar certo. Por um lado, jovens britânicos não parecem muito interessados em mergulhar no ‘aprendizado’ da própria língua materna; preferem estudar na Espanha, na França ou na Itália. Por outro, o elevado piso salarial é proibitivo para uma família inglesa comum. O interessante da atividade era justamente essa informalidade, esse toma lá dá cá (no bom sentido).

As novas regras britânicas vão conseguir frustrar nas duas pontas. As famílias inglesas que gostariam de contratar uma estrangeira para cuidar das crianças não vão mais poder fazê-lo. E os jovens europeus, que adorariam passar um ano no Reino Unido aprendendo inglês, vão ter de saciar sua sede de viagens em outro lugar.

De quebra, fecha-se um canal barato de projeção da língua inglesa. Está aí uma decisão mal ajambrada, em que todos saem perdendo.

As pizza

José Horta Manzano

«Vou botar um petista na PGR?» – foi a pergunta retórica feita por um desabusado bolsonarinho, aquele que é senador. O moço é um dos integrantes do quarteto que nos governa. Os maiorais da República, como todos sabem, são doutor Bolsonaro mais os três rebentos mais velhos.

Antes de qualquer outra consideração, é de sublinhar que o senador usou o verbo na primeira pessoa. «Eu vou botar», é assim que vai a frase. Ainda que pareça irreal, dá pra sentir que não se trata de bravata. O topo do governo está loteado entre os quatro elementos mais preeminentes do clã. A nomeação do novo procurador-geral da República é atribuição pessoal do zero-um.

A fala do bolsonarinho me fez lembrar Mrs. Theresa May, aquela que, ao assumir o posto de primeira-ministra do Reino Unido, disse alto e bom som: ‘Brexit means Brexit (=Brexit quer dizer Brexit). Se o senador disse ‘eu vou botar’, é porque quis dizer ‘eu vou botar’. Não é força de expressão.

Voltando às qualidades exigidas do novo titular da PGR, o pronunciamento do senador é sintomático de uma surpreendente mudança nas relações entre brasileiros. Essa guinada não começou agora, nem é obra do atual governo. Eu a situaria no ponto em que o mensalão começou a pegar fogo, por volta de 2014 ou 2015.

De lá pra cá, novo ingrediente foi adicionado ao balaio de contradições que alimentam nossos fantasmas. Além das oposições tradicionais – pobres x ricos, pretos x brancos, nortistas x sulistas – novo antagonismo veio apimentar o tabuleiro social do Brasil. O fato de ser (ou não ser) petista passou a pesar na balança. Mais do que devia.

As famílias de antigamente eram numerosas. Tive muitos tios, tias, primos próximos, primos distantes, outros parentes e agregados. Este era janista. Aquele, adhemarista. Havia os juscelinistas. Me lembro de um tio getulista roxo, como se dizia. E assim por diante, cada um tinha suas simpatias e suas ojerizas. Por que falo nisso? Pra contar que, naqueles tempos concordes, podiam todos sentar-se em volta da mesa de almoço de domingo e, em seguida, papear no terraço diante de uma xícara de café. Não havia o menor risco de preferência política terminar em discussão, briga ou contrariedade.

Hoje em dia, é mais problemático. Juntar, em volta da mesma mesa, petistas e não petistas é arriscado. Uma ousadia dessas podia até terminar como no Samba do Bexiga, de Adoniran Barbosa, com “uma baita duma briga” e as “pizza que avoava”.

Ode ao ódio

José Horta Manzano

Quando, em 1785, o poeta alemão Friedrich Schiller deitou no papel os versos que viriam a ser conhecidos como An die Freude (=Ode à Alegria), estava longe de imaginar o destino fabuloso que teriam aquelas poucas linhas.

Da mesma forma, quando Ludwig van Beethoven, tempos depois, poria música em cima dos versos do poeta e os incluiria ao último movimento de sua 9Sinfonia, não podia sonhar que aquela melodia se tornaria um dia o hino de uma Europa pacificada e unida. Logo ele que, contemporâneo de Napoleão, passou a vida num continente conflagrado.

E nem em delírio algum dos dois ousaria supor que a obra sofreria, duzentos e tantos anos mais tarde, agressão tão pesada como a que sofreu em 2 de julho de 2019. E justamente no recinto aveludado do Parlamento Europeu! A peça de Schiller e Beethoven serviu de fundo musical para o espetáculo mais incivilizado e deprimente que aquela Casa já conheceu.

Três anos atrás, como se sabe, um plebiscito revelou que metade do povo britânico queria abandonar a União Europeia enquanto a outra metade preferia continuar no barco comum. A estreita diferença entre o ‘sim’ e o ‘não’ ao Brexit tem dado margem a muito conflito. Dois primeiros-ministros já caíram por isso. O divórcio, que já devia estar consumado, continua emperrado. Alguns sugerem a organização de nova consulta. Desorientada, a política britânica vive um deus nos acuda.

Faz algumas semanas, foram eleitos os novos deputados europeus, que são, na União Europeia, os únicos representantes eleitos diretamente pelo povo. A câmara é composta de 751 deputados. Cada país tem direito a um contingente correspondente a sua população. Dos 79 deputados britânicos, 29 são afiliados ao partido favorável ao Brexit, cujo lider é Mr. Nigel Farage. Vivem uma situação surreal: embora sejam contrários à permanência de seu país na União Europeia, têm assento garantido no parlamento europeu.

A decência ensina que, quando o deputado está numa situação delicada como essa, se faça o mais discreto possível. Faltar às sessões, em sinal de protesto, é solução aceitável. Pois não foi o caminho escolhido pelos membros do partido do Brexit no dia 2 de julho, na sessão inaugural da nova legislatura. Estavam todos presentes à sessão solene, com direito a música ao vivo e até soprano para abrilhantar a execução do hino europeu. (É justamente a Ode à Alegria, obra bicentenária de Beethoven e Schiller.)

Assim que a música começou, no entanto, os deputados britânicos do partido do Brexit puseram-se de pé e viraram as costas para o plenário, numa atitude de escracho e desrespeito, não habitual em ambientes solenes. E não foi só. Cada um deles já tinha instalado uma bandeirinha britânica, bem visível sobre a escrivaninha, ato que não combina com um ambiente pan-europeu e supranacional.

Não se deve desrespeitar um hino nacional, ainda que seja de país estrangeiro. O que os deputados brexistas fizeram foi ofensa gravíssima a todos os europeus. Imagine se, durante uma sessão do parlamento inglês, alguém desse as costas durante a execução do ‘God save the Queen’. Perigava ser linchado. Pois foi exatamente o que fizeram os deputados do Brexit. Coisa de gentinha.

O comentário de um leitor do site da BBC acertou na mosca: eles certamente não dariam as costas ao salário nem às mordomias do cargo. Ao final do ultraje explícito, não ganharam um voto a mais. O desaforo só acentuou a antipatia que eles já despertam em muita gente. Foi tremendo erro de marketing. Além de gentinha, são pouco inteligentes.

Aqui está um vídeo de menos de um minuto em que a BBC flagra o momento do insulto.

Brexit ‒ 9

José Horta Manzano

Muito britânico há de estar mordendo a língua por ter votado, em 2016, em favor do Brexit. Ou por não se ter dado ao trabalho de ir votar naquela ocasião. Fato é que o divórcio entre o Reino Unido e a União Europeia se apresenta muito mais complicado do que se podia imaginar. A complexidade da situação surpreende a todos, britânicos e demais europeus.

Faz tempo que a data teórica de conclusão da separação está marcada: será dia 29 de março, daqui a poucos dias. O Reino Unido está numa encalacrada, numa situação assaz desconfortável. Todas as saídas parecem ruins. Theresa May, a primeira-ministra britânica, tem aparecido rouca, com sinais de exaustão. No capítulo mais recente desta desgastante novela, o parlamento britânico rejeitou ontem o acordo de saída que ela havia costurado com Bruxelas. Meses de negociações foram por água abaixo.

Nunca se sabe o que pode acontecer de uma hora para a outra, mas o mais provável é assistirmos a um divórcio seco, sem acordo. Se isso ocorrer, desenha-se um cenário que prejudica a todos. Uma fronteira física será instalada entre a República da Irlanda e a britânica Irlanda do Norte. A circulação de pessoas estará entravada. No Reino Unido, o preço dos produtos europeus subirá devido aos impostos de importação. Controles alfandegários, que haviam desaparecido há mais de 40 anos, voltarão a existir ‒ França e Bélgica, os países mais próximos das Ilhas Britânicas, já estão se preparando para ressuscitar os antigos postos aduaneiros.

Resta a opção de convocar os britânicos a votar de novo, com a esperança de que, desta vez, rejeitem o Brexit. Mas é possibilidade remota. Não se pode votar, votar de novo, e continuar votando até que o resultado seja aquele que se espera. Se houvesse um segundo voto e se o resultado fosse diferente do primeiro, sempre haveria cidadãos a exigir um terceiro voto, depois um quarto, um quinto. Até quando?

Não. A besteira foi feita e é irremediável. Com ou sem acordo, o divórcio se fará. Daqui a vinte ou trinta anos, se a União Europeia ainda estiver de pé, quem sabe o Reino Unido poderá pedir nova filiação. Daqui até lá, é cada um no seu canto. Sem choradeira.

Pontos de atrito

José Horta Manzano

Ao redor do globo, há numerosas regiões onde as populações vivem em tensão crônica. Na raiz, pode estar antagonismo religioso, étnico, linguístico, político ou histórico. Pode ainda haver uma combinação de mais de um desses fatores.

O caso mais conhecido, mais midiatizado e de maior poder explosivo é, sem sombra de dúvida, o conflito que envolve Israel e seus vizinhos. Já centenária, a tensão começou a nascer à época em que começaram a chegar, vindo principalmente da Europa, imigrantes judeus. A situação naquela região é bem mais complicada que um duelo: a soma de interesses envolvidos tece uma tela emaranhada. A solução do problema ‒ se é que um dia será encontrada ‒ não é pra já.

As tensões na Irlanda do Norte, que deram origem a ondas de atentados e de assassinatos políticos no último quartel do século XX, tinham sido acalmadas desde que Irlanda e Reino Unido passaram a integrar a União Europeia. A convivência entre católicos e protestantes, entre separatistas e unionistas, tinha se tornado habitual e sem solavancos. Isso durou até que, por um descuido da maioria silenciosa que se omitiu de votar, os eleitores britânicos deram voto favorável ao Brexit.

Os britânicos e os demais europeus tomaram um susto. Mas não havia nada a fazer, que o povo havia votado. Desde então, as negociações pra fixar os termos do divórcio têm sido duras, complicadas. Afinal, um casamento de 45 anos não se desmancha assim, sem mais nem menos. Não basta cada um levar sua escova de dentes. Há uma infinidade de pontos a discutir.

O problema mais espinhoso, todo o mundo já sabia desde o começo das negociações, é a questão da fronteira entre as duas Irlandas, a do Norte e a independente. É outro exemplo de atrito regional insolúvel. A solução, seja ela qual for, pode até agradar a um lado mas certamente vai desagradar ao outro.

O único jeito de pacificar a região seria o povo britânico voltar atrás e renunciar ao Brexit. Mas, a depender de Theresa May, nem pensar. Portanto, as brasas estão sendo atiçadas na Irlanda do Norte. É só questão de tempo pra irromperem as labaredas.

Neonazismo & neofascismo

José Horta Manzano

Pergunta:
Como avalia o crescimento de Jair Bolsonaro, um candidato da extrema direita, no Brasil?

Resposta:
A crise estourou em 2008 e o que vemos agora são seus efeitos. O Brexit tem que ver com esta situação, como Trump e o fenômeno de Bolsonaro. Só que lá é neonazismo e aqui é neofascismo.

A pergunta foi formulada pelo entrevistador do jornal espanhol El País. E a resposta, com aspecto e gosto de salada mista, foi dada por doutor Fernando Haddad, em longa entrevista concedida ao jornal. Saiu na edição deste domingo, 14 de outubro.

Não acredito que doutor Haddad, professor universitário e dono de boa formação humanística, ignore o real significado dos termos neonazismo e neofascismo. Fosse um Lula qualquer a invocar em vão esses conceitos tenebrosos, a gente poria na conta da ignorância. Mas doutor Haddad, não. Se pronuncia inverdades, é por refinada má-fé. Mostra seu lado finório.

É obrigatório constatar que o candidato assimilou perfeitamente o irritante costume petista de atirar poeira nos olhos do interlocutor a fim de baralhar a mensagem. A resposta que ele deu ao jornalista é acabado exemplo dessa tática. Como numa salada russa, o doutor misturou conceitos díspares.

Chamar Donald Trump de neonazista é ir longe demais. O homem é atabalhoado, elefante em loja de porcelana, autoritário, voluntarista, ignorantão, mas, de nazista, não tem grande coisa. Não se sabe de nenhuma manobra sua que empurrasse seu país na direção de uma Alemanha dos anos 1930.

Fascio littorio ‒ símbolo do fascismo

Dizer que o Brexit é fruto de ressurgência do nazismo é outro rematado exagero. O voto dos britânicos é fruto de um balaio de motivos ‒ saudades dos tempos gloriosos do Império Britânico, receio de perder o emprego para um polonês mal remunerado, sentimento difuso de que Bruxelas está legislando contra os interesses nacionais. O conjunto de razões não poderá, nem de longe, ser etiquetado de nazismo.

Quanto ao Brasil, sabemos todos qual é a razão pela qual doutor Bolsonaro está a um passo de ser eleito por aclamação. É antipetismo puro, a não confundir com neofascismo. De fato, a maior parte dos votos que serão dados ao capitão, no espremer do suco, não lhe pertencem. Poucos serão os eleitores que compactuam com hipotético viés fascista do candidato. Vota-se simplesmente contra o Partido dos Trabalhadores.

Não contente em atazanar a vida dos que aqui vivem, o PT exporta perversidade. Contribui, assim, para degradar a imagem do Brasil lá fora e ainda alimenta o desolador cenário de desinformação que domina a mídia internacional. É revoltante.

Brexit ‒ 8

José Horta Manzano

A Irlanda do Norte é um caso muito sério. É um país, pero no mucho. São seis pequenos condados que, agrupados, formam hoje «nação constitutiva» do Reino Unido. Congregando, grosso modo em partes iguais, cidadãos protestantes e cidadãos católicos, a região sempre foi um barril de pólvora pronto a explodir à primeira faísca.

O país vive fragmentado entre as duas comunidades. Por um lado, os católicos não se oporiam à ideia de a província passar a fazer parte da República da Irlanda. Por outro, os protestantes, temendo tornar-se minoria desprezível, aferram-se à coroa britânica e preferem continuar firme como súditos da rainha Elisabeth II.

Desde sempre, as práticas religiosas falaram mais alto que a língua, a história e a cultura comuns. A contar dos anos 1970, emboscadas e atentados tingiram de sangue o quotidiano. A região entrou em convulsão e caiu num círculo vicioso: a violência atiçava o ódio, que nutria a violência. Era impossível antever o fim das hostilidades. Permanecendo as causas, é natural que o efeito permanecesse.

A entrada conjunta na União Europeia da República da Irlanda e do Reino Unido (incluindo a Irlanda do Norte) foi passo importante para a pacificação da região. De repente, Grã-Bretanha, Irlanda e Irlanda do Norte integravam uma entidade maior, supranacional. A ficha até que demorou a cair, mas lá pelo fim do século XX, cansados de guerra, católicos e protestantes norte-irlandeses chegaram a uma trégua que já ninguém ousava esperar. Embora a desconfiança mútua perdure, já faz duas décadas que parecem ter aprendido a conviver.

Eis senão quando… uma infeliz decisão britânica vem perturbar a paz da região. Refiro-me ao plebiscito que deu origem ao Brexit ‒ a saída do Reino Unido da União Europeia. Para a Irlanda do Norte, é terrível desastre. Quarenta anos de união aduaneira haviam apagado a noção de fronteira entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte. As gentes e as mercadorias passavam de um lado para o outro sem pedir licença. Até os postos de fronteira haviam desaparecido.

Depois do Brexit, as duas Irlandas vão voltar ao statu quo ante bellum, ou seja, à situação em que se encontravam antes da adesão à UE. Voltam a ser países separados. Dado que uma das Irlandas permanece na UE enquanto a outra vai embora, a fronteira entre elas torna-se fronteira exterior da Europa. Uma tragédia!

O potencial explosivo da nova situação é tão forte que está emperrando o acordo de divórcio entre o Reino Unido e a UE. Irlandeses ‒ do norte e do sul ‒ gostariam que a fronteira continuasse como está: invisível, permeável, aberta e amiga. Mas a União Europeia não pode admitir que sua fronteira externa, ainda que seja num curto trecho, esteja desguarnecida.

O dilema é cabeludo. Ninguém sabe qual será a solução. Seja ela qual for, descontentará uma das partes e deixará sequelas.

Da força das pesquisas

José Horta Manzano

Uma discussão se alevanta, estes últimos tempos, sobre pesquisas de opinião. Computados os erros e os acertos dessas previsões, muitos acreditam que melhor seria se deixassem de ser publicadas. Já outros, alegando a liberdade de informação do cidadão, lutam pela manutenção da ordem atual.

No Reino Unido, o fiasco das sondagens por ocasião do plebiscito sobre o Brexit deu origem à atual discussão. Até a véspera do voto, todos os institutos de sondagem davam como certo que, por folgada maioria, o eleitorado recusaria o divórcio. Na véspera, foram todos dormir tranquilos. Imaginando que o assunto estava resolvido, muitos nem se abalaram pra ir votar. Os que queriam que o país permanecesse na União Europeia estavam tranquilos. Os demais, conformados.

Dia seguinte, catapum! Ninguém acreditava no que tinha acontecido. Grupos saíram às ruas, uns pra expressar euforia, a maioria pra gritar indignação. O malogro das pesquisas fez que muitos passassem a olhar os institutos com desconfiança e desprezo.

Transpondo o problema para o contexto brasileiro, o assunto dá que pensar. A seis meses da eleição presidencial, temos três ou quatro candidatos declarados e mais uma dúzia de «candidatos» entre aspas. Um deles está na cadeia. Um outro, sentado na presidência. Outros ainda são réus na justiça criminal.

Do portal Poder 360
Um candidato ainda não declarado já é dado como eleito

O quadro é baralhado e confuso. Assim mesmo, institutos de pesquisa já começaram a publicar os resultados de seus trabalhos. Não há como negar que, num cenário nebuloso como o atual, os supostos candidatos que aparecem bem nas pesquisas tendem a atrair a simpatia de eleitores perdidos. É inegável que elas podem, sim, influenciar os votantes. Afinal, ninguém quer «jogar fora o voto» nem «perder a eleição».

Embora ainda falte meio ano para o dia do voto, já se fala em candidatos «que não decolam». Na outra ponta, institutos já dão como vencedores candidatos que nem sequer se declararam. A meu ver, essas pesquisas, além de não servir pra nada, ainda dão nó na cabeça de muita gente. Acabam distorcendo os resultados.

Que partidos façam sondagens internas, está muito bem. Cada um deles tem o direito de saber como está se comportando o candidato que lançou. Já não vejo bem a utilidade de divulgar pesquisas ao grande público. Elas acabam orientando o voto de muita gente, num desvio do objetivo primeiro. Sem contar que, segundo as más línguas, certos institutos, subordinados a determinados interesses, organizam os questionários de modo a favorecer quem lhes dá ordens.

Constato que, segundo as pesquisas, já estão praticamente sentados no trono presidencial candidatos que ainda nem se declararam e dos quais não conhecemos as linhas básicas do programa de governo. Como é possível? Estaríamos elegendo candidato pela foto, como num concurso de Mr. Sorriso?

Rematado absurdo. Dependesse de mim, ficava abolida a publicação de pesquisas eleitorais.

Nossas eleições e a ingerência russa

José Horta Manzano0-Sigismeno 1

‒ Então, Sigismeno, quanto tempo sem conversar, hein!

‒ É verdade, andei meio sumido. Coisas da vida. Como é que vai você?

‒ Vai-se levando, Sigismeno. Vosmicê?

‒ Sempre indignado, caro amigo, sempre indignado. É a maneira que encontrei de me sentir jovem. Imagine que o ano de 1968, que marcou o Brasil e o mundo, completa o 50° aniversário. E poucos se lembram, pouco se fala daquele período. É uma pena. Quem esquece o passado está condenado a revivê-lo.

‒ Tem razão, é importante reter as lições do passado. É justamente isso que anda me preocupando.

‒ Em que sentido?

‒ Tem-se falado muito na ingerência russa nas mais recentes eleições americanas e no plebiscito que o Reino Unido organizou para decidir se ficavam ou se saíam da Europa. Sem falar na consulta selvagem que o governo provincial catalão convocou em outubro. Há quem garanta que a influência de Moscou distorceu o resultado de todas essas votações. Você se interessou pelo problema, Sigismeno?

‒ Claro, eu me interessei como todo o mundo. E acredito que uma pressão insistente e bem organizada exercida por meio de redes sociais pode, sim, perverter o voto. Principalmente quando a disputa é acirrada, com o colégio eleitoral dividido praticamente ao meio. Mas por que é que você anda preocupado com isso? Esses votos já ocorreram.

‒ É que este ano é nossa vez. Em outubro, teremos eleições para vários cargos, entre eles o mais importante: o de presidente da República. Se os russos influíram lá, podem perfeitamente fazer o mesmo aqui.

‒ Concordo com você. Poder, podem. Precisa ainda querer. Precisa «combinar com os russos» ‒ com o perdão de sucumbir ao trocadilho.

‒ Ora, Sigismeno, com um Lula candidato (ou um poste dele, que é a mesma coisa) não precisa nem combinar. Assim como agiram para apoiar o Trump, um candidato que lhes parecia mais interessante, podem perfeitamente apoiar um Lula.

‒ O Lula? E por que razão, criatura de Deus? Que interesse teriam os russos em facilitar a vitória do demiurgo?

‒ Ora, Sigismeno, me parece claro. O Trump é meio bobão, pouco interessado em política internacional, isolacionista. Em suma, tem todas as qualidades para agradar ao regime de Moscou. O Lula também é meio bobão. E venal. A mim, parece óbvio que a vitória do baixinho raivoso interessa aos russos.

‒ Pois eu não estou de acordo com você.

‒ E por que não, Sigismeno?

‒ Você há de se lembrar daquele episódio grotesco em que um (então) presidente Lula, mal aconselhado pelo assessor especial para assuntos internacionais, tentou interferir no caldeirão do Oriente Médio. Não se lembra?

‒ Lembro, sim, Sigismeno. Eles procuraram a cumplicidade do semiditador da Turquia e entraram no picadeiro como elefantes em loja de porcelana. Mas foi um fiasco total. Levaram puxão de orelhas de todo o mundo, até do governo de Israel. Acabaram desagradando a todos.

‒ Especialmente à Russia! Das grandes potências, o país de Putin é ‒ de longe ‒ o que maior influência exerce sobre aquela parte do mundo. Influência, aliás, que só faz aumentar com a retirada de Washington da cena internacional. Se a guerra terminou na Síria e se os djihadistas foram derrotados, foi em decorrência da intervenção russa.

‒ E o que é que isso tem a ver com eventual ingerência russa nas eleições brasileiras, Sigismeno?

‒ Ora, é simples. A última coisa que Moscou deseja é que sua hegemonia na região seja contestada. O Lula já mostrou que é capaz de tentar «resolver» sozinho o emaranhado do Oriente Médio, por obra e graça do Espírito Santo, com dois ou três discursos de efeito. Logo ele, o especialista em dividir as gentes entre «nós & eles», veja você a ironia. O fato é que se mostrou suficientemente ingênuo para fazer cócegas nos russos. Russo não brinca em serviço. O Oriente Médio tornou-se o quintal da casa deles. Não querem saber de interferência de ninguém, nem dos EUA, nem do Brasil, nem do Zimbábue.

‒ Então você não acredita que eles possam intervir nas nossas eleições a favor do Lula?

‒ Não, seria incoerente. Se o fizessem, estariam marcando desastroso gol contra. Se ingerência da Rússia houver, caro amigo, não será em favor do messias de Garanhuns. Será, ao contrário, em apoio ao candidato que estiver em melhores condições de derrotá-lo.

‒ É, Sigismeno, o que você diz faz sentido. Ninguém vai ajudar alguém que lhe pode atrapalhar a existência amanhã.

Brexit ‒ 7

José Horta Manzano

Você sabia?

A União Europeia, sucessora da Comunidade Econômica Europeia, não se resume a um prédio em Bruxelas povoado de algumas centenas de funcionários. Nestes 60 anos de existência, criou-se uma alentada burocracia e um emaranhado de dependências e instituições espalhadas pelo continente.

As agências da UE são organismos distintos das instituições propriamente ditas. São dezenas de entidades jurídicas independentes, criadas para executar tarefas específicas de apoio. Entre elas, estão: a Agência do Meio Ambiente, com sede em Copenhague (Dinamarca); o Observatório de Drogas e Toxicomania, que funciona em Lisboa; a Autoridade de Segurança Alimentar, localizada em Parma (Itália); a Agência de Produtos Químicos, estabelecida em Helsinque (Finlândia).

No total, são cerca de cinquenta entidades, a maioria delas «descentralizada», ou seja, implantada fora do eixo Bruxelas-Luxemburgo. Duas importantes agências estão situadas no Reino Unido: a Agência Europeia dos Medicamentos e a Autoridade Bancária Europeia. O terremoto causado pelo Brexit significou a transferência obrigatória desses dois organismos. Têm de abandonar Londres. Todos os países membros lançaram olhares de cobiça. Quem seriam os herdeiros?

Só para dar uma ideia da importância dos benefícios que a implantação de uma instituição desse quilate pode trazer para a cidade que a abriga, falemos da Agência dos Medicamentos. Oferece impressionantes 900 empregos diretos e propicia criação de 1600 empresas anexas, que oferecerão milhares de empregos indiretos. É pra ministro nenhum botar defeito.

Oito candidatos se apresentaram para acolher a Autoridade Bancária e nada menos que dezenove cidades se propuseram a receber a Agência dos Medicamentos. Bonn, Amsterdam, Barcelona, Helsique, Bratislava, Milão, Paris, Dublin, Varsóvia, Viena estavam entre elas. A escolha teve lugar ontem, segunda-feira.

O romântico e improdutivo sobressalto separatista catalão inviabilizou a candidatura de Barcelona, que era uma das favoritas. Ninguém instalaria uma estrutura tão complexa numa região que periga deixar de fazer parte da UE a qualquer momento.

A escolha, a cargo da Comissão Europeia, segue regras um bocado complexas. Lembra um pouco a eleição de um papa, com vários turnos de votação secreta. A cada turno, as cidades menos votadas vão sendo eliminadas. Ao final, Paris herdou a prestigiosa Autoridade Bancária Europeia. Quanto à cobiçada Agência Europeia dos Medicamentos, vai-se mudar para Amsterdam. Franceses e holandeses estão sorrindo de orelha a orelha.

Se os britânicos pudessem votar de novo sobre o Brexit, não tenho certeza de que o resultado seria o mesmo. Agora é tarde.

Brexit ‒ 6

José Horta Manzano

Faz hoje um ano que o povo do Reino Unido decidiu que era chegada a hora de se divorciar da União Europeia. Um ano já! Como passa o tempo! Dá a impressão de que foi ontem. No dia seguinte ao voto, boa parte dos britânicos levou um susto quando se levantou. Contrariando todas as pesquisas ‒ que unanimemente indicavam resultado favorável à permanência na UE ‒, 52% do eleitorado exprimiu desejo de deixar o bloco. Não foi pouca gente, não. A diferença entre o «leave» (partir) e o «remain» (ficar) chegou perto de um milhão e meio de votos num universo de trinta e poucos milhões. A vontade popular foi claramente expressa.

Nem os dirigentes britânicos nem os colegas europeus estavam preparados para a surpresa. Nada parecido tinha acontecido antes, e o susto desnorteou meio mundo. O bloco europeu, que tinha começado com seis pioneiros em 1957, cresceu até atingir 28 membros. Encolher, não tinha nunca encolhido. Daí a perplexidade. Como proceder? A receita não está nos manuais.

Passado um ano, tudo ainda está por inventar. Inconformados, os que gostariam que o Reino Unido permanecesse na UE ainda acalentam a esperança de reverter a decisão. Tanto britânicos quanto estrangeiros trabalham nesse sentido. Muitos dos que depuseram na urna voto favorável à saída mordem as unhas ao se dar conta da sinuca em que meteram o país. Se o plebiscito fosse hoje, é grande a possibilidade de o resultado ser diferente. Mas o que está feito, está feito.

As negociações de verdade, previstas para durar dois anos, começam estes dias. Efeitos negativos já se manifestaram. Pra começar, Mr. Cameron, o organizador do plebiscito, foi pressionado a deixar o cargo de primeiro-ministro. Saiu de má vontade, mas saiu. Mrs. May, que imaginou reforçar sua base parlamentar por meio de eleições antecipadas, deu-se mal: tem hoje menos deputados que antes. Se conseguir segurar-se no cargo por mais alguns meses, será muito. A libra esterlina sentiu o baque e perdeu valor com relação ao euro e ao dólar. Se, por um lado, a notícia é boa para exportadores britânicos, é péssima para o cidadão comum, obrigado a pagar mais caro por tudo o que é importado. E olhe que, com a agricultura limitada por razões climáticas, o arquipélago é extremamente dependente de importação de alimentos.

A eleição de Monsieur Macron, seguida pelo estrondoso sucesso dos candidatos de seu partido nas eleições parlamentares francesas, não vem facilitar o trabalho de Theresa May. De fato, muitos viam na deserção britânica o princípio do fim da UE. A consagração de Monsieur Macron, europeu convicto e forte aliado de Frau Merkel, faz a balança pender para o outro lado. A Europa ganhou um reforço e tanto.

Até o momento em que o Reino Unido se tiver emancipado completamente do bloco, quase 50 anos de casamento terão decorrido. É uma existência. Dezenove mil leis comuns a todos os membros terão de ser revistas, revogadas ou reescritas. O trabalho é monumental. Há 3,6 milhões de europeus estabelecidos na Grã-Bretanha. Há também milhões de britânicos residindo em países da UE, especialmente aposentados que escolheram a França, a Espanha, a Itália ou Portugal para passar a velhice. Como é que fica esse povo todo? Serão despachados de volta pra casa?

Haveria ainda muitos pontos a mencionar, mas vamos parar por aqui, senão o artigo fica cansativo. Acredito que dois anos, prazo concedido para a conclusão do Brexit, está longe de ser realista. Vai levar muito mais tempo. Talvez seja mais simples votar de novo e ver se o povo não mudou de ideia. Afinal, todo o mundo pode se enganar e deve ter direito a uma segunda chance.

O umbigo da Europa

José Horta Manzano

Você sabia?

Para os brasileiros, não se discute: Deus é brasileiro. Não somos os únicos a fazer essa reivindicação, mas preferimos fazer pouco caso de outros povos que tenham a mesma certeza. Nossos hermanos do sul, por exemplo, têm a mesma convicção. Para eles, «Dios es argentino». Como diz o outro, cada louco com sua mania.

Os alemães das cercanias da cidade de Würzburg, no norte da Bavária, cultivam uma lenda peculiar. Dizem que, logo depois de criar a Terra, Deus deu um beijo exatamente naquela região. A marca deixada pelos amplos lábios divinos abarca um bom pedaço de chão.

Faz anos que o mui sério e oficial IGN ‒ Instituto Geográfico Nacional, da França, calcula com exatidão o centro geográfico da União Europeia. Esse ponto, que leva o nome técnico de centro geodésico, variou ao longo do tempo, com o crescimento do número de países membros.

Por muitos anos, o umbigo da Europa se situou em território francês. Em 1995, quando a Suécia e a Finlândia aderiram à comunidade, deslocou-se para o norte e passou a localizar-se na Bélgica. A partir de 2004, com a entrada de países da Europa oriental, o centro se afastou em direção ao leste. De lá pra cá, passeia por território alemão.

Com a saída do Reino Unido, provocada pelo Brexit, o centro geográfico vai deslocar-se de novo. Estará agora situado exatamente a 9°54’07’’ de longitude Este e 49°50’35’’ de latitude Norte. Na prática, cai exatamente em cima de um minúsculo vilarejo chamado Gadheim, que conta com apenas 89 almas. Estará precisamente no meio de uma roça de colza (canola).

Os habitantes do lugar estão eufóricos. Já hastearam a bandeira da UE na entrada da vila. Esperam a visita de muitos turistas. Europeus convictos, estão um pouco chateados que a fama tenha vindo à custa da saída da Grã-Bretanha. Aliás, a proprietária do campo de colza ficaria feliz em abrir mão da inesperada glória se os ingleses voltassem atrás na decisão.

Todos os habitantes estão orgulhosos de ver o lugarejo tornar-se o centro da União. Até já se propuseram a acolher bancos que, na trilha do Brexit, decidam abandonar Londres. É pouco provável que aconteça.

Europa: o esgotamento de um ciclo

José Horta Manzano

Artigo publicado pelo Correio Braziliense em 29 abril 2017.

Nada é eterno. Tudo o que nasce acaba morrendo um dia. Humanos e suas criações seguem o mesmo caminho: só subsistirão enquanto fizer sentido. Todo efeito é consequência de uma causa. Desaparecida a causa, o efeito não tem como se sustentar.

Quando foi assinado, sessenta anos atrás, o Tratado de Roma aliava seis países europeus num mercado comum visto como antessala de futura união política. Dois motivos estavam na base da ideia. O primeiro deles era pôr freio a toda veleidade belicista alemã. Duas hecatombes provocadas por aquele país tinham incutido em todos a aversão a enfrentamentos. O segundo motivo vinha paradoxalmente do temor da própria Alemanha Federal de acabar desaparecendo. De fato, nos anos 1950, o grande receio era de que a Guerra Fria esquentasse de vez. Se acontecesse, a Alemanha, situada na linha de frente, seria a primeira vítima. Perigava ser engolfada no universo comunista e tornar-se satélite de Moscou. Obedecendo ao adágio que preconiza que a união faz a força, a Alemanha juntou-se aos vencedores da guerra e subscreveu o tratado.

O tempo passou. Como é natural, erros e acertos foram cometidos ao longo das décadas. Do lado bom, conflitos foram banidos e a Alemanha não foi anexada pela União Soviética. A economia europeia, o ponto mais bem sucedido do tratado, deu salto gigantesco. Tanto é que o Reino Unido, a princípio arredio, se candidatou e entrou para o clube. Com a queda de barreiras que emperram importação e exportação, as trocas comerciais entre parceiros prosperaram.

Por lástima, alguns poucos erros têm golpeado a associação de países. Um dos mais desastrosos foi pecado de vaidade. Esquecidos de que não convém juntar, debaixo do mesmo teto, nações em estágio civilizatório assimétrico, deram preferência à quantidade de membros em detrimento da qualidade e da homogeneidade. Permitir a entrada de países que ainda estavam na era do arado puxado a cavalo não foi boa ideia. Constata-se o resultado hoje. O princípio de livre circulação de pessoas permite que fortes contingentes de imigrantes se estabeleçam onde bem entenderem. Há países, como a Alemanha, onde essa mão de obra abundante e barata é necessária e bem-vinda. Em outros, no entanto, tal afluxo causa tensões e favorece a ascensão de líderes oportunistas que acabam sobressaindo à custa de chavões populistas. A característica maior do populista é sugerir soluções simples para problemas complexos. Designa-se um culpado ideal, um inimigo do povo, e pronto: atribuem-se-lhe os males nacionais.

O Brexit é exemplo típico do que acabo de afirmar. Durante anos, líderes populistas martelaram a ideia de que a criatividade nacional estava cerceada pela rigidez das regras comuns. O país seria mais livre fora da União. Disseram ainda que a vinda maciça de estrangeiros, cujo estereótipo é o «encanador polonês», estava contribuindo para o arrocho salarial, o aumento do desemprego e o empobrecimento dos nativos. Silenciaram sobre as vantagens que o pertencimento à União havia trazido ao Reino Unido. Deu no que deu: um plebiscito meio bobo determinou o abandono do navio. A União Europeia levou um baque, mas não um golpe mortal. Se a segunda economia do continente se vai, as outras permanecem. Por enquanto, ainda dá pra remendar.

by Yasar ‘Yasko’ Kemal Turan, desenhista turco

Agora, chegou a vez da França. Todos os olhos estão voltados para o segundo turno das presidenciais, marcadas para 7 de maio. Os finalistas são Monsieur Macron, europeu convicto, e Madame Le Pen, isolacionista e populista. Analistas estão convencidos de que uma eventual, ainda que improvável, vitória da candidata xenófoba ‒ que exige a saída da França da União ‒ precipitaria o desmonte da UE.

Concordo e vou além. Ainda que Madame Le Pen perca, a UE, tal como a conhecemos hoje, está com os dias contados. A vitória do candidato liberal pode garantir-lhe alguns anos de sobrevida, nada mais. Os jovens europeus, que não conheceram guerra, fome nem miséria, agem como se essas benesses fossem naturais e automáticas. Por ignorância, atribuem as mazelas à União. O fato é que os motivos que levaram à criação da União Europeia deixaram de existir. O ciclo já se esgotou e a Europa está na UTI. Como todos os acordos, pactos e tratados, este também está chegando ao fim. É pena, mas assim é a vida: tudo o que nasce acaba morrendo um dia.

Brexit ‒ 5

José Horta Manzano

Dia 23 de junho de 2016, os 28 países membros da União Europeia foram dormir tranquilos. Na manhã seguinte, ao esfregar os olhos, deram-se conta, atônitos, de que faltava um. O Reino Unido tinha escapado pela janela. Por via de plebiscito, a maioria dos eleitores britânicos tinha exprimido o desejo de se desligar da União Europeia.

Em tese, parece simples: assina-se o distrato e pronto, o casamento está dissolvido. Na prática é bem mais complicado. A cada dia, surge novo nó a desatar. Afinal, foi um casamento de 44 anos! O mais recente imbróglio do qual tive notícia tem a ver com o tráfego aéreo entre países da União.

Desde que o transporte aéreo se popularizou, a partir dos anos 1970, países e companhias aéreas travaram batalha pesada para regulamentar o setor. Direitos de trânsito, escalas técnicas, regras de reciprocidade, endosso de bilhete eram rigidamente regrados. Pelo final dos anos 80, os céus da União Europeia foram desengessados. O abrandamento das regras permitiu o aparecimento de companhias de baixo custo ‒ em português: low cost companies.

Atualmente, dezenas de empresas ocupam o nicho, a maioria dedicada a voos turísticos. Duas delas, entretanto, alargaram o horizonte de negócios e se destacam nitidamente das outras: a Ryanair e a Easyjet. São gigantes no ramo. A primeira é irlandesa e a segunda, britânica. Na prática, ambas tem a Grã-Bretanha como plataforma principal de operações. Servem não somente a turistas, mas também a milhares de homens de negócio que utilizam seus voos a cada dia. Afinal, sai tão barato!

O Brexit, como é fácil imaginar, vem balançar o coreto dessas duas companhias. O baixo preço é fruto de uma fieira de acordos tornados possíveis pela integração dos países europeus. Com a saída efetiva do Reino Unido, ninguém sabe como ficarão os direitos de tráfego aéreo intraeuropeu. Alguma incidência o divórcio há de ter sobre a operação das empresas de baixo custo, isso é certo. Só falta conhecer a extensão do estrago. A partir do momento em que a Grã-Bretanha ‒ base de operação de ambas as empresas ‒ for considerada país estrangeiro, os acordos perderão a validade e terão de ser renegociados um a um.

Não seria surpreendente que a Easyjet se «naturalizasse», passando a exibir passaporte de qualquer um dos países da União. Podem ambas também transferir a base de operações para outro país. As opções são numerosas e só o tempo dirá o que vai acontecer. No fim, tudo acaba se ajeitando mas, enquanto isso, muita turbulência ainda vai sacudir as aeronaves.

Frase do dia — 330

«O presidente dos EUA se alegra de ver o Reino Unido saindo da União Europeia. Pois bem, se ele continuar nesse tom, eu vou encorajar Ohio ou o Texas a deixar os Estados Unidos.»

Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, em recente desabafo.

Jus sanguinis e jus soli

José Horta Manzano

Nacionalidade é conceito de geometria variável. Diferentes países não a enxergam necessariamente através das mesmas lentes. Na Antiguidade, partia-se da premissa de que filho de peixe peixinho é. Como qualquer outro bem, a nacionalidade também se herdava. Nascesse onde fosse, filho de caldeu era caldeu, filho de assírio era assírio e assim por diante. Em juridiquês, a prática leva o nome de jus sanguinis ‒ a lei do sangue.

Um dia, os europeus descobriram a América, um mundo novo. Homens e mulheres começaram a formar colônias permanentes nas novas terras. Enquanto o território foi extensão da respectiva metrópole, o problema da nacionalidade não existia: filho de português era português, filho de inglês era inglês. Que tivessem nascido nas Américas ou não.

Na virada dos anos 1700 para os 1800, no entanto, movimentos de independência foram surgindo. Em menos de meio século, o Novo Mundo coalhou-se de países novos e emancipados. Aí surgiu a questão da nacionalidade. Quem era brasileiro e quem não era? Quem era mexicano e quem não era? Se a lei do sangue continuasse em vigor, seriam todos portugueses, espanhóis ou ingleses ad vitam æternam. Um beco sem saída.

Passaporte 1Para contornar o problema, a geometria do conceito de nacionalidade teve de ser alterada. Alargando a noção, os países do Novo Mundo passaram a conceder nacionalidade a todos os nascidos no território. É o que se conhece hoje como jus soli ‒ a lei do solo.

Mas atenção: os países americanos são os únicos a concederem nacionalidade automática aos nascidos no país. No resto do mundo, a antiga visão não mudou: a lei do sangue continua vigorando. Como resultado, os países da América são obrigados a adotar ambas as visões. Reconhecem tanto a lei do solo quanto a do sangue. E por quê?

É simples. Pela lei alemã, filho de brasileiro nascido na Alemanha não é alemão. Se a lei brasileira não reconhecer a criança como brasileira e não lhe conceder automaticamente a nacionalidade, estará criado um pequenino apátrida. O mesmo vale para o filho de peruano nascido na Inglaterra. Ou para o filho de americano nascido na Mongólia.

A legislação suíça, como a dos demais países europeus, reconhece unicamente a lei do sangue. A cada criança nascida no território, é atribuída a nacionalidade do pai (ou da mãe, se for o caso). Faz mais de um século que a Suíça é país de imigração, contando com forte contingente de estrangeiros. Décadas atrás, o grosso dos forasteiros vinha da Itália, país vizinho e, na época, pobre. Hoje a origem dos estrangeiros é muito mais variada.

Como a legislação não concede nacionalidade a filho de estrangeiro nascido aqui, os descendentes de imigrantes têm a nacionalidade do pai. E assim por diante, a coisa continua. Caso o imigrante não se naturalize, seu neto, seu bisneto, seu tataraneto serão estrangeiros. Calcula-se que 25 mil habitantes se enquadram hoje nessa categoria. Embora a família esteja estabelecida no país há três gerações (ou mais), continuam estrangeiros. Têm passaporte de um país que, em muitos casos, nunca visitaram e cuja língua não conhecem.

suisse-31-passaporteNa Suíça, o processo de naturalização é tão longo e tão complicado que chega a desanimar. Precisa ter vivido 12 anos no país. O candidato terá de enfrentar verdadeiro inquérito policial que vasculhará sua vida. Receberá a visita de um comitê encarregado de verificar como vive, como se veste, que atividades pratica. Vai-se verificar se conhece bem a língua local, se sua casa é limpa e arrumada. Seus vizinhos serão interrogados e darão opinião sobre candidato. O pobre postulante terá ainda de encarar prova escrita e exame oral diante de bancada formada por um grupo de cidadãos. Será questionado sobre a política nacional, as instituições, o sistema de governo, a história e a geografia do país. O processo, estressante e ‒ por que não dizê-lo? ‒ humilhante, leva por volta de três anos. E custa caro. Essa via crucis explica a existência dos 25 mil estrangeiros de terceira geração.

Para resolver o problema, um projeto de mudança da Constituição foi proposto à votação popular ontem. Por maioria de 60%, os suíços aprovaram a modificação. A partir de 2018, estrangeiros de terceira geração que tenham nascido no país e que aqui tenham sido escolarizados têm direito à chamada naturalização facilitada. Que fique claro: a concessão da nacionalidade não será automática, mas os trâmites serão amenizados. Parte-se do princípio que os candidatos estão bem integrados na comunidade nacional, portanto não serão mais obrigados a enfrentar comitês e inquérito policial. De três anos, o processo de naturalização levará apenas um. Para os demais estrangeiros, nada muda.

Nestes tempos de Trump e de Brexit, já é uma conquista.

Brexit ‒ 4

José Horta Manzano

Com o voto a favor do Brexit, os britânicos armaram uma confusão e se enfiaram numa encurralada da qual terão dificuldade em sair. A coisa é muitíssimo mais complicada do que parece. «Sair da UE» é frase simples de pronunciar mas difícil de pôr em prática.

Afinal, o casamento do Reino Unido com a União Europeia já dura há quase 45 anos. Para começar, quando aderiram à comunidade, os britânicos tiveram de reformar muitas leis para pôr-se em conformidade com as regras vigentes à época. Por cima dessa adaptação inicial, vieram acumular-se todos esses anos de vida em comum, com regronas, regrinhas, regulamentos, práticas, tratados e toda a parafernália. Terão de ser avaliados e descosturados um a um. Não é coisa pouca.

Em matéria de asneira, o voto britânico em favor da separação só se compara à eleição do atual presidente americano. Ambas as decisões mandam para o espaço todo um edifício construído e consolidado por décadas, tijolo por tijolo num desenho mágico. A tolice do eleitor americano ainda pode ser revertida e consertada. De fato, a eleição do próximo presidente ‒ ou, eventualmente, a destituição do atual ‒ há de repor as coisas no lugar. Já o caso britânico é mais embaraçado. É ida sem volta.

refugiados-1Ao se distanciar dos vizinhos, a Grã-Bretanha tem muito mais a perder do que a ganhar. Theresa May há de estar horrorizada com a ascensão de Mr. Trump. Tanto que, dos chefes de governo do mundo inteiro, foi a primeira a precipitar-se a Washington. Sem o aconchego da Europa e com um homem imprevisível instalado por quatro anos na Casa Branca, o futuro dos súditos de Elisabeth II se anuncia inseguro.

Muitas razões levaram os britânicos a votar pela saída da UE. A primeira delas, arma utilizada por dez em cada dez políticos populistas, foi a rejeição aos «estrangeiros que vêm roubar nossos empregos». Aliás, para confortar o naco da população que se deixou embalar por essa quimera, Theresa May tem declarado que o Brexit vai servir para «controlar a imigração».

Para reforçar, Mrs. May anunciou dois dias atrás que seu país está disposto a pagar para manter refugiados longe do Reino Unido. Na cúpula realizada em Malta sexta-feira passada, a Grã-Bretanha disse estar disposta a contribuir com 30 milhões de libras para barrar a rota de forasteiros indesejados. A ideia é desviá-los para bem longe. A América Latina ‒ e o Brasil em especial ‒ fazem parte dos destinos alternativos.

A primeira-ministra acredita que humanos possam ser tratados como objetos. A exemplo do que certos países ricos costumam fazer quando «exportam» contêineres de lixo hospitalar contaminado em direção a países mais pobres, a intenção é desviar o caminho desses infelizes e obrigá-los a ir para outro lugar.

refugiados-2Além da questão ética ‒ afinal, não se trata gente como se lixo fosse ‒, sobra o velho problema: esqueceram-se de combinar com os russos. O sonho da maioria dos refugiados não é unicamente chegar à Europa. O objetivo maior é chegar à Grã-Bretanha sim, senhor. A não ser que se utilize força bruta, não vai ser fácil redirecionar esse fluxo de populações para a América Latina.

Mal comparando, é como se o universitário brasileiro abandonasse o sonho de fazer especialização num prestigioso estabelecimento americano ou europeu e se conformasse com um estágio na Mongólia, no Congo ou na Bolívia.

Rearranjo planetário

José Horta Manzano

As relações comerciais planetárias estão passando por uma revolução. Todos já se deram conta de que, sob inspiração do novo presidente, os Estados Unidos estão em plena guinada protecionista, numa curva fechada de cantar o pneu. Passado um primeiro momento de estupor, é chegada a hora de seguir as novas regras do jogo.

Aqui nas bandas do Mercosul, a saída da Venezuela, embora desejada por todos os que têm juízo, ainda não é oficial. Caracas, embora com a voz temporariamente neutralizada, ainda aparece oficialmente como membro do clube. Torçamos para que o galho apodrecido seja amputado quanto antes.

by Mark Knight (1960-), desenhista australiano

by Mark Knight (1960-), desenhista australiano

A mente embotada do novo dirigente da Casa Branca não lhe permite dar-se conta de que seus atos teatrais estão inaugurando nova era. Não sei quais possam ser as perspectivas para seus conterrâneos, tenham votado nele ou não. Pode ser que a vida melhore para alguns, talvez possa ser um desastre para outros. Quanto ao resto do mundo, a violência, os vaivéns, as meias verdades, o zanzar de barata tonta de Mister Trump espantam mas não empolgam.

Como diz o outro, não dá pra botar fé no indivíduo. Impetuoso, em menos de duas semanas de governo já mostrou a que veio. Feito de um bloco só, o novo presidente é como peça bruta que acabou de sair da fundição. Cheio de rebarbas cortantes, falto de facetas, o homem desconhece nuances. Lapidá-lo parece missão impossível. Tem 70 anos(*). Se não aprendeu até agora, é caso perdido.

Treze anos atrás, o Lula e señor Kirchner bombardearam a Alca ‒ um tratado de comércio que agruparia todas as Américas, do Canadá à Terra do Fogo. Preferiram jogar-se de cabeça num hipotético e folclórico mercado dito «Sul-Sul». Irã, Coreia do Norte, Venezuela, Cuba e ditaduras africanas se juntariam a nós para redirecionar o comércio mundial. Deu no que deu.

Agora que o mercado dos EUA está se tornando esquisito, não há que hesitar muito para reagir. Que ninguém se engane: o mundo todo está mexendo os pauzinhos para pôr ordem no desarranjo que Trump ameaça gerar. Não vamos deixar passar o momentum.

By Bill Day, desenhista americano

By Bill Day, desenhista americano

No Brasil, embora o governo atual seja visto como temporário ou “tampão”, não podemos nos conceder o luxo de esperar pelo próximo ocupante do Planalto. Afinal, faltam dois anos. O diálogo entre o Brasil e a Argentina, retomado pelas respectivas equipes econômicas esta semana em Brasília, é de excelente augúrio. É muito bom constatar que os governantes de ambos os países se deram conta de que está passando da hora de procurarmos bom porto.

Que se dialogue com a Aliança do Pacífico ‒ com ou sem os EUA. Que se relancem as tratativas com a União Europeia ‒ sem se preocupar com o Brexit. Que se expulse a Venezuela do Mercosul até que volte a ser uma democracia de pleno direito. Que se abrande a rigidez do Mercosul e que se dê liberdade a cada membro de concluir alianças comerciais por conta própria, segundo os interesses maiores de cada um.

Chega de ocasiões perdidas. Não vamos deixar passar este momento de reorganização de forças criado por um terremoto chamado Trump. É hora de enterrar de vez essa ingenuidade bolivariana e cair na real.

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(*) Uma curiosidade: o ano de 1946 é o único que deu três presidentes aos EUA. De fato, Bill Clinton, George Bush Jr. e Donald Trump são todos da mesma safra.